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Leandro Vilar

terça-feira, 16 de julho de 2024

A lenda do Rei Artur

O rei Artur é um dos personagens lendários mais conhecidos da Inglaterra e do mundo, tendo se popularizado desde o período medieval. Além dele, vários outros personagens de suas histórias também ganharam destaque, além de que diferentes narrativas foram escritas sobre esse lendário monarca, perfazendo o chamado Ciclo Arturiano ou Matéria da Bretanha, que, por sua vez, influenciou artistas diversos a fazerem pinturas, esculturas, músicas, romances, poemas, filmes, jogos etc. sobre Artur, Camelot e os Cavaleiros da Távola Redonda. O presente texto conta alguns aspectos das fontes medievais sobre essa lenda, em que época supostamente Artur teria vivido, e alguns aspectos principais das suas narrativas e até algumas adaptações famosas sobre sua lenda. 

Capa do livro The Boy's King Arthur (1922).
 
Fontes medievais mais antigas (IX-XI)

As fontes medievais sobre o Rei Artur englobam uma variedade de gêneros literários: crônicas, anais, romances, contos e poemas, os quais foram redigidos ao longo de mais de trezentos anos, principalmente na Inglaterra e na França, os dois países onde tais narrativas se popularizaram inicialmente. Por conta dessa diversidade de fontes e autores, os literatos mais tarde criaram o conceito de Ciclo Arturiano para se referir as várias fontes e versões da lenda do Rei Artur. Entretanto, vejamos algumas das fontes da Idade Média mais significativas.

A primeira a se destacar é o livro Historia Brittonum (História dos Bretões), escrito possívelmente pelo monge galês Nênio nas primeiras décadas do século IX, apesar de haver incertezas quanto a sua autoria. Essa obra trata-se de uma crônica histórica cuja proposta era apresentar algumas batalhas famosas travadas na Bretanha, entre o final da dominação romana no século V até o século VII, época das invasões dos saxões. Foi nesse período que a crônica menciona a bravura de um tal rei chamado Artur. Sendo a fonte mais antiga a mencionar esse monarca, a qual narra o seguinte: 

"Foi então que o magnânimo Artur, com todos os reis e força militar da Grã-Bretanha, lutou contra os saxões. E embora houvesse muitos mais nobres do que ele, ele foi escolhido doze vezes como seu comandante e com a mesma frequência foi conquistador. A primeira batalha em que travou foi na foz do rio Gleni. A segunda, terceira, quarta e quinta, ficavam em outro rio, chamado pelos britânicos de Duglas, na região de Linuis. A sexta, no rio Bassas. A sétima na floresta Celidon, que os bretões chamam de Cat Coit Celidon. A oitava foi perto do castelo Gurnion, onde Artur carregava a imagem da Santa Virgem, mãe de Deus, sobre seus ombros, e através do poder de nosso Senhor Jesus Cristo e da Santa Maria, colocou os saxões em fuga e os perseguiu o dia inteiro com grande matança. A nona foi na Cidade da Legião, chamada Cair Lion. A décima ficava às margens do rio Trat Treuroit. A décima primeira foi na Montanha Breguoin, que chamamos de Cat Bregion. A décima segunda foi uma disputa muito severa, quando Artur penetrou na Colina de Badon. Nesse combate, novecentos e quarenta caíram apenas pelas suas mãos, ninguém além do Senhor lhe deu assistência. Em todos esses combates os bretões tiveram sucesso. Pois nenhuma força pode ser usada contra a vontade do Todo-Poderoso". (Historia Brittonum, tradução minha). 

O relato de Nênio nos apresenta Artur como um formidável rei que confrontou os saxões, vencendo-os em doze batalhas, sendo a última a qual ele se destacou mais, tendo sozinho matado 960 inimigos. Além das façanhas militares atribuídas a esse rei, a crônica também destaca o fato de ele ser um cristão devoto e graças a isso, foi abençoado por Deus com as vitórias em batalha. 

Apesar de sua pretensão histórica, hoje sabe-se que boa parte do livro apresenta acontecimentos lendários, logo, a ideia de que Artur teria sido um rei bretão que viveu entre os séculos V e VI, herdado costumes romanos, apesar de atrativa, é posta totalmente em dúvida devido a falta de informações do período, já que o autor desse livro consultou obras mais antigas, as quais nada comentam sobre Artur, mas isso será abordado novamente mais adiante. 

