Por
uma geografia mitológica: a lenda medieval do Preste João, sua permanência,
transferência e “morte”
Ricardo da Costa
Se
abriram as cortinas e subitamente vimos o Preste João, ricamente adornado sobre
uma plataforma de seis degraus. Tinha em sua cabeça uma grande coroa de ouro e
prata. Uma de suas mãos apoiava uma cruz de prata (...) À sua direita, um pajem
apoiava uma cruz de prata bordada em forma de pétalas (...) O Preste João usava
um belo vestido de seda com bordados de ouro e prata e uma camisa de seda com
mangas largas. Era uma bela vestimenta, semelhante a uma batina de um bispo, e
ia de seus joelhos até o chão (...) Sua postura e seus modos são inteiramente
dignos do poderoso personagem que é. (Francisco Alves, embaixador português
enviado à Etiópia, século XVI).
O lendário rei Preste João em um manuscrito medieval. |
I. O
nascimento do mito
A
queda da cidade de Edessa, na Palestina (1144), após um cerco de vinte e oito
dias efetuado por Imad ed-Din Zengi (general do sultão Mahmud), foi o principal
motivo da pregação da Segunda Cruzada na Europa. O banho de sangue que se
seguiu à conquista causou comoção nos líderes europeus. O cronista árabe Ibn
al-Qalãnisi relatou o fato:
“Começaram
então o saque e a matança, a captura e a pilhagem. As mãos dos vitoriosos se
encheram de dinheiro e tesouro, cavalos e presas de guerra o suficiente para
alegrar e fazer com que as almas se regozijassem (al-Qalãnisi, 279-80)”
(GABRIELI, 1984: p. 50).
Hugo,
bispo de Jabala, foi enviado como embaixador pelo reino de Jerusalém e o
principado de Antioquia para tratar com o papa Eugênio III (pisano, 1145-1153)
— que se encontrava em Viterbo, pois Roma estava em poder de um grupo hostil ao
papa — a possibilidade de uma nova cruzada. Em Viterbo também se encontrava Oto
Babenberger, alemão, bispo de Freising e tio de Frederico I Barba-Ruiva,
imperador do Sacro Império Romano-Germânico (1152-1190). Oto registrou em sua
Chronica a notícia, mas estava na cúria papal com o objetivo de notificar a
Eugênio III a existência de um potentado cristão na Ásia, mais precisamente na
fronteira com a Pérsia, que fazia então uma guerra vitoriosa contra o mundo
árabe (RUNCIMAN, 1973: p. 229).
O
rei deste reino maravilhoso, que triunfava numa segunda frente de batalha
contra o Islã num momento em que todos fracassavam, chamava-se Preste (padre)
João. Era nestoriano, portanto herético — a controvérsia nestoriana foi um
cisma cristológico provocado pela culminação da escola antioquiana de teologia
nas obras de Nestor (c. 381-451), patriarca de Constantinopla em 428-31. Nestor
considerou que Cristo tinha duas naturezas (duo physeis) mas isso não fazia
dele dois Filhos, pois as naturezas distintas estavam unidas numa conjunção
voluntária. Essa concepção forçou Nestor a argüir contra a atribuição a Maria
do título de "Mãe de Deus"(Theotokos, portadora de Deus). Para ele; o
termo era impróprio porque ela tinha gerado apenas um homem a quem o Verbo de
Deus estava unido (LOYN, 1990: p. 272).
Mas
que importava? Um aliado, herético mas cristão, vencendo em outra frente de
batalha, minando o inimigo, o “outro”, alimentando as esperanças de uma vitória
final da verdadeira fé. Seu exército era imenso: sua carta, destinada apenas a
“Nossa Majestade”, afirma que sua milícia levava “treze grandes e altas cruzes,
feitas de ouro e de pedras preciosas (...) e a cada uma delas seguem dez mil
soldados e cem mil peões armados” (Carta do Preste João das Índias. Versões
Medievais Latinas, 1998: p. 82). Com este poderoso exército, Preste João teria
conquistado Ectabana, capital persa, dirigindo-se então para o norte, quando
então regressou a seu país.
Foi
dessa forma que o mito de Preste João "entrou" na História, ou seja,
pelas mãos de Oto de Freising. O bispo foi além: já na corte de Frederico I
Barba-Ruiva, provavelmente falsificou uma carta, que teria sido enviada em 1150
por Prestes João ao imperador bizantino Manuel I Comneno (1143-1180), ao papa e
ao próprio Frederico I Barba-Ruiva.
