terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Bem-vindo a Utopia

Já imaginou um lugar onde as pessoas trabalhariam poucas horas por dia, dedicariam-se aos estudos, as artes e ao lazer. Um lugar, sem corrupção, sem guerras, sem fome, sem desastres naturais iminentes. Um lugar onde todos teriam sua própria casa, seu emprego, teriam acesso a educação e a um sistema de saúde de boa qualidade. Um lugar onde a propriedade da terra fosse coletiva?

Um lugar, onde as pessoas seriam cultas, gentis, alegres, caridosas. Um lugar onde o dinheiro não vale-se nada, onde joias e ouro fossem apenas enfeites? Um lugar onde as cidades fossem belas e verdejantes, s ruas limpas e o ar puro? Um lugar longe dos males da humanidade? Esse lugar não é o Paraíso, ele fica na Terra. Bem-vindo a Utopia.

A vida de um santo

Em 1478, nasceu em Londres, Tomás Moro (More em inglês, Morus em latim). Era filho de uma família tradicional, honrada, culta e devota, mas sem grande influência. Seu pai era John Moro, era um juiz, que fora agraciado com o titulo de cavaleiro "Sir". Seu pai era um homem culto e de visão ampla, mesmo sendo um fiel católico, deu a melhor educação para seus filhos e filhas na época. Tomás e seus irmãos, estudaram latim, grego, lógica, astronomia, matemática, literatura, filosofia, história, etc. Moro, posteriormente passou a seguir os passos do pai e se tornou advogado, passando a exercer alguns cargos no Estado. Casou-se duas vezes, tendo vários filhos, sendo que a primeira esposa havia falecido. Era um bom marido e pai de família e um grande amigo e distinto trabalhador. Atuou por alguns anos como professor universitário, em 1504, tornou-se membro da Câmara dos Comuns, chegando a ser presidente da mesma. Tornou-se em 1510 xerife de Londres e juiz da Comissão de Paz. 

Aos 42 anos, fora convidado para fazer parte da Corte de Henrique VIII, a quem lhe prestou serviços de conselheiro, advogado, embaixador, e outros ligados as leis e ao direito. Recebeu o titulo de Cavaleiro, assim como seu pai. Recebeu novos cargos durante sua estadia na Corte, chegando a se tornar Lord Chanceller (equivalente hoje ao primeiro-ministro britânico). 

Moro, também fora escritor, jurista e filósofo. Escreveu várias obras acerca da jurisprudência de seu tempo, contudo, no campo da filosofia era um humanista aberto. Era a favor das ideias humanistas, embora fosse um católico devoto. Era muito amigo do teólogo, filósofo e padre Erasmo de Roterdão (1466-1536), conhecido por ter escrito a polêmica obra Elogio da Loucura (1511), a qual fora dedicada a sua pessoa.

A vida e a carreira de Moro acabou repentinamente em 1534. Nesse ano, Henrique VIII, homem impulsivo, prepotente e arrogante, queria pedir o divórcio de sua primeira esposa, Catarina de Aragão, a qual não lhe havia dado nenhum filho e filha desde que estavam casados.

Rei Henrique VIII da Inglaterra (1491-1547).
Henrique queria se divorciar de sua esposa, para se casar com uma de suas amantes, Ana Bolena, irmã de Maria Bolena. Ambas foram amantes do rei, e nesse caso, Maria havia lhe dado um filho bastardo. Contudo, para conseguir o divórcio nessa época, o rei tinha que recorrer ao papa, na época Clemente VII, o qual era a única autoridade que detinha o direito e o poder de anular um casamento. Porém, o papa, não aceitou que Henrique se divorcia-se e se casa-se com sua amante descaradamente. Henrique revoltado com a renúncia do papa, decidiu realizar um ato ousado, romper com a Igreja.

Em 1533, ele enviou uma carta ao papa revelando sua proposta ousada de rompimento. O papa o excomungou imediatamente. Mesmo assim, o rei decretou oficialmente o rompimento com a Igreja e em 1534 fundou sua própria Igreja, a Igreja Anglicana, tornado-se o novo líder da nova igreja. Assim, ele como chefe supremo de sua Igreja, decretou seu divórcio e casou-se com Ana Bolena. Ainda no ano de 1534, Henrique cobrou de toda a Corte, o juramento e reconhecimento de sua pessoa como chefe da nova Igreja.

Tomás Moro negou-se a reconhecer a nova Igreja, desaprovou o rompimento com Roma, e negou a ver o rei como chefe religioso. Henrique indignado, decretou a prisão de Moro, e o sentenciou a morte. Moro passou os meses seguintes, preso na Torre de Londres, até que em 6 de julho de 1535, fora decapitado aos 57 anos como traidor. O povo inglês viu tal ato, como uma questão de vingança e rixa pessoal do rei com o ex-Lord Chanceller. Moro, fora canonizado em 1935 pelo papa Pio XISão Tomás Moro, é padroeiro dos juristas, advogados, estadistas, políticos, da família, dos padrastos, dos viúvos, etc. 


Construindo uma utopia

"UTOPIA s. f. (Do gr. ou, não + topos, lugar.) 1. País imaginário (idealizado por Thomas More em seu livro homônimo) onde um povo, subordinado a um governo justo e igualitário, leva uma vida equilibrada e feliz. - 2. P. ext. Concepção imaginária de um governo ideal: situar a felicidade em uma terra de utopia. - 3. P. ext. Projeto de realização impossível: quimera; fantasia: Esta viagem é uma utopia!" (Grande Enciclopédia Larousse Cultural, v. 24, São Paulo, Nova Cultural, p. 5856).

Entre os anos de 1515 e 1516, Moro dedicou-se a escrever a sua mais famosa e conhecida obra na História, A Utopia, ou Tratado da melhor forma de governo, originalmente escrito em latim sob o titulo "De Optimo Reipublicae Statu decque Nova Insula Utopia". O livro fora lançado ainda em 1516, mas só fora traduzido para o inglês e outras línguas após 1551. 


Capa da edição de 1518 de A Utopia.
Nessa obra de caráter filosófico e teórico politico, Moro não apenas criou o neologismo utopia (literalmente "lugar nenhum"), como também forjou vários significados para o termo que criara, e ao mesmo tempo, sua idealização de um Estado "perfeito". O qual fazia uma crítica direta as monarquias europeias e seus governantes. Moro criticava a autoridade absolutista dos reis, a tiranias dos senhores, a miséria social, a descriminação social, a desigualdade social, a falta de moral e ética pelos governantes, a ganância e a cobiça por riquezas, a violência, etc. 

Em Utopia, ele tentou mostrar um país que tivesse descoberto a solução para esses problemas, uma ilha chamada Utopia, onde tudo isso era real, e estava protegida pelas águas dos mares, dos males que corrompiam o mundo.

