Durante a crise do Xogunato Tokugawa no conturbado período conhecido como Bakumatsu, uma série de revoltas, conspirações e batalhas ocorreram por mais de uma década, entre as lideranças a favor do fim do xogunato esteve o samurai Sakamoto Ryoma, tido por alguns como um herói revolucionário, para outros um rebelde traidor. O presente texto contou um pouco da história desse samurai que lutou pela Restauração Meiji e o fim do autoritarismo do Clã Tokugawa.
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Retrato de Sakamoto Ryoma. |
O Japão passou por séculos de instabilidade política, a qual marcou boa parte de sua história medieval e moderna. No final do século XII surgiu o xogunato, um governo político-militar gerido pelo xogum ("general superior"), o qual retirava das mãos do imperador o direito de governar. o Clã Kamakura foi o primeiro a fundar um xogunato, que durou mais de cem anos, lançando as bases para esse tipo de governo no Japão, marcado por uma política armamentista, feudal e severa. Com a dissolução do Xogunato Kamakura (1185-1333), o imperador Go-Daigo tentou recuperar o poder através da chamada Restauração Kemmu (1333-1336), mas sua tentativa falhou, abrindo caminho para que o Clã Ashikaga funda-se um novo xogunato que durou mais de cem anos também.
Todavia, o Xogunato Ashikaga (1336-1573) a partir de meados do século XV entrou em profunda crise pela disputa dos daimiôs por terras, riquezas e poder. Esses senhores feudais já não obedeciam mais o xogum, tampouco o imperador, assim decidiram expandir seus domínios, lançando o país numa terrível guerra civil cuja época foi chamada de Sengoku (1467-1573). O segundo xogunato entrou em declínio frente as investidas do daimiô Oda Nobunaga (1534-1582), o qual ambicionava reunificar o país sob seu controle. Com sua morte seus planos foram assumidos pelo seu general Toyotomi Hideyoshi (1537-1598), o qual mesmo não tendo assumido o título de xogum, governou como um.
Após a morte de Toyotomi, cujo herdeiro era uma criança, o governo do país entrou em crise pelos anos seguintes. Antigos generais dele e de Oda passaram a disputar o poder vago, despontando Tokugawa Ieyasu (1543-1616), o qual saiu vitorioso na Batalha de Sekigahara, sendo eleito xogum em 1603, iniciando o terceiro e último xogunato do Japão.
As primeiras décadas do Xogunato Tokugawa (1603-1868) foram severas, pois para pôr ordem e restaurar a paz, os xoguns Tokugawas foram implacáveis. Mas não foram apenas os japoneses que sofreram em suas mãos, os europeus que mantinham negócios comerciais, políticos e religiosos no país desde meados do século XVI, sofreram duramente. Tokugawa Ieyasu e seu filho proibiram o cristianismo no Japão, a presença de missionários, padres e frades, além de banir os europeus, vetando sua vinda ao país. Somente alguns holandeses foram tolerados, mas os portugueses, espanhóis e ingleses foram proibidos de viver no Japão, tampouco visitá-lo.
Após o fechamento do país em meados do século XVII, o Japão entrou em profunda reclusão e numa política xenofóbica. Por outro lado, as guerras terminaram, havendo revoltas eventuais, no entanto, os samurais seguiam como classe dominante, assim como, o sistema feudal foi mantido. Enquanto outras nações asiáticas se modernizam politicamente, socialmente, economicamente e tecnologicamente no século XIX, o Japão devido ao seu regime militar e feudal, se manteve retrógrado e obsoleto. Porém, japoneses que conseguiam viajar para fora ou tinham contato com chineses, filipinos, americanos e ingleses passaram a nutrir ideias para modernizar o país.
A realidade sofreu uma brusca reviravolta em 1853 quando o comodoro Matthew C. Perry (1794-1858) invadiu a baía de Tóquio com sua pequena frota e coagiu o xogum Tokugawa Iesada a revogar o isolamento político do país. Iesada sob pressão política e o risco de uma guerra que não teria chance de vencer, concordou com os termos do comodoro Perry, vindo a assinar o Tratado de Kanagawa em 1854, que iniciava o acordo de amizade e paz entre Japão e Estados Unidos. Após os americanos, os ingleses e os franceses começaram a frequentar o país, levando suas culturas e ideias políticas, econômicas, sociais, além de tecnologias.
