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Leandro Vilar

sexta-feira, 23 de agosto de 2024

Sun Wukong: A lenda do Rei Macaco

Clássico da literatura chinesa, o livro Jornada ao Oeste conta as peripécias, perigos e aventuras do Rei Macaco chamado Sun Wukong, em sua jornada em companhia de seus amigos para viajar até à Índia. A narrativa se tornou tão popular que ganhou adaptações para teatro, filmes, desenhos, seriados, quadrinhos e videogames. O presente texto comenta alguns aspectos desse personagem, a importância do seu livro e como esse retratava a sociedade chinesa daquele tempo e a percepção do mundo que os chineses possuíam de outros povos asiáticos. 

Ilustração contemporânea de Sun Wukong. 

O livro Jornada ao Oeste

A história de Sun Wukong é narrada apenas no livro Jornada ao Oeste (Xi You Ji), obra redigida pelo escritor e poeta Wu Cheng (c. 1500-1582) no século XVI, embora outros autores criaram contos, poemas e peças baseados no trabalho de Wu Cheng. No entanto, normalmente se pensa que as narrativas sobre Sun Wukong sejam de origem folclórica, mas os literatos e historiadores contestam isso. Grande parte da trama seria invenção mesmo de Wu Cheng, apesar que ele recorreu a elementos mitológicos e a lendas para criar seu livro. 

A obra foi composta ao longo de anos, sendo publicada apenas em 1592, dez anos depois da morte do autor, embora não se saiba exatamente o motivo disso. De qualquer forma, sua narrativa é bastante extensa, pois a versão original possui 100 capítulos divididos em quatro partes: 

  • Primeira parte: compreende os capítulos 1 ao 7, basicamente consiste numa longa introdução a narrativa, apresentando o protagonista Sun Wukong, o Rei Macaco que era um deus, mas devido a suas travessuras e indisciplina foi desprovido da imortalidade e aprisionado. 
  • Segunda parte: compreende os capítulos 8 ao 12 no qual é apresentando o monge budista Tang Sanzang, o qual foi incumbido por Buda de viajar à Índia para buscar pergaminhos sagrados. Esses capítulos comenta sobre a família de Tang e o início de sua jornada.
  • Terceira parte: compreende os capítulos 13 ao 99, é a parte mais longa do livro, a qual narra a jornada de Tang Sanzang, Sun Wukong e os outros personagens que acabam formando o grupo deles, através de várias localidades da China, até chegar à Índia. 
  • Quarta parte: consiste no capítulo 100, que seria basicamente um epílogo, o qual apresenta o desfecho da história. 
A partir do século XVII o livro começou a ganhar notoriedade, mais tarde sendo considerado um dos Quatro Grandes Romances Clássicos da Literatura Chinesa, sendo os outros três: Margem da Água (XIV), Romance dos Três Reinos (XVI) e O Sonho da Câmara Vermelha (XVIII), o que revela a popularidade dessa obra já há bastante tempo, condição apenas amplificada no século XX. No entanto, as traduções de Jornada ao Oeste demoraram a ocorrer, basicamente somente a partir do XIX que elas começaram para outros idiomas, porém, por ser um livro extenso, ainda hoje a obra nunca foi traduzida integralmente para vários idiomas, como é o caso da língua portuguesa. 

Mas do que se trata o livro Jornada ao Oeste? O objetivo do livro que é a viagem à Índia não é uma história original de Wu Cheng, na verdade, essa história do monge Tang Sanzang é baseada na vida do monge Xuanzang (602-664), que realmente viajou à Índia em 629, retornando a China por volta de 645, tendo aprendido a ler em diferentes línguas indianas e estudado com vários mestres, além de reunir cópias de muitos manuscritos, vindo a criar uma biblioteca budista quando retornou. Eventualmente a história de Xuanzang acabou ganhando contornos lendários, originando lendas que inspiraram artistas como o próprio Wu Cheng. 

Pintura do século XIV representando Xuangzang, o monge que inspirou Tang Sanzang. 