"Essa obra descreve um Estado imaginário sem propriedade privada, nem dinheiro, preocupado com a felicidade coletiva e a organização da produção, mas de fundamento religioso". (NEVES, 2009, p. 8).

Moro baseou-se na República de Platão, em seu livro de Leis e em Timeu e Critias, ambas falam sobre a natureza, o universo, e falam sobre uma avançada e poderosa civilização localizada numa ilha chamada Atlântida. O trabalho de Moro, influenciou Francis Bacon a escrever A Nova Atlântida (1527), obra incompleta, já que o autor acabou falecendo um ano antes, sendo uma publicação póstuma; e influenciou Tommaso Companella a escrever A Cidade do Sol em 1602, mas apenas publicada trinta anos depois. Depois deles, outros autores publicaram obras de caráter utópico, até chegarem aos socialistas ditos utópicos do século XIX, como Saint-Simon, Fourier e Proudhon

Utopia deu origem ao socialismo econômico, embasou o chamado socialismo utópico e até mesmo o comunismo desenvolvido principalmente por Marx, Engels, Lenin e outros. 

O livro a Utopia é dividido em duas partes, na primeira, Moro narra que viajou com um amigo, chamado Cuthbert Tunstall, em missão diplomática a pedido do rei Henrique VIII com destino a cidade da Antuérpia, localizada na região de Flandres na Bélgica. Em sua estadia na Antuérpia, Moro e Tunstall foram auxiliados por Pierre Gilles, o qual fora o editor da primeira edição deste livro. De fato, Moro utilizou o ensejo de sua viagem à Antuérpia, como base para iniciar seu livro. Na história, ele conta que Pierre lhe apresentou um velho navegador de nome Rafael Hitlodeu, o qual narrou aos três as maravilhas do país chamado Utopia, a quem ele visitou há muito tempo. 


Gravura retratando a conversa entre Tunstall, Hitlodeu, Morus e Gilles.
Na primeira parte do livro, os quatro conversam entre si, sobre problemas da realidade, da política, da economia, da sociedade e da religião na Europa da época. Depois de falarem sobre o presente e o passado, e até mesmo de falarem sobre filosofia dos antigos e medieval, Hitlodeu, acabou decidindo lhes contar o que viu em Utopia. Assim, a segunda parte do livro, a qual é a mais extensa, diz respeito a descrição do país. 


A ilha de Utopia

GEOGRAFIA

"A ilha de Utopia, em sua parte média, que é a mais larga, estende-se por duzentas milhas, diminuindo depois progressiva e simetricamente para terminar em ponta nas duas extremidades. Estas, distantes uma da outra em quinhentas milhas numa linha traçada a compasso, dão à ilha o aspecto de um crescente de lua. Um braço de mar de cerca de onze milhas separa as duas pontas. Embora se comunique com o mar aberto, o golfo, protegido dos ventos por dois promontórios, assemelha-se mais a um grande lago de águas clamas que a um mar agitado... Mas a entrada do porto é perigosa, por causa dos bancos de areia, de um lado, e dos recifes, de outro... Os habitantes do país são os únicos a conhecer as passagens, de modo que um estrangeiro dificilmente poderia penetrar no porto sem que um nativo lhe sirva de piloto". (MORUS, 2009, p. 67).


Ilustração da primeira edição de Utopia.
Devido ao perigo de se atracar na ilha, devido a falta de portos naturais, assim, Morus, alegava a questão de que os utopianos, não viviam em total isolamento do mundo, já que os mesmos comercializavam alguns gêneros e produtos com outros povos, a fim de abastecer a ilha com gêneros e produtos que não se podiam produzir naquelas terras. Os comerciantes eram regularizados pelo Estado, e trabalhavam para o sustento e o bem comum, e não para o enriquecimento próprio, assim como vigorava no mercantilismo vigente no mundo de então. Não obstante, as dificuldades de se atracar na ilha, asseguravam a paz aos utopianos, e evitam um aumento do contato com o mundo externo.

A ilha é descrita possuindo um clima temperado, abundante em florestas, rios e terras férteis para as plantações e para a pecuária. Existem também alguns lagos e lagoas, e morros. Ao todo o país possui 54 cidades, sendo que Amaurota, localizada no centro da ilha, é considerada sua capital. 

"A ilha tem cinquenta e quatro cidades grandes e belas, idênticas pela língua, os costumes, as instituições e as leis. Todas são construídas segundo o mesmo planto e têm o mesmo aspecto, na medida em que o sítio o permite. A distância entre elas é de no mínimo vinte e quatro milhas, mas jamais é tão grande que não possa ser percorrida numa jornada de marcha". (MORUS, 2009, p. 69).


O ESTADO

Numa época em que as nações europeias eram governadas por reis, duques, condes, príncipes, onde cada um fosse em países ou pequeno Estados, eram soberanos em muitas questões. Até mesmo, as repúblicas italianas, estavam fadadas ao controle de seus líderes muitas vezes eleitos de forma corrupta, ou simplesmente realizaram golpes de Estado para tomar o poder.

Em Utopia, o país era regido por uma república, daí a forte influência da obra de Platão. Moro, conta que inicialmente Utopia não era uma ilha, mas sim uma península, chamada Abraxa, uma terra sem lei, governada por chefes bárbaros. Até que um dia, um poderoso e visionário líder vindo não se sabe de onde, chegou a estas terras ermas. Ele se chamava Utopus.

Utopus, conseguiu ganhar o apoio de algumas das tribos, e empreendeu uma guerra para se conquistar as outras. No final, ele decidiu separar Abraxa do continente. Assim, ordenou que um canal fosse escavado no istmo, e assim Abraxa se tornou uma ilha, e fora rebatizada com o nome de Utopia, tendo o conquistador se tornado seu primeiro rei. Posteriormente, a monarquia seria abolida e uma república seria constituída. 

De acordo com a cronologia apresentada, Utopus conquistou a ilha há cerca de 1760 anos partindo da época que Moro viveu. E ao longo desse tempo os costumes e as leis foram se desenvolvendo até chegarem ao estado descrito por Hitlodeu. 


O Estado utopiano se estrutura numa república com um senado e as demais magistraturas. Todos os candidatos são eleitos por um colégio especifico para cada magistratura.

"Trinta famílias elegem todo ano um magistrado, que é chamado sifogrante, na antiga língua do país, e filarco atualmente. Dez sifograntes e as famílias que dependem deles obedecem a um magistrado chamado de outrora tranibore e hoje protofilarco. Os duzentos sifograntes, enfim, após jurarem fixar sua escolha sobre o mais capaz, elegem o príncipe em sufrágio secreto, a partir de uma lista de quatro nomes designados pelo povo. Cada um dos quatro bairros da cidade propões um nome à escolha do senado. O principado é vitalício, a menos que o eleito demonstre aspirar à tirania. Os tranibores submetem-se anualmente à reeleição; seu mandato é com frequencia renovado. Todos os outros cargos são anuais". (MORUS, 2009, p. 74). 

