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Leandro Vilar

sexta-feira, 16 de agosto de 2024

A revolta religiosa de Savonarola em Florença (1495-1498)

No final do século XV o monge dominicano Girolamo Savonarola ficou conhecido por seu radicalismo e fanatismo religioso, que o colocou como um déspota que aterrorizou Florença com uma censura incomum, além de estar combinada com suas pretensões de profeta e sua oposição ao papa Alexandre VI. Por quatro anos Savonarola manteve os florentinos reféns de seu fanatismo religioso, que pregou uma série de expurgos no intuito de libertar a cidade das tentações. O presente texto abordou alguns aspectos desse período. 

Antecedentes

Girolamo Savonarola (1452-1498) nasceu numa família aristocrática em Ferrara, o que o permitiu estudar Filosofia e Medicina. No caso, ele inicialmente tinha pretensões de seguir a carreira médica como o fez seu irmão Alberto e seu avô Michele, porém, após ouvir os sermões de um padre em Faenza, Savonarola decidiu trocar a universidade pelo seminário, decidindo entrar para a Ordem dos Dominicanos num convento na Bolonha. A escolha dessa ordem se deveu pelo fato de seu irmão Maurelio já pertencer a essa ordem, atuando como frade. Assim, em 1475 ele entrou para o seminário, onde passou a escrever tratados teológicos e de filosofia da religião. Por esse aspecto, Savonarola se mostrou um erudito. 

Retrato de Girolamo Savonarola por Fra Bartolomeo, c. 1498. 

No ano de 1479 ele concluiu sua formação no seminário, sendo enviado para atuar em igrejas e conventos. Ele fez isso pelos anos seguintes. Em 1485 em alguns de seus escritos, Savonarola começou a tecer críticas mais ferrenhas aos pecados cotidianos como luxúria, sodomia (homossexualismo), homicídio, idolatria, simonia (comércio de bens espirituais), adivinhação, astrologia etc. Além dessas críticas, o frade também por essa época passou a alegar que estava tendo sonhos premonitórios, algo que repercutiria mais tarde nas alegações de ele dizer que recebeu o dom da profecia. 

A percepção de Savonarola sobre o mundanismo acentuou-se quando em 1487 ele mudou-se para uma pequena igreja em Florença, uma das cidades-estados mais ricas da Itália. Inclusive polo artístico, em que a rica família de banqueiros e comerciantes, os Médicis, patrocinavam vários artistas. As impressões do frade nesta cidade não foram nada boas, já que ele considerava que seu líder, Lourenço de Médici (1449-1492), um homem bastante extravagante e vaidoso. Todavia, Savonarola permaneceu somente um ano em Florença, sendo transferido para a Lombardia, passando por diferentes localidades até chegar a Gênova em 1490, outra cidade grande e próspera, onde ficou algumas semanas.

Ainda em 1490 ele retornou para Florença, onde dessa vez ficou fixo. Savonarola moraria naquela cidade pelos próximos oito anos. Foi ali naquele rico lugar que ele travou sua pequena "guerra religiosa", que o colocou em conflito com Lourenço e outros aristocratas, políticos e clérigos. No caso de Lourenço, ele era conhecido por ser um ostentador, e boatos diziam que ele promovia orgias. Além disso, o homossexualismo apesar de ser proibido e até um crime, não seria incomum em Florença. Soma-se isso também crimes como usura, simonia, contrabando, assaltos, adultérios e assassinatos. Diante disso, Savonarola considerava que estava diante de uma nova Sodoma e Gomorra.

Pregação em Florença

Entre 1490 e 1494, Girolamo Savonarola agiu de forma nada radical. Ele nesse período buscou tentar convencer os políticos e o povo acerca das ameaças do pecado, assim como, incentivar a população a ser mais praticantes da fé, devendo irem mais regularmente às missas, se confessarem, fazer jejuns, orarem etc. Neste ponto é notável os sermões que ele fazia em algumas igrejas e praças, além da publicação de alguns pequenos tratados e sermões escritos valorizando as virtudes cristãs.

A partir de 1493 ele pleiteou com o novo papa, Alexandre VI (Rodrigo Bórgia), o envio de verbas para reformar o histórico Convento de São Marco, onde ele vivia e trabalhava como prior. Porém, o novo papa era conhecido por estar envolvido com escândalos, além de vir de uma família que colecionava polêmicas. Alexandre VI possuía filhos, amantes, era envolvido com corrupção e outros assuntos ilícitos. Fato esse que levou Savonarola a repudiá-lo. 

