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Leandro Vilar

sábado, 16 de novembro de 2024

H. H. Holmes: o psicopata americano

O médico H. H. Holmes ficou conhecido no final do século XIX por ter assassinado algumas pessoas em Chicago e Toronto, o que lhe rendeu a fama de ser o primeiro serial-killer conhecido dos Estados Unidos. Sua história criminal virou uma sensação na época, rendendo notícias falsas em jornais e revistas e inspirando até mesmo escritores a criarem contos a respeito. Tendo matado supostamente 27 vítimas, o sensacionalismo expandiu o número de assassinatos até para 200 pessoas. Porém, a vida de serial-killer de Holmes foi bem menos empolgante do que se imagina. Ele atuou como assassino por poucos anos e cometia seus crimes na surdina, o que dificulta saber quantas pessoas realmente ele matou. Além disso, Holmes também cometeu crimes de estelionato, bigamia, falsidade ideológica, sequestro, vilipêndio de cadáveres, cárcere privado etc. 

Retrato de H. H. Holmes.

Introdução

Nascido Herman Webster Mudgett (1861-1896), em Gilmanton, em New Hampshire, sendo o terceiro filho de Levi Horton Mudgett e Theodate Page Price. Seu pai trabalhou como agricultor, comerciante e pintor de parede, tendo problemas com alcoolismo. Já a mãe era dona de casa. Mudgett cresceu numa família metodista. Em dado momento da sua adolescência decidiu estudar Medicina. Conseguindo ser aprovado na Universidade de Vermont em 1879, mais tarde pediu transferência em 1882 para a Universidade de Michigan, onde se formou em 1884.

Durante a universidade, Mudgett se interessou bastante por dissecações, inclusive tornou-se assistente do Laboratório de Anatomia em Michigan e até foi suspeito de cometer o crime de vilipendio de cadáveres, ou seja, roubar corpos do cemitério ou necrotério. Aqui teríamos tido o primeiro sinal criminoso de Mudgett e seu estranho interesse pelos mortos. Além disso, nesse tempo em que fazia o curso de Medicina, Mudgett casou-se com Clara Lovering, com quem teve um filho chamado Robert Lovering Mudgett (1880-1956). Ele usou o dinheiro da esposa para pagar seus estudos e demais despesas. 

Durante seus estudos, Mudgett tomou como amante uma viúva rica, a qual bancou o restante de sua formação. Após se formar em 1884, ele abandonou a esposa, o filho e a amante, e se mudou para Nova York, onde ficou o ano de 1885, sem obter segurança em sua carreira, ele foi embora para Chicago, na época uma cidade em alta, mudando-se para lá em 1886. Foi naquela ocasião que ele teria adotado sua famosa identidade falsa sob o nome Dr. Henry Howard Holmes, mais conhecido como Dr. Holmes

Chicago e o hotel

Em Chicago, Holmes passou a trabalhar numa farmácia, consultando as pessoas. Mas por ser um golpista experiente, procurou por uma jovem endinheirada, a qual acabou caindo em seus galanteios. Holmes como era mentiroso profissional, apresentou-se como um médico de respeito, recém-chegado a Chicago. A escolhida foi Myrta Belknap, com quem teve uma filha chamada Lucy Theodate Holmes (1889-1956). No caso, Holmes aproveitou para enganar a família da esposa, conseguindo pedir empréstimos. Além disso, ele teria dado um golpe financeiro na farmácia onde trabalhava.

A ponto que em 1887 ele comprou um terreno próximo a farmácia para construir um prédio de dois andares, além de ter herdado a própria farmácia, após convencer os donos fazerem um negócio de venda. Holmes usou um nome falso para isso. Em 1888, ele havia dado calote no arquiteto e na empresa de construção, sendo processado por conta disso. Todavia, Holmes conseguiu chegar a um acordo quanto a sua dívida e em 1892, o prédio ganhou um terceiro andar para funcionar como hotel, antes disso, ele funcionava como farmácia, consultório e moradia. 

O hotel ficou pronto em 1893 para atender os turistas que iriam a Chicago para a aguardada Exposição Mundial de 1893. Depois que eclodiu a notícia de que ele era um assassino, os jornais chamaram seu hotel de Castelo do Assassinato (Murder Castle), um nome chamativo, com direito de evocar todo um imaginário sombrio sobre o lugar, em que relatos falavam de câmaras de tortura, masmorras, alçapões, passagens secretas etc., um local de armadilhas, em que Holmes sadicamente brincaria com seus hóspedes. Todavia, nada disso foi achado. Embora Holmes confessou que matou algumas das vítimas que trabalharam ou se hospedaram lá.