A
notícia dessa suposta carta que contava as maravilhas do reino de Preste João
espalhou-se pela Europa. Até o século XV foram feitas várias traduções e
cópias. Suas diferentes versões descrevem as maravilhas de seu reino. Jóias
corriam nos rios, o palácio do Preste João abrigava 30.000 pessoas à mesa,
todos os dias “...não contando com os forasteiros que chegam ou partem. E todos
eles recebem em cada dia, da nossa câmara, ajudas de custo quer em cavalos quer
em outras espécies” (Carta do Preste João das Índias. Versões Medievais
Latinas, 1998: p. 82).
Seu
palácio era ricamente decorado. Teto de cedro, cobertura de ébano, em seu cume
dois pomos de ouro, portas de sardônica, janelas de cristal, mesas de ouro e
ametista com colunas de marfim. Além disso, existiam seres fantásticos: “bois
selvagens, sagitários, homens selvagens, homens com cornos, faunos, sátiros e
mulheres da mesma raça, pigmeus, cinocéfalos, gigantes, cuja altura é de
quarenta côvados, monóculos, ciclopes e uma ave que chamam fénix e quase todo o
género de animais que existem debaixo do céu.” (Carta do Preste João das
Índias, p. 56)
Preste
João tinha um aspecto jovem, “apesar de ter então 562 anos de idade” (FRANCO
JR., 1992: p. 39-40), porque banhava-se na própria Fonte da Juventude. A
carta situa a Fonte num bosque, no sopé do monte Olimpo, não muito
longe do Paraíso “de onde Adão foi expulso”: “Se alguém beber em jejum três
vezes dessa fonte, a partir desse dia nunca mais sofrerá de qualquer doença e
será sempre, enquanto viver, como se tivesse trinta e dois anos de idade”
(Carta do Preste João das Índias, p. 64-66).
Quando
atingiam os cem anos de idade, os homens rejuvenesciam bebendo da água da Fonte,
até completarem 500 anos, quando então morrem, e, por tradição, são enterrados
juntos de árvores que possuem folhas que nunca caem e são duríssimas. “A sombra
dessas folhas é agradabilíssima e os frutos dessas árvores de suavíssimo odor”
(Carta do Preste João das Índias, p. 68).
Em
seu reino estava também a Árvore da Vida, que fazia fronteira com o
Paraíso, a apenas um dia de distância. “Porém ela era guardada por uma serpente
duas vezes maior que um cavalo, tendo ainda nove cabeças e duas asas. Vigilante
o tempo todo, ela dormia apenas no dia de São João Batista, quando se podia
recolher o bálsamo que a árvore produz e do qual se faz o crisma, o óleo
sagrado” (FRANCO JR., 1992: p. 39-40). Ela representava o próprio Preste João
porque “...tal como essa árvore ultrapassa as outras em fruto e aroma, do mesmo
modo a nossa pessoa neste mundo não tem semelhante nem igual.” (Carta do Preste
João das Índias, p. 114-116).
Neste
reino maravilhoso não havia corrupção, guerras ou violência, o mal inexistia:
“Entre nós não existem pobres. Não existe entre nós nem roubo nem rapina, nem o
adulador ou o avaro têm lugar aqui. Não há disputa entre nós. Os nossos homens
abundam em todas as riquezas.” (Carta do Preste João das Índias, p. 76).
Seus
súditos eram abençoados por terem um rei tão maravilhoso. A similitude com
Salomão é clara: “A população de Judá e de Israel (...); comiam, bebiam e
viviam felizes” (l Rs, 4,20). Preste João proclamava-se imperador de 72 reis na
Ásia — o número 72 era uma analogia a Isidoro de Sevilha: “De fato, segundo a
autoridade de Isidoro de Sevilha, o mundo é formado por 72 povos (44: IX, 2,
2), e Preste João afirma na sua carta governar 72 províncias, cada uma delas
tendo um rei que lhe é tributário (FRANCO JR., 1992: p. 39-40): “Setenta e dois
reis são nossos tributários (...) Setenta e duas províncias nos prestam
vassalagem” (Carta do Preste João das Índias, p. 54).
Dessa
maneira, não é de surpreender que, em 1177, o papa Alexandre III (sienês,
1159-1181) tenha enviado como embaixador para o reino de Preste João seu médico
particular, Felipe, solicitando ajuda contra os muçulmanos. A Igreja já nesse
momento, também enxergava a possibilidade de se apropriar do mito. Ao que
parece, Felipe terminou sua missão na Abissínia sem nenhum resultado (RUNCIMAN,
1973: p. 382).