A segunda obra mais antiga a mencionar Artur são os Annales Cambriae (Anais de Gales), redigido no século X, o qual informa acontecimentos político-militares importantes da Bretanha e do País de Gales, ocorridos entre 450 d.C e 950 d.C, o que demonstra que esse livro foi escrito perto do final do século X. De qualquer forma, a obra assinala que o rei Artur viveu entre os séculos V e VI, apontando duas batalhas em que ele esteve envolvido: A Batalha do Monte Badon (516), marcando grande vitória de Artur contra os saxões, inclusive o relato diz que o rei carregou uma cruz no campo de batalha, algo que enaltece sua imagem de grande monarca cristão. Por fim, os anais mencionam a Batalha de Camlann (537), em que Artur e Medraut morreram em combate.

Artur combate Mordred. Pintura de N. C. Wyeth para o livro The Boy's King Arthur (1922) de Sidney Lanier. 

Por se tratar de anais, esses não costumavam fornecer detalhes sobre os acontecimentos, apenas registrar o que houve, logo, não se sabe como foram esses conflitos, além de haver incertezas se eles realmente ocorreram, pois autores anteriores a esses anais não comentam tais batalhas. Entretanto, é nesse livro que encontramos a primeira menção a Medraut, mais tarde renomeado para Mordred, dito ser o filho bastardo de Artur. Porém, nos Annales Cambriae nada informa se ambos seriam parentes ou até mesmo inimigos. 

Além desses relatos pseudo-históricos, o nome de Artur é mencionado brevemente em alguns poemas de origem galesa como Kadeir Teyrnon (A Cadeira do Príncipe), Preiddeu Annwn (Os Despojos de Annwn), Marwnat vthyr pen (A Elegia de Uther Pen). Informações sobre Artur também são citadas brevemente em alguns poemas irlandeses e antologias de contos galeses, sempre se referindo a ele como um nobre e honroso líder. Essas obras teriam sido compiladas entre os séculos IX e XI, entretanto, a narrativa comumente conhecida sobre Artur que conhecemos somente começou a se desenvolver mais tardiamente.

Fontes medievais mais tardias (XII-XV)

No século XII o cronista Godofredo de Monmouth (c. 1100 - c. 1155) escreveu o livro Historia Regum Britanniae (História dos Reis da Bretanha), livro escrito entre 1135 e 1139, o qual traz relatos sobre vários monarcas da Bretanha, centrando-se na fundação da Cornualha, destacando entre eles o Rei Artur. O livro segue a tradição da mitologia greco-romana, apontando que os primeiros senhores da Cornualha eram descendentes dos troianos, que chegaram numa época em que gigantes viviam naquela região. Então a obra avança por alguns séculos comentando alguns reis notáveis e guerras, para finalmente chegar ao tempo de Artur. Dos doze capítulos que compõem essa narrativa, os capítulos nove ao doze são dedicados a história de Artur, sendo ele o monarca mais importante a ser retratado nesse livro. 

É neste livro que a lenda de Artur ganhou contornos hoje mais conhecidos, já que anteriormente praticamente não tínhamos informações genealógicas e coesas sobre Artur, pois cada fonte ou nada dizia sobre seu passado, governo, família, aliados, ou quando citava isso, era algo vago e mudava de fonte para fonte. Porém, Monmouth é creditado como tendo sido o primeiro escritor que procurou organizar as histórias sobre o Rei Artur. Sendo assim, nesse livro ele informa que Artur era filho do rei Uther Pendragon, ele menciona também o mago Merlin como conselheiro de Artur, comenta em mais detalhes o governo do rei e algumas campanhas militares travadas, especialmente sua guerra contra os saxões; aborda alianças políticas com diferentes lideranças da Bretanha, Gales e da Irlanda. Até cita governantes estrangeiros; fala de cavaleiros juramentados a Artur; apresenta a rainha GuinevereMordred (descrito como sobrinho de Artur), a feiticeira Morgana (meia-irmã de Artur), entre outros personagens secundários. Monmounth também cita a espada Excalibur, mas diz que essa foi forjada na mística ilha de Avalon

Merlin abençoa o bebê Artur. Pintura de Emil Johann Lauffer, 1909. 