Nesse ponto, é bem provável que Moro tenha-se baseado na estrutura da República Romana (509-27 a.C). O Senado, representa o colégio de magistratura mais alto da república, sendo que o cargo de senador era vitalício, assim como o príncipe em Utopia. Os senadores, e as demais magistraturas como cônsul, pretor, questor, tribuno, etc., eram eleitos por colégios eleitorais específicos, contando com até mesmo da participação do exército, algo que em Utopia não ocorria. Outra questão que assemelha-se é o fato de que todas as cidades do país eram divididas em quatro zonas ou quatro bairros, tendência esta vista na Roma republicana, onde a cidade se dividia em "quatro tribos".

Outro fato importante, é que com exceção da magistratura de ditador e senador em Roma, os demais cargos tinham o mandato de um ano, sendo que era possível a reeleição, não necessariamente sendo seguida pelo término do mandato. 

A estrutura do magistério de Utopia pode ser classificada da seguinte forma:
  1. Conselho Geral
  2. Senado
  3. Principado
  4. Assembleia dos tranibores
  5. Assembleia dos sifograntes
  6. Assembleia das famílias representativas
Os príncipes são responsáveis por elegerem os senadores, os quais são eleitos a cada ano. E por fim, os senadores, elegem os membros do Conselho Geral. Todas as questões políticas e de interesse público devem ser discutidas no senado ou nas assembleias, se isso não for seguido, será passível de pena capital. Assim, o Estado evita o abuso de poder e autoridade de qualquer magistério.

As questões públicas, são revindicadas pelas famílias representativas ou por algum outro cidadão que apresente um bom motivo ou uma causa justa para aquele requerimento. Assim, o processo é levado aos sifograntes que os transmitem aos tranibores, os quais são responsáveis por cuidar da resolução destas questões. Se a questão for mais séria, ela é encaminhada ao príncipe, e se por acaso for necessário ele o leva para se avaliado e julgado no senado. Qualquer mudança questionada, deve ser levada ao conhecimento do senado antes de ser aprovada ou votada, mesmo que o senado não participe dessa votação. Em último caso, se for preciso, o senado, convoca o Conselho Geral para deliberar acerca de uma questão urgente e que afete todo o país. 

"O senado tem por norma jamais discutir imediatamente uma questão que é lhe proposta, mas de adiá-la para o dia seguinte. Com isso de quer evitar improvisações que seus autores procurariam a sustentar a todo o custo para fazer prevalecer sua opinião em detrimento do Estado, deixando de lado o interesse geral em favor de seu prestígio pessoal e não requerendo reconhecer, por uma atitude intempestiva, que refletiram muito pouco, quando deveriam começar a falar menos apressadamente, , e mais sabiamente". (MORUS, 2009, p. 75). 

Os sifograntes e os de mais magistrados são isentos de trabalharem em oficios manuais, contudo, muitos deles, gastam seu tempo livre com outros afazeres de que gostam. Os sifograntes, também atuam como fiscais do Estado, assegurando que todos estejam trabalhando e estudando, que a produção de alimentos e outros gêneros estejam em ordem, e que outros fatores também estejam transcorrendo normalmente.

A CIDADE

Em Utopia existiam 54 cidades, mas com todas eram bem semelhantes uma as outras, Moro se detém em descrever apenas a cidade de Amaurota, tida como a capital. Na história, o velho navegador Rafael Hitlodeu, diz que viveu cinco anos em Amaurota, e era uma cidade bem diferente das que tinha visto em suas viagens pelo mundo, embora que ele argumenta-se que a arquitetura não era tão estranha aos olhares de quem vinha da Europa, Ásia e África. Todavia, em momento algum do livro, o narrador, no caso Hitlodeu, diz em que oceano ou mar ficava Utopia. 

"Amaurota se estende em suave inclinação sobre a encosta de uma colina. Sua forma é aproximadamente quadrada. A largura do alto da colina até o rio Anidro, é de duas milhas. O comprimento, seguindo o rio, é um pouco mais extenso". (MORUS, 2009, p. 71). 

Amaurota ficava próxima ao rio Anidro e de um riacho, utilizado para abastecer a cidade com água potável e na irrigação, enquanto que o Anidro, também era utilizado para a navegação. Em locais, onde os canais não chegavam, eram construídas cisternas para armazenar a água da chuva.
Mapa de Utopia por Ortelus, 1595. 
Mesmo Utopia sendo um país pacifico, as cidades eram muradas, para evitar um ataque surpresa. Embora não se usasse dinheiro no país, a ilha era bem rica, em metais preciosos, joias e outros recursos, daí as cidades serem muradas e fortificadas. 

"Uma muralha alta e larga, com torreões e baluartes, envolve a cidade; um fosso seco, mas profundo e largo, tornado impraticável por um cinturão de sarças espinhosas, cerca a construção de três lados; o rio ocupa o quarto". (MORUS, 2009, p. 72). 

"As ruas foram bem desenhadas, ao mesmo tempo para servir o tráfego e como obstáculo aos ventos. As construções têm boa aparência. Formam duas fileiras contínuas, constituídas pelas fachadas uma defronte à outra, junto a uma calçada de seis metros de largura. No fundo das casas, em toda a extensão da rua, acha-se um vasto jardim, limitado de todos os lados pelas fachadas posteriores. Cada casa tem duas portas, a da frente dando para a rua, a de trás para a o jardim. Elas se abrem a um toque de mão, se fecham do mesmo modo, deixando entrar quem quiser. Ali não há nada que constitua um domínio privado. Com efeito, essas casas mudam de moradores, por sorteio, a cada dez anos". (MORUS, 2009, p. 73).

Com as casas são um bem público, é dever e cada família e cidadão zelar pela estruturas das mesmas, mais do que se fossem suas de fato.

"Atualmente, cada casa tem três andares. As paredes exteriores são feitas de pedra ou de tijolos; no interior, são revestidas por argamassa. Os telhados são plano, cobertos de telhas pouco custosas, de uma composição que protege contra o fogo e as intempéries melhor que o chumbo. Os moradores se abrigam contra o vento por janelas de vidro - material muito usado na ilha -, às vezes também por uma tela fina que eles tornam transparente revestindo-a de óleo ou de resina: o que oferece a vantagem de deixar passar a luz e de deter o vento". (MORUS, 2009, p. 73-74).

