Memória, Esquecimento, Silêncioº
Michael Pollak*
Em sua análise da memória coletiva, Maurice Halbwachs
enfatiza a força dos diferentes pontos de referência que estruturam nossa
memória e que a inserem na memória da coletividade a que pertencemos.1 Entre eles incluem-se evidentemente os
monumentos, esses lugares da memória analisados por Pierre Nora,2 o patrimônio arquitetônico e seu
estilo, que nos acompanham por toda a nossa vida, as paisagens, as datas e
personagens históricas de cuja importância somos incessantemente relembrados,
as tradições e costumes, certas regras de interação, o folclore e a música, e,
por que não, as tradições culinárias. Na tradição metodológica durkheimiana,
que consiste em tratar fatos sociais como coisas, torna-se possível tomar esses
diferentes pontos de referência como indicadores empíricos da memória coletiva
de um determinado grupo, uma memória estruturada com suas hierarquias e
classificações, uma memória também que, ao definir o que é comum a um grupo e o
que, o diferencia dos outros, fundamenta e reforça os sentimentos de
pertencimento e as fronteiras sócio-culturais.
Na abordagem durkheimiana, a ênfase é dada à força quase
institucional. dessa memória coletiva, à duração, à continuidade e à
estabilidade. Assim também Halbwachs, longe de ver nessa memória coletiva uma
imposição, uma forma específica de dominação ou violência simbólica,3 acentua
as funções positivas desempenhadas pela memória comum, a saber, de reforçar a
coesão social, não pela coerção, mas pela adesão afetiva ao grupo, donde o
termo que utiliza, de "comunidade afetiva". Na tradição européia do
século XIX, em Halbwachs, inclusive, a nação é a forma mais acabada de um
grupo, e a memória nacional, a forma mais completa de uma memória coletiva.
Em vários momentos, Maurice Halbwachs insinua não apenas a
seletividade de toda memória, mas também um processo de "negociação"
para conciliar memória coletiva e memórias individuais: "Para que nossa
memória se beneficie da dos outros, não basta que eles nos tragam seus
testemunhos: é preciso também que ela não tenha deixado de concordar com suas
memórias e que haja suficientes pontos de contato entre ela e as outras para
que a lembrança que os outros nos trazem possa ser reconstruída sobre uma base
comum."4
Esse reconhecimento do caráter potencialmente problemático
de uma memória coletiva já anuncia a inversão de perspectiva que marca os
trabalhos atuais sobre esse fenômeno. Numa perspectiva construtivista, não se
trata mais de lidar com os fatos sociais como coisas, mas de analisar como os
fatos sociais se tornam coisas, como e por quem eles são solidificados e
dotados de duração e estabilidade. Aplicada à memória coletiva, essa abordagem
irá se interessar, portanto pelos processos e atores que intervêm no trabalho
de constituição e de formalização das memórias. Ao privilegiar a analise dos
excluídos, dos marginalizados e das minorias, a história oral ressaltou a
importância de memórias subterrâneas que, como parte integrante das culturas minoritárias
e dominadas, se opõem à "Memória oficial", no caso a memória
nacional. Num primeiro momento, essa abordagem faz da empatia com os grupos
dominados estudados uma regra metodológica5 e reabilita a periferia e a
marginalidade.
Ao contrário de Maurice Halbwachs, ela acentua o caráter
destruidor, uniformizador e opressor da memória coletiva nacional. Por outro
lado, essas memórias subterrâneas que prosseguem seu trabalho de subversão no
silêncio e de maneira quase imperceptível afloram em momentos de crise em
sobressaltos bruscos e exacerbados.6 A memória entra em disputa. Os objetos de
pesquisa são escolhidos de preferência onde existe conflito e competição entre
memórias concorrentes.
A memória em disputa
Essa predileção atual dos pesquisadores pelos conflitos e disputas
em detrimento dos fatores de continuidade e de estabilidade deve ser
relacionada com as verdadeiras batalhas da memória a que assistimos, e que
assumiram uma amplitude particular nesses últimos quinze anos na Europa. Tomemos,
a título de ilustração, o papel desempenhado pela reescrita da história em dois
momentos fortes da destalinização, o primeiro deles após o XX Congresso do PC
da União Soviética, quando Nikita Kruschev denunciou pela primeira
vez os crimes estalinistas. Essa reviravolta da visão da história,
indissociavelmente ligada à da linha política, traduziu-se na destruição
progressiva dos signos e símbolos que lembravam Stalin na União Soviética e nos
países satélites, e, finalmente na retirada dos despojos de Stalin do mausoléu da
Praça Vermelha.
Essa primeira etapa da destalinização, conduzida de maneira
discreta dentro do aparelho, gerou transbordamentos e manifestações (das quais
a mais importante foi a revolta húngara) que se apropriaram da destruição das
estátuas de Stalin e a integraram em uma estratégia de independência e de
autonomia. Embora tivesse arranhado o mito histórico dominante do "Stalin
pai dos pobres", essa primeira destalinização não conseguiu realmente se impor, e com o fim
da era kruschevista cessaram também as tentações de revisão da memória
coletiva. Essa preocupação reemergiu cerca de trinta anos mais tarde no quadro
da glasnost e da perestroika. Aí também o movimento foi lançado pela
nova direção do partido ligada a Gorbachev.