Um detalhe interessante é que nessa obra o rei é descrito como bastante ambicioso, expandindo sua influência para a Dinamarca e a Gália, e até mesmo possuía planos de invadir a Itália e conquistar Roma, todavia, sabendo da traição de seu sobrinho Mordred que pretendia usurpar o trono, Artur voltou para a Bretanha para confrontá-lo, vencendo na Batalha de Camlann. Artur ficou bastante ferido, então decidiu renunciar ao trono, passando-o para Constantino III da Bretanha, e seguiu em exílio para Avalon. 

Nota-se que alguns aspectos sobre a organização do reinado de Artur surgem nesse livro: temos o nome do pai, apesar da mãe não ser citado; Merlin possui um ar místico e até profético; a Távola Redonda não existe, mas já temos menções a vários cavaleiros juramentados; Camelot não existe; Mordred ainda é inimigo de Artur, sendo um dos seus cavaleiros que o traem; Guinevere aparece como rainha; Avalon é apresentada como uma misteriosa ilha, para onde Artur parte em seu exílio; Excalibur é uma espada especial, embora não seja espicificado o motivo; Morgana é uma feiticeira que é meia-irmã de Artur. 

Viagem de Artur e Morgana para a ilha de Avalon. Pintura de Frank W. W. Topham, 1888. 

O trabalho de Monmouth se tornou bastante popular e referência, sendo copiado várias vezes e traduzido, influenciando outros escritores, poetas e cronistas a se interessarem pela lenda do Rei Artur. Condição essa que foi também a partir do século XII que narrativas centradas em outros personagens das lendas arturianas começaram a se difundir, destacando-se as aventuras relacionadas aos cavaleiros como Lancelot, Tristão, Gawain e Perceval. Essas narrativas passaram a deixar Artur em segundo plano, buscando explorar outros personagens que tiveram ligação direta com ele, prática inclusive até hoje mantida por escritores contemporâneos. 

O poeta francês Chrétien de Troyes (c. 1135 - c. 1191) começou a escrever sobre as lendas arturianas, sendo o primeiro autor em língua francesa a se destacar nessa temática. Seus trabalhos eram centrados em alguns dos cavaleiros do Rei Artur, destacando-se os poemas: Érec et Énide (c. 1170), Clégis (c. 1776), Ivain, o Cavaleiro Leão (c. 1178-1181), Lancelot, O Cavaleiro da Carreta (c. 1178-1181) e Perceval, ou o Conto do Graal (c. 1182-1190). Em todos esses livros o Rei Artur surge como personagem secundário nas tramas, as quais se centram nas aventuras e dilemas de seus cavaleiros. (MORRIS, 1982). 

Érec, Clégis e Ivain são cavaleiros menos conhecidos, aparecendo basicamente na obra de Troyes. Porém, Lancelot e Perceval são bem mais reconhecidos. No caso do poema sobre Lancelot, Troyes explorou o romance adúltero do cavaleiro com a rainha Guinevere, tema já em voga a bastante tempo, porém, uma das novidades que ele trouxe foi a presença de Camelot, que passou a designar a cidade que sediava a corte de Artur. Já o poema sobre Perceval, o autor inseriu a lenda da demanda do Santo Graal, que estava popular na época. Condição essa que além de Perceval, outros cavaleiros também realizariam essa busca como Galahad, cujas narrativas foram contadas por outros autores. 

Além desses cavaleiros, Tristão também recebeu atenção dos escritos e poetas. O cavaleiro era sobrinho do rei Marcos da Cornualha, sendo enviado à Irlanda pelo tio para escoltar sua nova noiva, a princesa Isolda. Todavia, o cavaleiro e a princesa acabaram se apaixonando, iniciando o drama da narrativa. Essa história recebeu algumas versões famosas como Tristão e Isolda (XII) do poeta normando Béroul, Tristão (XII) do poeta inglês Thomas da Bretanha, Tristão (XIII) do poeta alemão Godofredo de Estrasburgo(MORRIS, 1982). 

Tristão e Isolda, pintura Herbert Draper, 1901. 

O poeta e cronista francês Wace (c. 1100 - c. 1174/1183) escreveu uma crônica "histórica" sobre os reis da Bretanha, intitulada Roman de Brut (1155), nessa obra ele menciona o governo do Rei Artur, além de ter a primeira menção a Távola Redonda, uma mesa usada pelo soberano para se reunir com seus nobres, honrados e valentes cavaleiros. Além dessa menção, Wace também escreveu aventuras inéditas sobre Artur, incluindo o contato dele com gigantes. 

