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Leandro Vilar

quinta-feira, 4 de setembro de 2025

A Batalha das Termópilas: Os 300 de Esparta

A Batalha das Termópilas foi um dos confrontos mais notáveis durante as guerras médicas realizadas pela campanha do rei Xerxes, O Grande ao invadir a Grécia entre os anos de 480-479 a.C. O conflito que durou poucos dias ganhou tons lendários a partir dos grandes feitos do rei Leônidas I e seus 300 espartanos, que supostamente teriam barrado o avanço de milhares de persas por 72 horas. O presente artigo analisa de forma breve essa importante batalha, mostrando a realidade por trás da lenda. Embora os espartanos estiveram presentes naquele desfiladeiros, eles não lutaram sozinhos. 

Introdução

As chamadas Guerras Médicas ou Guerras Greco-Persas foram um conjunto de conflitos transcorridos entre 499 e 449 a.C., entre algumas cidades-estados gregas e o Império Persa Aquemênida (550-330 a.C). Embora tenham durado cinco décadas, no entanto, os conflitos mais notáveis ocorreram durante os reinados dos reis Dario I, o Grande (522-486 a.C) e de seu filho Xerxes I, o Grande (486-465 a.C). Esses conflitos consistiram nas tentativas dos persas de invadir a Grécia no intuito de subjugar as cidades-estados. Projeto político-militar que se estendeu por décadas, já que os persas consideravam os gregos inimigos inconvenientes para seus projetos de dominar a Ásia Menor, o Mar Egeu e expandir-se para a Europa

Entre 499 a.C e 491 a.C. conflitos entre gregos e persas ocorreram na Ásia Menor e pelas Cíclades, havendo ações de retaliação dos persas. A situação piorou em 490 a.C quando Dario indignado com as constantes revoltas de colônias gregas, enviou uma força expedicionária para tentar invadir Atenas. A marinha persa aportou nas praias de Maratona, distante cerca de 42 km ao norte de Atenas. Lá os gregos já aguardavam o desembarque das tropas persas, estando eles sob liderança do general Milcíades. Os persas acreditavam que seria uma vitória fácil, mas sofreram uma dura derrota. Essa foi tão significativa que o rei Dario desistiu de enviar novo ataque a Grécia. 

Dez anos se passaram sem novas campanhas contra os gregos, até que o rei Xerxes após estabilizar seu governo, decidiu retomar o projeto de seu pai de invadir a Grécia. Assim, o monarca reuniu um poderoso exército e o enviou a Europa através do Estreito de Dardanelos, atravessando a costa sul do Bálcãs, adentrando pelas terras da Macedônia e da Tessália. Os macedônios e tessálios sem apoio, sucumbiram aos exércitos persas. Enquanto isso, uma grande frota persa também cruzava o Egeu. 

Embora o exército persa fosse poderoso, a ponto de historiadores como Heródoto falar em mais de 100 mil guerreiros, cidades-estados gregas como Atenas, Esparta, Corinto, entre outras estavam preparadas. Os atenienses após a vitória em Maratona começaram a criar fundos de financiamento para construir armadas e equipar exércitos, antevendo uma próxima invasão persa. Demorou uma década, mas o planejamento foi certeiro. 

Dessa forma, no norte da Grécia, após ocupar a Tessália, os exércitos persas desciam rumo ao centro do território grego, marchando ao largo da costa, onde eram vigiados pela frota. O rei Leônidas de Esparta decidiu interceptá-los no desfiladeiro das Termópilas, único caminho viável para um exército daquele tamanho percorrer, já que outras rotas eram mais estreitas e demorariam para contornar as montanhas. Vale ressalvar que boa parte do território grego é montanhoso. 

A Batalha das Termópilas

O nome Termópilas significa "portões quentes", um desfiladeiro costeiro ao largo do Golfo Malíaco que cruza uma região com fontes termais, por conta disso seu nome, estando situado 150 km ao norte de Atenas. No ano de 480 a.C. as Termópilas eram mais estreitas do que hoje em dia, já que houve recuo das águas o Golfo Malíaco devido a intervenções nos rios que desaguam nele, causando assoreamento. Assim, ao se visitar o local da batalha, ele é bem mais amplo atualmente. 

"CCI — Xerxes acampou em Mális, na Traquínia, e os Gregos perto do desfiladeiro, conhecido como desfiladeiro das Termópilas pela maioria dos habitantes da Grécia e das terras vizinhas. O exército dos bárbaros ocupava todo o terreno que se estende para o norte até Tráquis, e o dos gregos, a parte do continente voltada para o sul". (HERÓDOTO, 2009, p. 595). 

Mapa com a localização das Termópilas e outras localidades pelas quais o exército persa passou em 480 e 479 a.C.

Inicialmente Esparta esperava que Atenas e outras cidades-estados enviassem tropas para conter o avanço do exército persa, mas contratempos e desentendimentos, levaram Atenas e seus aliados a não partirem, assim, Esparta tomou a dianteira. Diferente da lenda que surgiu, a qual diz que somente 300 espartanos defenderam as Termópilas, na prática seguiu bem mais gente, a respeito Heródoto escreveu:

"CCII — As tropas gregas que aguardavam o rei da Pérsia nesse ponto consistiam em trezentos espartanos muito bem armados; mil tegeatas e mantineus; cento e vinte homens de Orcomenes, na Arcádia, e outros mil homens do resto da Arcádia; quatrocentos coríntios; dois flionteus e oitenta micênios. Essas tropas vinham do Peloponeso. Havia ainda vinte beócios, setecentos téspios e quatrocentos tebanos. CCIII — Além dessas tropas, haviam os Gregos convidado a tomar parte na luta todos os guerreiros dos Lócrios-Opontinos e mil focídios". (HERÓDOTO, 2009, p. 596). 

O historiador Heródoto de Halicarnasso apontou cerca de 7 mil guerreiros gregos pertencentes a diferentes cidades-estados e vilas, os quais tinham como principal general o rei Leônidas I de Esparta (540-480 a.C), notável monarca espartano, segundo o relato do historiador, o qual escreveu: 

"CCVI — Os Espartanos enviaram na frente Leônidas, com seus trezentos homens, a fim de encorajar com essa conduta o resto dos aliados e com receio de que eles abraçassem a causa dos Persas, vendo a lentidão dos primeiros em socorrer a Grécia. A festa das Cárnias impedia-os, então, de se porem em marcha com todas as suas forças, mas pretendiam partir logo após, deixando em Esparta apenas um pequeno número de soldados para guardar a cidade. Os outros aliados alimentavam o mesmo propósito, encontrando-se na mesma situação, pois chegara a época dos Jogos Olímpicos; e como não esperavam combater tão cedo nas Termópilas, tinham-se limitado a enviar um pequeno número de tropas de vanguarda". (HERÓDOTO, 2009, p. 597). 

Heródoto relatou que os espartanos devido as suas leis e tradições tiveram que adiar o envio do exército, assim, Leônidas foi na frente conduzindo sua guarda de 300 soldados. Porém, diferente do que se ver em produções de ficção histórica, os espartanos não foram os primeiros a chegar no campo de batalha. Outros gregos já estavam por lá acampados e aguardavam os reforços. O mesmo valia para os persas que acamparam mais ao norte. 

De acordo com o relato de Heródoto, o rei Xerxes não atacou de imediato. Convencido de que a superioridade de seu exército poderia afugentar os gregos, ele teria aguardado quatro a cinco dias, antes de mandar suas primeiras tropas para o ataque. Uma decisão que se mostrou errada, pois permitiu que os reforços gregos pudessem chegar e se preparar. 