Mas, ao contrário dos anos 1950, essa nova abertura logo gerou um movimento intelectual com a reabilitação de alguns dissidentes atuais e, de maneira póstuma, de dirigentes que nos anos 1930 e 1940 haviam sido vítimas do terror estalinista. Esse sopro de liberdade de crítica despertou traumatismos profundamente ancorados que ganharam forma num movimento popular que se organiza em torno do projeto de construção de um monumento à memória das vítimas do stalinismo.7
Mas, ao contrário dos anos 1950, essa nova abertura logo gerou um movimento intelectual com a reabilitação de alguns dissidentes atuais e, de maneira póstuma, de dirigentes que nos anos 1930 e 1940 haviam sido vítimas do terror estalinista. Esse sopro de liberdade de crítica despertou traumatismos profundamente ancorados que ganharam forma num movimento popular que se organiza em torno do projeto de construção de um monumento à memória das vítimas do stalinismo.7
Esse fenômeno, mesmo que possa "objetivamente"
desempenhar o papel de um reforço à corrente reformadora contra a ortodoxia que
continua a ocupar importantes posições no partido e no Estado, não pode, porém
ser reduzido a este aspecto. Ele consiste muito mais na irrupção de ressentimentos
acumulados no tempo e de uma memória da dominação e de sofrimentos que jamais
puderam se exprimir publicamente. Essa memória "proibida" e portanto
"clandestina" ocupa toda a cena cultural, o setor editorial, os meios
de comunicação, o cinema e a pintura, comprovando, caso seja necessário, o fosso
que separa de fato a sociedade civil e a ideologia oficial de um partido e de
um Estado que pretende a dominação hegemônica. Uma vez rompido o tabu, uma vez
que as memórias subterrâneas conseguem invadir o espaço público, reivindicações
múltiplas e dificilmente previsíveis se acoplam a essa disputa da memória, no
caso, as reivindicações das diferentes nacionalidades.
Este exemplo mostra a necessidade, para os dirigentes, de
associar uma profunda mudança política a uma revisão (auto) crítica do passado.
Ele remete igualmente aos riscos inerentes a essa revisão, na medida em que os
dominantes não podem jamais controlar perfeitamente até onde levarão as
reivindicações que se formam ao mesmo tempo em que caem os tabus conservados pela
memória oficial anterior. Este exemplo mostra também a sobrevivência durante
dezenas de anos, de lembranças traumatizantes, lembranças que esperam o momento
propício para serem expressas.
A despeito da importante doutrinação ideológica, essas lembranças durante tanto tempo confinadas ao silêncio e transmitidas de uma geração a outra oralmente, e não através de publicações, permanecem vivas. O longo silêncio sobre o passado, longe de conduzir ao esquecimento, é a resistência que uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de discursos oficiais. Ao mesmo tempo, ela transmite cuidadosamente as lembranças dissidentes nas redes familiares e de amizades, esperando a hora da verdade e da redistribuição das cartas políticas e ideológicas.
A despeito da importante doutrinação ideológica, essas lembranças durante tanto tempo confinadas ao silêncio e transmitidas de uma geração a outra oralmente, e não através de publicações, permanecem vivas. O longo silêncio sobre o passado, longe de conduzir ao esquecimento, é a resistência que uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de discursos oficiais. Ao mesmo tempo, ela transmite cuidadosamente as lembranças dissidentes nas redes familiares e de amizades, esperando a hora da verdade e da redistribuição das cartas políticas e ideológicas.
Embora na maioria das vezes esteja ligada a fenômenos de
dominação, a clivagem entre memória oficial e dominante e memórias
subterrâneas, assim como a significação do silêncio sobre o passado, não remete
forçosamente à oposição entre Estado dominador e sociedade civil.
Encontramos com mais freqüência esse problema nas relações
entre grupos minoritários e sociedade englobante. O exemplo seguinte,
completamente diferente, é o dos sobreviventes dos campos de concentração que,
após serem libertados, retornaram à Alemanha ou à Áustria. Seu silêncio sobre o
passado está ligado em primeiro lugar à necessidade de encontrar um modus
vivendi com aqueles que, de perto ou de longe, ao menos sob a forma de
consentimento tácito, assistiram à sua deportação. Não provocar o sentimento de
culpa da maioria torna-se então um reflexo de proteção da minoria judia.
Contudo, essa atitude é ainda reforçada pelo sentimento de culpa que as
próprias vítimas podem ter, oculto no fundo de si mesmas. É sabido que a
administração nazista conseguiu impor à comunidade judia uma parte importante
da gestão administrativa de sua política anti-semita, como a preparação das
listas dos futuros deportados ou até mesmo a gestão de certos locais de
trânsito ou a organização do abastecimento nos comboios.
Os representantes da comunidade judia deixaram-se levar a negociar com as autoridades nazistas, esperando primeiro poder alterar a política oficial, mais tarde "limitar as perdas", para finalmente chegar a uma situação na qual se havia esboroado até mesmo a esperança de poder negociar um melhor tratamento para os últimos empregados da comunidade. Esta situação, que se repetiu em todas as cidades - onde havia comunidades judaicas importantes, ilustra particularmente bem o encolhimento progressivo daquilo que é negociável, e também a diferença ínfima que às vezes separa a defesa do grupo e sua resistência da colaboração e do comprometimento. Seria tão espantoso assim que um historiador do nazismo tão eminente como Walter Laqueur tenha escolhido o gênero do romance para dar conta dessa situação inextricável?8
Os representantes da comunidade judia deixaram-se levar a negociar com as autoridades nazistas, esperando primeiro poder alterar a política oficial, mais tarde "limitar as perdas", para finalmente chegar a uma situação na qual se havia esboroado até mesmo a esperança de poder negociar um melhor tratamento para os últimos empregados da comunidade. Esta situação, que se repetiu em todas as cidades - onde havia comunidades judaicas importantes, ilustra particularmente bem o encolhimento progressivo daquilo que é negociável, e também a diferença ínfima que às vezes separa a defesa do grupo e sua resistência da colaboração e do comprometimento. Seria tão espantoso assim que um historiador do nazismo tão eminente como Walter Laqueur tenha escolhido o gênero do romance para dar conta dessa situação inextricável?8
Em face dessa lembrança traumatizante, o silêncio parece se
impor a todos aqueles que querem evitar culpar as vítimas. E algumas vítimas,
que compartilham essa mesma lembrança "comprometedora", preferem,
elas também, guardar silêncio. Em lugar de se arriscar a um mal-entendido sobre
uma questão tão grave, ou até mesmo de reforçar a consciência tranqüila e a propensão
ao esquecimento dos antigos carrascos, não seria melhor se abster de falar?
Poucos períodos históricos foram tão estudados como o
nazismo, incluindo-se aí sua política anti-semita e a exterminação dos judeus.
Entretanto, a despeito da abundante literatura e do lugar concedido a esse
período nos meios de comunicação, freqüentemente ele permanece um tabu nas histórias
individuais na Alemanha e na Áustria, nas conversas familiares e, mais ainda,
nas biografias dos personagens públicos.9 Assim como as razões de um tal
silêncio são compreensíveis no caso de antigos nazistas ou dos milhões de
simpatizantes do regime, elas são difíceis de deslindar no caso das vítimas.