O tema do amor proibido entre Lancelot e Guinevere acabou inspirando outros autores, como Ulrich von Zatzikhoven que escreveu o poema Lanzelet (c. 1194), primeira obra em alemão sobre o cavaleiro. Aqui o autor procurou dar sua visão sobre o personagem sua narrativa, apresentando aspectos da sua infância e juventude, passando por sua vida como cavaleiro do Rei Artur e seu amor por Guinevere. (DOVER, 2003). 

O poeta francês Robert de Boron se destacou na produção das lendas arturianas, tendo escrito os poemas Merlin (XII) e Percival (XII), nessas narrativas ele apresenta a profecia envolvendo Artur como rei da Bretanha, estando predestinado aquilo, além de contar que um dos sinais para isso, foi ele ter tirado uma espada cravada numa pedra. Neste caso, a famosa Excalibur. Por sua vez, no poema de Percival, ele retomou a demanda do Santo Graal, além de fornecer mais algumas informações sobre a corte de Artur e até mesmo escreveu que a Excalibur era uma espada mágica. Todavia, autores posteriores mudaram a origem da espada, associando-a com a Dama do Lago. 

Artur tentando tirar a Excalibur da pedra. Ilustração de Arthur Rackman para o livro The Romance of King Arthur (1917) de Alfred W. Pollard. 

Entre as décadas de 1210 e 1230 surgiu em francês o chamado Ciclo de Lancelot-Graal, uma coleção de cinco narrativas em prosa que abordavam os dois temas em alta. Se desconhece a autoria dessas obras, já que inicialmente cogitou-se ser trabalho do escritor Walter Map, mas essa hipótese foi descartada. A primeira obra é intitulada História do Santo Graal, a qual conta como José de Arimatéia obteve o cálice sagrado e o levou até a Bretanha. Em seguida temos História de Merlin, obra que inicia a lenda arturiana propriamente; História de Lancelot, livro focado no cavaleiro; A Busca do Santo Graal, apresentando a jornada de Perceval, Boors e Galahad atrás do cálice; A Morte do Rei Artur, obra que encerra o reinado de Artur apresentando o confronto dele com Mordred. (DOVER, 2003). 

Guinevere e Lancelot. Pintura de Emil Teschendorff, 1850. 

Vários poemas e contos anônimos sobre o Rei Artur, mas também seus cavaleiros como Lancelot, Tristão, Gawain e Perceval foram publicados entre os séculos XIII e XIV, principalmente na França, mostrando a popularidade dessas narrativas para fora do contexto inglês. 

Nos séculos XIV e XV surgiram algumas publicações do ciclo arturiano que se destacaram, entre as quais: o conto Sir Gawain e o Cavaleiro Verde (XIV) de autoria anônima; o Mabinogion (XIV), uma coletânea de lendas sobre a Bretanha, Gales e a Irlanda, sendo que dois poemas dele abordam brevemente o Rei Artur; Perceforest (XIV) um romance francês sobre a origem da Bretanha, logo citando o reinado de Artur; Os Contos de Cantebury (XIV) de Geoffrey Chaucer, que reúne várias narrativas, algumas citam Artur e seus cavaleiros; La Tavola Ritonda (XV), de autoria desconhecida, mas escrito em italiano, destacando os cavaleiros à serviço de Artur.

Entretanto, nesse período destacou-se publicações que exploravam a morte do monarca. Fato esse que encontramos várias produções a respeito como: Morte Arthure, The Awntyrs of Arthure, Morte Arthur, todos escritos em formato de poesia, aplicando-se diferentes técnicas, entretanto, a obra que mais se destacou nessa abordagem foi o livro Le Morte d' Arthur (1485) do cavaleiro inglês Thomas Malory, o qual reuniu várias referências do Ciclo Arturiano inglês e francês, compilando ideias de diferentes versões para compor sua própria narrativa, a qual ele concebeu com a pretensão de ser "a versão definitiva" sobre a lenda do Rei Artur. (MORRIS, 1982). 

O último sono de Artur, pintura de Edward-Burne-Jones, 1898. 

