Uma curiosa, mas real história advinda da França medieval, diz respeito a um cachorro chamado Guinefort, que acabou se tornando um santo popular, por supostamente realizar milagres. A devoção ao cão foi tamanha, que a Igreja Católica teve que proibir a veneração ao animal, declarando se tratar de um ato de blasfêmia e ignorância, afinal, animais não podiam ser santificados, tampouco realizarem milagres. O presente texto contou alguns aspectos dessa peculiar devoção surgida nos tempos medievais.
Representação moderna de Guinefort e a serpente que ele matou para salvar o bebê de seus donos. |
Guinefort teria sido um cachorro da raça galgo inglês que viveu nas terras de Lyon. O relato mais importante sobre sua história advém do monge dominicano de Étienne de Bourbon (1180-1261), o qual redigiu em 1250 o livro Tractatus de diversis materiis praedicabilibus (Tratado sobre as diversas matérias prejudiciais) que aborda sobre superstições, heresias, blasfêmias, entre outras práticas que ele julgava serem incompatíveis com o cristianismo como a adivinhação, o uso da magia, a idolatria etc. Assim, neste livro, no tópico 370, Étienne relatou sobre a história de um cachorro que era cultuado como santo em Lyon.
Ele escreveu que o cão pertenceria a um nobre que vivia num castelo nas terras de Villars-les-Dombes, certo dia o animal estava guardando o bebê daquele senhor, quando uma cobra entrou no quarto. O cão lutou contra a serpente, durante o conflito o berço foi derrubado com a criança, mas o cachorro venceu a cobra, matando-o. Porém, a babá ao chegar ao quarto, deparou-se com a bagunça e o chão com a boca suja de sangue, ela gritou atraindo a atenção dos pais do bebê, o pai horrorizado com aquilo matou o cachorro. Porém, depois descobriram a criança dormindo ao lado do berço e o corpo da cobra num canto do quarto. O cão era inocente.
A família desolada com aquilo, construiu um memorial para Guinefort nas terras do castelo. Os anos se passaram e aquela família caiu em ruína e o castelo foi destruído, entretanto, os camponeses ainda visitavam o local para irem ao túmulo do cachorro, tido como um mártir que fazia milagres.
Nota-se pelo relato de Étienne de Bourbon que a história sobre Guinefort tem claramente características de lenda. Além de que o tema de serpentes atacando crianças em berços não era algo incomum, havendo relatos mitológicos e folclóricos sobre isso. Um dos mais famosos no caso europeu avém da mitologia grega, quando Héracles (Hércules) ainda bebê, foi atacado por duas serpentes, mas ele as matou, estrangulando-as com sua super-força.
No quesito de um cachorro defendendo crianças e supostamente sendo morto porque as teria matado, não era um tema incomum. Temos o caso da história do Sabueso fiel, o cachorro Gelert do príncipe Gwynedd, o lobo do rei Gorlagon, entre outras narrativas advindas da literatura medieval ou originária de lendas. O que aponta que a crença em São Guinefort foi fruto de uma lenda baseada num tema em circulação naquele período, sobre histórias de cachorros que protegiam crianças. Porém, diferentes de outros exemplos aquela ganhou ares religiosos.
A lenda de Guinefort. Ilustração para o Gesta Romanorum, fol. 16V, c. XV.
O ritual macabro
Étienne continua seu relato dizendo que ouviu de mulheres da Diocese de Lyon informações sobre o culto a São Guinefort, ele relatou que ficou abismado com aquilo, pois inicialmente pensou que se trata-se de um santo que ele desconhecesse, mas depois disseram que era um cachorro. O monge prosseguiu seu relato escrevendo que as pessoas iam ao túmulo do animal para fazer orações, acender velas e até deixar oferendas. As mulheres com filhos doentes eram as que mais costumavam ir naquele lugar, pois a crendice dizia que o santo cão poderia curar seus filhos.
Porém, nesta parte do relato Étienne de Bourbon emenda ele com a descrição de um rito macabro envolvendo uma mulher velha. Ele escreveu que as mães que levavam as crianças doentes, procuravam essa velha que vivia num povoado próximo, a qual conhecia os "ritos antigos", que envolviam fazer um ritual sinistro para os faunos que viviam nas árvores da floresta de Rimite, os quais seriam demônios responsáveis por fazer os bebês adoecerem, então a velha matrona ensinava o ritual para apaziguar aquelas criaturas, as quais dever-se-ia acender duas velas, colocar as roupas da criança em oferenda e deixar o bebê exposto diante de uma das árvores até que o processo estivesse concluído. Porém, Étienne relata que muitas crianças acabavam morrendo durante esse rito, mas os que sobreviviam, estavam supostamente curados, sendo lavados nove vezes num rio próximo dali.
Étienne completa seu relato dizendo que aquilo tudo tratava-se de artimanhas de Satanás para iludir as pessoas, fazendo-as buscar a ajuda de demônios e agentes do Mal. Sabendo que isso ainda era realizado em Lyon, o monge relatou que visitou o local, mandou desenterrar os restos mortais do cachorro e destruí-los no o fogo, além de cortar as árvores usadas para aquele ritual e queimá-las também. Depois disso, ele convocou a população e os senhores daquelas terras, explicando aquela heresia e que fosse proibido por lei ir ali adorar aquele santo impostor e seus demônios.
Um santo popular
A Igreja Católica reconhece três formas de canonização: a realização de milagres; o martírio em defesa da fé e a boa conduta cristã à serviço da fé. Por conta disso, temos pessoas que se tornaram santos porque realizaram milagres (no mínimo dois), morreram como mártires ou se dedicaram de forma justa e correta aos serviços da fé, como o caso de papas, bispos, padres, madres etc., que tiveram uma vida íntegra.