Além disso, os utopianos eram conhecidos por serem hábeis jardineiros, possuindo em suas casas e cidades alguns dos mais belos jardins do mundo. Além dos jardins, eles também possuiam hortas em casa e em canteiros da cidade, onde cultivam videiras, frutas, legumes, etc. Desde a infância, os utopianos eram instruídos nas atividades agrícolas, sabendo como arar, plantar, cultivar, colher, etc., os mais diversos tipos de plantas, um costume deste povo. O qual Hitlodeu, diz em seu relato, que os utopianos são um povo bem ligado a natureza e seu trato. 

Cada cidade consta com quatro mercados, localizados um em cada zona em que se divide a cidade. Os mercados ficam na periferia das cidades, local que facilita o transporte e o armazenamento dos alimentos e dos animais, já que os mesmos são abatidos no mesmo dia, para serem vendidos. Nesse caso, é incumbência dos escravos trabalharem como açougueiros. 

Outro aspecto vigente nas cidades, é que são proibidos e não existem nenhum estabelecimento que sejam voltados para os atos indecentes e aos vícios. Não existem prostíbulos, tavernas e casas de jogos. As bebidas alcoólicas não são proibidas, mas são fornecidas com restrição. Como não existe dinheiro e propriedade privada, nos jogos não se apostam. E mesmo que não se aposte objetos mais um desafio ou prenda ao derrotado, isso é mal visto na sociedade. O jogo serve para lazer e distração, e não para o vicio, a arrogância, cobiça, desdém e humilhação de outros. Todas mulheres se ocupam da casa, do marido, dos filhos e de outros oficios, logo não tem espaço para a libertinagem, e se tentarem fazê-lo, são duramente punidas pela justiça. 

SISTEMA DE SAÚDE

Cada cidade possui quatro hospitais, os quais são bem grandes e ficam localizados fora das muralhas por dois motivos: Primeiro, para se evitar o contágio dos enfermos com os sãs; segundo, o ar do campo e a natureza são boas formas de tratamento, já que próximo aos hospitais ficam as hortas com as plantas medicinais. A medicina utopiana é bem avançada numa série de tratamentos, e o conhecimento médico dos utopianos, é de se dá inveja a outros povos. A saúde e o bem-estar são preocupações do Estado. 

"Eles cuidam dos doentes, como eu disse, com a maior solicitude e não negligenciam nada que possa contribuir para sua cura, nem em matéria de remédio nem em matéria de regime. Se alguém é acometido de uma doença incurável, procuram tornar sua vida tolerável assistindo-o, encorajando-o, recorrendo a todos os medicamentos capazes de aliviar seus sofrimentos". (MORUS, 2009, p. 114).

Para os utopianos, está bem de saúde mentalmente e fisicamente, é uma das maiores conquistas que um homem pode ter em vida e levar consigo até a morte. Os utopianos, praticam exercícios e possuem uma dieta balanceada, em contra partida, eles não praticam jejuns, ou castigos físicos se não forem para punição, ou cedem a preguiça, a gula e a luxúria.  


Um fato curioso em Utopia era que a eutanásia era permitida pelo Estado. Se um enfermo que não tivesse mais chance de cura e morreria em pouco tempo, ou viveria o resto da vida com uma terrível sequela, este poderia pedir a família que intervisse no Estado para tirar sua vida e lhe poupar do sofrimento. Um sacerdote era enviado para conversar com o doente, e confirmar sua decisão de preferir a morte, se o mesmo concordasse plenamente, ele poderia seguir dois caminhos. Ou parava de se alimentar ou pedia para ser envenenado. A eutanásia só era aplicada com o consentimento do doente e da família, mas principalmente da própria pessoa.

"Em contrapartida, quem se mata por alguma razão que não foi aprovada pelos sacerdotes e o senado não é julgado digno nem de uma sepultura nem de uma fogueira; seu corpo é lançado vergonhosamente num pântano qualquer". (MORUS, 2009, p. 115).

TRABALHO E ESTUDO

Como fora apontado anteriormente, os utopianos não trabalhavam por dinheiro ou para enriquecer, já que tudo que eles necessitavam era garantido pelo Estado. O Estado fornece a educação, a saúde, a segurança, a moradia, o lazer,  o emprego, a alimentação, a justiça, o transporte, etc. Os utopianos trabalham para manter o desenvolvimento e o funcionamento das instituições políticas e da sociedade. 

Em Utopia, existem funções exclusivamente masculinas e femininas, já que não devemos esquecer, que por mais que Utopia seja uma idealização forjada por Moro em oposição a realidade de seu tempo, tal idealização está impregnada com os valores e costumes de seu tempo. Nesse caso, uma utopia do século XVI, não seria igual a uma utopia do século XXI.

Desde cedo, os utopianos aprendem os oficios do campo, agricultura e pecuária. Na fase escolar, as crianças são levadas as fazendas nas redondezas da cidade, para conhecerem a vida e o trabalho no campo, e ao mesmo tempo são instruídas nessas atividades. Depois dos oficios do campo, quando as crianças estão mais velhas, por volta de sua adolescência (na época não se utilizava o termo adolescente, a fase entre a infância e a fase adulta, era considerada uma infância prolongada) aprendiam-se arte e oficios artesanais (tecelão, carpinteiro, pedreiro, ferreiro, etc). Tais oficios, são instruídos conjuntamente com as disciplinas escolares, línguas, matemática, geografia, história, filosofia, astronomia, "ciências",  etc. 

"E uma grande parte do povo, tanto as mulheres quanto os homens, dedica ao estudo, durante toda a sua vida, as horas que o trabalho, como dissemos, deixa livres". (MORUS, 2009, p. 96). 

Nesse caso, cada utopiano  aprende o oficio que gosta, não sendo forçado pelo Estado ou pela família. Assim, pelo fato de aprenderem a tecer e a confeccionar, então eles produziam suas próprias roupas. 

"Com efeito, cada família confecciona ela própria suas roupas, cuja forma é a mesma para toda a ilha - diferenciando-se apenas para distinguir as mulheres dos homens, casados dos solteiros -, a partir de um modelo que não varia há séculos, de aspecto agradável, bem adaptado aos movimentos do corpo e calculado para proteger igualmente do frio e do calor". (MORUS, 2009, p. 76).

Mao Tsé-tung (1893-1976), durante seu governo comunista na China entre os anos de 1949 a 1976, por algum tempo decretou que todos os chineses deveriam se vestir de forma igual, de fato isso realmente ocorreu. As pessoas usavam trajes vermelhos, cor sagrada pelos chineses desde os primórdios de sua civilização. Na realidade, o ato de se vestir de forma igual, não é uma característica do socialismo ou do comunismo, ou uma invenção de Morus, tal ato remonta desde dos tempos antigos, basta pensarmos, que no exército e no sacerdócio, as pessoas se vestem da mesma forma, havendo apenas diferença devido a hierarquia. E até mesmo nas escolas, empresas, fábricas, presídios, etc, nos vestimos iguais, usamos uniformes. 