O livro é dividido em capítulos que vão desde a profecia dada por Merlin a Uther Pendragon, passando pela infância de Artur, finalizando com sua morte na Batalha de Camlann contra Mordred. Nessa obra encontramos Guinevere, Morgana, Lancelot, Perceval, Gawain, Tristão, entre outros cavaleiros; a Excalibur encravada na rocha; Camelot, a Távola Redonda, Avalon, entre outros aspectos comuns das lendas arturianas. A obra de Malory se tornou bastante popular, influenciado autores nos séculos seguintes.

Todavia, entre os séculos XVI e XVIII, a lenda arturiana caiu em popularidade vertiginosa. Excetuando-se algumas obras clássicas que ainda eram reimpressas ou traduzidas, tivemos poucas produções originais como a peça King Arthur (1691) de John Dryden e Henry Purcell, e os livros Prince Arthur (1695) e King Arthur (1697) de Richard Blackmore. O interesse por Artur e sua lenda somente foi recuperado no século XIX com influência do Romantismo, quando tivemos escritores, poetas, pintores, escultores, músicos e compositores que voltaram a se interessar por esse personagem e sua história. 

Por sua vez, no século XX o personagem ganhou popularidade principalmente no cinema, depois retornando para a literatura, e indo para os quadrinhos, desenhos, seriados, jogos de tabuleiro, RPGs e videogames. 

A origem da lenda

Na maior parte das vezes não é possível determinar quando uma lenda teve início, o máximo que se consegue é apontar o possível século para isso. No caso do Rei Artur, os historiadores assinalam que a lenda arturiana teria se formado a partir da tradição popular galesa e bretã, em algum momento entre os séculos VII e VIII, já que o relato mais antigo encontrado sobre o monarca é a crônica Historia Brittonum que data do século IX, e atribui a condição de que Artur teria vivido entre os séculos V e VI.

Todavia, pesquisas históricas e arqueológicas nada encontraram sobre as evidências das batalhas mencionadas na Historia Brittonum e nos Annales Cambriae e de outras crônicas anteriores, o que põe em dúvida a veracidade de alguns desses conflitos. Destacam-se sobre isso os livro The Age of Arthur (1973) de John Morris e The Arthur of the Welsh (1991), uma coletânea de estudos diversos. Ambos os livros são algumas das obras de referência que buscaram encontrar evidências de um possível governante chamado Artur ou com outro nome que pudesse tê-lo inspirado. Mas nada foi conseguido. 

Francis Pryor (2004) aponta alguns aspectos interessantes. A crônica De Excidio et Conquestu Brittaniae (VI), escrita pelo clérigo Gildas, menciona a Batalha do Monte Madon, mas não cita Artur. O livro foi escrito quase um século depois de tal batalha. O livro Historia ecclesiastica gentis Anglorum (VIII) do monge Beda, o Venerável, também nada menciona sobre Artur. Por fim, o importante livro histórico das Crônicas Anglo-Saxãs (IX), as quais reúnem relatos históricos do século I ao IX (depois uma versão atualizada incluiu relatos dos séculos X e XI), nenhuma delas menciona Artur, embora contenha informações sobre dezenas de reis e governantes. 

Dessa forma, Pryor aponta que somente citando essas três obras importantes que antecedem o trabalho de Nênio, nenhuma delas menciona a existência de Artur. Sobre isso, o autor chegou a algumas conclusões: Artur não teria sido tão famoso e importante como acabou se tornando com o tempo; Artur não teria sido um rei real, talvez um personagem inspirado em algum governante ou general que hoje desconhecemos. As narrativas sobre Artur apresentadas pelos livros dos séculos IX e X adviriam de relatos oriundos de lendas e contos populares, não de crônicas históricas e anais históricos. 

Quanto a Artur ter sido inspirado em um homem real, existem algumas hipóteses, duas delas que citaremos aqui, as quais consideram homens de origem romana para ter inspirado ele. A primeira hipótese foi apresentada no livro The Discovery King of Arthur (1985) de Geoffrey Ashe, o qual sugeriu que o general romano Magno Máximo (c. 335-388), o qual comandava a Britânia teria inspirado a lenda de Artur, pois em 383 ele rebelou-se contra o imperador Graciano e depois contra o imperador Valentiniano II que sucedeu seu irmão Graciano. Máximo se autoproclamou imperador romano, reivindicando a Britânia, Irlanda e a Gália como seu domínio e em 388 ele invadiu a Itália, mas morreu em combate. 