Suposta planta do hotel de Holmes, publicada numa manchete sensacionalista do The World Pages de 11 e agosto de 1895, chamando-o de
"o castelo do Barba Azul moderno". 

Passado o ano da Exposição Mundial, o número de hóspedes caiu bastante, gerando prejuízo ao hotel de Holmes, embora no local ainda funcionasse uma farmácia, loja e consultório. Assim, ele passou a procurar outras formas de rendimento e até tentar escapar de seus credores, já que ele era conhecido por ser caloteiro. Dessa forma, no final de 1893 ele fez algumas viagens a Denver no Colorado, onde conheceu uma mulher chamada Georgiana Yoke, com quem começou a namorar e em janeiro de 1894 se casou com ela (lembrando que ele já era casado anteriormente duas vezes). Na época Holmes pretendia se mudar de Chicago para Denver, abandonando sua outra esposa e filha, algo que ele já tinha feito anteriormente. 

Os assassinatos

O relato dos assassinatos de H. H. Holmes é complexo de ser rastreado. Muitas invenções surgiram com os jornais e revistas da época. Ele teria confessado que matou 27 pessoas, mas suspeitas diziam que o número teria sido muito maior. Algumas obras chegaram a falar de mais de 100 vítimas outros aumentaram o valor para 200 mortes. Além disso, não dispomos dos nomes de suas vinte e sete vítimas

Mas o que se sabe sobre as pessoas que ele matou? Embora tenha dito que cometeu 27 assassinatos, ele nunca deu o nome de todos. Entre as vítimas estariam: Julia Smythe, sua amante que trabalhava no seu hotel, que estava grávida de Pearl, tendo se separado do marido Laurence Connor. Em 1891, Julia e Pearl sumiram misteriosamente. Em 1892, Emeline Cigrand, que atuava como secretária no prédio e outra possível amante de Holmes, também desapareceu naquele ano. Seu esqueleto foi achado em uma das residências de Holmes mais tarde. 

No ano de 1893, Holmes conheceu uma atriz chamada Wilhemina "Minnie" Williams, a qual buscava seguir a carreira artística em Chicago, mas sem sorte, Holmes lhe ofereceu emprego em seu hotel, como secretária. Ali ele a cortejou, tornando-a sua amante também. Holmes inclusive usou Williams como vítima de seus golpes de estelionato, fazendo ela assinar documentos para vender uma propriedade que tinha, para um homem chamado Alexander Bond, que era um dos nomes falsos de Holmes. Vale lembrar que desde Michigan ele já aplicava golpes usando nomes falsos. 

Mesmo estando casado com Myrtha Belknap, Holmes disse que era solteiro e passou a morar junto com Minnie Williams, tendo alugado uma casa para ela. Em junho de 1893, a irmã mais nova de Minnie, Anna, foi visitar o casal para felicitar o noivado da irmã. Semanas depois as duas não foram mais vistas com vida. Nota-se aqui que Holmes possuía preferência por matar mulheres, já que entre 1891 e 1893 ele assassinou cinco mulheres. 

No entanto, ele também matou homens. Um dos seus credores, o senhor John DeBrueil, teria sido envenenado por Holmes em 1891, em sua farmácia. Na época ele disse que DeBrueil teve um mal súbito. Outras secretárias e funcionários que trabalhavam para Holmes, além de alguns hóspedes, desapareceram também e nunca foram achados. Consideram que talvez tenham sido mortos por ele. 

No ano de 1894, os credores de Holmes voltaram a pressioná-lo, ele se mudou para Fort Worth, onde possuía uma propriedade roubada de Winnie Williams, cogitando ir depois para o Colorado, onde vivia sua terceira esposa. Porém, ele não escapou da polícia e foi preso devido a acusação de vender bens hipotecados em outra cidade. No entanto, ele passou pouco tempo preso, pagando fiança. Até então seus outros crimes de estelionato e fraude ainda não tinham sido descobertos. Fora da prisão, Holmes planejou dar um golpe numa agência de seguros planejando sua própria morte, mas o plano falhou. Então ele convocou seu parceiro do crime, Benjamin Pitezel (1856-1894), para ajudá-lo em um novo golpe. 