Mas
qual o interesse do bispo Oto de Freising para divulgar um rei lendário, um
reino fantástico e falsificar esta carta? Devemos buscar no contexto político
germânico da época as causas da atitude do bispo alemão. Em primeiro lugar, as
lutas internas no Império entre guelfos e gibelinos — guelfo —
de Welf, ou Guelf, tio do duque Henrique da Baviera, que se opôs à eleição de
Conrado III da Suábia, o primeiro da dinastia dos Hohenstaufen; gibelino —
de Waiblingen, aldeia pertencente aos Hohenstaufen. Mais tarde, na Itália, com
as campanhas de Frederico contra a Liga Lombarda, guelfo passou a designar os
partidários do papa, e gibelino os partidários do imperador.
Outra
questão importante era a disputa entre Frederico e o papa Alexandre III (poder
temporal x poder espiritual) — que tinha suas origens na Questão das
Investiduras — uma grande crise que assolou as relações entre o Império e
o Papado, e, na verdade, entre a Igreja e as Monarquias européias de um modo
geral, no período de 1075 a 1122 (Investidura — ato físico de investir um
clérigo com as insígnias do cargo). Todas estas questões faziam do mito de
Preste João um importante instrumento político nas mãos de Frederico (FRANCO
JR., 1994), como veremos.
Como
imperador, Frederico também detinha o título de rei da Lombardia. Resolvendo
assumi-lo literalmente, enviou a cada uma das cidades lombardas italianas
um podestàs — representante imperial — para governar em seu nome. O
papa Alexandre III, com receio pelos direitos temporais do papado, excomungou-o
(1160). A Liga Lombarda (composta pelas seguintes cidades: Verona,
Bolonha, Milão, Vicenza, Treviso, Pádua, Mântua, Bréscia, Cremona, Ferrara,
Bérgamo, Parma, Módena e Piacenza), criada em 1167 após a tomada de Milão por
Frederico (o imperador arrasou a cidade, incendiando-a totalmente), venceu o
exército germânico em Legnano (1176), obrigando-o a se reconciliar com o papa e
assinar um tratado restituindo o governo próprio das cidades italianas (Tratado
de Constança, de 1183).
O
imperador necessitava de um apoio espiritual superior ao papa, um suporte
mental que desse legitimidade às suas pretensões de um grande Império
contra o poder papal (DUFFY, 1998: p.108-109). Preste João era a oportunidade
que Frederico estava esperando. Através de uma série de confluências
mitológicas, o imperador construiu uma “ponte” com Preste João, que, por sua
vez, desembocava em Cristo. De que forma?
Preste
João tinha elementos que o projetavam até o nascimento de Cristo, mais
especificamente na figura dos três reis magos, que, numa tradição oriental,
seriam seus ascendentes diretos (FRANCO JR., 1994). Devemos então observar a
ligação dos magos com Cristo.
II. Os três
Reis Magos e Jesus Cristo
Na
tradição bíblica, o encontro dos magos com Jesus se encontra no Evangelho
de Mateus: “Tendo Jesus nascido em Belém da Judéia, no tempo do rei Herodes,
eis que vieram magos do Oriente a Jerusalém, perguntando: “Onde está o rei dos
judeus recém-nascido? Com efeito, vimos a sua estrela no céu surgir e viemos
homenageá-lo”(Mt 2, 1-2).
O
diálogo narrado se deu entre os magos e Herodes. Alarmado, Herodes ordenou aos
magos que se certificassem do nascimento. Maravilhosamente, a estrela os
conduziu à casa de Jesus: “Eles, revendo a estrela, alegraram-se imensamente.
Ao entrar na casa, viram o menino com Maria, sua mãe, e, prostrando-se, o
homenagearam. Em seguida, abriram seus cofres e ofereceram-lhe presentes: ouro,
incenso e mirra. Avisados em sonho que não voltassem a Herodes, regressaram por
outro caminho para a sua região” (Mt. 2, 10-12).
O
onírico novamente interfere nas ações humanas. Os magos, “do Oriente”, região
por excelência “dos sábios astrólogos”, ofereceram os presentes paradigmáticos
do “outro” mundo: ouro, incenso e mirra. Para os Padres da Igreja, simbolizam
respectivamente a realeza, a divindade e a paixão (A Bíblia de Jerusalém, 1991:
p. 1.839).