A hipótese de Ashe era bastante interessante, o problema é que as crônicas históricas bretãs mencionam Máximo. Por sua vez, na Historia Brittonum, Máximo também é citado, mas Artur é outra pessoa. Se houvesse a percepção de que Magno Máximo inspirou o personagem do Rei Artur, por que ambos eram tratados como monarcas distintos? 

A segunda hipótese surgiu no livro From Scythia to Camelot (1994) de Scott Littleton e Linda Malcor, os quais se basearam na hipótese de Kemp Malone, proposta em 1924, que sugeriu que o comandante romano Lúcio Artório Casto (séculos II-III) teria sido a inspiração para Artur. Os autores partiram da etimologia do sobrenome Artório, que supostamente teria originado o nome Artur. Essa teoria até foi usada no filme Rei Arthur (2004). 

Entretanto, excetuando-se a condição de que Lúcio foi um centurião que serviu em algumas legiões na Britânia, nada se sabe sobre sua vida, além de não haver evidências de que tenha sido uma liderança que ganhou destaque militar e político em seu tempo, a ponto de inspirar um rei lendário. 

Dessa forma, ainda hoje não se sabe a origem da lenda do Rei Artur, possívelmente seja até impossível descobrir onde tudo começou, apesar que os relatos mais antigos sugerem que essa tradição teria se originado na parte sudoeste da Inglaterra, nos territórios da Cornualha, Devon, Somerset, Glastonbury e o sul do País de Gales. Inclusive algumas localidades que aparecem nas lendas como Tintagel, fica na Cornualha, por sua vez, considera-se que Avalon ficaria situada em Glastonbury. Alguns historiadores e escritores também apontaram que Artur teria sido um antigo rei da Dumnônia, um antigo reino situado nos territórios da Cornualha e de Devon. (PEARCE, 1978). 

O Rei Artur contempla Camelot. Ilustração de Gustave Doré para o livro Idílios do Rei (1868) do poeta Alfred Tennyson. 

Aspectos principais da lenda:

Uther Pendragon: rei destinado a gerar um filho que unificará a Bretanha, sendo esse Artur. Em geral ele costuma falecer quando o filho ainda é criança ou adolescente. 

Igraine: é irmã de Morgouse, sobrinha de Viviane, sendo mãe de Artur e Morgana. É casada inicialmente com o duque Gorlois da Cornualha, depois é despojada pelo rei Uther. 

Artur: filho de Uther e Igraine, destinado a ser o Grande Rei da Bretanha. A forma como ele é coroado, costuma mudar de acordo com a versão, algumas inclusive o colocam como órfão, príncipe renegado, fugitivo, prisioneiro etc. 

Morgana, a Fada: meia-irmã de Artur, sendo filha de Igraine e Gorlois. É ora descrita como sacerdotisa ou feiticeira, as vezes ambas as ocupações. Em algumas narrativas aparece como uma personagem ardilosa e sombria, em outras ela não possui tanta importância. Dependendo da versão da história, Morgana pode ajudar ou causar problemas para Artur. 

Merlin: velho mago que normalmente é dito ser um druida. Em geral ele aparece como um homem sábio e conselheiro para Artur.

Viviane: referida também como a Dama do Lago, a Senhora do Lago, Nimue, e por outros nomes. É uma sacerdotisa e feiticeira que normalmente se torna mestra de Morgana. Em algumas versões ela é dita ser amante de Merlin e presentear Artur com a espada Excalibur. 

Guinevere: é a esposa mais famosa de Artur, pois em outras versões ele teria casado mais de uma vez. A rainha costuma ser descrita como jovem e bela, enquanto Artur é mais velho. Algumas narrativas passaram a enfatizar o romance extraconjugal de Guinevere com Lancelot. 

Lancelot do Lago: o mais famoso dos cavaleiros à serviço de Artur. Ele é um príncipe filho do rei Ban de Benoic, a identidade de sua mãe muda em algumas narrativas. Costuma ser retratado como um homem belo, jovem e honrado, apesar que algumas versões o tragam como amante de Guinevere e até mesmo um cavaleiro arrogante e ambicioso. 