Por sua vez, a quantidade de persas envolvidos é outro problema. Heródoto relatou que o rei Xerxes I teria enviado mais de 5 milhões de guerreiros para invadir a Grécia, um número tremendamente exagerado. Já o historiador Ctésias em seu livro Persica, sugeriu algo entre 800 mil a 1 milhão de homens. Estudiosos contemporâneos sugerem que o contingente do exército persa seria algo entre 120 a 300 mil guerreiros, ainda assim, um número elevado, mas compatível para os padrões da época. Porém, outro ponto deve ser sublinhado: não se sabe quantos soldados persas estiveram envolvidos na Batalha das Termópilas, já que parte das tropas seguiu com a marinha e por outros caminhos. 

Assim, o relato heroico de que 300 espartanos venceram milhares de persas, continua sendo lendário. Em parte isso se deve a interpretações da obra de Heródoto, o principal historiador grego que escreveu a respeito. Ele relatou que pelo menos 20 mil persas pereceram naqueles três dias de luta, um número bem elevado, se considerarmos que o contingente grego era de pelo menos 7 mil homens. Além disso, os 300 espartanos apesar da fama, não lutaram sozinhos. 

Mas como ocorreu essa batalha? Heródoto não conseguiu informações melhores que informassem pormenores do conflito, apenas citando alguns aspectos. Sabe-se que batalha durou três dias, tendo ocorrido por volta do mês de agosto de 480 a.C. Além disso, ali havia um muro (ou muralha) construído pelos fócios, o que ajudou a retardar o avanço dos persas. Em dois dias o exército grego venceu os persas, encurralando-os no desfiladeiro sem conseguir assaltar o muro e transpô-lo. Porém, eles encontraram uma alternativa: Elfiates de Mélis, um pastor de cabras, decidiu trair seu povo e foi ao encontro do soberano persa, contando a ele e seus generais que havia uma trilha pela montanha que permitia chegar a retaguarda do exército grego, para além do muro. 

"O atalho começa no Asopo, que corre pela abertura da montanha que tem o nome de Ánopéia, e termina na cidade de Alpena, a primeira do país dos Lócrios, do lado dos Málios, perto da rocha denominada Melampiges e da localidade dos Cercopes. É nesse ponto que a passagem se apresenta mais estreita. CCXVII — As tropas persas, tendo atravessado o Asopo, perto do desfiladeiro, caminharam durante toda a noite, tendo à direita os montes dos Eteus, e à esquerda os dos Traquínios. Já se encontravam no alto da montanha, quando o dia começou a clarear. Como já disse, achavam-se concentrados nesse ponto mil focídios muito bem armados, para defender seu país da invasão dos bárbaros e para guardar o atalho. A passagem inferior era defendida pelas tropas de que já falei, e os Focídios se haviam oferecido a Leônidas para guardar o atalho". (HERÓDOTO, 2009, p. 602). 

Heródoto relatou que os fócios foram atacados pelos persas, alguns recuaram e Leônidas os mandou irem embora para manter suas posições mais atrás. Por sua vez, os tebanos e os téspios decidiram permanecer e apoiar os espartanos. Lêonidas sabia que as chances de vitória estavam perdidas, mas não iria se retirar do campo de batalha. Assim, no amanhecer do terceiro dia de conflito:

"Xerxes fez libações ao nascer do sol, e, depois de haver esperado algum tempo, pôs-se em marcha na hora em que o mercado costuma estar cheio de gente, como lhe havia recomendado Efialtes. Descendo a montanha, os bárbaros e o soberano aproximaram-se do ponto visado. Leônidas e os gregos, marchando como para uma morte certa, avançaram muito mais do que haviam feito antes, até o ponto mais largo do desfiladeiro, já sem a proteção da muralha. Nos encontros anteriores não haviam deixado os pontos mais estreitos, combatendo sempre ali; mas neste dia, a luta travou-se num trecho mais amplo, ali perecendo grande número de bárbaros. Os oficiais destes últimos, colocando-se atrás das fileiras com o chicote na mão, impeliam-nos para a frente à força de chicotadas. Muitos caíram no mar, onde encontraram a morte, enquanto que inúmeros outros pereceram sob os pés de seus próprios companheiros. Os gregos lançavam-se contra o inimigo com inteiro desprezo pela vida, mas vendendo-a a alto preço. A maioria deles já tinha as suas lanças partidas, servindo-se apenas das espadas contra os persas". (HERÓDOTO, 2009, p. 604). 

Heródoto relatou que Leônidas e importantes espartanos realizaram grandes feitos de guerra, mas morreram em combate. Além disso, dois meios-irmãos de Xerxes, chamados Abrocomes e Hiperantes, morreram em combate. Heródoto prosseguiu dizendo que os gregos somente recuaram após quatro ataques para recuperar o corpo de Lêonidas, para que esse não fosse vilipendiado pelos persas. 

Lêonidas nas Termópilas. Jacques-Louis David, 1814. 

"A vantagem alcançada pelos gregos durou até a chegada das tropas conduzidas por Efialtes, quando a situação mudou favoravelmente aos persas. Os gregos recuaram para o ponto mais estreito do desfiladeiro. Em seguida, transpondo a muralha, mantiveram-se todos, exceto os tebanos, sobre a colina que se ergue à entrada do desfiladeiro e onde hoje se vê um leão de pedra erigido em homenagem a Leônidas. Os que ainda possuíam espadas, com elas se defendiam; os outros lutavam com as mãos limpas e com os dentes. Mas os bárbaros, atacando-os sem trégua, uns de frente, depois de haverem posto abaixo a muralha, e os outros por todos os lados, depois de os terem envolvido, aniquilaram-nos a todos". (HERÓDOTO, 2009, p. 605).

Consequências

Heródoto relatou que nem todos os gregos envolvidos morreram na ocasião. Uma parte foi feita prisioneira e outra fugiu. O plano de retardar o avanço persa por terra foi frustrante. Inclusive a marinha persa obteve vitória na Batalha de Artemísio. Por sua vez, com a vitória nas Termópilas, Xerxes avançou com seu exército através da Beócia e da Ática, indo invadir, saquear e incendiar Atenas, sendo considerado tal ato uma das piores tragédias para os gregos durante as Guerras Médicas. 

No entanto, apesar das consecutivas vitórias persas no ano de 480 a.C., ainda assim, o poderoso exército de Xerxes foi derrotado no ano seguinte: em terra na Batalha de Plateia e no mar na Batalha de Salamina. Consequentemente a lenda da bravura dos espartanos foi fomentada por eles se desenvolvendo ao longo do tempo. Poetas, escritores e historiadores escreveram sobre essa batalha, glorificando-a como um ato de bravura, força, determinação e honra. Embora os espartanos e seus aliados tenham perdido, a Batalha de Termópilas era cantada e ensinada como uma valiosa lição para que os guerreiros gregos nunca desistissem, mesmo estando em desvantagem diante de um inimigo poderoso. 

NOTA: O filme The 300 Spartans (1962) é a primeira produção audiovisual baseada na lenda das Termópilas. 

NOTA 2: O livro Portões de Fogo (1998) é um romance histórico sobre essa batalha, escrito por Steven Pressfield

NOTA 3: 300 (1998) é uma graphic novel em cinco volumes escrita por Frank Miller e desenhada por Lynn Varley

NOTA 4: O quadrinho de Miller e Varley inspirou os filmes 300 (2006) e 300: A Ascenção do Império (2014). A hq também inspirou o jogo 300: March to Glory (2007). 

NOTA 5: Espartalhões (2008) é uma paródia do filme 300. 

Referências bibliográficas

FIELDS, Nic. Termópilas 480 a.C. A Resistência dos 300. Ilustrações de Steve Noon. London, Osprey, 2010. 

HERÓDOTO de Halicarnasso. Histórias. Rio de Janeiro: W. M. Jackson Inc, [1950] 2009. 