Geralmente as crianças seguem os oficios do pais, contudo, qualquer pessoa está livre para aprender outra profissão assim como desejar. No caso das crianças, o Estado instrui que a mesma, deixe a casa dos pais, e more por algum tempo na casa de outra família, para ser instruída devidamente naquele ofício. 

O dia era dividido em 24 horas, e a semana era formada por sete dias, onde o sétimo dia, era o dia de descanso. Nos outros seis dias, as pessoas trabalhavam apenas seis horas por dia, tendo direito a duas horas de almoço, seu turno de trabalho poderia ser variado dependendo de seu oficio, mas de qualquer forma, por volta das 18h00, a maioria das atividades se encerravam e as pessoas se retiravam para o jantar e depois para seus lares. Em geral, comia-se nos refeitórios da cidade, um ou outro se retirava para comer em casa. 

"Nesse ponto, para desfazer um erro, devemos considerar atentamente uma objeção. Se todos trabalham apenas seis horas, pensarão vocês, não haverá inevitavelmente o risco de uma escassez de objetos de primeira necessidade? Longe disso: com frequência, essa curta jornada de trabalho produz não apenas em abundância, mas também em excesso, tudo que é indispensável  à manutenção e ao conforto da vida". (MORUS, 2009, p. 78). 

Só se produz o suficiente para o consumo, nesse caso, o comércio de Utopia é muito escasso, já que eles não vem em muitas vezes necessidade de comercializar com os outros países, já que conseguem suprir suas necessidades. Tal tendência pode ser comparada ao que se chama de economia planificada, onde o Estado determina o valor X de determinados produtos e gêneros das mais diversas espécies a serem produzidos em um determinado tempo Y. Tal tendência fora vista durante alguns anos na URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) e em alguns anos na China. 

"Cada um é livre para ocupar como quiser as horas compreendidas entre o trabalho, o sono e as refeições - não para desperdiçá-las nos excessos e na preguiça, mas a fim  de que todos, liberados de seus ofícios, possam se dedicar a uma boa ocupação. A maioria dedica essas horas de lazer ao estudo". (MORUS, 2009, p. 77).

As pessoas dedicam-se ao estudo das ciências, da filosofia, das artes, ou estudam outros oficios. Ou se preferirem podem aproveitar as horas livres para adiantar o trabalho ou produzir mais. A grande questão, é que com exceção dos homens de letras que tem por obrigação assistirem aulas todas as manhãs, os de mais, podem escolher o horário de seus estudos. São em muitos casos, os ditos homens de letras, que exercem as profissões de professor, magistratura e outros cargos do Estado. 

Hitlodeu diz que quando viajou para Utopia ele e um companheiro de viagem, levaram consigo alguns livros de autores gregos e latinos, como Hipócrates, Heródoto, Tucídides, Galeno, Platão, Aristóteles, Virgílio, Homero, etc. Ele fala, que os utopianos, por serem amantes do conhecimento, admiraram as obras médicas de Hipócrates e Galeno, comentaram acerca das obras dos historiadores Heródoto e Tucídides, discutiram a filosofia de Platão e Aristóteles, e declamaram versos de Virgílio e Homero. Nesse caso, Hitlodeu, diz também que os utopianos já sabiam produzir o papel e até mesmo conheciam a prensa móvel, há vários anos, antes mesmo de Gutenberg ter introduzido a prensa móvel na Europa, ainda no século XV. 

Contudo, existe uma característica peculiar na estrutura do trabalho em Utopia. A escravidão era algo tolerável e legalizado. O escravo em Utopia cuidava principalmente de algumas atividades consideradas "sujas" pelos utopianos, como trabalhar em açougues, cutelarias, realizar a limpeza das ruas, dos edifícios públicos, dos canais, etc. Isso tudo era incumbido aos escravos.

"Seus escravos não são nem prisioneiros de guerra - com exceção de soldados capturados em guerra que Utopia foi atacada - nem filhos de escravos, nenhum daqueles submetidos à servidão nos outros países. São cidadãos a quem um ato vergonhoso custou a liberdade; mais frequentemente ainda, são estrangeiros condenados à morte em seus países em consequência de um crime. Os utopianos os compram em grande número, por pouco dinheiro, muitas vezes por uma ninharia. Esses escravos são forçados ao trabalho para o resto da vida e, além disso, acorrentados, os utopianos mais duramente que os outros". (MORUS, 2009, p. 113-114).


A escravidão é um ponto um tanto controverso na obra; como se poderia haver privação de liberdade e desigualdade social em um Estado que procurava fazer o oposto? Isso é uma questão difícil de se responder. Só Morus mesmo para responder porque dessa escolha de se manter a escravidão em Utopia. Não obstante, se considerarmos o contexto da época, a escravidão era algo comum em todos os lugares do mundo, claro que em cada canto possuía suas especifidades, mas em prática, independente de se viver na Europa, na África, na Ásia e nas Américas, cada Estado legalizava e permitia a sua maneira o ato de tomar escravos e empregados para si. Nesse caso, talvez devido ao fato de isso ser uma tendência comum entre as sociedades, Morus teria considerado tal prática também comum, mesmo em Utopia. 

FAMÍLIA

As famílias são patriarcais, sendo que o cargo de chefe de família é passado do mais velho para o mais novo, contudo, se o mais velho não estiver em condições físicas e mentais para exercê-lo, é escolhido alguém mais jovem para assumir tal posição. No caso, das mulheres, quando as mesmas se casam, passam a morar na casa do marido, já que em Utopia, não há a tradição dos noivos se mudarem para sua própria casa. Pelo fato das casas possuírem até três andares, possuem espaço suficiente para abrigar uma família com mais de dez indivíduos. 

Nesse caso, existem certas normas acerca da quantidade de habitantes por cidade. Em geral, cada cidade possuem cerca de seis mil famílias, perfazendo uma população entre os 40 a 60 mil habitantes, daí, o Estado procura manter esse valor, evitando que aja uma superpopulação ou um déficit populacional. Se for o caso, famílias podem ser remanejadas para outras cidades, a fim de equilibrar a falta ou o excesso. Isso vale tanto para a população urbana quanto para a população do campo, que mesmo as casas sendo menores, a cada dois anos, uma família do campo troca de casa com uma família da cidade.