Mordred: um cavaleiro à serviço de Artur. Em algumas versões ele seria seu sobrinho, jovem tutelado ou até mesmo filho bastardo. Apesar da origem diversa, as histórias medievais são unânimes em retratá-lo como um grande traidor que ambiciona o trono da Bretanha, desafiando Artur. 

Tristão: um dos cavaleiros da Távola Redonda, é principalmente lembrado por suas próprias narrativas devido ao seu dramático romance com a princesa Isolda, a qual foi prometida como noiva de seu tio. 

Perceval: um dos cavaleiros da Távola Redonda, lembrado por sua busca pelo Santo Graal.  

Gawain: um dos cavaleiros da Távola Redonda, sendo sobrinho de Artur. O personagem é descrito como sendo valente e honrado. Ele ganhou uma narrativa própria intitulada Sir Gawain e o Cavaleiro Verde. 

Boors: um dos cavaleiros da Távola Redonda, sendo primo de Lancelot. É descrito como um dos mais bravos, fortes e leais cavaleiros de Artur. 

Galahad: um dos cavaleiros da Távola Redonda, sendo filho de Lancelot. É dito ser o "mais puro" dos cavaleiros de Artur, e o responsável por encontrar o Santo Graal. 

Camelot: cidade ou castelo onde fica a corte de Artur. Surge nas produções francesas do século XII.

Excalibur: espada mágica do Rei Artur. A arma é citada desde as fontes antigas por outros nomes e nem sempre é referida como sendo mágica. Robert de Boron popularizou a história dela estar presa a uma pedra, mas outros autores colocavam sua localização oculta num lago místico, sendo dada a Artur por Viviane. 

Avalon: ilha mística onde Artur parte para exílio ou é sepultado, a depender da versão. Nesta ilha também viajam Viviane, Morgana, Merlin e outros personagens. O local é tido como mágico e não sendo acessível por qualquer pessoa, por estar envolto em névoa. 

Távola Redonda: nome dado a uma grande mesa onde Artur se reunia com seus cavaleiros mais honrosos em Camelot. 

O Santo Graal na Távola Redonda. Pintura por Évard d'Espinques, 1475. 

NOTA: A espada Excalibur tem esse nome advindo do galês Caledfwlch, embora essa arma apareça mencionada por outros nomes derivados do galês, do bretão e do irlandês, surgindo como Calabrum, Callibourc, Chalabrun, e Calabrun (com soletrações alternativas como Chalabrum, Calibore, Callibor, Caliborne, Calliborc, e Escaliborc. 

NOTA 2: O famoso escritor Mark Twain escreveu o livro A Connecticut Yankee in King Arthur's Court (1889), obra na qual ele parodia as lendas arturianas, colocando um americano voltando no tempo e vivenciando um choque de cultura na corte de Artur. 

NOTA 3: O primeiro filme sobre o ciclo arturiano foi Parsifal (1904), uma paródia baseada na versão da ópera composta por Richard Wagner em 1882

NOTA 4: O famoso ilustrador e escritor Howard Pyle publicou sua versão das lendas arturianas, compilando diferentes versões e fazendo alguns ajustes, originando The Story of King Arthur and His Knights (1903), obra inclusive dirigida ao público infanto-juvenil. 

NOTA 5: O primeiro filme épico sobre o ciclo arturiano foi As Aventuras de Sir Galahad (1949), entretanto, a primeira produção épica centrada na história de Artur mesmo foi no filme Os Cavaleiros da Távola Redonda (1953). 

NOTA 6: As histórias em quadrinhos do Príncipe Valente (1937), criada por Hal Foster, são ambientadas numa Europa medieval fantástica no tempo do Rei Artur. 

NOTA 5: O escritor, professor e filólogo J. R. R. Tolkien escreveu um livro de poesia intitulado A Queda de Artur (2013). A obra acabou não sendo concluída. Tolkien a desistiu de redigi-la na década de 1950, sendo publicado muitos anos depois após sua morte. 

NOTA 7: A animação A Espada Era a Lei (1963) é o único filme da Walt Disney a abordar a lenda do Rei Artur. O filme é uma adaptação do livro homônimo, que apresenta uma versão infanto-juvenil da lenda. 

NOTA 8: O filme Monty Python em Busca do Cálice Sagrado (1975) é considerado até hoje a paródia mais famosa sobre as lendas arturianas do ciclo do Graal. 