Nesse caso, o silêncio tem razões bastante complexas. Para
poder relatar seus sofrimentos, uma pessoa precisa antes de mais nada encontrar
uma escuta. Em seu retomo, os deportados encontraram efetivamente essa escuta,
mas rapidamente o investimento de todas as energias na reconstrução do
pós-guerra exauriu a vontade de ouvir a mensagem culpabilizante dos horrores dos
campos. A deportação evoca necessariamente sentimentos ambivalentes, até mesmo
de culpa, e isso também nos países vencedores onde, como na França, a
indiferença e a colaboração marcaram a vida cotidiana ao menos tanto quanto a
resistência.
Não vemos, desde 1945, desaparecerem das comemorações oficiais os antigos deportados de roupa listrada, que despertam também o sentimento de culpa e que, com exceção dos deportados políticos, se integram mal em um desfile de ex-combatentes? "1945 organiza o esquecimento da deportação, os deportados chegam quando as ideologias já estão colocadas, quando a batalha pela memória já começou, a cena política já está atulhada: eles são demais."10 A essas razões políticas do silêncio acrescentam-se aquelas, pessoais, que consistem em querer poupar os filhos de crescer na lembrança das feridas dos pais. Quarenta anos depois convergem razões políticas e familiares que concorrem para romper esse silêncio: no momento em que as testemunhas oculares sabem que vão desaparecer em breve, elas querem inscrever suas lembranças contra o esquecimento. E seus filhos, eles também, querem saber, donde a proliferação atual de testemunhos e de publicações de jovens intelectuais judeus que fazem "da pesquisa de suas origens a origem de sua pesquisa".11 Nesse meio tempo, foram as associações de deportados que, mal ou bem, conservaram e transmitiram essa memória.
Não vemos, desde 1945, desaparecerem das comemorações oficiais os antigos deportados de roupa listrada, que despertam também o sentimento de culpa e que, com exceção dos deportados políticos, se integram mal em um desfile de ex-combatentes? "1945 organiza o esquecimento da deportação, os deportados chegam quando as ideologias já estão colocadas, quando a batalha pela memória já começou, a cena política já está atulhada: eles são demais."10 A essas razões políticas do silêncio acrescentam-se aquelas, pessoais, que consistem em querer poupar os filhos de crescer na lembrança das feridas dos pais. Quarenta anos depois convergem razões políticas e familiares que concorrem para romper esse silêncio: no momento em que as testemunhas oculares sabem que vão desaparecer em breve, elas querem inscrever suas lembranças contra o esquecimento. E seus filhos, eles também, querem saber, donde a proliferação atual de testemunhos e de publicações de jovens intelectuais judeus que fazem "da pesquisa de suas origens a origem de sua pesquisa".11 Nesse meio tempo, foram as associações de deportados que, mal ou bem, conservaram e transmitiram essa memória.
Um último exemplo mostra até que ponto uma situação ambígua
e passível de gerar mal-entendidos pode, ela também, levar ao silêncio antes de
produzir o ressentimento que está na origem das reivindicações e contestações
inesperadas. Trata-se dos recrutados a força alsacianos, estudados por Freddy
Raphael.12 Após o fracasso de uma política de recrutamento voluntário acionada
no início da Segunda Guerra Mundial pelo exército alemão na Alsácia anexada, o recrutamento
forçado foi decidido por decretos de 25 e 29 de agosto de 1942. De outubro de 1942
a novembro de 1944, 130.000 alsacianos e lorenos foram incorporados a
diferentes formações do exército alemão. Ocorreram atos de revolta, de
resistência e de desobediência, bem como um número significativo de deserções.
A despeito desses indícios do caráter coercitivo dessa participação na guerra ao lado dos nazistas, colocou-se a questão, depois da guerra, do grau de colaboração e comprometimento desses homens. Feitos prisioneiros de guerra no front oriental pelo Exército Vermelho, muitos deles morreram ou regressaram apenas em meados dos anos 1950. Trata-se, por definição, de uma experiência dificilmente dizível no contexto do mito de uma nação de resistentes, tão rico de sentido nas primeiras décadas do pós-guerra.
A despeito desses indícios do caráter coercitivo dessa participação na guerra ao lado dos nazistas, colocou-se a questão, depois da guerra, do grau de colaboração e comprometimento desses homens. Feitos prisioneiros de guerra no front oriental pelo Exército Vermelho, muitos deles morreram ou regressaram apenas em meados dos anos 1950. Trata-se, por definição, de uma experiência dificilmente dizível no contexto do mito de uma nação de resistentes, tão rico de sentido nas primeiras décadas do pós-guerra.
A partir daí, Freddy Raphael distingue três grandes etapas:
à memória envergonhada de uma geração perdida seguiu-se a das associações de
desertores, evadidos e recrutados a forca que lutam pelo reconhecimento de uma
situação valorizadora das vítimas e dos "Malgré nous", sublinhando
sua atitude de recusa e de resistência passiva. Mas hoje, essa memória
canalizada e esterilizada se revolta e se afirma a partir de um sentimento de
absurdo e de abandono. Ela se considera mal compreendida e vilipendiada e se
engaja num combate contestatório e militante.13
A memória subterrânea dos recrutados as forças alsacianos
toma a dianteira e se cria então contra aqueles que tentaram forjar um mito, a
fim de eliminar o estigma da vergonha: "A organização das lembranças se
articula igualmente com a vontade de denunciar aqueles aos quais se atribui a maior
responsabilidade pelas afrontas sofridas... Parece, no entanto, que a
culpabilidade alemã como fator de reorganização das lembranças intervém
relativamente pouco; em todo caso, sua incidência é significativamente reduzida
em comparação com a denúncia da barbárie russa, bem como da covardia e da
indiferença francesas."14 No momento do retorno do reprimido, não é o autor
do "crime" (a Alemanha) que ocupa o primeiro lugar entre os acusados,
mas aqueles que, ao forjar uma memória oficial, conduziram as vítimas da
história ao silêncio e à renegação de si mesmas.