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Retrato do comodoro Matthew C. Perry. |
O Bakumatsu (1853-1867)
Sakamoto Ryoma (1836-1867) nasceu em Kochi, na Província de Tosa, ele pertencia a uma família de samurais mercantes, sendo filho de Sakamoto Yahei e Sakamoto Sachi. Ele era o segundo filho do casal, o qual teve ao todo dois homens e três mulheres. Por conta da riqueza da sua família, pôde se dedicar aos estudos e as artes marciais. Na juventude interessou-se pela cultura europeia que chegava ao país, por conta disso, ele como outros jovens eram entusiastas das novidades modernas, no quesito político estavam ideias sobre democracia, república, parlamento etc. No entanto, no governo do xogunato não havia espaço para isso.
Sakamoto aderiu as ideias do Sonno Joi a partir de seu mestre Takechi Hanpeita (1829-1865), líder do grupo Tosa Kin no To ("Partido monarquista de Tosa"), um dos mais influentes no país durante o Bakumatsu, termo que designa o período final de crise do xogunato Tokugawa, que levaria ao seu fim. Sakamoto passou a apoiar politicamente as ideias do partido de Tosa em defesa ao fim do xogunato e a restauração do poder monárquico. Entretanto, a situação não era simples assim.
Da mesma forma que surgiam partidos pró-imperador, o xogum também possuía seus aliados e quem defendia com unhas e dentes a manutenção do xogunato e a diminuição da presença estrangeira no país. Isso gerou conflitos entre os dois grupos, resultando em brigas, revoltas e batalhas. O então daimiô Yoshida Toyo (1816-1862) era o governador da Província de Tosa, sendo servo leal ao xogum, o que o colocou diretamente contrário ao partido de Hanpeita, havendo bastante atrito entre ambos, mas a situação piorou em 1862 quando três membros do Tosa Kin no To assassinaram Toyo numa tentativa de golpe de estado para o partido tomar o controle de Tosa. A repercussão foi severa, pois o partido foi cassado, seus membros foram considerados traidores e passaram a serem perseguidos. Hanpeita foi forçado a cometer seppuku (o suicídio honroso dos samurais).
Sakamoto Ryoma tinha seus 28 anos na época quando teve que deixar Tosa devido a perseguição sofrida ao partido do qual ele era membro. Além disso, com a morte de seu mestre, ele se tornou um ronin. Durante sua fuga para se esconder, ele voltou para casa e chegou a se alojar no dojo de Chiba Sana, mulher por quem nutria interesse e cogitou se casar com ela. Apesar que formalmente nunca tenha se casado com ela.
O conspirador
Como ronin e foragido da justiça, Sakamoto adotou identidades falsas para fugir da polícia, passando a usar nomes falsos como Saedani, Naonari, Naokage. Em 1864 Sakamoto seguiu para Edo (atual Tóquio), onde cogitou assassinar Katsu Kaishu (1823-1899), importante comandante da Marinha que defendia uma reforma na organização militar, além de apoiar a modernização do país. No entanto, ele era a favor do xogunato. Porém, Kaishu convenceu Sakamoto a não matá-lo, mas se unir a ele. Se desconhece os detalhes dessa conversa, mas o samurai aceitou.
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Retrato de Katsu Kaishu. |
Assim, por alguns meses de 1864 Sakamoto atuou como assistente e espião do almirante Katsu, realizando atividades burocráticas, de supervisão e espionagem. Embora o almirante fosse um xogunista, no entanto, isso não desmerecia seu patriotismo, já que ele defendia que o Japão necessitava-se modernizar-se tecnologicamente para evitar ameaças militares de outras nações, como havia ocorrido em 1853. Sobre isso, vale ressalvar que quando o comodoro Perry chegou ao país com sua frota de navios a vela e a vapor, maiores e bem mais armados, enquanto os japoneses ainda faziam uso de navios de madeira com tecnologia que remontava o século XVII. Por conta dessa diferença, a marinha japonesa não tinha a mínima chance numa batalha.