É
interessante observar que apenas Mateus descreve o encontro com os magos.
Marcos e João nada dizem; Lucas fala na presença de pastores (Lc, 2, 1-20).
Essas diferenças podem ser historicamente explicadas? (MEIER, 1992: p.
205-230). Possivelmente não. Por exemplo, salta aos olhos que em sua obra
Joseph Meier não comente ou tente explicar a ausência dos Três Magos nos outros
Evangelhos sinópticos.
Mas
o mais importante neste ensaio é identificar o momento em que os magos entraram
na casa de Jesus: simultaneamente. Esta tradição bíblica difere
significativamente de outra tradição, oral, apócrifa, fixada por Marco Polo
(1254-1324) em seu Livro das Maravilhas. Nele, Polo encontra seus túmulos,
dá seus nomes (que não constam do Evangelho segundo São Mateus) — Baltazar,
Gaspar e Belchior —; identifica a cidade de onde partiram para adorar o menino
Jesus (“Sava”, atual Saveh, cem quilômetros a sudoeste de Teerã) (MARCO
POLO. O Livro das Maravilhas, p. 64).
Por
fim, narra o momento de encontro:
“Chegando
ao local onde havia nascido o Menino, o mais novo daqueles reis saiu da
caravana e foi sozinho vê-lo, e verificou que era parecido consigo próprio,
pois tinha a sua idade e estava vestido como ele; ficou assombrado o Rei Mago”.
“Logo a seguir foi o segundo Rei Mago, que era de meia-idade, e certificou-se do mesmo; aumentava a surpresa deles”.
“Finalmente foi o terceiro rei, que era o mais velho dos três, e sucedeu-lhe aquilo que tinha sucedido aos outros. Ficaram muito pensativos. Quando se reuniram, contaram uns aos outros o que tinham visto e maravilharam-se todos”.
“Decidiram, então, ir os três ao mesmo tempo, encontrando o Menino do tamanho e com a idade que lhe correspondia (pois não tinha mais do que três dias). Prostraram-se diante dele, oferecendo-lhe o ouro, o incenso e a mirra. O Menino aceitou tudo aquilo e em troca ofereceu-lhes um cofrezinho fechado. Os Reis Magos voltaram aos respectivos países” (MARCO POLO. O Livro das Maravilhas, p. 58-59).
“Logo a seguir foi o segundo Rei Mago, que era de meia-idade, e certificou-se do mesmo; aumentava a surpresa deles”.
“Finalmente foi o terceiro rei, que era o mais velho dos três, e sucedeu-lhe aquilo que tinha sucedido aos outros. Ficaram muito pensativos. Quando se reuniram, contaram uns aos outros o que tinham visto e maravilharam-se todos”.
“Decidiram, então, ir os três ao mesmo tempo, encontrando o Menino do tamanho e com a idade que lhe correspondia (pois não tinha mais do que três dias). Prostraram-se diante dele, oferecendo-lhe o ouro, o incenso e a mirra. O Menino aceitou tudo aquilo e em troca ofereceu-lhes um cofrezinho fechado. Os Reis Magos voltaram aos respectivos países” (MARCO POLO. O Livro das Maravilhas, p. 58-59).
Os
Magos são o “Cristo tripartido”. Nessa “genealogia mitificada e idealizada” da
tradição oriental, eles são associados a Preste João, que assim descenderia do
próprio Cristo (FRANCO JR., 1994). Mas e Frederico? Onde se insere nessa
tradição mitológica que vai de Cristo a Preste João, passando pelos três Reis
Magos?
Sua
ligação é de reconhecimento, diplomático, real e imperial. A ele, ao imperador
bizantino e ao papa Preste João se dirige. Frederico, através de seu tio Oto de
Freising, traz o mito para si, como os reis magos e Carlos Magno, como força
espiritual em sua luta por um império à frente dos demais reinos da Europa.
Assim,
Frederico se colocava na condição de maior representante da Cristandade, único
digno de trocar correspondência com o descendente direto de Cristo. Estava
dessa maneira acima de Alexandre III ou de qualquer outro que estivesse no
cargo de Sumo Pontífice.
Frederico
também cercou-se de provas materiais. Quando da tomada de Milão, que nos
referimos anteriormente, o imperador se apossou das relíquias dos reis magos,
que se encontravam na cidade. Transferiu-as para Colônia, cidade alemã que
também possuía muitas relíquias (FRANCO JR., 1994).