São os homens os responsáveis por fazerem as compras. O chefe de família ou vai pessoalmente a um dos quatro mercados existente em cada uma das cidades, acompanhados de outros membros masculinos da família, para carregar as compras. Como não existe dinheiro, então, simplesmente ele escolhe os alimentos que necessita e a quantidade suficiente para alimentar sua família naquele dia. 

As pessoas ou fazem suas refeições em casa, ou fazem suas refeições nos refeitórios públicos da cidade, onde os sifograntes fiscalizavam os locais que são construídos para atender cerca de trinta famílias, algo entre 200 a 300 pessoas por refeitório. Antes de se preparar a refeição nos refeitórios, os empregados destes vão para os mercados fazer as compras de acordo com o número de pessoas que vão almoçar ou jantar naquele dia, fazendo uma média para isso. Em geral, as pessoas comem nos refeitórios, porque a comida é melhor e feita em abundância, além disso aqueles que não comem nos refeitórios, as vezes são mal vistos na sociedade. 

"O almoço é bastante curto, o jantar prolonga-se um pouco mais, pois o primeiro é seguido por um período de trabalho; o segundo conduz apenas ao sono e ao repouso da noite, que eles julgam a melhor maneira de favorecer uma boa digestão. Nenhuma refeição transcorre sem música, e a sobremesa jamais é privada de guloseimas. Perfumes são queimados e espalhados no ar, nada se negligenciando do que possa agradar os comensais. Eles tendem a pensar que nenhum prazer é repreensível, contanto que não cause aborrecimento a ninguém". (MORUS, 2009, p. 89). 

"Eis como se vive na cidade. Mas no campo, onde as habitações são muito disseminadas, come-se em casa. Nada falta ao abastecimento de uma família rural, pois são elas que fornecem tudo de que se alimentam os citadinos". (MORUS, 2009, p. 88).


CASAMENTO

O casamento só ocorre após os vinte anos, vinte seis para os homens e vinte e dois para as mulheres. Antes disso, até mesmo o namoro era algo um tanto complicado, já que os amantes não deviam exibir seus afetos publicamente (andar de mãos dadas, beijar, abraçar, etc), se isso acontece-se, eles eram passíveis de punição e podiam ser proibidos de se casar por algum tempo, até que o príncipe desse permissão para isso. Ao mesmo tempo quando isso acontecia, era uma desonra e infâmia para a família de ambos os amantes, os quais eram acusados de não saber educar os filhos e deixá-los livres em demasia.

"A escolha de um cônjuge comporta entre eles um costume absurdo a nossos olhos e dos de mais risíveis, mas que eles observam com maior seriedade. A mulher, seja virgem ou viúva é mostrada nua ao pretendente por uma mulher honesta; um homem igualmente digno de confiança mostra à jovem o pretendente nu. Rimos disso como de uma extravagância; eles, ao contrário, se espantam com a insigne insensatez dos outros povos que recusam comprar um pangaré sem tomar a precaução de despi-lo retirando-lhe a sela e os arreios, por receio de um defeito oculto por baixo, mas que, quando se trata de tomar uma esposa, fonte de delícias ou de desgosto para a vida inteira, demonstram tanta incúria que julgam toda a pessoa a partir de uma superfície não maior que a palma da mão, apenas o rosto sendo visível, o resto desaparecendo sob as roupas". (MORUS, 2009, p. 116). 

Em A Nova Atlântida, Francis Bacon também utiliza o mesmo principio na escolha dos noivos, porém o processo se dá de forma diferente, mas mantêm a questão de se avaliar os corpos desnudos destes. 

Não obstante, em Utopia, o casamento era monogâmico e os votos eram feitos para a vida toda, embora que o divórcio fosse permitido pelo Estado, mas sob certas condições. Uma viúva ou um viúvo poderia casar-se novamente; em caso de adultério ou de um comportamento intolerável, a esposa ou o marido poderia recorrer ao Estado e pedir a anulação do casamento. No caso, do adultério o culpado, era punido de forma vergonhosa perante a sociedade, era proibido de se casar pelo resto da vida, e se a traição fosse muito grave e o culpado também nega-se a cumprir as punições, poderia receber a pena de morte. 


Gravura sobre madeira, retratando a ilha de Utopia. No lado esquerdo o homem que aponta para a ilha e Rafael Hitlodeu. Ambrosius Holbein, 1518.
ECONOMIA

Toda a produção alimentícia no país era disciplinadamente fiscalizada e controlada. Se faltasse algum gênero em alguma das cidades, se providenciava imediatamente o carregamento deste de outro canto da ilha para abastecer aquela localidade. Os fiscais, pesavam toda a produção e em caso de estiagens ou pragas que afetassem as colheitas e os rebanhos, era se realizado um controle mais rígido na distribuição dos alimentos, de forma que não houvesse desigualdade em sua distribuição, onde cada refeitório em cada cidade recebesse o necessário para suprir seus habitantes. 

"Assim eles garantem seu próprio abastecimento que só consideram seguro após terem calculado as necessidades de dois anos, levando em conta a incerteza da próxima colheita. Feito isso, exportam para o estrangeiro uma grande parte de seus excedentes: cereais, mel, lã, madeira, tecidos escarlates e púrpura, peles, cera, banha, couro e também gado. Um sétimo de todas essas mercadorias é ada de presente aos pobres do país adquirente; o resto é vendido a um preço razoável. O comércio lhes permite fazer entrar em Utopia os produtos que faltam - pouca coisa além do ferro - e, além disso, uma grande quantidade de ouro e prata. Como eles praticam esse intercâmbio há muito tempo, não se poderia imaginar o valor do tesouro que acumularam". (MORUS, 2009, p. 90).

O comércio era feito a base do escambo (troca de mercadorias), embora que eles usassem nesse caso moedas de prata ou ouro para fazer as negociações, mas isso apenas fora da ilha, já que dentro da ilha, não existia comércio. 

"Eles próprios não fazem uso algum de moeda. Conservam-na para um acontecimento que pode sobrevir, mas que pode também jamais ocorrer. Esse ouro e essa prata eles as conservam sem atribuir-lhes mais valor que o que comporta sua natureza própria". (MORUS, 2009, p. 92).

Em Utopia, o ferro é considerado mais valioso que o ouro e a prata, já que o mesmo é essencial para a fabricação de diversos utensílios, ferramentas e objetos, necessários para vida.

"Ao mesmo tempo comem e bebem em utensílios de terracota ou de vidro, de forma elegante, mas sem valor, eles fazem de ouro e de prata, tanto para as casas privadas quanto para os salões comuns, vasos noturnos e recipientes destinados aos usos mais imundos. Também fazem com eles correntes e pesadas peais para prender seus escravos. Enfim, aqueles que uma falta grave tornou infames levam nas orelhas e nos dedos anéis de ouro, uma corrente de ouro no pescoço, um diadema de ouro na cabeça. Todos os meios lhe servem assim para degradas o ouro e a prata, de tal maneira que esses metais, que e outros lugares só se deixam arrancar tão dolorosamente quanto as entranhas, em Utopia, se uma circunstância exigisse seu confisco total, não fariam ninguém julgar-se empobrecido de um vintém". (MORUS, 2009, p. 93).