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Xerxes: O Rei dos Reis





sábado, 16 de agosto de 2025

Expressões brasileiras oriundas da mineração colonial

Quem é brasileiro talvez já tenha ouvido expressões como "tá de bucho cheio", "bucho vazio", "santo do pau oco", "meia tigela" entre outras. Embora essas expressões possuam significado distinto do que eram originalmente, elas se originaram a partir do Ciclo do Ouro nas Minas Gerais ao longo do século XVIII. São termos associados ao trabalho dos escravos que atuavam nas minas, locais escuros, apertados e insalubres, onde tais homens trabalhavam várias horas por dia em condições degradantes para coletar ouro e outros minérios. 

Bucho cheio e bucho vazio

A palavra bucho em português pode se referir a barriga ou estômago, logo tais expressões dizem respeito a alguém que está alimentado ou com fome. Porém, no período colonial nas minas, ambos os termos tinham outro significado. As minas brasileiras nos séculos XVIII e XIX eram fundamentalmente corredores, os quais iam sendo alargados caso os escravos encontrassem ouro, prata ou outros minérios. 

Assim, por esses corredores existiam buracos chamados de "buchos", neles os mineradores depositavam os minérios encontrados como forma de indicar que havia algum veio deles naquela seção. Vale lembrar que não havia trilhos e carrinhos de mina, esses somente chegaram ao Brasil na segunda metade do século XIX, numa época em que a mineração aurífera tinha quase sumido. 

Bucho em mina colonial. 

O supervisor percorria a mina conferindo cada "bucho" para ver o andamento do trabalho dos escravos. Numa seção onde muito minério fosse achado, o "bucho estaria cheio", por sua vez, se nada fosse encontrado, o "bucho ficaria vazio". Por sua vez, os locais com "bucho vazio" resultava em punições aos escravos. 

Meia tigela

Essa expressão hoje significa algo de baixo valor, insignificante. Inclusive pode ser usado como uma ofensa para se referir alguém sem caráter. Na época colonial e imperial o termo era empregado em referência a ração do escravos. Diariamente eles recebiam três refeições ao dia: café da manhã, almoço e jantar. Porém, dependendo do trabalho que o escravo prestasse, ele poderia ser punido, recebendo apenas metade da sua ração (meia tigela) ou até mesmo ser privado de uma das refeições, passando fome como forma de punição.

Nas minas os escravos vivenciavam essa mesma condição. Em alguns casos eles eram incentivados com uma tigela extra de comida para se empenhar em seu trabalho em encontrar ouro ou outro minério de valor. Assim, eles buscavam encher os buchos. Porém, caso não conseguissem encher os buchos, eles seriam considerados preguiçosos ou incompetentes, podendo serem punidos com meia tigela ou até ficarem com fome. Por conta disso também surgiu a expressão "negro de meia tigela" para se referir aos escravos tidos incompetentes. 


Dessa forma, pensando em conseguir comida extra ou não terem parte de sua refeição cortada pela metade, os escravos buscavam "encher o bucho", pois "bucho vazio" significava meia tigela ou nenhuma. 

Dar no couro

Hoje essa expressão é usada para se referir um bom desempenho, para algo feito com eficiência. Inclusive em algumas localidades possui uma conotação sexual também. Na época colonial dar no couro era um termo usado no ofício de mineração. Em algumas minas o ouro residual era encontrado na forma de pó, podendo ficar preso nos cabelos, barbas e pele suadas dos escravos. Assim, para que eles não o roubasse, ao saírem da mina os escravos eram esfregados com uma manta de couro não curtido, a qual os pelos estão salientes, pois ajudaria a pegar o pó de ouro e outras sujeiras dos corpos dos escravos. Depois disso, essa mantas ou tiras eram golpeadas (dar no couro) para que soltassem as partículas de ouro. 

O termo também na época da mineração poderia designar o trabalho árduo nas minas, o qual era insalubre, perigoso e desgastante. Assim, os escravos que passavam horas e horas dentro da terra, saíam esgotados de lá. Dessa forma, "dar no couro" seria uma gíria para se referir a aquele trabalho extenuante nas minas. 

Santo do pau oco

O termo é usado para se referir a uma pessoa cínica ou hipócrita, que finge ser algo que não é. A expressão advém da época da mineração, em que os escravos para cumprir suas orações diárias, levavam consigo para dentro das minas pequenas imagens de santos. Essas imagens era deixadas em oratórios improvisados pelos túneis e câmaras. 

Porém, alguns escravos decidiram usá-las para o contrabando. Assim, a estátua era feita oca, permitindo que a cabeça ou alguma parte dela fosse removida. Dessa forma, os escravos conseguiam coletar pequenas porções de ouro e esconder dentro dessas imagens, passando despercebido as olhares dos capatazes e supervisores, já que regularmente os escravos eram vistoriados para saber se não estariam escondendo ouro. 

A prática de usar santos do pau oco não se restringiu aos mineradores, outros segmentos da sociedade também para contrabandear ouro e sonegar imposto, se valia dessa artimanha. 

Imagem de Nossa Senhora dos Anjos com um compartimento nas costas, um exemplo de santo do pau oco. 

Lavar a égua

A expressão lavar a égua refere-se a uma ação oportunista, em que alguém busca alguma vantagem indevida ou desonesta. O termo também remete ao período colonial. Outra forma de tentar contrabandear ouro, era escondendo pó de ouro nos cabelos, barba, unhas e na roupa. Alguns escravos que conseguiam sair da mina sem serem vistoriados, pegavam esse pó e esfregavam nos pelos e crinas de cavalos ou éguas. Deixavam o mesmo ali, mais tarde pediam para seus supervisores para ir banhar os animais, durante o banho eles removiam o pó de ouro escondido.

Apesar da curiosidade, não consistia numa prática recorrente, pois os escravos costumavam serem vistoriados ao saírem das minas e nem sempre havia cavalos ou éguas nas proximidades. Por conta disso, a prática do santo do pau oco era mais eficiente, já que por se tratar de um artefato religioso, os capatazes deixavam os escravos seguirem com ele. 

Referência bibliográfica:

DO PRADO MENDES, Soélis Teixeira; LISBOA, Ana Luíza Barreto. Unidades fraseológicas religiosas no léxico de Ouro Preto (MG)Scripta, v. 28, n. 62, p. 284-315, 2024.

sexta-feira, 25 de julho de 2025

Sakamoto Ryoma, o samurai revolucionário

Durante a crise do Xogunato Tokugawa no conturbado período conhecido como Bakumatsu, uma série de revoltas, conspirações e batalhas ocorreram por mais de uma década, entre as lideranças a favor do fim do xogunato esteve o samurai Sakamoto Ryoma, tido por alguns como um herói revolucionário, para outros um rebelde traidor. O presente texto contou um pouco da história desse samurai que lutou pela Restauração Meiji e o fim do autoritarismo do Clã Tokugawa. 

Retrato de Sakamoto Ryoma. 
Introdução

O Japão passou por séculos de instabilidade política, a qual marcou boa parte de sua história medieval e moderna. No final do século XII surgiu o xogunato, um governo político-militar gerido pelo xogum ("general superior"), o qual retirava das mãos do imperador o direito de governar. o Clã Kamakura foi o primeiro a fundar um xogunato, que durou mais de cem anos, lançando as bases para esse tipo de governo no Japão, marcado por uma política armamentista, feudal e severa. Com a dissolução do Xogunato Kamakura (1185-1333), o imperador Go-Daigo tentou recuperar o poder através da chamada Restauração Kemmu (1333-1336), mas sua tentativa falhou, abrindo caminho para que o Clã Ashikaga funda-se um novo xogunato que durou mais de cem anos também. 