NOTA 9: King Arthur and the Knights of Round Table (1979-1980) é o primeiro anime dedicado totalmente ao Rei Artur, apesar que o personagem já tivesse sido citado e aparecido anteriormente em outros animes. 

NOTA 10: O filme Excalibur (1981) é considerado um dos filmes mais populares e cultuados entre a vasta produção cinematográfica sobre Artur. 

NOTA 11: As Brumas de Avalon (1983) de Marion Zimmer Bradley, é um longo romance que foi dividido em quatro volumes, os quais narram a tradicional história do Rei Artur, mas dando maior destaque as personagens femininas como Morgana, Igraine, Viviane, Morgouse e Guinevere. Além disso, a obra também enfatiza a importância do culto a "Deusa" e outras crenças pagãs de origem celta. O livro fez bastante sucesso, originando até uma série escrita por Marion Bradley e Diana Paxson. Além de ter originado um filme em 2001. 

NOTA 12: A história em quadrinhos Camelot 3000 (1982-1985) mostra uma versão em que Artur e os demais personagens reencarnam no ano 3000 e devem lutar contra uma invasão alienígena comandada por Morgana. 

NOTA 13: O escritor Bernard Crownwell, conhecido por seus livros de aventura medieval, decidiu escrever sua própria versão da lenda arturiana, criando assim a trilogia As Crônicas de Artur (1995-1997), a qual apresenta uma versão mais sombria da história. Por exemplo, nesses livros personagens como Merlin, Morgana e Nimue (Viviane) são sombrios, já Lancelot aparece como um cavaleiro narcisista e farsante. Além disso, a narrativa é contada a partir do cavaleiro Derfel Cadarn, homem de confiança de Artur. 

NOTA 14: O seriado Merlin (2008-2012) apresenta uma versão jovem de Merlin, o qual deve orientar um jovem Artur para alcançar seu destino de ser rei. 

NOTA 15: O seriado Camelot (2011) procurou adaptar a trama clássica ambientada no século VI, mas a produção acabou não fazendo sucesso e a série foi cancelada na primeira temporada. 

NOTA 16: O mangá Nanatsu no Taizai/Sete Pecados Capitais (2012-2020) é ambientado na época do Rei Artur, embora o personagem tenha pouca expressividade na trama.

NOTA 17: Na franquia The Legend of Zelda, Link retira a Espada Mestra de um pedestal de pedra. O ato é inspirado na versão da Excalibur encravada numa rocha. 

NOTA 18: Não existe um número exato de quantos cavaleiros teriam na Távola Redonda. A maioria das narrativas não especificam a quantidade e citam apenas os mais conhecidos. Algumas obras citam outros cavaleiros que são exclusivas de suas narrativas. 

NOTA 19: Artur é citado entre um dos Nove da Fama, tradição francesa surgida por volta do século XIV, que elencava os nove mais honrados cavaleiros da História. 

NOTA 20: Na série literária Harry Potter, o mago Merlin existiu e era bem famoso. Ele inclusive inspirou uma ordem honorífica que leva seu nome, dividida em três classes. 

Referências bibliográficas:

ASHE, Geoffrey. The Discovery of King Arthur. Garden City, Anchor Press, 1985. 

DOVER, Carol. A Companion to the Lancelot-Grail Cycle. London, D. S. Brewer, 2003. 

LITTLETON, C. Scott; MALCOR, Linda A. From Scythia to Camelot: A Radical Reassessment of the Legends of King Arthur, the Knights of the Round Table and the Holy Grail. New York, Garland, 1994. 

MORRIS, John. The Age of Arthur: A History of the British Isles from 350 to 650. New York, Scribner, 1973. 

MORRIS, Rosemary. The Character of King Arthur in Medieval Literature. Cambridge, Brewer, 1982. 

PEARCE, Susan M. The Kingdom of Dumnonia: Studies in History and Tradition in South-Western Britain A.D. 350–1150. Padstow, Lodenek Press, 1978. 

PRYOR, Francis. Britain AD: A Quest of England, Arthur, and the Anglo-Saxons. London, HarperCollins, 2014. 

Fontes na internet: 

Historia Brittonum

Annales Cambriae

Historia Regum Brittaniae

LINK

List of works based on Arthurian Legends

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