Paralelamente,
promoveu a canonização de Carlos Magno (embora Carlos Magno não tenha sido
santificado, foi incluído no rol dos bem-aventurados em 1165, isto é,
aquele que desfruta após a morte uma felicidade celestial eterna. De qualquer
modo, é o primeiro passo para a sua canonização). Assim, isso não significa um
fracasso nas intenções de Frederico: seu projeto de ter um antepassado real
“santo” foi realizado. Foi uma forma de aumentar seu prestígio e sua aura
sacrossanta, através de um antecessor glorioso alçado à santidade. Esse
“processo santificatório” só pôde ser levado a cabo pela falsificação de Oto de
Freising.
No
fim de sua vida reconciliou-se com Roma. A morte de Urbano III em 1187
facilitou as coisas; Gregório VIII (de Benevento, 1187) e Clemente III (romano,
1187-1191) mostraram-se amistosos com esse novo aliado na luta contra o Islã
(RUNCIMAN, 1973: p. 23-24).
Sua
inesperada morte a caminho da Palestina para a Terceira Cruzada, afogado — um
rude golpe tanto para seus seguidores cruzados quanto para todo o mundo franco
(RUNCIMAN, 1973: p. 28) — aumentou as lendas que cercaram sua figura. Para
muitos Frederico não havia morrido; estava adormecido na montanha Kyffhauser,
na Turíngia, pronto para voltar e trazer a glória do Sacro Império de volta.
Uma lenda afirmava que podia-se ver a longa barba de Frederico crescendo
através do mármore que o cobria.
Um
dia ele despertaria e faria de novo o Império ordeiro e poderoso. É interessante
observar que a construção da imagem de Frederico como um unificador alemão não
corresponde à realidade, pois o imperador fez grandes concessões senhoriais aos
nobres alemães.
Foi
nesse contexto político que “surgiu” historicamente Preste João. A Europa o
recebeu de braços abertos; em pouquíssimo tempo o mito ultrapassou a corte
germânica para assumir as mais variadas texturas, até se deslocar para a
África.
III. Marco
Polo e o Preste João
Mas
antes que passemos da Ásia para a África, é necessário mostrar por que o mito
mudou geograficamente de posição. Consideramos o testemunho de Marco Polo
essencial para delimitar esse marco.
Em
seu livro já citado, Polo confirma a existência de Preste João na Ásia.
Chegando a Karakorum, “cidade de três milhas de circunferência” na planície de
Tangut, Polo relata que o povo que vivia nessa região, os tártaros, não tinham
rei, mas pagavam tributo a um senhor (Cã):
“E
era este o Prestes João, de quem falavam todos, no grande Império. Os tártaros
davam-lhe uma renda de dez cabeças de gado (o dízimo). Mas o povo
multiplicou-se, e, quando isto viu, o Prestes João decidiu dividi-lo por várias
regiões, e enviar, para governá-las, alguns dos seus barões”. (MARCO
POLO. O Livro das Maravilhas, p. 92).
Nesta
narrativa, Preste João governava um império de muitos povos. Os tártaros se
recusaram a obedecer suas determinações; declararam-se revoltados, emigraram
“para outro deserto” e elegeram seu próprio rei, Gêngis Cã.
Quando
se sentiu suficientemente fortalecido, Gêngis enviou emissários a Preste João,
pedindo-lhe sua filha como mulher. Este, ofendido, expulsou os mensageiros,
dizendo-lhes: “Dizei ao vosso povo que o condeno à morte por ser traidor e
desleal, e por ter a audácia de pedir a filha do seu senhor para mulher, e que
eu o farei morrer de morte afrontosa” (MARCO POLO. O Livro das Maravilhas,
p. 93).
Preste
João considerava Gêngis Cã um vassalo e, portanto, indigno de ser seu genro. O
Cã organizou um exército para o combate “na grande planície chamada Tangut, que
pertencia ao Prestes João, e ali aparelhou os seu cavalos, e eram tantos os
homens que não podiam contá-los” (MARCO POLO. O Livro das Maravilhas, p.
94). Após uma consulta astrológica com dois cristãos — onde o Cã soube de sua
vitória — deu-se o combate:
“Durante
dois dias, as duas hostes inimigas bateram-se duramente. E foi batalha maior e
mais encarniçada que jamais viu o gênero humano. Houve grandes perdas, duma
parte e doutra, mas afinal venceu Gêngis Cã esta batalha, na qual morreu
Prestes João (...) Contei-vos como os tártaros elegeram o seu primeiro
grã-senhor e como venceram Prestes João. Agora falarei dos seus usos e costumes”.