Todavia, o Xogunato Ashikaga (1336-1573) a partir de meados do século XV entrou em profunda crise pela disputa dos daimiôs por terras, riquezas e poder. Esses senhores feudais já não obedeciam mais o xogum, tampouco o imperador, assim decidiram expandir seus domínios, lançando o país numa terrível guerra civil cuja época foi chamada de Sengoku (1467-1573). O segundo xogunato entrou em declínio frente as investidas do daimiô Oda Nobunaga (1534-1582), o qual ambicionava reunificar o país sob seu controle. Com sua morte seus planos foram assumidos pelo seu general Toyotomi Hideyoshi (1537-1598), o qual mesmo não tendo assumido o título de xogum, governou como um. 

Após a morte de Toyotomi, cujo herdeiro era uma criança, o governo do país entrou em crise pelos anos seguintes. Antigos generais dele e de Oda passaram a disputar o poder vago, despontando Tokugawa Ieyasu (1543-1616), o qual saiu vitorioso na Batalha de Sekigahara, sendo eleito xogum em 1603, iniciando o terceiro e último xogunato do Japão. 

As primeiras décadas do Xogunato Tokugawa (1603-1868) foram severas, pois para pôr ordem e restaurar a paz, os xoguns Tokugawas foram implacáveis. Mas não foram apenas os japoneses que sofreram em suas mãos, os europeus que mantinham negócios comerciais, políticos e religiosos no país desde meados do século XVI, sofreram duramente. Tokugawa Ieyasu e seu filho proibiram o cristianismo no Japão, a presença de missionários, padres e frades, além de banir os europeus, vetando sua vinda ao país. Somente alguns holandeses foram tolerados, mas os portugueses, espanhóis e ingleses foram proibidos de viver no Japão, tampouco visitá-lo. 

Após o fechamento do país em meados do século XVII, o Japão entrou em profunda reclusão e numa política xenofóbica. Por outro lado, as guerras terminaram, havendo revoltas eventuais, no entanto, os samurais seguiam como classe dominante, assim como, o sistema feudal foi mantido. Enquanto outras nações asiáticas se modernizam politicamente, socialmente, economicamente e tecnologicamente no século XIX, o Japão devido ao seu regime militar e feudal, se manteve retrógrado e obsoleto. Porém, japoneses que conseguiam viajar para fora ou tinham contato com chineses, filipinos, americanos e ingleses passaram a nutrir ideias para modernizar o país.

A realidade sofreu uma brusca reviravolta em 1853 quando o comodoro Matthew C. Perry (1794-1858) invadiu a baía de Tóquio com sua pequena frota e coagiu o xogum Tokugawa Iesada a revogar o isolamento político do país. Iesada sob pressão política e o risco de uma guerra que não teria chance de vencer, concordou com os termos do comodoro Perry, vindo a assinar o Tratado de Kanagawa em 1854, que iniciava o acordo de amizade e paz entre Japão e Estados Unidos. Após os americanos, os ingleses e os franceses começaram a frequentar o país, levando suas culturas e ideias políticas, econômicas, sociais, além de tecnologias. 

Retrato do comodoro Matthew C. Perry. 

O Bakumatsu (1853-1867)

Sakamoto Ryoma (1836-1867) nasceu em Kochi, na Província de Tosa, ele pertencia a uma família de samurais mercantes, sendo filho de Sakamoto Yahei e Sakamoto Sachi. Ele era o segundo filho do casal, o qual teve ao todo dois homens e três mulheres. Por conta da riqueza da sua família, pôde se dedicar aos estudos e as artes marciais. Na juventude interessou-se pela cultura europeia que chegava ao país, por conta disso, ele como outros jovens eram entusiastas das novidades modernas, no quesito político estavam ideias sobre democracia, república, parlamento etc. No entanto, no governo do xogunato não havia espaço para isso.

Embora houvessem grupos favoráveis a democracia e o republicanismo, Sakamoto como outros jovens samurais, optaram em aderir ao movimento do Sonno Joi ("Reverência ao imperador, expulsão dos bárbaros"), surgido após o Tratado de Kanagawa, o qual passou a defender a restauração da monarquia, recuperando a autoridade política do imperador, assim como, freando a crescente influência estrangeira no país. Dessa forma, o Sonno Joi foi um movimento político de tendência monarquista, nacionalista e conservadora. 

Sakamoto aderiu as ideias do Sonno Joi a partir de seu mestre Takechi Hanpeita (1829-1865), líder do grupo Tosa Kin no To ("Partido monarquista de Tosa"), um dos mais influentes no país durante o Bakumatsu, termo que designa o período final de crise do xogunato Tokugawa, que levaria ao seu fim. Sakamoto passou a apoiar politicamente as ideias do partido de Tosa em defesa ao fim do xogunato e a restauração do poder monárquico. Entretanto, a situação não era simples assim.

Da mesma forma que surgiam partidos pró-imperador, o xogum também possuía seus aliados e quem defendia com unhas e dentes a manutenção do xogunato e a diminuição da presença estrangeira no país. Isso gerou conflitos entre os dois grupos, resultando em brigas, revoltas e batalhas. O então daimiô Yoshida Toyo (1816-1862) era o governador da Província de Tosa, sendo servo leal ao xogum, o que o colocou diretamente contrário ao partido de Hanpeita, havendo bastante atrito entre ambos, mas a situação piorou em 1862 quando três membros do Tosa Kin no To assassinaram Toyo numa tentativa de golpe de estado para o partido tomar o controle de Tosa. A repercussão foi severa, pois o partido foi cassado, seus membros foram considerados traidores e passaram a serem perseguidos. Hanpeita foi forçado a cometer seppuku (o suicídio honroso dos samurais). 

Sakamoto Ryoma tinha seus 28 anos na época quando teve que deixar Tosa devido a perseguição sofrida ao partido do qual ele era membro. Além disso, com a morte de seu mestre, ele se tornou um ronin. Durante sua fuga para se esconder, ele voltou para casa e chegou a se alojar no dojo de Chiba Sana, mulher por quem nutria interesse e cogitou se casar com ela. Apesar que formalmente nunca tenha se casado com ela. 

O conspirador

Como ronin e foragido da justiça, Sakamoto adotou identidades falsas para fugir da polícia, passando a usar nomes falsos como Saedani, Naonari, Naokage. Em 1864 Sakamoto seguiu para Edo (atual Tóquio), onde cogitou assassinar Katsu Kaishu (1823-1899), importante comandante da Marinha que defendia uma reforma na organização militar, além de apoiar a modernização do país. No entanto, ele era a favor do xogunato. Porém, Kaishu convenceu Sakamoto a não matá-lo, mas se unir a ele. Se desconhece os detalhes dessa conversa, mas o samurai aceitou. 

Retrato de  Katsu Kaishu. 

Assim, por alguns meses de 1864 Sakamoto atuou como assistente e espião do almirante Katsu, realizando atividades burocráticas, de supervisão e espionagem. Embora o almirante fosse um xogunista, no entanto, isso não desmerecia seu patriotismo, já que ele defendia que o Japão necessitava-se modernizar-se tecnologicamente para evitar ameaças militares de outras nações, como havia ocorrido em 1853. Sobre isso, vale ressalvar que quando o comodoro Perry chegou ao país com sua frota de navios a vela e a vapor, maiores e bem mais armados, enquanto os japoneses ainda faziam uso de navios de madeira com tecnologia que remontava o século XVII. Por conta dessa diferença, a marinha japonesa não tinha a mínima chance numa batalha. 

Todavia, ainda em 1864 o xogum Tokugawa Iemochi endureceu a perseguição aos opositores. Katsu Kaishu não foi afetado, mas seus funcionários eram visados como suspeitos, alguns inclusive apontados como infiltrados e espiões. Sakamoto para evitar problemas, partiu para o sul do país, para Kagoshima, indo refugiar-se no feudo de Satsuma, ali havia um forte núcleo de apoiadores do imperador. 