Esse mecanismo é comum a muitas populações fronteiriças da
Europa que, em lugar de poderem agir sobre sua história, freqüentemente se
submeteram a ela de bom ou mau grado: "Meu avô francês foi feito
prisioneiro pelos prussianos em 1870; meu pai alemão foi feito prisioneiro
pelos franceses em 1918; eu, francês, fui feito prisioneiro pelos alemães em
junho de 1940, e depois, recrutado a força pela Wehrmacht em 1943, fui
feito prisioneiro pelos russos em 1945. Veja o senhor que nós temos um sentido
da história muito particular. Estamos sempre do lado errado da história,
sistematicamente: sempre acabamos as guerras com o uniforme do prisioneiro, o
nosso único uniforme permanente."15
A função do "não-dito"
À primeira vista, os três exemplos expostos acima não têm
nada em comum: a irrupção de uma memória subterrânea favorecida, quando não
suscitada, por uma política de reformas que coloca em crise o aparelho do
partido e do Estado; o silêncio dos deportados, vítimas por excelência, fora de
suas redes de sociabilidade, mostrando as dificuldades de integrar suas
lembranças na memória coletiva da nação; os recrutados a força alsacianos,
remetendo à revolta da figura do "mal-amado" e do
"incompreendido", que visa superar seu sentimento de exclusão e
restabelecer o que considera ser a verdade e a justiça.
Mas esses exemplos têm em comum o fato de testemunharem a
vivacidade das lembranças individuais e de grupos durante dezenas de anos, e
até mesmo séculos.16 Opondo-se à mais legítima das memórias coletivas, a
memória nacional, essas lembranças são transmitidas no quadro familiar, em
associações, em redes de sociabilidade afetiva e/ou política. Essas lembranças
proibidas (caso dos crimes estalinistas), indizíveis (caso dos deportados) ou vergonhosas
(caso dos recrutados à força) são zelosamente guardadas em estruturas de comunicação
informais e passam despercebidas pela sociedade englobante.
Por conseguinte, existem nas lembranças de uns e de outros
zonas de sombra, silêncios, "não-ditos". As fronteiras desses
silêncios e "não-ditos" com o esquecimento definitivo e o reprimido
inconsciente não são evidentemente estanques e estão em perpétuo
deslocamento.17
Essa tipologia de discursos, de silêncios, e também de
alusões e metáforas, é moldada pela angústia de não encontrar uma escuta, de
ser punido por aquilo que se diz, ou, ao menos, de se expor a mal-entendidos.
No plano coletivo, esses processos não são tão diferentes dos mecanismos
psíquicos ressaltados por Claude Olievenstein: "A linguagem e apenas a
vigia da angústia... Mas a linguagem se condena a ser impotente porque organiza
o distanciamento daquilo que não pode ser posto à distância. É aí que intervém,
com todo o poder, o discurso interior, o compromisso do não-dito entre aquilo
que o sujeito se confessa a si mesmo e aquilo que ele pode transmitir ao
exterior."18
A fronteira entre o dizível e o indizível, o confessável e o
inconfessável, separa, em nossos exemplos, uma memória coletiva subterrânea da
sociedade civil dominada ou de grupos específicos, de uma memória coletiva
organizada que resume a imagem que uma sociedade majoritária ou o Estado
desejam passar e impor.
Distinguir entre conjunturas favoráveis ou desfavoráveis às memórias marginalizadas é de saída reconhecer a que ponto o presente colore o passado. Conforme as circunstâncias, ocorre a emergência de certas lembranças, a ênfase é dada a um ou outro aspecto. Sobretudo a lembrança de guerras ou de grandes convulsões internas remete sempre ao presente, deformando e reinterpretando o passado. Assim também, há uma permanente interação entre o vivido e o aprendido, o vivido e o transmitido. E essas constatações se aplicam a toda forma de memória, individual e coletiva, familiar, nacional e de pequenos grupos.19 O problema que se coloca a longo prazo para as memórias clandestinas e inaudíveis é o de sua transmissão intacta até o dia em que elas possam aproveitar uma ocasião para invadir o espaço público e passar do "não-dito" à contestação e à reivindicação; o problema de toda memória oficial é o de sua credibilidade, de sua aceitação e também de sua organização. Para que emeria nos discursos políticos um fundo comum de referências que possam constituir uma memória nacional, um intenso trabalho de organização é indispensável para superar a simples "montagem" ideológica, por definição precária e frágil.
O enquadramento da memória
Estudar as memórias coletivas fortemente constituídas, como
a memória nacional, implica preliminarmente a análise de sua função. A memória,
essa operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do passado que
se quer salvaguardar, se integra, como vimos, em tentativas mais ou menos conscientes
de definir e de reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais
entre coletividades de tamanhos diferentes: partidos, sindicatos, igrejas,
aldeias, regiões, clãs, famílias, nações etc. A referência ao passado serve
para manter a coesão dos grupos e das instituições que compõem uma sociedade,
para definir seu lugar respectivo, sua complementariedade, mas também as
oposições irredutíveis.
Manter a coesão interna e defender as fronteiras daquilo que
um grupo tem em comum, em que se inclui o território (no caso de Estados), eis
as duas funções essenciais da memória comum. Isso significa fornecer um quadro
de referências e de pontos de referência. É, portanto absolutamente adequado
falar, como faz Henry Rousso, em memória enquadrada, um termo mais específico
do que memória coletiva.20 Quem diz "enquadrada" diz "trabalho
de enquadramento".21 Todo trabalho de enquadramento de uma memória de
grupo tem limites, pois ela não pode ser construída arbitrariamente. Esse
trabalho deve satisfazer a certas exigências de justificação.22 Recusar levar a
sério o imperativo de justificação sobre o qual repousa a possibilidade de
coordenação das condutas humanas significa admitir o reino da injustiça e da violência.