Além do ouro e da prata, jóias como pérolas, diamantes e granadas, eram vistos como enfeites para crianças, as quais usavam colares, diademas, e anéis com tais pedrarias, nas suas brincadeiras, mas depois que cresciam, se sentiam envergonhadas de usar "aquelas coisas de criança". 

Essa visão negativa e de vexame que Moro concedeu as riquezas é uma critica direta a cobiça, a ganância e a soberba da sociedade, onde em muitos casos, as pessoas, homens e mulheres se valiam dos meios mais baixos e vis para conseguir um punhado desses metais e jóias, daí Morus considerar tais atos tão mesquinhos, torpes e tolos, a ponto de que os criminosos eram punidos tendo que carregar toda essa riqueza, daí que em alguns ditados se diz que "a ganância nos aprisiona". 

Sobre isso há um ponto bem engraçado no livro. Hitodleu, diz que enquanto vivia em Amaurota, testemunhou a chegada de três embaixadores e seu cortejo de cem funcionários, tais embaixadores vieram de uma nação próxima, trazer saudações e propostas, estes vieram usando suas roupas mais caras e portando muitas jóias de ouro, prata, diamante e outras gemas. Enquanto estes seguiam com seus trajes soberbamente até o senado, a população achava graça em vê-los vestido daquela forma, já que para os utopianos, usar jóias era coisa ou de criança ou uma forma de punição como já ponderada. 

RELIGIÃO

"Suas religiões variam de uma cidade a oura, e mesmo no interior de uma única cidade. Uns adoram o sol, outros a lua ou algum planeta. Há também os que veneram como deus supremo um homem que se destacou em vida por sua coragem e por sua glória. A maioria, porém, e sobretudo os mais sábios, rejeitam essas crenças, mas reconhecem um deus único, desconhecido, eterno, incomensurável, impenetrável, inacessível à razão humana, espalhado em nosso universo à maneira, não de um corpo, mas de uma força. Eles o nomeiam Pai e atribuem apenas a ele as origens, o crescimento, os progressos, as vicissitudes, o declínio de todas as coisas. Apenas a ele concedem honras divinas". (MORUS, 2009, p. 134-135).

Não obstante, este deus supremo, também é conhecido pelo nome de Mitra, na língua de Utopia. Nesse caso, Mitra era o nome de um deus cultuado entre os persas. O seu culto originou o mitraísmo, o qual fora bem difundido entre o Império Romano, principalmente entre o exército e a plebe, embora que alguns patricios e até mesmo imperadores adotassem o culto a Mitra, o qual era comparado ao culto do Sol Invictus, onde o deus personificava o astro rei. 

A liberdade de culto fora algo instaurado por Utopus quando este se tornou rei da ilha. Quando ele chegou lá, as tribos bárbaras cultuavam cada uma suas divindades. Utopus não queria impor uma nova fé a força, gerando novas desavenças, então permitiu a liberdade de culto, contudo ele não aceitava que ninguém desacreditasse na imortalidade da alma, a providência e em algum deus. 

Nesse caso, Rafael Hitlodeu, diz que em Utopia existiam alguns cristãos em pouco número. Estes passaram a conhecer o cristianismo e aceitarem Jesus Cristo como seu salvador, depois de ouvirem as histórias sobre o mesmo, transmitidas por viajantes.

"Os augúrios e outros meios supersticiosos de adivinhação, que gozam de tanto crédito entre outros povos, são por ele desprezados e ridicularizados. Ms os milagres que se produzem sem a intervenção de causas naturais lhe inspiram respeito, como sendo obras de um deus e provas de sua presença". (MORUS, 2009, p. 140). 

Os sacerdotes eram chamados de butrescos, que equivaleria mais a palavra "religioso" do que "sacerdote" em si. Os sacerdotes possuíam o direito ao casamento e a constituírem família, embora que alguns preferissem o celibato. Eles eram eleitos por um colégio de sacerdotes, o voto era secreto. Em cada cidade havia treze sacerdotes, cada um responsável por um dos treze templos. Os sacerdotes possuíam funcionários subordinados ao seu cargo, e em caso de guerra, sete destes seguiam junto ao exército, sendo substituídos pelos seus suplentes. Quando um sacerdote morria, o suplente assumia o cargo, até que uma nova eleição escolhesse o substituto para este.

"Sua tarefa é exortar e advertir; mas compete apenas ao príncipe e aos magistrados tomar medidas para punir os culpados. Contudo, os sacerdotes excluem das cerimônias religiosas os que se acham endurecidos no mal. Nenhum outro castigo inspira tão grande terror: ele marca de infâmia e torutra a consciência com uma angústia sagrada". (MORUS, 2009, p. 143).

Os sacerdotes também atuam como professores, educando as crianças e os adolescentes nas escolas, com instrução moral, religiosa, além de ensiná-las a ler e escrever. As mulheres também participam do sacerdócio, embora sejam raras aquelas que assumem algum cargo importante. Em geral, as que assumem este cargo são viúvas que decidiram adotar o sacerdócio após a morte do marido. Assim, como os homens, elas também podiam casar ou escolher a vida de celibato. 

"Seus sacerdotes são estimados tanto no países estrangeiros quanto na própria Utopia. Prova-o um costume que, de resto, me parece estar na origem dessa consideração. No momento de um combate decisivo, os sacerdotes se ajoelham a uma certa distância, cobertos de seus ornamentos sagrados. Com as mãos erguidas ao céu, pedem primeiro a paz para todos, depois a vitória para seu povo, e enfim que ela não seja sangrenta para nenhum dos lados". (MORUS, 2009, p. 144).

O santuários e templos são construções imponentes e belas, tendo espaço para abrigar muitos fiéis, já que o número destes por cidade é pouco, apenas treze para cada cidade. Não obstante, nestes recintos, não há a imagem de nenhuma divindade, dessa forma, independente do deus ou deusa que a pessoa crê, ele pode realizar sua oração ou oferenda em qualquer santuário ou templo, já que os mesmos são dedicados a todas as divindades cultuadas na ilha. 