Em Kagoshima ele conseguiu emprego e proteção, supervisionando negócios para o daimiô Shimazu Tamayoshi de Satsuma, o mais notável foi seu envolvimento na fundação da empresa Kameyama Shachu em 1865, uma companhia marítima de comércio em Nagasaki, que recebeu capital de Shimazu para desenvolver uma frota mercante. Por sua vez, Sakamoto também esteve a par dos acordos políticos entre os feudos de Satsuma e Choshu, historicamente inimigos de longa data, mas que se uniram contra o xogum vindo a ocorrer a Aliança Satsuma-Choshu ou Aliança Satcho, firmada em 1866 para apoiar o imperador contra o xogum. 

Samurais da Aliança Satcho em reunião durante a Guerra Boshin (1868-1869). Fotografia de Felice Beato, 1868. 

A aliança impôs medo ao xogum Tokugawa Yoshinobu, que havia assumido o governo naquele ano de 1866, fazendo-o mobilizar o restante das tropas leais, embora outra parcela estivesse já apoiando o imperador. No caso de Sakamoto Ryoma, sua atuação no desenvolvimento da Aliança Satcho, o levou a ser convocado de volta a Tosa, para retomar os planos do antigo partido ao qual era filiado. Assim, ele decidiu voltar em fevereiro daquele ano. 

Por essa época, quando passou a morar temporariamente em Quioto, onde era noivo (ou casado) de Narasaki Ryo (Oryo), filha de um médico e de uma estalajadeira, Sakamoto estava hospedado na estalagem de sua noiva, quando em 9 de março de 1866 em Teradaya, ao sul de Quioto, assassinos invadiram o local para matar Sakamoto, mas Oryo conseguiu alertar o noivo/marido, o qual escapou. 

Retrato de Narasaki Ryo, a esposa de Sakamoto Ryoma. 

Após essa tentativa ele deixou Quioto e passou alguns meses longe dali, sendo seus caminhos incertos. Todavia, ele retornou a Quioto e estava hospedado em Omiya, com seu amigo Shintaro Nakoaka e cinco servos, incluindo um guarda-costas que era lutador de sumô. No dia 15 de novembro de 1867 uma nova tentativa de assassinato contra Sakamoto foi executada, dessa vez, ela saiu exitosa. Apesar do confronto ocorrido na hospedagem, ele, Nakoaka e os servos foram mortos na ocasião ou sucumbiram aos ferimentos nos dias seguintes. 

Membros do Shinsegumi, a polícia especial do xogum, foram acusados de matar Sakamoto e seus aliados. Porém, anos depois dois membros do Mimawarigumi, uma força-tarefa de patrulhamento que atuava em Quioto, confessaram que a ordem veio da sua entidade para executar o traidor do Sakamoto Ryoma. Os dois homens apontados como assassinos se entregaram, mas não deram o nome de quem deu a ordem para o crime. 

No mesmo ano de seu assassinado, o xogum Tokugawa Yoshinobu renunciou sob pressão da instauração de uma guerra civil, transferindo o poder para o imperador Meiji, que deu início a chamada Restauração Meiji, uma série de ações políticas para pôr fim a estrutura política do xogunato, além de reestabelecer a autoridade monárquica. Porém, enquanto isso era providenciado, apoiadores do xogum que recusavam aceitar sua renúncia, iniciaram revoltas que levaram a Guerra Boshin (1868-1869). A ala pró-xogunato acabou sendo derrotada, permitindo a consolidação do governo do imperador Meiji. 

O notável revolucionário? 

É possível encontrar sobretudo em produções ficcionais como filmes, livros, mangás e jogos, os quais exaltam a pessoa de Sakamoto Ryoma como um grande revolucionário dos tempos do Bakumatsu, cuja coragem e determinação foram cruciais para o estabelecimento da Restauração Meiji que colocou fim ao xogunato Tokugawa. Sakomoto até ganhou estátuas e memoriais por conta de seu trabalho prestado entre 1862 e 1867, mas isso realmente ocorreu? 

Historiadores japoneses questionam até onde as ações de Sakamoto Ryoma foram reais ou imaginárias, já que a literatura contribuiu bastante para torná-lo um herói da causa revolucionária do Bakumatsu e da Restauração Meiji. Retratando-o como um samurai comprometido pela causa de libertar o país da ditadura do xogunato. Inclusive é creditado a ele o documento Shin Seifu Koryo Hassaku (Programa de outros pontos para um novo governo), que apresentava ideias sobre democracia e uma monarquia parlamentarista e constitucional. 

Sakamoto Ryoma em uma fotografia de 1867, uma das últimas fotos dele. 

Além disso, a atuação de Sakamoto no Bakumatsu é dúbia. Ora ele pretendia assassinar o almirante Katsu Kaishu, mas estranhamente se aliou ao mesmo. Ainda em 1864 fugiu para Kagoshima, para evitar de ser capturado, ali ele teria sido um dos auxiliadores no acordo da Aliança Satsuma-Choshu, apesar que alguns historiadores contestam até onde sua participação realmente foi efetiva quanto a isso, se ele realmente foi um agente político ativo, um assistente, um observador, um conselheiro ou teve outra função. 

Sakamoto também é lembrado pela fundação da companhia de comércio Kameyama Shachu, inclusive alguns autores até o elogiaram como "patrono da marinha mercante", mas na prática ele foi um "testa de ferro" do daimiô de Satsuma para fundar a companhia em Nagasaki, além de ser um dos sócios envolvidos na criação da empresa, apesar de constar seu nome como "presidente" da mesma. 

Ademais, outros imbróglios se encontram na carreira revolucionária dele. Um deles diz respeito a Aliança Satsuma-Choshu, da qual Sakamoto teria atuado como "membro neutro" para coordenar a assinatura da aliança. Porém, esse acordo ocorreu em algum momento de 1866, sendo que desde o final de fevereiro daquele ano, Sakamoto estava seguindo viagem para Quioto, onde veio a ser atacado em 9 de março. 

Ora, se o acordo ainda estava em desenvolvimento, não tem como afirmar que Sakamoto foi atacado naquele dia por ter sido um mediador crucial, já que a aliança talvez nem tivesse sido ainda aprovada. Além disso, o samurai e advogado Komatsu Kiyokado (1835-1870), que trabalhava para o daimiô Shimazu, teve papel na formulação da aliança, inclusive alguns historiadores creditam a ele uma função mais significativa na elaboração dessa aliança do que o próprio Sakamoto Ryoma. 

Dessa forma, Sakamoto Ryoma embora tenha tido um papel de conspirador rebelde no período do Bakumatsu, seus supostos grandes feitos e atuação notável naquela época são frutos mais da ficção do que históricos. A documentação do período apresenta uma série de lacunas, ainda mais considerando que entre 1864 e 1867 ele viajou várias vezes e esteve escondido por certo tempo, devido a ser foragido desde 1862. Mas é fato de que seu papel no Bakumatsu foi de alguma forma relevante a ponto de irritar o grupo pró-xogunato a fim de mandar assassiná-lo, por tê-lo como uma ameaça em potencial. 

NOTA: O filme Ryoma Ansatsu (1974) centra-se nos últimos dias de vida de Sakamoto. 

NOTA 2: O mangá Jin (2000-2010) conta uma história que se passa durante o Bakumatsu, um dos personagens e Sakamoto Ryoma. O mangá recebeu uma adaptação live-action em formato de série, possuindo duas temporadas entre 2009 e 2011. 

NOTA 3: Em 2003 o aeroporto de Kochi foi renomeado para Aeroporto Kochi Ryoma. Na mesma cidade também existe o Museu Memorial Sakamoto Ryoma

NOTA 4: O seriado Ryomaden (2010) narra a jornada de Sakamoto. 