À luz de tudo o que foi dito acima sobre as memórias subterrâneas, pode-se colocar a questão das condições de possibilidade e de duração de uma memória imposta sem a preocupação com esse imperativo de justificação. Nesse caso, esse imperativo pode se impor após adiamentos mais ou menos longos. Ainda que quase sempre acreditem que "o tempo trabalha a seu favor" e que "o esquecimento e o perdão se instalam com o tempo", os dominantes freqüentemente são levados a reconhecer, demasiado tarde e com pesar, que o intervalo pode contribuir para reforçar a amargura, o ressentimento e o ódio dos dominados, que se exprimem então com os gritos da contra-violência.
À luz de tudo o que foi dito acima sobre as memórias subterrâneas, pode-se colocar a questão das condições de possibilidade e de duração de uma memória imposta sem a preocupação com esse imperativo de justificação. Nesse caso, esse imperativo pode se impor após adiamentos mais ou menos longos. Ainda que quase sempre acreditem que "o tempo trabalha a seu favor" e que "o esquecimento e o perdão se instalam com o tempo", os dominantes freqüentemente são levados a reconhecer, demasiado tarde e com pesar, que o intervalo pode contribuir para reforçar a amargura, o ressentimento e o ódio dos dominados, que se exprimem então com os gritos da contra-violência.
O trabalho de enquadramento da memória se alimenta do
material fornecido pela história. Esse material pode sem dúvida ser
interpretado e combinado a um sem-número de referências associadas; guiado pela
preocupação não apenas de manter as fronteiras sociais, mas também de modificá-las,
esse trabalho reinterpreta incessantemente o passado em função dos combates do presente
e do futuro. Mas, assim como a exigência de justificação discutida acima limita
a falsificação pura e simples do passado na sua reconstrução política, o
trabalho permanente de reinterpretação do passado é contido por uma exigência
de credibilidade que depende da coerência dos discursos sucessivos.
Toda organização política, por exemplo - sindicato, partido etc. -, veicula seu próprio passado e a imagem que ela forjou para si mesma. Ela não pode mudar de direção e de imagem brutalmente a não ser sob risco de tensões difíceis de dominar, de cisões e mesmo de seu desaparecimento, se os aderentes não puderem mais se reconhecer na nova imagem, nas novas interpretações de seu passado individual e no de sua organização. O que está em jogo na memória é também o sentido da identidade individual e do grupo. Temos exemplos disso por ocasião de congressos de partidos em que ocorrem reorientações que produzem rachas, mas também por ocasião de uma volta reflexiva sobre o passado nacional,23 como a passagem, na França, de uma memória idealizante, que exagera o papel da Resistência, a uma visão mais realista que reconhece a importância da colaboração.24
Toda organização política, por exemplo - sindicato, partido etc. -, veicula seu próprio passado e a imagem que ela forjou para si mesma. Ela não pode mudar de direção e de imagem brutalmente a não ser sob risco de tensões difíceis de dominar, de cisões e mesmo de seu desaparecimento, se os aderentes não puderem mais se reconhecer na nova imagem, nas novas interpretações de seu passado individual e no de sua organização. O que está em jogo na memória é também o sentido da identidade individual e do grupo. Temos exemplos disso por ocasião de congressos de partidos em que ocorrem reorientações que produzem rachas, mas também por ocasião de uma volta reflexiva sobre o passado nacional,23 como a passagem, na França, de uma memória idealizante, que exagera o papel da Resistência, a uma visão mais realista que reconhece a importância da colaboração.24
Esse trabalho de enquadramento da memória tem seus atores
profissionalizados, profissionais da história das diferentes organizações de
que são membros, clubes e células de reflexão. Esse papel existe também, embora
de maneira menos claramente definida, nas associações de deportados ou de
ex-combatentes. Pode-se perceber isso quando se aborda, no contexto de uma pesquisa
de história oral, os responsáveis por tais associações. Em minha pesquisa sobre
as sobreviventes do campo de Auschwitz-Birkenau, uma das responsáveis pela
associação me disse, antes de me pôr em contato com algumas de suas
companheiras: "O senhor deve compreender que nós nos consideramos um pouco
como as guardiãs da verdade."
Esse trabalho de controle da imagem da associação implica uma oposição forte entre o "subjetivo" e o "objetivo", entre a reconstrução de fatos e as reações e sentimentos pessoais. A escolha das testemunhas feita pelas responsáveis pela associação é percebida como tanto mais importante quanto a inevitável diversidade dos testemunhos corre sempre o risco de ser percebida como prova da inautenticidade de todos os fatos relatados. Dentro da preocupação com a imagem que a associação passa de si mesma e da historia que é sua razão de ser, ou seja, a memória de seus deportados, é preciso portanto escolher testemunhas sóbrias e confiáveis aos olhos dos dirigentes, e evitar que "mitômanos que nós também temos" tomem publicamente a palavra.25
Esse trabalho de controle da imagem da associação implica uma oposição forte entre o "subjetivo" e o "objetivo", entre a reconstrução de fatos e as reações e sentimentos pessoais. A escolha das testemunhas feita pelas responsáveis pela associação é percebida como tanto mais importante quanto a inevitável diversidade dos testemunhos corre sempre o risco de ser percebida como prova da inautenticidade de todos os fatos relatados. Dentro da preocupação com a imagem que a associação passa de si mesma e da historia que é sua razão de ser, ou seja, a memória de seus deportados, é preciso portanto escolher testemunhas sóbrias e confiáveis aos olhos dos dirigentes, e evitar que "mitômanos que nós também temos" tomem publicamente a palavra.25
Se o controle da memória se estende aqui à escolha de
testemunhas autorizadas, ele é efetuado nas organizações mais formais pelo
acesso dos pesquisadores aos arquivos e pelo emprego de "historiadores da
casa". Além de uma produção de discursos organizados em torno de
acontecimentos e de grandes personagens, os rastros desse trabalho de
enquadramento são os objetos materiais: monumentos, museus, bibliotecas etc.26
A memória é assim guardada e solidificada nas pedras: as pirâmides, os
vestígios arqueológicos, as catedrais da Idade Média, os grandes teatros, as
óperas da época burguesa do século XIX e, atualmente, os edifícios dos grandes
bancos.