Por sua vez, o ano de 1494 foi conturbado por conta do rei Carlos VIII da França invadir a Itália, reivindicando direito de dominar parte daquelas terras. Isso gerou a movimentação de tropas das cidades-estados, inclusive colocou o papado em alerta, fato esse que o papa Alexandre VI enviou seu filho Cesare Bórgia para participar das negociações. A situação política pela Itália estava tensa e piorava. O exército francês chegou à República de Florença em novembro de 1494, onde Carlos VIII negociou com Piero de Médici (filho de Lourenço) uma aliança político-militar, todavia, Piero não aceitou todos os termos exigidos, contrariando o monarca, com isso, os Médici fugiram de Florença para evitar o pior. O rei Carlos VIII não atacou a cidade e seguiu para Roma, para negociar com o papa. Em meio aquela falta de governo, num período de breve anarquia, Savonarola surgiu como uma liderança em potencial. 

Pintura do século XIX representando Savonarola em pregação. 

A censura

Os franceses não tiveram interesse em assumir o controle de Florença, com isso, a república seguiu sendo gerida por seus conselhos como a Signoria, o Collegi, o Dodici Buonomini, o Sedici Gonfalonieri, entre outros conselhos menores. Cada um desses conselhos cuidavam de aspectos administrativos e jurídicos distintos, o que envolviam administrar o comércio, a cobrança de tributos, as finanças públicas, os tribunais e prisões, a burocracia etc. Todavia, os Médici e outras importantes famílias costumavam figurar entre os membros desses conselhos, por serem oriundos de famílias ricas e tradicionais, mas sem uma liderança forte, o frade Girolamo Savonarola se destacou como uma liderança popular, que passou a reunir mesmo que informalmente, uma forte autoridade, a ponto de ele decretar ordens, censura e expurgos, mesmo que os conselhos não tivessem validado isso, parte de seus membros passaram a concordar com a visão radical do frade dominicano. Esses seguidores foram chamados de Penitentes

Nesse período ele havia adotado o radicalismo pleno. Savonarola não estava interessado em assuntos políticos e militares, mas em usar sua autoridade e apoio que tinha da população, cativada por seu discurso religioso fanático, para promover sua censura religiosa, ou limpeza moral como se referia a algumas vezes. Para isso ele ordenou uma série de proibições e formou grupos de fanáticos que passaram a executar suas ordens. Neste ponto, ele contava com apoiadores de diferentes segmentos sociais, o que incluía autoridades públicas e jurídicas, os quais passaram a comprar o discurso religioso dele ou o consideravam coniventes para seus próprios interesses. 

Savonarola queria transformar Florença numa cidade cristã modelo, mas para fazer isso ele adotou o uso da proibição. Em seus discursos ele defendia a proibição de bebidas alcoólicas, prostíbulos, jogos de azar, festas mundanas, do homossexualismo, porém, essas proibições não foram efetivamente aplicadas, ainda continuavam a serem realizadas, e, no caso, do homossexualismo, esse era às escondidas, pois já era crime. 

Savonarola também atacou os costumes de se vestir. Ele proibiu roupas consideradas vulgares, proibiu à venda de cosméticos, roupas de luxo, acessórios, joias e até mandou quebrar espelhos. Ele alegava que tudo isso promovia a vaidade, a ostentação e a soberba. Essas proibições não foram efetivadas na cidade, mas parte de seus seguidores passaram a obedecê-las. 

Ao lado das roupas, cosméticos, acessórios e joias, sua censura também caiu sobre objetos de decoração, obras de arte, móveis finos, os quais representavam também símbolos de vaidade e apego aos bens materiais. Não foram apenas pinturas e estátuas com nu artístico, qualquer uma que fosse vista pelos agentes da censura que não abordasse temas sacros, eram confiscados. Além disso, livros também foram confiscados e queimados, especialmente obras que versavam sobre astrologia, magia, mitologia, literatura considerada imoral, alguns trabalhos filosóficos, sátiras etc. Qualquer livro cujo conteúdo fosse considerado inadequado e incompatível com as virtudes cristãs pregadas por Savonarola, era enviado à fogueira. 