NOTA 5: A história de Sakamoto Ryoma é retratada de forma bem ficcional nos jogos Yakuza Ishin (2014) e no seu remake Like a Dragon: Ishin! (2023). Em ambas as produções ele é representado pela figura de Kazuma Kiryu, o protagonista da franquia. 

NOTA 6: Sakamoto aparece no filme televisivo Segodon (2018) exibido pela NHK. 

NOTA 7: Ele é um personagem no jogo Rise of the Ronin (2024). 

Referências bibliográficas: 

JANSEN, Marius B. Sakamoto Ryoma and the Meiji Restoration. Princeton: Princeton University Press, 1961. 

SANSOM, George. The History of Japan: 1615-1867. Tokyo, Charles E. Tuttle Company, 1963. 

Link relacionado: 

O que foram os xogunatos?

quinta-feira, 10 de julho de 2025

Os mosqueteiros

Mundialmente conhecidos pelo livro Os Três Mosqueteiros (1844) do escritor Alexandre Dumas, os mosqueteiros consistiram num regimento militar multifuncional, criado pelo rei Luís XIII da França para servi-lo diretamente. Apesar de serem lembrados principalmente por conta da literatura e do cinema, como soldados usando floretes, na prática, os mosqueteiros eram especializados no combate com armas de fogo. 

Pintura de um mosqueteiro holandês. Jacob van Gheyn, 1608. 

Mosqueteiro origem do termo

Mosqueteiro é o termo que designa o soldado que combate usando um mosquete. Essa arma consiste numa espécie de rifle surgido no século XVI na Europa, como um melhoramento do arcabuz, o qual tinha como problema a falta de precisão, assim como, a falta de capacidade de penetrar armaduras a distâncias medianas e longas. Assim, o mosquete foi desenvolvido em data incerta no começo do XVI em algum lugar da Itália, ou França ou Alemanha, não se sabendo onde exatamente, tendo um cano mais fino e longo do que o do arcabuz. Alguns exemplares possuíam canos medindo de 100 cm a 150 cm, o que permitia um alcance estimado em até 300 metros de distância, além de aumentar o poder de penetração. Assim, o mosquete passou a ser classificado como um rifle de médio alcance, sem mira acoplada, tendo disparo único, sendo ativado por pólvora e pederneira. (CHASE, 2003). 

O mosquete rapidamente se popularizou entre os exércitos europeus, sendo amplamente utilizado nos séculos XVI e XVII, apesar de ainda ser fabricado até meados do XIX. Melhorias no designer da arma, especialmente deixando-a um pouco mais leve, mais precisa e melhorando o gatilho, foram desenvolvidas nesses séculos da Idade Moderna. Inclusive alguns mosquetes passaram a incluir o uso de uma baioneta para ser usado como uma espécie de lança. 

“Em meados do século XVI, como podemos verificar na legislação filipina de 1567, o arcabuz mais ligeiro consistia na principal arma de fogo do terço. Suplantava largamente, em termos quantitativos, o mosquete, mais pesado, mas também mais potente e preciso. Em finais do século esta situação já se encontrava em processo de inversão, e nas campanhas militares de meados de Seiscentos, o mosquete substituiu quase universalmente o arcabuz”. (SOUSA, 2013, p. 121).

Modelo de mosquete inglês do século XVIII.

A palavra mosquete é possívelmente de origem francesa, vindo de mousquette, termo usado para designar um tipo de falcão. Porém, outros autores sugerem uma origem italiana, advindo de moschetti, que designava a seta de uma besta. Apesar da origem incerta da palavra, em países como Portugal e Espanha, as vezes a arma era referida como espingarda. (CHASE, 2003). 

O mosquete fazia uso de balas feitas de ferro ou chumbo, diferente do arcabuz que poderia disparar pedras e pregos devido ao seu cano mais largo, o mosquete não possuía essa capacidade. 

Mosqueteiros em outros exércitos

"O exército moderno europeu no século XVII havia assumido sua forma básica, a qual manteria quase inalterada até o século XIX. A formação dos exércitos europeus era fundamentada naquele tempo em quatro categorias de combatentes: o piqueiro, ou lanceiro ou alabardeiro, os quais representavam os soldados equipados com diferentes tipos de lanças, daí a variação no nome; a segunda categoria era a da artilharia leve, formada pelos mosqueteiros e arcabuzeiros; depois vinha a artilharia pesada, formada pelos artilheiros, os quais eram responsáveis pelo transporte, montagem e manuseio dos canhões. Por fim, havia uma pequena participação da cavalaria". (OLIVEIRA, 2016, p. 184).

Tropas de um tercio espanhol. Da esquerda para direita: alferes, mosqueteiro, arcabuzeiro e piqueiro. Pintura de Serafim María de Sotto, 1861. 

Para Geoffrey Parker (1996) os principais marcos da “revolução militar” da Idade Moderna foram: a criação e desenvolvimento das fortificações com baluarte; o emprego recorrente das armas de fogo; o desenvolvimento de uma indústria da guerra; diminuição do uso da cavalaria em detrimento de uma infantaria armada com lanças e mosquetes; reformulação na organização das tropas; mudança nas táticas de batalha; surgimento de escolas militares; aumento na quantidade de soldados nos exércitos.

"No início do século XVII, à metade, grosso modo, dos soldados de infantaria deviam ser fornecidos piques de treze pés (cerca de quatro metros) e couraças; a outros deviam ser fornecidos mosquetes de mecha (com cinco pés – metro e meio – de comprimento) com as respectivas forquetas de apoio (ou arcabuzes, mais curtos e leves), e também recipientes para a pólvora, balas e mechas de combustão lenta; às tropas de cavalaria, uma meia armadura, pistolas e lanças; e a todos os soldados, elmos e espadas". (PARKER, 1994, p. 48).

Embora haja dúvidas se o mosquete surgiu na França, Itália ou Alemanha, mas foi na Holanda onde desenvolveu-se a técnica de combate em fileiras. O stadhoulder Maurício de Nassau (1567-1625) foi responsável por implementar uma série de reformas na organização militar do exército holandês, que acabaram se tornando modelo para outras nações. 

"Maurício alterou a disposição das tropas em combate. Em vez de falanges de 40 ou 50 filas frontais de lanceiros usadas nas guerras do século XVI, colocou os seus homens em 10 filas. A força de choque das suas formações, mais pequenas, provinha mais do poder de fogo do que das cargas dos lanceiros. [...]. O exército holandês aperfeiçoou sobretudo a técnica do fogo de fileira: a primeira linha descarregava simultaneamente os mosquetes sobre o inimigo, depois parava para recarregar as armas enquanto as outras nove linhas iam ocupando o seu lugar, criando assim uma cortina de fogo constante". (PARKER, 1994, p. 52).

Dessa forma, a maior parte dos países europeus da Idade Moderna adotaram o uso do mosquete com principal arma de fogo, somada ao arcabuz e a pistola. Com a colonização europeia nas Américas, África e Ásia, mosquetes foram levados para esses continentes e rapidamente incluídos na composição de seus exércitos. Assim, nas colônias americanas temos as tropas coloniais usando mosquetes, passando pelas nações islâmicas na África, chegando a Arábia, a Turquia, a Pérsia, a Índia, a China, a Coreia e o Japão. Em todos esses países nos séculos XVI e XVII já se fazia uso de mosquetes, o que revela como essa arma, apesar de pesada e lenta, ainda assim, foi bem recebida pelas forças militares de diferentes povos. 

Mosqueteiros chineses em gravura do século XVI, durante a Dinastia Ming
(1368-1644).