Holmes conheceu Pitezel anos antes, o qual inclusive já tinha passagens pela polícia. Pitezel passou a ajudar Holmes em seus golpes, possivelmente também em acobertar os assassinatos, sumindo com os corpos e as evidências. O plano era fazer uma apólice de seguro de 10 mil dólares para Pitezel, e ele fingiria a própria morte. Holmes arquitetou tudo, mas acabou traindo seu parceiro, o matando de verdade, tendo sufocado com clorofórmio e queimado seu corpo em seguida (ele confessou isso na prisão). Porém, ele obteve o dinheiro do seguro e foi falar com a esposa de Pitezel, Carrie Alice Canning

Como um frio psicopata, Holmes, mentiu para Carrie ao dizer que o marido estava escondido e o enviou para tratar do plano de mudança da família. Carrie que conhecia Holmes a algum tempo confiou em sua palavra. Assim, ele levou consigo seus três filhos Alice, Nellie e Howard. Os quatro viajaram rumo ao Canadá, por onde supostamente iriam encontrar o pai ou pegariam um navio para ir à Europa onde ele estaria vivendo em Londres. Carrie viajou posteriormente, mas não chegou a encontrar os filhos, tendo sido enviada por Holmes a outra cidade. Finalmente eles se mudaram para Toronto no Canadá, onde H. H. Holmes matou os três filhos de Pitizel. 

A captura

Ainda em 1894 a polícia já estava atrás de Holmes devido aos seus golpes e a condição de ele aparecer viajando para diferentes estados. Vale ressalvar que também havia suspeitas acerca da apólice de seguro de Benjamin Pitezel, ainda mais após Holmes ter recebido o dinheiro e ido buscar os filhos dele e sumido em seguida. A polícia considerou isso bastante suspeito. A Agência Nacional de Detetives Pinkerton, enviou o detetive Frank Geyer (1853-1918) para investigá-lo, vindo a prendê-lo em 17 de novembro de 1894 em Boston.  

No ano seguinte sua casa em Toronto foi investigada e encontraram os restos mortais dos filhos de Pitizel. O hotel de Holmes em Chicago também foi investigado, mas nenhum corpo foi achado, apenas pequenos vestígios que poderiam ter sido de suas vítimas. Ele ficou preso preventivamente enquanto aguardava julgamento.

As investigações criminais começaram em novembro de 1894 e foram concluídas em 1895. Curiosamente somente se atestou quatro assassinatos, sendo de Benjamin Pitizel e de seus três filhos. Porém, enquanto estava preso, Holmes disse que matou 27 pessoas, dando os nomes de alguns, mas outros jamais ele falou a respeito. Ele disse que matou pessoas em Chicago, Indianópolis e Toronto. No entanto, jornais na época ofereceram dinheiro para ele dar uma exclusiva sobre seus crimes. Holmes aceitou, mas hoje considera-se que ele pode ter inventado algumas coisas nesses depoimentos para inflar sua fama perversa, já que ele sabia que seria condenado à morte. 

H. H. Holmes ficou preso pelos meses seguintes, sendo enforcado em 7 de maio de 1896, aos 34 anos. Ele disse que seu corpo fosse enterrado a três metros de profundidade e coberto de concreto. Os jornais alegaram que tal pedido se devia para aprisionar sua alma maldita. Holmes teria alegado que era para evitar que seu corpo fosse roubado. O que é irônico, pois ele cometeu o crime de roubo de cadáveres. No entanto, tal pedido não foi atendido. Seu corpo foi enterrado numa cova sem identificação no Cemitério Santa Cruz, em Yeadon, na Pensilvânia. Pondo fim a sua vida de crimes. 

O enforcamento de H. H. Holmes. Desenho feito por Newmar para o artigo Holmes' Own Story (1895). 

Considerações finais

H. H. Holmes se tornou uma celebridade infame ainda em vida, já que a descoberta de seus crimes de assassinato rapidamente repercutiram e viraram grande sensacionalismo. O cruel médico que matou amantes, funcionários, hóspedes, o parceiro e crianças. O detetive Frank Geyer inclusive foi um dos responsáveis por impulsionar essa história macabra ao publicar o livro O Caso Holmes-Pitizel: a história do maior crime do século e da busca pelas crianças Pitizel (1896). Obra que teve uma boa tiragem na época, aproveitando-se do sensacionalismo a respeito. 

Todavia, foi nos anos seguintes que outros crimes de Holmes, envolvendo estelionato, fraudes, falsidade ideológica, bigamia etc., foram sendo descobertos. A quantidade de mortos nunca foi conclusiva, apesar de ele ter dito que matou vinte sete pessoas. Mas alguns investigadores duvidam desse valor, cogitando poder ser menor, embora que os jornais da época diziam que era bem maior. 

O hotel de Holmes foi incendiado em 1895 de forma criminosa, mas os bombeiros conseguiram conter o fogo. O prédio foi confiscado pela justiça e vendido, mantendo-se operante por vários anos até ser demolido em 1938. Alguns dos funcionários de Holmes que atuaram em seu hotel, foram investigados, mas não depuseram contra seu antigo patrão, alegando que não sabiam de nada acerca de seus crimes (o que gera dúvidas ainda hoje). Embora familiares de alguns deles diziam que esses estavam atormentados após descobrirem as atrocidades que seu patrão cometeu. 