Quando vemos esses pontos de referência de uma época longínqua, freqüentemente os integramos em nossos próprios sentimentos de filiação e de origem, de modo que certos elementos são progressivamente integrados num fundo cultural comum a toda a humanidade. Nesse sentido, não podemos nós todos dizer que descendemos dos gregos e dos romanos, dos egípcios, em suma, de todas as culturas que, mesmo tendo desaparecido, estão de alguma forma à disposição de todos nós? O que aliás não impede que aqueles que vivem nos locais dessas heranças extraiam disso um orgulho especial.
Quando vemos esses pontos de referência de uma época longínqua, freqüentemente os integramos em nossos próprios sentimentos de filiação e de origem, de modo que certos elementos são progressivamente integrados num fundo cultural comum a toda a humanidade. Nesse sentido, não podemos nós todos dizer que descendemos dos gregos e dos romanos, dos egípcios, em suma, de todas as culturas que, mesmo tendo desaparecido, estão de alguma forma à disposição de todos nós? O que aliás não impede que aqueles que vivem nos locais dessas heranças extraiam disso um orgulho especial.
Nas lembranças mais próximas, aquelas de que guardamos
recordações pessoais, os pontos de referência geralmente apresentados nas
discussões são, como mostrou Dominique Veillon, de ordem sensorial: o barulho,
os cheiros, as cores. Em relação ao desembarque da Normandia e à libertação da
França, os habitantes de Caen ou de Saint-Lô, situadas no centro das batalhas,
não atribuem um lugar central em suas recordações à data do acontecimento,
lembrada em inúmeras publicações e comemorações - o 6 de junho de 1944 -, e sim
aos roncos dos aviões, explosões, barulho de vidros quebrados, gritos de
terror, choro de crianças.
Assim também com os cheiros: dos explosivos, de enxofre, de
fósforo, de poeira ou de queimado, registrados com precisão.27 Ainda que seja
tecnicamente difícil ou impossível captar todas essas lembranças em objetos de memória
confeccionados hoje, o filme é o melhor suporte para fazê-lo: donde seu papel
crescente na formação e reorganização, e portanto no enquadramento da memória.
Ele se dirige não apenas às capacidades cognitivas, mas capta as emoções. Basta
pensar no impacto do filme Holocausto, que, apesar de todas as suas
fraquezas, permitiu captar a atenção e as emoções, suscitar questões e assim
forçar uma melhor compreensão desse acontecimento trágico em programas de
ensino e pesquisa e, indiretamente, na memória coletiva. A obra monumental de
Lanzinann, Shoah, sob todos os aspectos fora de comparação com o filme
de grande público Holocausto, quer impedir o esquecimento pelo
testemunho do insustentável.
O filme-testemunho e documentário tornou-se um instrumento
poderoso para os rearranjos sucessivos da memória coletiva e, através da
televisão, da memória nacional. Assim, os filmes Le chagrin et la
pitié e depois Français si' vous saviez desempenharam um papel-chave
na mudança de apreciação do período de Vichy por parte da opinião pública
francesa, donde as controvérsias que esses filmes suscitaram e sua proibição na
televisão durante longos anos.28
Vê-se que as memórias coletivas impostas e defendidas por um
trabalho especializado de enquadramento, sem serem o único fator aglutinador,
são certamente um ingrediente importante para a perenidade do tecido social e
das estruturas institucionais de uma sociedade. Assim, o denominador comum de
todas essas memórias, mas também as tensões entre elas, intervêm na definição
do consenso social e dos conflitos num determinado momento conjuntural. Mas nenhum
grupo social, nenhuma instituição, por mais estáveis e sólidos que possam
parecer, têm sua perenidade assegurada. Sua memória, contudo, pode sobreviver a
seu desaparecimento, assumindo em geral a forma de um mito que, por não poder
se ancorar na realidade política do momento, alimenta-se de referências
culturais, literárias ou religiosas. O passado longínquo pode então se tornar
promessa de futuro e, às vezes, desafio lançado à ordem estabelecida.
Observou-se a existência numa sociedade de memórias
coletivas tão numerosas quanto as unidades que compõem a sociedade. Quando elas
se integram bem na memória nacional dominante, sua coexistência não coloca
problemas, ao contrário das memórias subterrâneas discutidas acima. Fora dos
momentos de crise, estas últimas são difíceis de localizar e exigem que se
recorra ao instrumento da história oral. Indivíduos e certos grupos podem
teimar em venerar justamente aquilo que os enquadradores de uma memória
coletiva em um nível mais global se esforçam por minimizar ou eliminar.
Se a análise do trabalho de enquadramento de seus agentes e seus traços materiais é uma chave para estudar, de cima para baixo, como as memórias coletivas são construídas, desconstruídas e reconstruídas, o procedimento inverso, aquele que, com os instrumentos da história oral, parte das memórias individuais, faz aparecerem os limites desse trabalho de enquadramento e, ao mesmo tempo, revela um trabalho psicológico do indivíduo que tende a controlar as feridas, as tensões e contradições entre a imagem oficial do passado e suas lembranças pessoais.
Se a análise do trabalho de enquadramento de seus agentes e seus traços materiais é uma chave para estudar, de cima para baixo, como as memórias coletivas são construídas, desconstruídas e reconstruídas, o procedimento inverso, aquele que, com os instrumentos da história oral, parte das memórias individuais, faz aparecerem os limites desse trabalho de enquadramento e, ao mesmo tempo, revela um trabalho psicológico do indivíduo que tende a controlar as feridas, as tensões e contradições entre a imagem oficial do passado e suas lembranças pessoais.
O mal do passado
Tais dificuldades e contradições são particularmente
marcadas em países que atravessaram guerras civis num passado próximo, como a
Espanha, a Áustria ou a Grécia. Um outro exemplo muito ilustrativo são as
discussões na Alemanha sobre o fim da Segunda Guerra Mundial. Foi uma
libertação ou uma guerra perdida, ou as duas coisas ao mesmo tempo? Como
organizar a comemoração de um acontecimento que provoca tantos sentimentos
ambivalentes, perpassando não apenas todas as organizações políticas, mas
muitas vezes um mesmo indivíduo?