Assim, a partir de 1495 as "fogueiras da vaidade" ardiam esporadicamente pelas ruas e praças de Florença queimando os símbolos de vaidade: roupas, espelhos, cosméticos, perfumes, perucas, acessórios, pinturas, tapeçarias, móveis, livros, instrumentos musicais, objetos de decoração etc., tudo fruto do luxo e do movimento artístico do Renascimento, era visto por Savonarola e seus seguidores como máculas a moral cristã, desvirtuando os fiéis, corrompendo seus caráteres. Essas fogueiras foram realizadas em tempos em tempos até 1497, ano que ocorreu várias queimas públicas, e até mesmo durante o período de Carnaval, o qual inclusive foi proibido de ser celebrado naquele ano. 

Após três anos de "fogueiras da vaidade", se desconhece a extensão da destruição causada, já que registros não foram feitos a respeito. Embora se saiba que os florentinos tentaram salvar o que conseguiram, escondendo seus bens e oferecendo outros em troca. Além disso, parte dos fanáticos acabavam se apossando eventualmente de algo de valor, e nem sempre conseguiam confiscar o que queriam. Apesar disso, milhares de bens de valor diversos foram destruídos nesse período, o que inclui até mesmo obras de arte que desconhecemos. 

Apesar de todo esses expurgos do governo fanático religioso de Savonarola, as autoridades religiosas nada fizeram a respeito, pois estavam preocupadas com a guerra contra os franceses. Ademais, parte das autoridades políticas de Florença apoiavam o frade dominicano, entretanto, Savonarola começou a ter sua autoridade contestada, quando ele começou a atacar a alta hierarquia católica. 

Embate com o papa

A partir de 1496 a relação de Savonarola com o papa Alexandre VI começou a se deteriorar. Nesse período o frade dominicano já havia adotado sua postura radical, com isso, ele passou a fazer pregações nas igrejas ou nas praças, denunciado os crimes do papa e dos cardeais, além de proferir insultos aos mesmos. De fato, muita coisa que ele falava não era mentira, o papa era realmente envolvido em escândalos, assim como, vários cardeais também. Eram tempos de corrupção na sede da Igreja Católica. Apesar disso, Alexandre VI e os cardeais não gostaram de que um frade rebelde estivesse maldizendo eles, assim, foi ordenado que Savonarola comparecesse a Roma para se explicar a respeito de suas pregações, consideradas caluniosas e difamatórias. Ele recusou a ordem. 

Retrato do papa Alexandre VI (Rodrigo Bórgia). 

Novamente foi exigida sua presença e pedido de desculpas publicamente, dizendo que ele assumisse que errou ao dizer tais calúnias, mas Savonarola se recusou a fazer isso, então Alexandre VI o excomungou em 12 de maio de 1497, o que atiçou a ira do frade, que mais uma vez insultou o papa e se proclamou verdadeiro representante de Deus na Terra. Então o papa comunicou ao vigário Alexandre de Médici que atuasse para conseguir barrar Savonarola, o ele decidiu agir cobrando das autoridades florentinas e da população. Inclusive dizendo que quem apoiasse o frade, não teria direito a comunhão, a se confessar e até a um enterro digno. Apesar das ameaças e cobranças de Alexandre de Médici, elas não surtiram efeito e Savonarola conseguiu forçar Alexandre de Médici a abandonar a cidade para não ser preso. 

Nos meses seguintes seu fanatismo continuou a crescer, pois ele acreditava cada vez mais que era um profeta realmente e que iria desmantelar a Igreja corrompida e instaurar uma "nova Igreja" a partir de Florença. Por esse tempo, Savonarola apesar de ter sido excomungado e proibido de exercer as funções religiosas, seguiu desobedecendo a ordem papal, seguindo com suas pregações, então o papa Alexandre VI designou o frade Francesco da Apúlia, enviando à Florença para confrontar Savonarola. Além disso, o papa voltou a pressionar as autoridades da cidade, ameaçando cortar laços políticos e até mesmo barrar acordos comerciais com os Estados Papais, o que prejudicaria os florentinos. 

Enquanto isso não surtia um efeito imediato, o frade Francesco passou a pregar contra Girolamo Savonarola, acusando-o de heresia, calúnia e fanatismo. Por sua vez, o dominicano rebatia as acusações de Francesco, considerando-o mais um "cão" enviado pelo papa para atacá-lo. A troca de ofensas e acusações se seguiram pelo restante do ano de 1497. Por sua vez, Savonarola passou a dizer que não temia a ira de Deus e quem duvidava dele, ele iria provar que estava dizendo a verdade.

Então ele propôs a se submeter a ordálios (testes de fé) para mostrar isso. O frade Francesco tomando conhecimento de tal informação, passou a cobrar o dominicano. Logo, os apoiadores de Savonarola surgiram para proteger seu mestre, inclusive alguns se ofereceram para acompanhá-lo no ordálio ou se submeter no lugar dele. 