Todavia, ainda em 1864 o xogum Tokugawa Iemochi endureceu a perseguição aos opositores. Katsu Kaishu não foi afetado, mas seus funcionários eram visados como suspeitos, alguns inclusive apontados como infiltrados e espiões. Sakamoto para evitar problemas, partiu para o sul do país, para Kagoshima, indo refugiar-se no feudo de Satsuma, ali havia um forte núcleo de apoiadores do imperador.
Em Kagoshima ele conseguiu emprego e proteção, supervisionando negócios para o daimiô Shimazu Tamayoshi de Satsuma, o mais notável foi seu envolvimento na fundação da empresa Kameyama Shachu em 1865, uma companhia marítima de comércio em Nagasaki, que recebeu capital de Shimazu para desenvolver uma frota mercante. Por sua vez, Sakamoto também esteve a par dos acordos políticos entre os feudos de Satsuma e Choshu, historicamente inimigos de longa data, mas que se uniram contra o xogum vindo a ocorrer a Aliança Satsuma-Choshu ou Aliança Satcho, firmada em 1866 para apoiar o imperador contra o xogum.
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Samurais da Aliança Satcho em reunião durante a Guerra Boshin (1868-1869). Fotografia de Felice Beato, 1868. |
Por essa época, quando passou a morar temporariamente em Quioto, onde era noivo (ou casado) de Narasaki Ryo (Oryo), filha de um médico e de uma estalajadeira, Sakamoto estava hospedado na estalagem de sua noiva, quando em 9 de março de 1866 em Teradaya, ao sul de Quioto, assassinos invadiram o local para matar Sakamoto, mas Oryo conseguiu alertar o noivo/marido, o qual escapou.
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Retrato de Narasaki Ryo, a esposa de Sakamoto Ryoma. |
Membros do Shinsegumi, a polícia especial do xogum, foram acusados de matar Sakamoto e seus aliados. Porém, anos depois dois membros do Mimawarigumi, uma força-tarefa de patrulhamento que atuava em Quioto, confessaram que a ordem veio da sua entidade para executar o traidor do Sakamoto Ryoma. Os dois homens apontados como assassinos se entregaram, mas não deram o nome de quem deu a ordem para o crime.
No mesmo ano de seu assassinado, o xogum Tokugawa Yoshinobu renunciou sob pressão da instauração de uma guerra civil, transferindo o poder para o imperador Meiji, que deu início a chamada Restauração Meiji, uma série de ações políticas para pôr fim a estrutura política do xogunato, além de reestabelecer a autoridade monárquica. Porém, enquanto isso era providenciado, apoiadores do xogum que recusavam aceitar sua renúncia, iniciaram revoltas que levaram a Guerra Boshin (1868-1869). A ala pró-xogunato acabou sendo derrotada, permitindo a consolidação do governo do imperador Meiji.
O notável revolucionário?
É possível encontrar sobretudo em produções ficcionais como filmes, livros, mangás e jogos, os quais exaltam a pessoa de Sakamoto Ryoma como um grande revolucionário dos tempos do Bakumatsu, cuja coragem e determinação foram cruciais para o estabelecimento da Restauração Meiji que colocou fim ao xogunato Tokugawa. Sakomoto até ganhou estátuas e memoriais por conta de seu trabalho prestado entre 1862 e 1867, mas isso realmente ocorreu?
Historiadores japoneses questionam até onde as ações de Sakamoto Ryoma foram reais ou imaginárias, já que a literatura contribuiu bastante para torná-lo um herói da causa revolucionária do Bakumatsu e da Restauração Meiji. Retratando-o como um samurai comprometido pela causa de libertar o país da ditadura do xogunato. Inclusive é creditado a ele o documento Shin Seifu Koryo Hassaku (Programa de outros pontos para um novo governo), que apresentava ideias sobre democracia e uma monarquia parlamentarista e constitucional.