Sendo assim, lendas envolvendo a jornada de Xuangzang já existiam aos montes ao longo dos séculos, e elas acabaram interessando Wu Cheng, que decidiu criar sua própria versão, acrescentando mais elementos mitológicos, lendários, religiosos e a grande estrela da obra: Sun Wukong, o malandro Rei Macaco, o que concedeu originalidade ao seu trabalho. Sobre isso, os estudiosos não sabem de onde Wu Cheng se baseou para criar a personagem de Sun Wukong, hipóteses apontam o folclore como fonte de inspiração, em que o escritor combinou ideias envolvendo lendas sobre macacos com outras criaturas, vindo a criar Sun Wukong. Alguns chegaram a sugerir que ele seria baseado em Hanuman, o deus-macaco no Hinduísmo, mas não se sabe se Wu Cheng tinha conhecimento dessa divindade. 

Mas como tudo isso se encaixa na narrativa da Jornada ao Oeste? Como visto, Wu Cheng decidiu escrever sua própria versão da viagem do monge Xuangzang, alterando seu nome para Tang Sanzang e até mudando alguns aspectos da sua vida, embora a trama do livro seja situada durante a Dinastia Tang (618-907), especificamente no século VII, época em que Xuangzang viveu. Fato esse que no livro há menções aos costumes e monarcas daquela época, como forma de contextualizar historicamente o romance. 

Assim, para poder justificar a viagem de Tang Sanzang à Índia, na parte 2 do livro, Wu Cheng apresenta o contexto místico de que o jovem monge era puro de coração e estava destinado a reacender os ensinamentos budistas na China, a qual padecia de imoralidades. Porém, o monge precisaria de ajuda, neste ponto, entra seu primeiro guardião, Sun Wukong, personagem apresentando na parte 1, o qual é um deus caído em ruína, que somente poderia recuperar sua imortalidade e direito a viver no Palácio Celeste se ele aprendesse disciplina, honra, obediência, paciência, humildade, altruísmo etc. Ou seja, temos aqui características comuns de algumas narrativas da jornada do herói, em que temos um herói arrogante que acaba caindo em desgraça ou é punido, e deve aprender a melhorar seu caráter. Assim, Sun Wukong é libertado de sua prisão após séculos tendo como obrigação em servir Tang Sanzang.

Porém, essa busca pela redenção também se aplica aos outros guardiões: o porco Zhu Baije, um ex-general celeste que era arrogante, ganancioso e guloso, que assediou uma deusa e foi banido do Céu e Sha Wujing, um cocheiro celeste que devido a sua imprudência destruiu um cálice sagrado da Rainha Mãe do Oeste, com isso foi banido do Céu. Esses dois personagens junto a Sun Wukong, são seres celestes em desgraça que devem recuperar seu direito de voltarem ao Palácio Celestial, para isso, deverão buscar sua redenção, ajudando o monge Tang Sanzang. Por conta da jornada até à Índia levar alguns anos, várias aventuras e perigos ocorrem no caminho, colocando os guardiões, especialmente Sun Wukong, para trabalhar duro no intuito de proteger o monge. 

O Rei Macaco

A primeira parte do livro Jornada ao Oeste nos fornece várias informações sobre Sun Wukong. Inicialmente ele não era uma divindade, mas um macaco comum que nasceu sob circunstâncias incomuns. Ele não possuía pais e nem familiares, tendo sido criado de uma rocha mágica localizada na Montanha das Frutas e Flores, que se torna a sede de seu reino. Por conta disso, ele é conhecido pelo epíteto de "macaco da pedra". Por ser o mais habilidoso, forte, valente e bonito dos macacos daquela montanha, ele foi escolhido como Rei Macaco Bonitão (Mei Houwang).