Holmes inspirou produções literárias, as quais criaram histórias sobre seus crimes, atribuindo inclusive mais mortes, algo que se difundiu na primeira metade do século XX. Depois disso tivemos vários livros de jornalistas e de alguns historiadores analisando o caso dele. Transformando esse psicopata americano no primeiro serial-killer dos Estados Unidos. 

NOTA: Holmes também foi acusado de fazer abortos em algumas de suas amantes e possivelmente até em outras mulheres. 

NOTA 2: Holmes foi chamado de o "Barba Azul moderno" por conta de ele ter assassinado algumas de suas amantes que teve em Chicago. Inclusive alguns autores consideram que ele deveria ser misógino. 

NOTA 3: O livro American Gothic (1974) é um romance de Robert Bloch sobre a vida de crimes de Holmes. Sendo popular na época. 

NOTA 4: O livro The Devil in the White City (2003) do jornalista Erik Larson, é uma das obras mais famosas que analisa o caso criminal de H. H. Holmes. Os direitos do livro foram comprados em 2010 pelo ator Leonardo DiCaprio para se tornar um filme, mas esse nunca foi produzido. Em 2019 os canais ParamountHulu anunciaram que adaptariam o projeto de DiCaprio como uma série, mas a proposta também foi cancelada.

NOTA 5: No seriado Supernatural (2005-2020) na segunda temporada, episódio 6, intitulado Sem Saída (No Exit), os irmãos Sam e Dean devem enviar o fantasma de Holmes de volta ao Inferno. Já que esse escapou e pretendia voltar a matar. 

NOTA 6: O jogo The Devil in Me (2022) é inspirado na história de Holmes. No jogo, um psicopata que é fã do médico, recria seu hotel numa ilha e convida hóspedes para lá, onde os assassina com sadismo. 

Referências bibliográficas:

CRIGHTON, J. D. Holmes' Own Story: Confessed 27 Murders – Lied Then Died. Murrieta, Aerobear Classics, 2017. 

GEARY, RickThe Beast of Chicago: An Account of the Life and Crimes of Herman W. Mudgett, Known to the World as H. H. Holmes. New York, NBM Publishing, 2003. 

domingo, 10 de novembro de 2024

As Leis de Jim Crow (1877-1964): o apartheid nos Estados Unidos

Oficialmente nos Estados Unidos nunca houve um apartheid como ocorreu na África do Sul (1948-1994), porém, o país norte-americano chegou próximo a isso em alguns momentos. As chamadas Leis de Jim Crow foram um conjunto de leis estaduais vigentes entre os séculos XIX e XX, que estabeleceram um sistema de segregação racial, reflexo do forte racismo estrutural vigente no país. Assim, valendo-se do discurso da democracia e liberdade de expressão, além de outras características do federalismo estadunidense, alguns estados conseguiram aprovar seus "pequenos apartheids" como veremos a seguir. 

A origem das leis de Jim Crow

O surgimento dessa legislação racista teve início no século XIX, um pouco mais de dez anos após o término da Guerra de Secessão (1861-1865), a qual marcou a derrota dos Confederados do Sul, mas também marcou a abolição da escravidão, mesmo que a contragosto dos confederados e outras parceladas da população. Apesar disso, os ex-escravos e seus descendentes seguiram sendo marginalizados mesmo assim, entretanto, em alguns estados já nas décadas de 1870 e 1880, houve alguns poucos negros que começaram a ascender socialmente e até a assumirem cargos públicos (algo anteriormente vetado). A sociedade racista que não aceitava o término da escravidão, para essas pessoas era uma afronta ver afro-americanos naqueles cargos. 

No ano de 1875 o Congresso aprovou o Ato dos Direitos Civis, entre suas premissas estava a qual determinava que todos os americanos seriam iguais perante a Constituição, independente de sua cor. Porém, na prática isso nunca se concretizou. Assim, nos antigos estados confederados surgiram grupos supremacistas como o Ku Klux Klan e os Red Shirts, ambos terrivelmente racistas a ponto de caçar e matar afro-americanos, indígenas e mestiços. 

Por sua vez, uma elite política representando o Partido Democrata da região confederada, marcada pelo seu conservadorismo e apoio a escravidão, decidiram mudar as leis para barrar o acesso de candidatos negros aos cargos estaduais e federais, assim, eles ficavam proibidos de poderem se candidatar, mais tarde também proibidos de votar. Essa tendência se alastrou na década de 1890 por alguns dos estados que anteriormente formaram a Confederação, sendo eles: Mississipi, Alabama, Geórgia, Luisiana, Flórida, Texas, Carolina do Sul, Carolina do Norte, Tennesee e Arkansas, foram adotando leis para barrar a participação dos afro-americanos nas eleições estaduais e federais, as vezes até em eleições municipais quando possível. (TISCHAUSER, 2012). 