A Guarda dos Mosqueteiros na França

Apesar de que na Europa quase todo exército possuísse regimentos de mosqueteiros, no entanto, os mosqueteiros mais famosos surgiram na França durante o reinado de Luís XIII (1601-1643), o qual governou por trinta anos. No ano de 1622, época na qual o monarca engajou-se em suas campanhas militares, Luís XIII reformulou a guarda real criada pelo seu pai Henrique IV, permitindo a contratação de plebeus e estipulando que os mesmos passassem a usar armas de fogo, no caso, especialmente o mosquete. Assim, surgiu a Guarda dos Mosqueteiros, também referidos como "mosqueteiros do rei". (DURIEUX, 1928). 

Embora no romance Os Três Mosqueteiros (1844), consequentemente nos filmes e no imaginário desenvolvido com base no sucesso do livro, vemos os mosqueteiros principalmente usado espadas do tipo florete, na prática, a espada era uma arma secundária, porém, Dumas influenciado pelo Romantismo, descreveu seus mosqueteiros como habilidosos espadachins, não atiradores. De qualquer forma, no campo de batalha os mosqueteiros lutavam com mosquetes como arma principal, por isso o nome da tropa. 

A guarda dos mosqueteiros possuía três funções principais: proteger o rei e a família real, logo, ficavam de guarda nos palácios e locais onde o monarca e seus familiares estivessem; escoltar o rei, a rainha, nobres e ministros; em terceiro, ser despachado para a guerra, fosse para acompanhar o rei caso ele fosse ao campo de batalha ou iriam como tropa de reforço. (DURIEUX, 1928). 

A sede da guarda ficava em Paris, tendo quartel próprio gerido por seu comandante. Por ser um regimento diretamente à serviço do rei da França e do primeiro-ministro, ela era prestigiada e recebia muitos recursos. Pela condição de Luís XIII permitir que plebeus se alistassem para guarda dos mosqueteiros, muitos jovens viajavam através da França com o sonho de entrar na guarda. Vale lembrar que no livro de Alexandre Dumas, o personagem D'Artagnan é um jovem de 18 anos, filho de agricultores da Gasconha, que tem o sonho de se tornar um mosqueteiro. Ao longo do livro ele atua como cadete, pleiteando uma vaga na guarda, algo obtido no final da narrativa. 

Para se tornar mosqueteiro do rei havia algumas condições: ser nobre, ser indicado ou tentar uma vaga como cadete, servindo em outras guarnições ou tropas para ganhar experiência e reputação, para em seguida se apresentar aos mosqueteiros e tentar o ingresso. Devido ao prestígio gerado ao ser membro da guarda, era comum os cargos mais altos serem dados a nobreza. Nos próprios livros de Dumas, alguns de seus mosqueteiros se tornaram nobres ou burgueses. 

A guarda dos mosqueteiros seguiu vigorando após a morte de Luís XIII, servindo o Cardeal Richelieu, o Cardeal Mazarino, ambos atuaram como primeiros-ministros, os reinados de Luís XIV, Luís XV Luís XVI. Embora que a guarda não existiu de forma regular continuamente tendo sido suspensa por Luís XVI (1774-1792) em 1776, reativada brevemente por Napoleão Bonaparte (1804-1815) em 1814, sendo extinta definitivamente em 1816

Trajes dos mosqueteiros franceses da guarda real, entre 1660 e 1814. 

Por conta de ter existido por quase duzentos anos, a guarda sofreu várias reformulações no seu contingente, trajes e organização. No caso dos livros de Alexandre Dumas, a guarda que vemos referem-se aos governos de Luís XIII e Luís XIV, o período áureo desse regimento militar. 

NOTA: Embora Os Três Mosqueteiros seja uma das obras mais famosas de Alexandre Dumas, ele forma uma trilogia composta por Vinte Anos Depois (1845) e o Visconde de Bragelonne (1847-1850). 

NOTA 2: Ambrósio Richshoffer (1612-?) foi um soldado estraburguês que serviu por quatro anos no Brasil pela Companhia das Índias Ocidentais (WIC) da Holanda. Ele escreveu um diário de viagem, dizendo que após 1632, quando voltou para a França, viajou a Paris e se alistou na guarda dos mosqueteiros, servindo ali por alguns anos até alcançar a patente de capitão. Mas por motivos não informados por ele, o mesmo teve que deixar seu cargo e voltou para Estrasburgo. 

NOTA 3: Luís XVI suspendeu a guarda dos mosqueteiros para conter gastos, porém, quando cogitou retomá-la, o contexto a Revolução Francesa (1789-1799) o impediu. O monarca foi decapitado em 1793. Por sua vez, Napoleão recriou a guarda para buscar apoio da nobreza e dos militares, após sua fuga da ilha de Elba e a tentativa e retomar o trono. 

Referências bibliográficas

CHASE, Kenneth. Firearms: A Global History to 1700. Cambridge, Cambridge University Press, 2003. 

DURIEUX, Joseph. Le Périgord militaire. Mousquetaires du Roi au XVIIIe siècle. Bulletin de la Société historique et archéologique du Périgord, v. 55,‎ p. 167-180. 

OLIVEIRA, Leandro Vilar. Guerras luso-holandesas na Capitania da Paraíba (1631-1634): um estudo documental e historiográfico. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2016. 

PARKER, Geoffrey. The Military Revolution: military innovation and the rise of the West, 1500-1800. 2a ed. Cambridge, Cambridge University Press, 1996.

PARKER, Geoffrey. O Soldado. In: VILLARI, Rosario (dir.). O homem barroco. Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Lisboa, Editoria Presença, 1994.

SOUSA, Luís Filipe Guerreiro Costa e. Escrita e Prática de Guerra em Portugal: 1573-1612. Tese (Doutorado em História dos Descobrimentos e Expansão) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade de Lisboa, Lisboa, 2013.

quinta-feira, 26 de junho de 2025

Gigantopithecus: o verdadeiro King Kong

Na Pré-história existiu um primata digno de ser comparado ao icônico gorila gigante do cinema, King Kong. Evidentemente que esse primata não era tão gigantesco quanto sua contraparte ficcional, ainda assim, era um animal que pertencia a chamada megafauna, espécies que possuíam um tamanho maior do que as espécies atuais. A fim de comparação, o primata mais próximo do Gigantopithecus em proporção é o gorila, sendo que o Gigantopithecus teria o dobro de seu tamanho. Pode não parecer muito, mas para os humanos daquele tempo, eles estariam diante de um "macaco gigante". 

Introdução

King Kong é o personagem título de um filme de aventura lançado em 1933, na época ainda preto e branco. Na trama do filme uma expedição viaja até a distante e misteriosa Ilha da Caveira, uma ilha tropical nas proximidades da Indonésia, onde dizem existir uma civilização perdida e animais nunca antes vistos. De fato, para além do gorila gigante na ilha existem insetos gigantes e dinossauros, além de um povo que cultua Kong como uma divindade, fazendo sacrifícios humanos a ele. 

O filme seguia o roteiro básico da literatura de fantasia de mundo perdido, ainda em popularidade naquela época, por conta disso a existência da tal ilha contendo um povo com resquícios pré-históricos e a presença de dinossauros, dois elementos comuns das narrativas de mundo perdido. Assim, King Kong foi um sucesso ao ser lançado, virando nos anos seguintes um clássico cult, gerando toda uma franquia de filmes, desenhos, jogos e outros produtos. 

Mas qual seria a relação dele com o gigantopithecus? De imediato nenhuma, pois o filme foi lançado em 1933 e o primeiro fóssil identificado do gigantophitecus foi descoberto em 1939, além disso, como será visto a seguir, nem sempre esse primata foi tido como um "macaco", mas chegou-se a considerá-lo uma suposta raça de humanos gigantes. De qualquer forma, à medida que as pesquisas sobre o gigantophitecus se desenvolviam, King Kong iam ficando mais famoso no cinema e há quem defendesse que a trama do filme não seria tão ridícula assim, afinal, houve um tempo pré-histórico em que humanos conviveram com macacos gigantes. 