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Sakamoto Ryoma em uma fotografia de 1867, uma das últimas fotos dele. |
Além disso, a atuação de Sakamoto no Bakumatsu é dúbia. Ora ele pretendia assassinar o almirante Katsu Kaishu, mas estranhamente se aliou ao mesmo. Ainda em 1864 fugiu para Kagoshima, para evitar de ser capturado, ali ele teria sido um dos auxiliadores no acordo da Aliança Satsuma-Choshu, apesar que alguns historiadores contestam até onde sua participação realmente foi efetiva quanto a isso, se ele realmente foi um agente político ativo, um assistente, um observador, um conselheiro ou teve outra função.
Sakamoto também é lembrado pela fundação da companhia de comércio Kameyama Shachu, inclusive alguns autores até o elogiaram como "patrono da marinha mercante", mas na prática ele foi um "testa de ferro" do daimiô de Satsuma para fundar a companhia em Nagasaki, além de ser um dos sócios envolvidos na criação da empresa, apesar de constar seu nome como "presidente" da mesma.
Ademais, outros imbróglios se encontram na carreira revolucionária dele. Um deles diz respeito a Aliança Satsuma-Choshu, da qual Sakamoto teria atuado como "membro neutro" para coordenar a assinatura da aliança. Porém, esse acordo ocorreu em algum momento de 1866, sendo que desde o final de fevereiro daquele ano, Sakamoto estava seguindo viagem para Quioto, onde veio a ser atacado em 9 de março.
Ora, se o acordo ainda estava em desenvolvimento, não tem como afirmar que Sakamoto foi atacado naquele dia por ter sido um mediador crucial, já que a aliança talvez nem tivesse sido ainda aprovada. Além disso, o samurai e advogado Komatsu Kiyokado (1835-1870), que trabalhava para o daimiô Shimazu, teve papel na formulação da aliança, inclusive alguns historiadores creditam a ele uma função mais significativa na elaboração dessa aliança do que o próprio Sakamoto Ryoma.
Dessa forma, Sakamoto Ryoma embora tenha tido um papel de conspirador rebelde no período do Bakumatsu, seus supostos grandes feitos e atuação notável naquela época são frutos mais da ficção do que históricos. A documentação do período apresenta uma série de lacunas, ainda mais considerando que entre 1864 e 1867 ele viajou várias vezes e esteve escondido por certo tempo, devido a ser foragido desde 1862. Mas é fato de que seu papel no Bakumatsu foi de alguma forma relevante a ponto de irritar o grupo pró-xogunato a fim de mandar assassiná-lo, por tê-lo como uma ameaça em potencial.
NOTA: O filme Ryoma Ansatsu (1974) centra-se nos últimos dias de vida de Sakamoto.
NOTA 2: O mangá Jin (2000-2010) conta uma história que se passa durante o Bakumatsu, um dos personagens e Sakamoto Ryoma. O mangá recebeu uma adaptação live-action em formato de série, possuindo duas temporadas entre 2009 e 2011.
NOTA 3: Em 2003 o aeroporto de Kochi foi renomeado para Aeroporto Kochi Ryoma. Na mesma cidade também existe o Museu Memorial Sakamoto Ryoma.
NOTA 4: O seriado Ryomaden (2010) narra a jornada de Sakamoto.
NOTA 5: A história de Sakamoto Ryoma é retratada de forma bem ficcional nos jogos Yakuza Ishin (2014) e no seu remake Like a Dragon: Ishin! (2023). Em ambas as produções ele é representado pela figura de Kazuma Kiryu, o protagonista da franquia.
NOTA 6: Sakamoto aparece no filme televisivo Segodon (2018) exibido pela NHK.
NOTA 7: Ele é um personagem no jogo Rise of the Ronin (2024).
Referências bibliográficas:
JANSEN, Marius B. Sakamoto Ryoma and the Meiji Restoration. Princeton: Princeton University Press, 1961.
SANSOM, George. The History of Japan: 1615-1867. Tokyo, Charles E. Tuttle Company, 1963.
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