Foi na década de 1880 que alguns jornais sulistas começaram a se referir a essas leis estaduais como leis de "Jim Crow", uma referência a uma música popular chamada Jump Jim Crow (1832) criada pelo compositor Thomas D. Rice, a qual fazia piada com os escravos. Posteriormente, alguns cantores que cantavam essa música, praticavam o blackface, pintando-se de preto para representar o escravo Jim Crow da canção. (TISCHAUSER, 2012). 

Ilustração para a música Jump Jim Crow em 1832. 

No de 1881 o estado do Tennessee aprovou uma lei que designava a divisão de vagões de trem para brancos e negros. Se até então as leis procuravam barrar os direitos políticos dos afro-americanos, agora tínhamos uma lei que estipulava a segregação racial. Essa lei foi aprovada sob alegação de evitar problemas entre os passageiros, tomando como pressuposto que já existia uma divisão em primeira, segunda e terceira classe, mas agora surgia uma "quarta classe", na qual se reunia todos os negros, independente de seu poder aquisitivo. (FREMON, 2014).

Em 1883 a Suprema Corte revogou os Atos dos Direitos Civis de 1875, sob alegação de ser inconstitucional proibir as pessoas de terem opinião contrárias a indivíduos de outras "raças" e nacionalidades, pois isso era contrário ao principio da liberdade de expressão e opinião. A Suprema Corte determinou que os estados deveriam evitar essa discriminação, mas os cidadãos estavam livres para manter suas opiniões. Isso apenas contribuiu para que o racismo continuasse a ser rotineiro. (FREMON, 2014). 

No ano de 1890 o estado do Mississippi criou ou chamado Plano Mississippi, uma atualização das leis estaduais para dificultar a vida dos afro-americanos. Entre as medidas adotadas estavam: dificultar o porte e posse de armas; tornar mais difícil a candidatura de negros e até mesmo o direito ao voto, a abrir negócios, comprar imóveis etc. Essas medidas foram adotadas por outros estados fortemente racistas como Alabama e Carolina do Sul pela mesma época. (FREMON, 2014).

Em 1899 a Suprema Corte aprovou o projeto de lei que estipulava que os estados poderiam decidir como investir verbas na educação de pessoas brancas e negras. Nos estados sulistas em que a segregação era mais forte e nítida, já havia naquele tempo bairros onde a maioria dos moradores eram negros e pardos, por sua vez, nas escolas desses bairros, grande parte dos estudantes eram de pele escura. Assim, a lei aprovada designava que o governo investiria maior quantidade de dinheiro em escolas melhores, evidentemente que as escolas frequentadas por brancos tiveram privilégio. E o governo alegou que isso não era discriminação, pois naturalmente as escolas de negros eram conhecidas por seus alunos deficitários. Isso era claramente reflexo do racismo científico operante na época, o qual determinava que pessoas negras, pardas, indígenas, judias, ciganas etc., eram geneticamente menos inteligentes. (TISCHAUSER, 2012). 

A expansão da segregação racial

E a situação acabou por piorar. Na década de 1900, os ex-estados confederados aprovaram novas medidas segregacionistas, criando espaços para brancos e negros. Por essa época começou a surgir bebedouros, paradas de ônibus, vagões de trem, estações, banheiros públicos, hotéis, restaurantes etc., divididos racialmente. Em 1909 a cidade de Baltimore City no estado de Marylan aprovou uma lei para delimitar a expansão dos bairros de negros, assim como, estipular onde eles poderiam construir suas moradias. Outras cidades adotaram o procedimento. Por sua vez, em 1913, o presidente Woodrow Wilson (1913-1921) tornou essa divisão racial em lei federal aplicada as repartições públicas federais, determinando a criação de banheiros, refeitórios, bebedouros, escritórios e vagas para brancos e negros. (FREMON, 2014).

Com a aprovação as medidas raciais em 1909 e 1913, a tendência foi se espalhando por outras partes do país. Estados que nunca antes tinham cogitado adotar esse apartheid, passaram a executá-lo, pelo menos em algumas cidades. A criação de espaços para brancos e negros foi aumentando, logo, passou-se a ter diferentes tipos de comércios agora divididos. Curiosamente a Suprema Corte em 1917 considerou que a delimitação de bairros de negros era inconstitucional e proibiu os estados fazerem isso. Porém, a segregação institucional seguia normalmente. (FREMON, 2014).