O "macaco" gigante

O Gigantophitecus blacki foi uma espécie de primata que viveu entre 2 milhões e 200 mil anos atrás, habitando os atuais territórios da China, Tailândia e norte do Vietnã. Apesar de seu tamanho ser comparado ao dos atuais gorilas, essa espécie pertenciam ao subgênero Ponginae, a qual pertence os orangotangos. Dessa forma, em termos fisionômicos, o gigantophitecus seria mais parecido com um orangotango gigante do que com um gorila. 

Ilustração de como poderia ter sido a aparência dos gigantophitecus. 

Devido ao seu grande tamanho, estimado entre 2,5 e 3 metros de altura quando ficava de pé e pesando em média 300 kg, é a maior espécie de primata já descoberta até então. Por conta de seu peso e tamanho, isso tornava inviável que escalasse árvores, mas teria força bruta para derrubar árvores finas. Por conta de ter habitado a China pré-histórica, naquele tempo já abundavam bambuzais, que provavelmente teriam sido uma de suas principais fontes de alimentação. Vale ressalvar que gorilas e orangotangos apesar do porte grande, são primatas herbívoros. Dessa forma, o gigantophitecus provavelmente teria uma dieta alimentar parecida com a dos pandas, alimentando-se principalmente de bambu e outras plantas similares. 

Poucas informações existem sobre os gigantophitecus, já que os fósseis encontrados a maior parte foram de dentes. A primeira menção registrada paleologicamente dessa espécie advém de 1935, feita pelo antropólogo alemão-holandês Gustav R. H. von Koeningswald (1902-1982) ao analisar dois dentes molares de tamanho curioso, obtidos numa farmácia popular chinesa. A medicina popular chinesa costuma ainda hoje vender dentes, ossos e fósseis como parte dos ingredientes para diversas receitas de tratamento de saúde. Os chamados "ossos de dragão" eram em muitos casos fósseis, já que a China é um dos países com grande extensão de fósseis no mundo. 

Reconstituição de uma mandíbula de gigantopithecus. 

Assim, ao analisar esses molares, Koeningswald constatou serem similares ao de primatas, mas pertenceria a um primata de tamanho maior do que o comum, por conta disso ele chamou a espécie desconhecida de gigantophitecus ("macaco gigante"). Isso originou algumas teorias por parte de outros estudiosos. O paleontólogo sul-africano Robert Broom em 1939 lançou a teoria de que o gigantopithecus seria uma subespécie de Austrolopitecus que habitava aquela parte a Ásia. Baseado na sua teoria, o antropólogo judeu alemão Franz Weidenreich em 1946 atualizou a ideia de Broom, ao invés daqueles dentes pertencerem a uma variedade de Austrolopitecus, poderiam ter pertencido a uma raça hominídea desconhecida. Weidenreich influenciado pela crença de que houve gigantes reais, cogitou que o tal gigantophitecus seria uma evidência paleontológica da existência de gigantes, ou seja, para ele aquele molar não pertenceria a um macaco, mas a um ser humano gigante. 

As duas teorias propostas ainda permearam a Paleontologia e Antropologia por algumas décadas, o próprio Koeningswald mais tarde comprou a teoria de Weidenreich de que o gigantopithecus poderia ter sido uma espécie de humanos gigantes, essa ideia inclusive gerou cisão no meio acadêmico. Uns consideravam se tratar de um primata outros de um humanos primitivos, essa disputa perdurou até o começo dos anos 1980 quando estabeleceu-se que se tratava de um primata da subespécie Ponginae, mas até isso acontecer o gigantophitecus chegou a ser incluído em outras famílias de primatas e hominídeas e até supostas subespécies teriam sido identificadas na Índia e na Indonésia. 

O problema de classificação do gigantophitecus durou quase cinquenta anos devido a escassez de fósseis desse primata. A maior parte dos fósseis encontrados até hoje são dentes, porém, diversas escavações na China encontraram mandíbulas e outros ossos, mas nunca um esqueleto completo. Apesar disso, tais achados permitiram chegar a conclusão de que não se tratava de uma espécie de hominídeo gigante como se considerava, mas de um primata de grande dimensão, sendo aparentado dos atuais orangotangos. Além disso, todos os fósseis descobertos apontam para a mesma espécie, ou seja, até hoje só mente se identificou uma espécie de gigantophitecus. 

O gigantophitecus teria desaparecido entre 250 e 200 mil anos atrás, época que o Homo sapiens ainda não tinha saído da África, logo, os hominídeos que tiveram contato com ele pertenciam a espécie de Homo erectus e suas subspécies. Assim, tais espécies possuíam entre 1,40 e 1,70 metro de altura, comparadas ao giganthopitecus que passavam facilmente dos 2 metros de altura, realmente seriam tomados por aqueles pequenos hominídeos como "macacos gigantes". 

Representação do contato do Homo erectus com gigantophitecus. 

Mas teriam esses hominídeos caçados esses enormes primatas? É possível, já que em outros lugares do mundo o Homo erectus, o Homo neanderthalensis e o Homo sapiens caçaram animais bem maiores. Mas essa caça teria levado a extinção da espécie? Essa é uma pergunta sem uma resposta concreta. Mas no geral os paleontólogos consideram que as mudanças climáticas ocorridas entre 250 e 150 mil anos atrás foram fatores mais determinantes para reduzir a população de gigantophitecus, além da condição de que possivelmente eles tinham poucos filhotes anualmente como visto com o caso dos orangotangos e gorilas, os quais geralmente dão à luz a um filhote por ano. 

Assim, somando-se a condição biológica de baixa natalidade, mudanças ambientais que afetaram o hábitat natural desses primatas comprometendo sua fonte de alimento, ainda mais sendo eles animais que necessitavam de grande quantidade de alimento diária; sua incapacidade de escapar de um grupo de humanos armados com lanças e arcos, a pouca população nativa, isso tudo contribuiu para a gradativa extinção da espécie. Dessa forma, quando indivíduos do Homo sapiens sapiens chegaram à China, o gigantopithecus já estava extinto a milhares de anos. 

NOTA: No filme Mogli: O menino lobo (2016) o Rei Louie é retratado como um gigantophitecus. 

NOTA 2: Já se considerou que o Abominável homem das neves poderia ser uma subspécie de gigantopithecus, o problema é que esses primatas não viviam em regiões montanhosas como o Tibete e o Himalaia. Para ser uma subsespécie, ela teria que ter trocado o hábitat de florestas tropicais pelo o frio das montanhas, não apenas passando a resistir as baixas temperaturas, mas mudar seu comportamento alimentar e outras necessidades. 

NOTA 3: A espécie Gigantopithecus giganteus habituou um território entre China e Índia, mas sendo de porte menor, possívelmente equiparável ao dos atuais gorilas africanos. Já a espécie Gigantopithecus bilaspurensis, suposta ancestral dos demais, foi descartada por se tratar da espécie Indopithecus giganteus, um possível parente. 

NOTA 4: No jogo Ark: Survival Evolved (2015) o gigantopithecus é retratado como se fosse um Pé-grande. 

Referências bibliográficas

LOPATIN, A. V; MASCHENKO, E. N; DAC, Le Xuan. Gigantophitecus blacki (Primates, Ponginae) from the Lang Trang Cave (Norther Vietnam): The Latest Gigantophitecus in the Late Pleistocene? Doklady Biological Sciences, v. 502, n. 1, 2022, p. 6-10. 

ZHAO, L. X; ZHANG, L. Z. New fossil evidence and diet analysis of Gigantophitecus blacki and its distribution and extinction in South China. Quaternay International, n. 286, 2013, p. 69-74.