Entretanto, os santos populares consistem em pessoas que não são reconhecidas oficialmente pela Igreja Católica, mas devido a supostos milagres, martírio e devoção, eles acabam atraindo a atenção da população que passa a venerá-los como se fossem santos oficiais. Na História temos muitos relatos disso, pois mesmo que a Igreja não reconhecessem aquelas pessoas, a população que estava mais próxima deles, e devido a uma série de fatores: carência emocional, desespero, crendices, ignorância, fanatismo etc., acabavam reconhecendo aqueles homens e mulheres como santos populares, e isso aconteceu com Guinefort.
Embora Étienne de Bourbon tenha relatado que proibiu o culto ao santo cachorro, ainda assim, esse permaneceu. O dia 22 de agosto foi eleito como data de São Guinefort, o qual passou a ser o padroeiro das crianças enfermas, já que a lenda diz que o cachorro lutou contra uma serpente para proteger um bebê. O relato de Étienne de que o culto do cachorro estava ligado a um rito macabro envolvendo faunos, acabou sendo abandonado. Esse quesito sinistro foi removido da devoção do santo popular, e as pessoas realizavam orações a São Guinefort. Bois de Saint-Guinefort, em Ain. Suposto lugar onde ficava o local original de adoração do santo cachorro.
A crença neste santo popular perdurou por séculos, embora não temos detalhes de como ela conseguiu resistir tanto assim. O historiador Jean-Claude Schmitt encontrou referências ao culto de Guinefort em pleno século XX, apontando a existência de capelas dedicadas ao cachorro, práticas para proteger crianças que estavam doentes, em que se dizia para orar a São Guinefort, inclusive ao entrevistar algumas pessoas mais idosas, elas falam que quando crianças e adolescentes lembravam-se de seus pais, tios e avós falarem sobre Guinefort. Neste sentido, Schmitt assinalou que a crença ao santo cachorro sobreviveu no catolicismo popular francês interiorano, conseguindo escapar da Inquisição e das proibições da Igreja.
Todavia, o autor sublinha que existem outros santos populares chamados de Guinefort também, como um Guinefort da Itália e outro da Escócia, mas ambos eram humanos. Não se sabe quando a crença nesses santos populares se originou no medievo e se teria uma conexão entre si.
Os cachorros no Catolicismo
Anteriormente vimos que havia lendas e contos sobre cachorros que protegiam crianças, narrativas essas contadas pela França, Inglaterra, Alemanha, Itália, entre outros lugares da Europa. Porém, no Catolicismo há casos de santos associados com cães, no caso, citarei três exemplos.
Santo Domingos de Gusmão (1170-1241) é representado em algumas imagens ao lado de um cachorro segurando uma vela, referência a um sonho premonitório que sua mãe teve enquanto estava grávida dele. O cachorro passou a simbolizar a missão que Domingos como evangelizador.
São Domingos de Gusmão ao lado de um cachorro.
Pintura de Claudio Coello, c. 1685.
São Roque (c. 1295-1337), conhecido por curar muitas pessoas durante os anos de peste, certa vez ao contrair a doença, isolou-se numa floresta, sendo alimentado por um cachorro que lhe trazia diariamente um pão. Por conta disso, temos algumas imagens dele ao lado de um cachorro, inclusive São Roque é considerado protetor dos cães também.
Imagem de São Roque ao lado de um cachorro. Autoria e datação desconhecidos.
Porém, o terceiro exemplo é o mais emblemático de todos, diz respeito a São Cristóvão, o qual teria vivido no século III. De origem pagã acabou se convertendo mais tarde ao cristianismo, porém, sua fé estava vacilante até que certo dia ele encontrou um menino à beira de um rio, a criança estava sozinha e pediu ajuda para atravessar, pois não sabia nadar. Cristóvão que se chamava ainda Reprobus, colocou o menino nas costas e começou a cruzar o rio, mas a criança ficava cada vez mais pesada. Embora temendo que ambos pudessem se afogar, Cristóvão não voltou atrás e concluiu a travessia. Posteriormente, a criança se revelou ser uma manifestação de Jesus Cristo, e aquilo era um teste de fé.
No entanto, em algum momento da Idade Média São Cristóvão foi associado aos cinocéfalos, uma raça fictícia de homens com cabeças de cães. Embora hoje sabe-se que se trata de uma lenda, por certo tempo acreditava-se que esse povo realmente existisse em alguma parte da Ásia. Assim, o santo foi associado aos cinocéfalos, ganhando representações com a cabeça de cachorro. Alguns estudiosos sugeriram que essa condição poderia ter inspirado o culto de Guinefort, mas essa não é uma hipótese conclusiva, pois se desconhece se as imagens de Cristóvão como homem-cão seriam conhecidas dos franceses, além de que ele não era um santo tão conhecido na França do século XIII.
Fonte: Representação de São Cristóvão como cinocéfalo. Autoria desconhecida, datado do século XVII.
De Supersticione: On St. Guinefort
Referências bibliográficas:
RIST, R. The papacy, inquisition and Saint Guinefort the Holy Greyhound. Reinardus. Yearbook of the International Reynard Society, v. 30, n.1, p. 190-211, 2019.
RUYMBEKE STEY, Marie-Madelene van. Saint Guinefort Addressing Thomas Aquina's Shadow. Journal of Jungian Scholary Studies, v. 3, n. 4, p. 1-8, 2007.
Referência da internet:
O cão que virou santo proibido pela Igreja
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