O apartheid americano também passou a segregar os afro-americanos em outras estâncias. Além de serem excluídos das eleições na maioria das vezes, eles foram barrados de terem acesso às universidades, já que a maioria já eram pagas, mas as bolsas de estudo não eram ofertadas para negros; embora a saúde nos EUA seja privada, havia hospitais e clínicas que não atendiam pessoas negras. As relações de trabalho seguiam discriminatórias, em que os afro-americanos continuavam sendo menosprezados e recebendo salários inferiores e sujeitados a ofícios degradantes. O casamento inter-racial começou a ser proibido em alguns estados também. Famílias de negros eram proibidas de adotarem crianças brancas(TISCHAUSER, 2012). 

A justiça também era bastante desigual. Enquanto conflitos envolvendo negros e brancos eram recorrentes mesmo naquela época, como o caso do Massacre de Tulsa em 1921, em que todo um bairro onde viviam maioria de afro-americanos, foi atacado, sendo incendiado. O número de mortos oficial foi de 36, mas estimativas atuais apontam possívelmente mais de 600 vítimas. Além disso, vários negros que se defendiam dos agressores foram presos injustamente, passando semanas ou meses detidos. Além desse caso, em outras ocasiões era comum negros ao serem abordados pela polícia, serem rapidamente detidos e presos, e até mesmo recebendo penas mais severas, em alguns casos, até penas de morte.

Afro-americanos detidos durante o Massacre de Tulsa, em 1921. 

Durante a década de 1930 alguns estados voltaram a barrar candidatos negros para as eleições municipais e estaduais (já que federais isso já tinha sido feito), além disso, alguns cargos públicos foram também vetados, e até mesmo o acesso ao júri. Ou seja, em 1935 no estado do Alabama, passou-se a proibir jurados negros. No ano de 1938 a Suprema Corte deliberou que se existiam faculdades exclusivas para brancos, faculdades exclusivas para negros deveriam ser criadas. Nota-se que a ideia não era acabar com a segregação, mas perpetuá-la sob disfarce de democracia. Ao invés de acabar com o racismo que proibia afro-americanos de frequentarem faculdades e universidades, a alternativa foi criar faculdades apenas para negros, embora que na prática isso não deu certo. Faculdades exclusivas para negros mal foram criadas. (TISCHAUSER, 2012). 

O governo federal tentou acabar com a segregação promovida pelas leis estaduais, mesmo tomando algumas medidas como declarar que era inconstitucional proibir candidatos negros a disputarem as eleições, algo feito em 1944, e em 1946 a Suprema Corte declarou ser também inconstitucional manter estabelecimentos para brancos e para negros, na prática isso nunca foi efetivado. 

Uma cafeteria na Carolina do Sul, nos anos 1940, mostrando uma entrada para brancos e uma entrada para negros. 

Na década de 1950 a Suprema Corte exigiu que o governo do Texas acabasse com a proibição de negros de frequentar faculdades para brancos, sob alegação de que as faculdades para negros eram de baixa qualidade. Posteriormente essa exigência passou para atender as escolas de outros estados também, mas em ambos os casos, isso nunca foi efetivado. Condição essa que em 1956 a estudante Autherine Lucy (1929-2022) foi a primeira mulher negra a se matricular na Universidade do Alabama. Ela foi hostilizada quando chegou a instituição, sendo expulsa meses depois após vários protestos de estudantes, pais e professores, que consideravam imoral uma negra estudar numa universidade para brancos. (FREMON, 2014).

A luta contra a segregação racial

No ano de 1909 surgiu a Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor (National Association for the Advancent of Colored People), conhecido pela sigla em inglês NAACP. O movimento surgiu para combater o forte racismo que imperava nos Estados Unidos, porém, por décadas ele nunca obtive êxito, apesar das várias denúncias e manifestações. No entanto, seus membros nunca perderam a esperança. Somente na década de 1950 a NAACP conseguiu ganhar evidência internacional e se fortalecer, tornando-se inclusive referência para o movimento negro em outros países. 

No ano de 1955 ocorreu um famoso acontecimento do movimento negro estadunidense. Rosa Parks (1913-2004) estava se dirigindo ao trabalho na cidade de Montgomory, no Alabama, quando o motorista de ônibus mandou que ela e os demais negros se levantassem de um dos assentos para que um passageiro branco se sentasse. As outras pessoas obedeceram, mas Rosa se negou a ceder assento para um branco. O motorista interrompeu a viagem e chamou a polícia. Rosa Parks foi detida em 1 de dezembro de 1955 por desacatar a lei, sendo mais tarde presa e enviada ao presídio. Na época ela era ligada ao NAACP, inclusive ficou conhecida do Martin Luther King Jr, que começava a destacar-se no período. Assim, um movimento de boicote que durou de dezembro de 1955 a dezembro de 1956 foi feito em Montgomory. (BARNES, 1983). 

Rosa Parks e Martin Luther King Jr em Montgomory, Alabama, no ano de 1955. 