Apesar de se tornar monarca de um pequeno reino de macacos, Sun Wukong tinha mais ambições, então ele partiu para estudar com monges sobre religião, filosofia, artes marciais e magia. O livro informa que ele passou vários anos estudando e treinando, desenvolvendo uma variedade de habilidades, entre essas estava a arte das 72 transformações, que permitia ele mudar de forma, transformando-se em pessoas, animais e objetos; a capacidade de dar grandes pulos, a ponto de saltar sobre montanhas e viajar por vários quilômetros de distância; o poder de transformar seus pelos em seres, clones de si ou objetos

Além dessas habilidades de transformação e salto, Sun Wukong também possuía uma grande força e resistência, condição essa que ele mergulhou no oceano para conseguiu uma arma mágica, o cajado Ruyi Jingu Bang, que possuía a capacidade de mudar de tamanho, ficando diminuto ou possuindo quilômetros de comprimento. De posse dessa arma, ele desafiou monstros e um Rei Dragão do mar, derrotando-os e ganhando objetos mágicos e uma armadura também. Porém, o Rei Macaco se tornou muito arrogante e passou a confrontar outros seres, incluindo desafiar demônios para escapar da morte, e isso irritou os soberanos dos mares e do submundo, os quais cobraram do Imperador de Jade uma solução para punir as aventuras e o crescente ego do Rei Macaco. 

O supremo monarca dos deuses convidou Sun Wukong ao Paraíso e lhe deu um cargo entre os deuses, o macaco ficou muito feliz por aquilo, pois agora era um deus, porém, o cargo lhe atribuído era o de "protetor dos cavalos", uma função de cavalariço. Sun Wukong viu que o monarca estava zombando da sua cara e se irritou com aquilo, então desafiou os deuses, roubando os pêssegos da imortalidade, as pílulas da longevidade e o vinho sagrado do imperador. Depois de cometer tais atos, Sun Wukong abandonou o Paraíso, voltou a Terra, reuniu um exército formado por macacos guerreiros, demônios e outros monstros, desafiando os deuses, iniciando uma guerra divina que resultou em muitas mortes até que o ele foi aprisionado. 

Sun Wukong foi preso dentro de um caldeirão mágico por 49 dias, deixado para morrer ali, mas ele conseguiu sobreviver. O Imperador de Jade convocou Buda para punir o macaco, esse o desafiou a escapar de sua influência, mas Sun Wukong falhou e foi aprisionado numa montanha por cinco séculos. Quando ele despertou, havia perdido parte de seus poderes e sua imortalidade, sendo sentenciado a contragosto, a servir o monge Tang Sanzang, dando início a jornada do livro. 

Sun Wukong e o monge Tang Sanzang numa ilustração de Jornada ao Oeste, do século XIX. 

Uma viagem fantástica

Embora a narrativa de a Jornada ao Oeste seja situada no século VII d.C., Wu Cheng imagina uma China mística e mitológica, condição essa que ele explorou bastante a mitologia chinesa e até o folclore chinês, fato esse que Sun Wukong viaja pelo Reino Celeste, os reinos submersos, vai ao Submundo, passa por cavernas habitadas por demônios e outros monstros. Isso somente na primeira parte do livro. Depois que a jornada dele e dos demais tem início, as descrições seguem fantásticas, mas sem ocorrer a transição para outros mundos. 

Como Wu Cheng nunca saiu da China, além de que teria um pouco de conhecimento geográfico, a jornada para o oeste é baseada em imprecisões. Wu Cheng relata a existência de muitas montanhas, rios, vales e florestas, condição que os personagens chegam a levar semanas ou meses apenas para cruzar uma montanha ou floresta, tudo é gigantesco e distante na narrativa, além de ser impreciso, pois a maior parte das vezes o autor não aponta exatamente onde os personagens estão, além de que algumas localidades são inventadas. Fato esse que o Tibete aparece no livro de forma fantasiosa, assim como, a própria Índia, que somente é alcançada nos últimos capítulos, porém, o autor não especifica quase nada da geografia e costumes do lugar. 

Vale ressalvar que os costumes que também são retratados no livro são anacrônicos, pois a trama ocorre no século VII, mas Wu Cheng se baseou nos costumes de sua época, ou seja, o século XVI, quase mil anos depois. Apesar desse anacronismo, isso não interfere no desenvolvimento da narrativa, tampouco em sua compreensão, pois os chineses possuíam uma percepção de passagem de tempo diferente do Ocidente. Enquanto na Europa já se notava que o século XVI era diferente do século X, por sua vez, mais diferente do que foi o século V, na China, essa percepção era menos nítida. 