Do lado oposto, a vontade de esquecer os traumatismos do
passado freqüentemente surge em resposta à comemoração de acontecimentos
dilaceradores. Uma análise de conteúdo de cerca de quarenta relatos
autobiográficos de mulheres sobreviventes do campo de concentração de Auschwitz-Birkenau,
publicados em francês, inglês e alemão, e completados por entrevistas, revela
em muitos casos o desejo, simultâneo ao regresso do campo, de testemunhar e
esquecer para poder retomar uma vida "normal".29 Muitas vezes também
o silêncio das vítimas internadas oficialmente nos campos por motivos outros
que não "políticos" reflete uma necessidade de fazer boa figura
diante das representações dominantes que valorizam as vítimas da perseguição
política mais que as outras.
Assim, o fato de ter sido condenada por "vergonha racial", delito que, segundo a legislação de 1935, proibia as relações sexuais entre "arianos" e "judeus", constituiu um dos maiores obstáculos que uma das mulheres entrevistadas sentia para falar de si mesma.30 Uma pesquisa de história oral feita na Alemanha junto aos sobreviventes homossexuais dos campos comprova tragicamente o silêncio coletivo daqueles que, depois da guerra, muitas vezes temeram que a revelação das razões de seu internamento pudesse provocar denúncia, perda de emprego ou revogação de um contrato de locação.31 Compreende-se por que certas vítimas da máquina de repressão do Estado-SS - os criminosos, as prostitutas, os "associais", os vagabundos, os ciganos e os homossexuais - tenham sido conscienciosamente evitadas na maioria das "memórias enquadradas" e não tenham praticamente tido voz na historiografia.
Assim, o fato de ter sido condenada por "vergonha racial", delito que, segundo a legislação de 1935, proibia as relações sexuais entre "arianos" e "judeus", constituiu um dos maiores obstáculos que uma das mulheres entrevistadas sentia para falar de si mesma.30 Uma pesquisa de história oral feita na Alemanha junto aos sobreviventes homossexuais dos campos comprova tragicamente o silêncio coletivo daqueles que, depois da guerra, muitas vezes temeram que a revelação das razões de seu internamento pudesse provocar denúncia, perda de emprego ou revogação de um contrato de locação.31 Compreende-se por que certas vítimas da máquina de repressão do Estado-SS - os criminosos, as prostitutas, os "associais", os vagabundos, os ciganos e os homossexuais - tenham sido conscienciosamente evitadas na maioria das "memórias enquadradas" e não tenham praticamente tido voz na historiografia.
Pelo fato de a repressão de que são objeto ser aceita há
muito tempo, a história oficial evitou também durante muito tempo submeter a
intensificação assassina de sua repressão sob o nazismo a uma análise
científica.
Assim como uma "memória enquadrada", uma história
de vida colhida por meio da entrevista oral, esse resumo condensado de uma
história social individual, é também suscetível de ser apresentada de inúmeras
maneiras em função do contexto no qual é relatada. Mas assim como no caso de
uma memória coletiva, essas variações de uma história de vida são limitadas.
Tanto no nível individual como no nível do grupo, tudo se passa como se
coerência e continuidade fossem comumente admitidas como os sinais distintivos
de uma memória crível e de um sentido de identidade assegurados.32
Em todas as entrevistas sucessivas - no caso de histórias de
vida de longa duração - em que a mesma pessoa volta várias vezes a um número
restrito de acontecimentos (seja por sua própria iniciativa, seja provocada
pelo entrevistador), esse fenômeno pode ser constatado até na entonação. A
despeito de variações importantes, encontra-se um núcleo resistente, um fio condutor,
uma espécie de lei-motivadora em cada história de vida. Essas características
de todas as histórias de vida sugerem que estas últimas devem ser consideradas
como instrumentos de reconstrução da identidade, e não apenas como relatos
factuais. Por definição reconstrução a posteriori,
a história de vida ordena acontecimentos que balizaram uma existência. Além
disso, ao contarmos nossa vida, em geral tentamos estabelecer Lima certa
coerência por meio de laços lógicos entre acontecimentos-chaves (que aparecem
então de uma forma cada vez mais solidificada e estereotipada), e de uma
continuidade, resultante da ordenação cronológica.
Através desse trabalho de reconstrução de si mesmo o
indivíduo tende a definir seu lugar social e suas relações com os outros. Pode-se
imaginar, para aqueles e aquelas cuja vida foi marcada por múltiplas rupturas e
traumatismos, a dificuldade colocada por esse trabalho de construção de uma
coerência e de uma continuidade de sua própria história. Assim como as memórias
coletivas e a ordem social que elas contribuem para constituir, a memória
individual resulta da gestão de um equilíbrio precário, de um sem-número de
contradições e de tensões.
Encontramos traços disso em nossa pesquisa sobre as mulheres sobreviventes do campo de concentração de Auschwitz-Birkenau, sobretudo entre aquelas para as quais a inexistência de um engajamento político impossibilitou conferir um sentido mais geral ao sofrimento individual. Assim, as dificuldades e bloqueios que eventualmente, surgiram ao longo de uma entrevista só raramente resultavam de brancos da memória ou de esquecimentos, mas de uma reflexão sobre a própria utilidade de falar e transmitir SCLI passado. Na ausência de toda possibilidade de se fazer compreender, o silêncio sobre si próprio - diferente do esquecimento - pode mesmo ser uma condição necessária (presumida ou real) para a manutenção da comunicação com o meio-ambiente, como no caso de uma sobrevivente judia que escolheu permanecer na Alemanha.
Encontramos traços disso em nossa pesquisa sobre as mulheres sobreviventes do campo de concentração de Auschwitz-Birkenau, sobretudo entre aquelas para as quais a inexistência de um engajamento político impossibilitou conferir um sentido mais geral ao sofrimento individual. Assim, as dificuldades e bloqueios que eventualmente, surgiram ao longo de uma entrevista só raramente resultavam de brancos da memória ou de esquecimentos, mas de uma reflexão sobre a própria utilidade de falar e transmitir SCLI passado. Na ausência de toda possibilidade de se fazer compreender, o silêncio sobre si próprio - diferente do esquecimento - pode mesmo ser uma condição necessária (presumida ou real) para a manutenção da comunicação com o meio-ambiente, como no caso de uma sobrevivente judia que escolheu permanecer na Alemanha.