O movimento levou pessoas negras, pardas e brancos contrários ao racismo, a boicotarem as empresas de ônibus. Mais de cento e cinquenta manifestantes foram presos, alguns até agredidos por policiais ou a população racista. O próprio Martin Luther King Jr chegou a ser preso por duas semanas devido a participar de alguns protestos. Outros membros do movimento negro foram insultados, agredidos e tiveram suas casas atacadas com pedras e tiros. Porém, apesar das dificuldades, o movimento de boicote deu certo, pois em dezembro de 1956 a Suprema Corte anulou a lei estadual que segregava os passageiros nos ônibus. Essa foi considerada uma grande vitória na época, fortalecendo o movimento negro naquela época. (BARNES, 1983). 

Com a vitória em Montgomory, o pastor Martin Luther King Jr (1929-1968) passou a despontar localmente como liderança do movimento negro. King Jr nos anos seguintes incentivou várias manifestações pacíficas pelo Alabama e estados vizinhos contra a segregação racial, destacando-se suas ações em Albany na Geórgia em 1962 e em Birmingham no Alabama em 1963, nessa ocasião ele foi preso novamente. No entanto, em agosto daquele ano ele viajou para Washington D.C e realizou sua famosa Marcha sobre Washington, reunindo centenas de milhares de pessoas diante do Monumento a Lincoln, onde ele realizou seu famoso discurso chamado Eu tenho um Sonho (I Have a Dream). (KIRK, 2007).

O discurso de Martin Luther em Washington o tornou famoso mundialmente e o colocou na mira do FBI, que passou a espioná-lo como possível ameaça, já que o pastor havia ficado bastante popular e ativo nos últimos anos promovendo o movimento negro no Alabama e Geórgia. A repercussão do ativismo de Martin Luther King Jr foi tamanha que em 14 de outubro de 1964 ele ganhou o Prêmio Nobel da Paz, além de contar com o apoio do presidente Lyndon B. Johnson (1963-1969), o qual em 1964 assinou o Decreto dos Direitos Civis que as Leis Jim Crow eram ilegais e deveriam ser anuladas(KIRK, 2007).

Martin Luther King Jr discursando em Washington D.C, em 1963. 

Apesar do decreto do presidente Johnson, sua ação não repercutiu de imediato, assim, os estados continuaram a manter suas ações racistas, mesmo que legalmente tivessem suspendido essas legalmente. Aqui temos claramente um exemplo do funcionamento do racismo estrutural, pois embora ele não seja oficializado legalmente, ele ainda continua a funcionar informalmente, em que as autoridades fazem "vista grossa" as suas mazelas. Por conta disso, a luta contra o racismo se manteve ainda em alta nos anos seguintes. 

No ano de 1965, Martin Luther participou de duas das três marchas em Selma e Montgomory pedindo pelo retorno ao direito ao voto para afro-americanos e o fim da segregação racial. Inclusive as marchas também foram um protesto pelo assassinato de Jimmie Jackson, ativista negro morto poucos dias antes. Nas três marchas houve um forte aparato opressivo de tropas policiais e militares para intimidar os manifestantes. Apesar que a primeira marcha foi a mais violenta, chamada de "Domingo Sangrento", ocorrida em 7 de março de 1965, em que os 600 manifestantes foram atacados pela polícia(KIRK, 2007).

Além de defender os direitos dos negros e combater o racismo, King Jr fez campanhas em defesa dos pobres e se posicionou contrário a Guerra do Vietnã (1955-1975). Ele chegou a receber ameaças de morte e foi alvo de chantagens por parte do FBI e outras autoridades, as quais suspeitavam que ele fosse um espião comunista da URSS (eram tempos de Guerra Fria). Martin Luther King Jr acabou sendo assassinado em 4 de abril de 1968, em Memphis, no Tennessee. Sua morte causou grande impacto na época. 

No mesmo período que Martin Luther King Jr realizava suas ações ativistas no Alabama, outro líder ativista importante, Malcolm X (1925-1965) ganhava destaque naquela época. Nos anos 1940 Malcom acabou entrando para o mundo do crime, sendo preso em 1946 e solto em 1952. Ao sair da cadeia, Malcom X se converteu ao Islão, tornou-se missionário e aderiu ao movimento negro, passando a atuar em Detroit e Nova York. Diferente de Martin Luther, Malcom defendia protestos mais ousados e se fosse necessário até com o uso da força. (JENKINS, 2002). 

Martin Luther King Jr e Malcolm em 1964. 