O livro também nos primeiros capítulos nos apresenta uma visão da mitologia chinesa relativa ao Reino Celeste, ou Reino Submarino e o Reino Inferior, localidades não apenas mitológicas, mas também associadas com as crenças religiosas das religiões chinesas, por ser a morada de deuses e outras divindades. O fato de Sun Wukong transitar por tais reinos divinos é um indicativo de seus poderes e proezas. 

NOTA: O famoso mangaká Akira Toriyama escreveu um one-shot intitulado Dragon Boy (1983), levemente inspirado na lenda de Sun Wukong. A obra serviu de experiência para Toriyama reformular suas ideias e assim surgiu Dragon Ball (1984-1995), sua obra prima. O personagem Son Goku é levemente inspirado em Sun Wukong. Além disso, o fato dos Saiyajins se tornarem macacos gigantes (oozaru) também advém dessa inspiração. 

NOTA 2: O nome Son Goku é uma tradução em japonês para o nome Sun Wukong. Fato esse que esse nome aparece no mangá/anime de Dragon Ball e Naruto, já que ambos os personagens são inspirados no Rei Macaco. 

NOTA 3: O famoso quadrinista italiano Milo Manara escreveu Lo Scimmiotto (1976-1977), uma versão satírica e erótica de a Jornada ao Oeste, trazendo Sun Wukong como um anti-herói em meio a uma China que mistura aspectos fantásticos com a época da ditadura de Mao Tsé-Tung. 

NOTA 4: Sun Wukong já apareceu algumas vezes nos videogames, destacando-se os jogos: Cloud Master (1989), West Adventure (1994), Funn Goku Ninded (1996), Monkey Magic (1999), Monkey Hero (1999), Saiyuki: Journey West (2001), Enslaved: Odyssey to the West (2010), Monkey King: Hero is Back (2019), Wukong (2021), The Crown of Wu (2023) e mais recentemente Black Myth Wukong (2024)

NOTA 5: Por conta de ser um personagem famoso, na China existem vários filmes, desenhos e seriados sobre o personagem. A maioria não segue a trama do romance, apresentando histórias originais.

NOT 6: A série chinesa Journey to the West (1986/2000) possui duas temporadas, uma lançada em 1986 e a outra somente em 2000, de qualquer forma, o seriado adapta o romance inteiramente, consistindo em uma das séries mais famosas sobre o livro. 

NOTA 7: A série animada chinesa Journey to the West: Legends of the Monkey King (1998), adapta para o público infantil a trama do livro, apresentando um resumo da narrativa. Ainda hoje é um dos desenhos mais populares sobre o personagem, embora já tenha vários lançados desde então. 

NOTA 8: O filme chinês animado Havoc in Heaven (1961) é considerado por alguns o primeiro desenho a fazer sucesso sobre Sun Wukong. 

NOTA 9: O famoso ator Jet Li chegou a interpretar Sun Wukong no filme O Reino Proibido (2008), por sua vez, o também famoso ator Donnie Yen interpretou o personagem no filme O Rei Macaco (2014). O filme ganhou uma continuação, mas Yen não voltou para interpretar o protagonista. 

NOTA 10: Os Pokémon Chimchar, Monferno e Infernape são inspirados no Rei Macaco. 

NOTA 11: Sun Wukong aparece em alguns outros jogos como um personagem jogável, sendo esses a franquia Warriors Orochi, Dota 2, Smite 1, League of Legends etc. 

NOTA 12: Embora Sun Wukong seja um personagem surgido num romance, no entanto, existem templos dedicados a ele, em que oferendas são deixadas como se ele fosse um deus real. 

Referências bibliográficas: 

HSIA, C.T. The Journey to the West. The Classic Chinese Novel. New York: Columbia University Press, 1968. 

WU CH'ÊNG-ÊN. O macaco peregrino ou a Saga ao Ocidente. Tradução de Lea P. Zylberlicht. 2a ed. São Paulo, Hórus, 2002. 

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