Savonarola em sua loucura chegou a dizer que andaria sobre brasas e não se queimaria, pois Deus estava com ele e o protegeria. Porém, seus opositores cobraram que ele cumprisse com isso, mas ele se negou algumas vezes e até um de seus seguidores, o frade Domenico da Pescia, aceitou praticar o ordálio em seu lugar (em algumas situações era permitido escolher um representante para o teste do ordálio). 

O evento foi uma sensação na época, marcado para fevereiro de 1498, sendo montado todo um espetáculo que reuniu centenas de pessoas. De um lado estava Girolamo, seus apoiadores dominicanos e os Penitentes, do outro, tínhamos frade Francesco e a oposição. De um terceiro lado estavam aqueles que não apoiavam nenhum dos lados, mas queriam ver o que seria definido naquela ocasião. Mas após horas de indeterminação,  Domenico da Pescia acabou desistindo na ocasião e Savonarola também se recusou a realizar o ordálio. 

A população que assistia tudo aquilo, começou a vaiá-los e alguns pediam que Girolamo Savonarola cumprisse com o que disse, e realizasse o ordálio, mas ele acabou não o fazendo. Isso levou a indignação do povo, e abriu o precedente para sua derrocada. Ele já estava malvisto por ter realizado a censura religiosa, afrontado o papa e os cardeais, e agora faltava com a palavra. Os frades radicais retornaram para a Igreja de São Marcos, mas foram perseguidos pelos opositores incitados por Francesco e outros dos seus apoiadores, então eles foram capturados ali na igreja e levados à prisão. 

O papa Alexandre VI exigiu que Savonarola fosse levado a Roma para ser julgado, mas as autoridades florentinas recusaram o pedido, dizendo que ele deveria ser julgado naquele Estado. O papa aceitou, mas disse que enviaria seus próprios juízes, sendo escolhido Gioachino Turriano de Veneza e Francesco Ramolini, os dois realizaram o inquérito e julgamento de Savonarola e seus cúmplices. Os três foram torturados e confessaram suas culpas. 

Savonarola foi torturado e confessou que havia inventado suas profecias, visões e até caluniado o papa. De posse das confissões de culpa, os juízes decretaram a pena de morte deles, por terem cometido heresias, desafiado o poder secular e temporal etc. Assim, Savonarola, Domenico e Silvestro foram queimados vivos em 22 de maio de 1498 e depois tiveram as cinzas jogadas no rio. 

Gravura representando a execução de Savonarola, Domenico e Silvestro. Autoria desconhecida, datada do século XVII.
 
As ações radicais de Girolamo Savonarola duraram três anos, mas foi o suficiente para destruir muitos bens materiais e obras de arte, promover censuras sociais e morais (mesmo que não foram aplicadas efetivamente), desmantelar a autoridade do governo florentino, espalhar o fanatismo religioso, além de levar várias pessoas à prisão e até a execuções. Os atos de Savonarola entraram para a história italiana como um exemplo dos perigos que um fanático religioso pode causar a uma cidade ao tomar o poder. 

NOTA: Girolamo Savonarola aparece em livros, músicas, peças de teatro, filmes, seriados, jogos de videogame, sempre representado como um homem vilanesco e paranoico. 

NOTA 2: Savonarola aparece no seriado Os Bórgias (2011-2013), nessa produção ele chega a se submeter ao ordálio, mas acaba se queimando, provando que não possuía a proteção divina. 

NOTA 3: O frade aparece como um tirano que deve ser detido no jogo Assassin's Creed 2 (2009), em que ele acaba sendo queimado vivo numa fogueira.

NOTA 4: O frade é tema central do capítulo 9 do livro Os Bórgias (1840) do renomado escritor Alexandre Dumas Pai. A obra trata-se de um romance histórico sobre a família Bórgia, mas centrado durante o pontificado de Alexandre VI. 

NOTA 5: Alguns historiadores chegaram a considerar Savonarola um proto-reformador, já que ele planejava reformar o Cristianismo católico, mesmo que tenha feito isso de forma fanática e violenta. 

Referências bibliográficas:

GUALAZZI, Enzo. Savonarola. Milano, Rusconi, 1997. 

SANTE CENTI, Tito. Girolamo Savonarola: il frate che sconvolse Firenze. Roma, Città Nuova, 1993. 

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