Uma entrevista feita com uma deportada residente em Berlim
mostrou que um passado que permanece mudo é muitas vezes menos o produto do
esquecimento do que de um trabalho de gestão da memória segundo as
possibilidades de comunicação. Durante toda a entrevista, a significação das
palavras "alemã" e "judia" se alterou em função das
situações que apareciam no relato. Ao utilizar esses termos, essa mulher ora se
integrava, ora se excluía do grupo e das características por eles designados.
Da mesma forma, o desenrolar dessa entrevista revelou que ela havia organizado
toda a sua vida social em Berlim não em torno da possibilidade de poder falar
de sua experiência no campo, mas de uma maneira capaz de lhe proporcionar um sentimento
de segurança, ou seja, de ser compreendida sem ter que falar sobre isso.33
Esse exemplo sugere que mesmo no nível individual o trabalho
da memória é indissociável da organização social da vida. Para certas vítimas
de uma forma limite da classificação social, aquela que quis reduzi-las à
condição de "sub-homens", o silêncio, além da acomodação ao meio social,
poderia representar também uma recusa em deixar que a experiência do campo, uma
situação limite da experiência humana, fosse integrada em uma forma qualquer de
"memória enquadrada" que, por princípio, não escapa ao trabalho de
definição de fronteiras sociais. É como se esse sofrimento extremo exigisse uma
ancoragem numa memória muito geral, a da humanidade, uma memória que não dispõe
nem de porta-voz nem de pessoal de enquadramento adequado.
NOTAS:
º Esta tradução é de Dora Rocha Flaksman.
* Michael Pollak é pesquisador do Centre National de
Recherches Scientifiques - CNRS, ligado ao Institut d'Histoire du Temps Present
e ao Groupe de Sociologie Politique et Morale. Estuda as relações entre
política e ciências sociais e desenvolve atualmente uma pesquisa sobre os
sobreviventes dos campos de concentração e sobre a Aids.
1 M. Halbwachs,
La mémoire collective, Paris, PUF, 1968.
2 P. Nora, Les lieux de mémoire, Paris, Gallimard,
1985.
3 Para o conceito de violência simbólica, ver P. Bourdieu, Le
sens pratique, Paris, Minuit, 1980, p. 224. Estudos Históricos, Rio de
Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15.
4 M. Halbwachs,
op. cit., p. 12.
5 M. Pollak,
"Pour un inventaire", Cahiers de l'IHTP, n. 4 (Questions à l'histoire
orale), Paris, 1987, p. 17.
6 G.
Herberich-Marx, F. Raphael, "Les incorporés de force alsaciens. Déni, convocation et provocation de la
mémoire". Vingtième Siècle, 2, 1985, p. 83. Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15.
7 H. Carrère d'Encausse, Le malheur russe, Paris,
Fayard, 1988. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p.
3-15.
8 W. Laqueur, Jahre
aul Abruf, Stuttgart, WDV, 1983.
9 Entre todos os exemplos desse fenômeno de esquecimentos
sucessivos e de reescritas da história biográfica, um dos últimos, o do
presidente austríaco Kurt Waldheim, é particularmente expressivo.
10 G. Namer, La commémortion en France, 1944-1982,
Paris, Papyros, 1983, p. 157 e seg.; M. Pollak e N. Heinich, "Le
témoignage", Actes de la recherche en sciences sociales, 62/63,
1986, p. 3 e seg. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p.
3-15.
11 N. Lapierre, Le silence de la memóire. A la recherche
des Juifs de Plock, Paris, Plon, 1989, p. 28.
12 G.
Herberich-Marx, F. Raphael, op. cit.
13 Idem ib., p. 83 e 93.
14 Idem ib., p. 94. Estudos Históricos, Rio de Janeiro,
vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15.
15 Memórias de um mineiro loreno colhidas por Jean Hurtel,
citadas em G. Herberich-Marx, F. Raphael, op. cit.
16 Ver Ph.
Joutard, Ces voix qui nous viennent du passé, Paris, Hachette, 1983.
17 C.
Olievenstein, Les non-dits de l'émotion, Paris, Odile Jacob, 1988.
18 Idem ib., p. 57. Estudos Históricos, Rio de Janeiro,
vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15.
19 D. Veillon, "La Seconde Guerre Mondiale à travers
les sources orales", Cahiers de l'IHTP, n. 4 (Questions à l'histoire
orale), 1987, p. 53 e seg.
20 H. Rousso,
"Vichy, le grand fossé", Vingtième Siècle, 5, 1985, p. 73.
21 O trabalho político é sem dúvida a expressão mais visível
desse trabalho de enquadramento da memória: P. Bourdieu, "La
représentation politique", Actes de la recherche en sciences sociales,
36/37, 1981, p. 3 e seg.
22 L. Boltanski, Les économies de la grandeur,
Paris, PUF, 1987, p. 14 e seg.
23 D. Veillon, op. cit.
24 H. Rousso, Le syndrome de Vichy, Paris, Le Seuil,
1987.
25 M. Pollak e N. Heinich, "Le témoignage", Actes
de la recherche en sciences sociales, 62/63, 1986, p. 13. Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15.
26 G. Namer, Mémoire et société, Paris, Méridiens/Klincksiek,
1987, analisa essa função aplicada às bibliotecas, e F. Raphael e G.
Herberich-Marx analisam os museus nessa mesma perspectiva: "Le musée,
provocation de La mémoire", Ethnologie française, 17, 1, 1987, p.
87 e seg.
27 D. Veillon, op. cit.
28 A análise desses exemplos encontra-se em H. Rousso, op.
cit. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15.
29 M. Pollak
e N. Heinich, op. cit.
30 G. Botz, M. Pollak, "Sui-vivre dans un camp de
concentration", Actes de la recherche en sciences sociales, 41, 1982,
p. 3 e seg.
31 R. Lautmann,
Der Zwang zur Tugend, Frankfurt, Suhrkamp, 1984, p, 156 e seg. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p.
3-15.
32 M. Pollak, "Encadrement et silence: le travail de la
mémoire", Pénélope, 12, 1985, p. 37. Estudos Históricos, Rio de
Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15.
33 M. Pollak, "La gestion de l'indicible", Actes
de la recherche en sciences sociales, 62/63, 1986, p. 30 e seg.
Fonte:
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15.
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