LEGISLAÇÃO

Em Utopia as leis são poucas, diretas e fáceis de se compreender, logo qualquer cidadão é ciente de seus deveres e direitos. Não existem leis que determinem de antemão a punição para determinados crimes, nesse caso, o juiz confere uma pena baseado no crime cometido. Contudo, os grandes crimes são geralmente punidos com a escravidão. Além de ser uma forma humilhante, mas ao mesmo tempo se faz produtiva para o Estado, já que o escravo trabalha mais duro que o cidadão comum. Não obstante, dependendo do culpado, ele depois de algum tempo pode ser libertado de sua escravidão, mas em caso de proclamar a rebeldia e a revolta, ele pode ser morto. 

"Suas leis são pouco numerosas: não são necessárias muitas com tal Constituição. Eles desaprovam vivamente em outros povos a quantidade de volumes de difícil interpretação, pois consideram uma suprema iniquidade submeter os homens a leis numerosas demais para que alguém possa lê-las de uma ponta a outra, e obscuras demais para que um leigo possa compreendê-las". (MORUS, 2009, p. 120).

Zombar de alguma pessoa deficiente é considerado uma vergonha e a pessoa que o faz isso torna-se mal quisto na sociedade. O mesmo vale para os preguiçosos e desleixados, que são vistos com más olhares. 

"Não contentes de tornar o crime temível pelos castigos que lhe infligem, os utopianos incitam às belas ações mediante honraria e recompensas. Erguem nas praças públicas estátuas para os homens eminentes que foram dignos do Estado, ao mesmo tempo para perpetuar a lembrança de suas obras e para que a glória dos antepassados sirva de estímulo a seus descendentes para fazer o bem". (MORUS, 2009, p. 119). 

Aqueles que tentam conseguir algum cargo público ou promoção para subir de cargo, se valendo de intrigas e outros meios, sendo descoberto é imediatamente destituído do cargo e proibido de assumir qualquer outro cargo no governo até o fim da vida. A família é desonrada e humilhada publicamente. 

Os utopianos não usam advogados nos julgamentos, cada réu e acusador é incumbido a si mesmo de apresentar suas provas de defesa e acusação, assim cada pessoa irá ponderar suas palavras e argumentos, e não terá outra pessoa "mais ardilosa" para fazê-lo. Isso, segundo Moro, facilita a solução dos julgamentos.

Não obstante, os utopianos costumam de vez em quando enviar um magistrado para atuar como embaixador ou assumir algum cargo em um país amigo, quando estes o solicitam para manter a ordem ou recuperar a ordem. Como os utopianos possuem a fama de bons governantes, devotos e justos ao trabalho, seus magistrados são solicitados em muitos lugares.

GUERRA

Como já fora visto ao longo deste texto, em Utopia não existia dinheiro, eles não usavam nenhum tipo de objeto como forma de dinheiro. As jóias e os metais preciosos eram utilizados para enfeite ou para comprar a guerra ou a paz com outros povos.

"Eles detestam a guerra em grau supremo, como coisa absolutamente bestial - ainda que nenhum animal feroz se entregue a isso de maneira tão permanente quanto o homem -, e, contrariamente à opinião de quase todos os povos, consideram que nada é menos glorioso que a glória dada pela guerra". (MORUS, 2009, p. 123).

Devido ao fato de Utopia não ser um país belicoso, em algumas ocasiões quando fora ameaçada de ser invadida, o Estado forneceu tesouros para comprar a paz, e em alguns casos, quando isso não adiantava, o Estado contratava mercenários para servi-lo. Nesse caso, pelo fato dos outros povos darem muito valor as riquezas materiais, era fácil sempre arranjar quem quisesse dispor tempo e  sua vida para lutar por Utopia em uma guerra. Os mercenários eram bem pagos por isso. 


"Eles não dão outro destino ao tesouro que conservam senão servi-lhes de reserva em caso de perigos graves e imprevistos, principalmente se se trata de contratar soldados estrangeiros, que eles preferem expor ao perigo em vez dos nacionais, e aos quais dão um soldo enorme". (MORUS, 2009, p. 91). 

Embora os utopianos contratem muitos mercenários para lutar em suas guerras, o país possui um exército nacional e permanente, onde tanto homens e mulheres são instruídos na arte da guerra, para que se em caso da ilha for invadida, qualquer cidadão esteja apto a defender sua pátria. 

Os utopianos evitam entrar em guerras, eles a faziam especialmente sob duas circunstâncias: em caso da ilha fosse ameaçada de ser invadida, então eles declaravam guerra ao invasor; o segundo caso, diz respeito ao fato de que quando um aliado de Utopia estava sendo ameaçado por outra nação, Utopia o apoiaria na guerra. Sendo assim, como é descrito no livro, houveram casos que Utopia enviou exércitos para defender seus aliados e até mesmo a recuperar o poder usurpado por tiranos. 

Não obstante, antes de entrar em um estado de guerra declarado, eles tentavam evitar que o confronto viesse a ocorrer se valendo de outros meios, como acordos diplomáticos, ou até mesmo oferecendo riquezas para evitar a guerra. Em outros casos, eles ofereciam recompensas pelos chefes inimigos, e pagariam a qualquer um que os entregassem a eles. Mas, quando Utopia entrava em guerra, eles iam com tudo, só evitam a barbárie, algo deplorável para eles. 

"Uma vitória sangrenta lhes causa tristeza e mesmo vergonha, pois acham que é loucura pagar caro demais uma mercadoria, por mais preciosa que seja". (MORUS, 2009, p. 125-126).


"Descrevi a vocês o mais exatamente possível a estrutura dessa república que considero não somente a melhor, mas a única que merece esse nome. Todas as outras falam do interesse público e cuidam apenas dos interesses privados. Aqui nada é privado, e o que conta é o bem público". 
São Tomás Morus


NOTA: Em a Nova Atlântida, Francis Bacon idealiza como governo perfeito não uma república, assim como faz Moro, mas sim uma monarquia parlamentar. Diferente de Moro, o qual não sugere a localização de Utopia, Bacon, em seu livro diz que sua "ilha utópica" se localizava no Oceano Pacífico, no que seria hoje em algum lugar da Oceania.
NOTA 2: No seriado Os Tudors (The Tudors) série que se baseia na vida de Henrique VIII durante seu reinado, Tomás Morus é interpretado pelo ator Jeremy Northam
NOTA 3: O historiador e filósofo alemão, Jörn Rüsen em seu livro História Viva: Formas e funções do conhecimento histórico, dedica a conclusão de sua obra a tratar da concepção de utopia no estudo histórico. Rüsen, apresenta diferentes interpretações para esse conceito. 

Referências Bibliográficas:
MORUS, Tomás. A Utopia. Tradução de Paulo Neves, Porto Alegre, LPM, 2009. 
Grande Enciclopédia Larousse Cultural, v. 24, São Paulo, Nova Cultural, 1998. 

Links relacionados:
A arte da Renascença
A República das Letras
Um pouco de leitura

Nenhum comentário:

Postar um comentário