Malcolm X viajou para a África três vezes, para dar palestras e até realizou a peregrinação para a Meca em 1964. Após romper com o grupo Nação do Islão (do qual era vinculado desde 1952), ele se tornou mais moderado em suas ações públicas e fundou a Organização para a Unidade Afro-Americana (OAAU) em 1964, recebendo membros de todas as cores unidos pelo ideal de enfrentar o racismo. Porém, devido aos inimigos que fez, Malcolm X foi assassinado em 1965(JENKINS, 2002).

Outro movimento negro paralelo, influenciado pelo pensamento de Malcolm X, foi o Partido dos Panteras Negras (Black Panther Party), criado em 1966 por Bobb Sealey e Huey Newton, como um grupo de viés socialista e antirracista, que defendia inclusive o uso da força e até mesmo a luta armada para encabeçar o fim da segregação racial nos Estados Unidos. Os Panteras Negras estiveram atuantes até 1982, quando o partido foi encerrado. O partido ganhou filiados em Nova York, San Francisco, Chicago, Los Angeles, Seattle, Filadélfia e em outras cidades e estados. Suas ações iam desde manifestações pacíficas a confrontos com a polícia, tendo resultado em feridos e mortos, além de que vários membros foram presos nesses anos. (ALKEBULAN, 2007). 

O radicalismo dos Panteras Negras foi marcante ainda mais devido aos assassinatos de Malcolm X e Martin Luther King Jr, fatores usados para inflar a raiva de parte de seus membros a aderirem ao combate para confrontar o racismo estrutural dos Estados Unidos. (ALKEBULAN, 2007). 

Bobb Seale e Huey Newton, fundadores do Partido dos Panteras Negras.

Considerações finais

A década 1960 foi bastante emblemática para os Estados Unidos, pois foi um período em que as Leis de Jim Crow foram formalmente anuladas a partir de 1964, ainda assim, o movimento negro estava em alta, pois a segregação racial se mantinha forte, além de que o Ku Klux Klan e outros grupos supremacistas seguiam causando seus crimes como atos de vandalismo, agressão e assassinato. Por conta disso, os Panteras Negras decidiram revidar com força, já que o Estado fazia "vista grossa" a tais crimes. 

Em 1967 a proibição do casamento antirracial foi abolida, no ano seguinte os afro-americanos recuperaram seus direitos de se elegerem e poderem votar, além de assumir outros cargos públicos. Na década de 1970 a segregação em estabelecimentos públicos e privados foi extinta, assim como, passou-se a aceitar negros indo estudar em escolas, faculdades e universidades, anteriormente proibidas para eles. O Ku Klux Klan se tornou ilegal, além de que outros grupos supremacistas violentos que caçavam negros, acabaram. 

Apesar que nos anos 1970 a segregação racial começou a se dissipar, não significou que o racismo havia chegado ao fim. Ele não era mais escancarado como antes, mas ainda se manteve e continua a existir no país. Apesar que os avanços conquistados pelo movimento negro entre as décadas de 1950 e 1980 foram bastante significativos, a ponto de contribuir para pôr fim ao apartheid americano. 

NOTA: As histórias em quadrinhos dos X-Men, foram criadas em 1963 por Stan Lee e Jack Kirby, influenciadas pela segregação racial nos Estados Unidos. Em várias revistas os mutantes são alvo de racismo, além de sofrerem perseguições pelo Estado e outras organizações. 

NOTA 2: O super-herói da Marvel Comics, o Pantera Negra, foi criado por Stan Lee e Jack Kirby ainda em 1966, influenciado pelo Partido dos Panteras Negras. 

NOTA 3: Em 1968 surgiu o Partido dos Panteras Brancas, influenciado pelos Panteras Negras, mas tendo um viés mais anarquista, pois além de combater o racismo, eles também defendiam a abolição do dinheiro, a legalização das drogas, fim do recrutamento militar obrigatório, reforma do sistema judiciário, acesso livre à informação etc. O grupo ficou ativo até 1980, mas não alcançou a mesma repercussão do que os Panteras Negras, embora vários membros foram presos por conta de seu radicalismo. 

Referências bibliográficas: 

ALKEBULAN, Paul. Survival Pending Revolution: The History of the Black Panther Party. Tuscaloosa, University of Alabama Press, 2007. 

BARNES, Catherine A. Journey from Jim Crow: The Desegregation of Southern Transit. Columbia, Columbia University Press, 1983.

FREMON, David K. The Jim Crow Laws and Racism in United States History. Berkeley, Enslow Publishers, Inc, 2014. 

JENKINS, Robert L. The Malcolm X Encyclopedia. Westport, Greenwood Pres, 2002. 

KIRK, John A. Martin Luther King Jr. and the Civil Rights Movement: Controversies and Debates. [s. l], Red Globe Press, 2007. 

TISCHAUSER, Leslie V. Jim Crow Laws. Santa Barbara, Greewood, 2012.