(MARCO POLO. O Livro das Maravilhas, p. 95).
Sem
dor, sem lamentação. Assim Polo narrou a morte do mito, esperança última da
Cristandade na luta contra o Islã. Por que?
Polo
é um homem novo num tempo ainda antigo. Está colocado na curva, virada de um
tipo de mentalidade. Seus olhos estão direcionados para a frente, para a troca,
o comércio. O mito faz parte do passado, é intransigente e unilateral. Polo
representa a multiplicidade, os dois mundos interagindo: é a alavanca para o
desenvolvimento, afinal é veneziano...
Quando
Polo “mata” o mito, está contribuindo para essa transposição geográfica: na
verdade, as pessoas ainda desejavam que Preste João existisse, o Ocidente ainda
tinha como sinal paradigmático a cruzada.
A
Europa ainda estava sendo pressionada militarmente pelo Islão, principalmente
em suas áreas limítrofes: o Império Bizantino e a Península Ibérica (que então
estava no auge de seu processo de Reconquista). Preste João ainda era a
esperança da abertura de uma segunda frente. Provavelmente por isso a sua
transferência geográfica para a África.
O
mito então se deslocou da Ásia para a África no século XIV, mais precisamente
para a Etiópia. Segundo Mollat (1990, p. 35), o primeiro a situar seu reino “ao
sul do Egito” foi o cartógrafo genovês Angelino Dulcert. O desconhecimento
europeu em relação ao reino etíope, devido ao não-mapeamento das fontes do Nilo
(porque por terra havia o Deserto do Sudão e o Maciço Etíope) também criava um
clima propício ao desenvolvimento de lendas maravilhosas.
Conta
uma delas que Makeda era a rainha de Sabá (Etiópia). Sabá seria o Reino de
Aksum, mais tarde o Império da Etiópia, que ocupava o sudoeste da península
arábica (KI-ZERBO, s/d: p. 116). No entanto, a rainha de Sabá foi provavelmente
a soberana de uma das colônias sabéias existentes na Arábia do Norte (A Bíblia de
Jerusalém, p. 525). Portanto, não se considera hoje que Sabá correspondesse a
Aksum.
De
qualquer modo, maravilhada com as preciosidades trazidas do reino de Salomão
por um mercador, a rainha de Sabá resolveu fazer uma visita pessoalmente:
“A
rainha de Sabá ouviu falar da fama de Salomão e veio pô-lo à prova por meio de
enigmas. Chegou a Jerusalém com numerosa comitiva, com camelos carregados de
aromas, grande quantidade de ouro e de pedras preciosas (...)”
“Quando
a rainha de Sabá ouviu toda a sabedoria de Salomão (...) ficou fora de si e
disse ao rei: “Realmente era verdade quanto ouvi na minha terra a respeito de
ti e da tua sabedoria (...) Felizes das tuas mulheres, felizes destes teus
servos, que estão continuamente na tua presença e
ouvem a tua sabedoria (...)”
“O
rei Salomão ofereceu à rainha de Sabá tudo o que ela desejou e pediu além dos
presentes que lhe deu com munificência digna do rei Salomão (o grifo é
nosso). Depois ela partiu e voltou para sua terra, ela e seus servos” (1 Rs,
10, 1-13).
O
final dessa passagem bíblica permite uma aproximação com a tradição apócrifa:
Makeda é seduzida por Salomão, dá a luz um filho chamado Menelike, que será
sagrado rei por Salomão “e voltará com um grupo de jovens notáveis à Etiópia,
não sem terem subtraído a arca da Santa Aliança, para a honrarem em África”
(KI-ZERBO, s/d: p. 116). Assim se inicia uma dinastia salomônica na Etiópia,
conferindo-lhe uma condição mítica que desembocará na lenda de Preste João no
século XIV.
No
século IV o reino etíope de Aksum se converteu ao cristianismo pelas mãos de
Fromentius, monge sírio sagrado bispo e chefe espiritual da Etiópia por Santo
Atanásio, patriarca de Alexandria (KI-ZERBO, s/d: p. 118). Atanásio havia
afirmado que a humanidade de Cristo estava absorvida na sua divindade —
proposição de unidade da natureza de Cristo (monofisismo) — e foi condenado
pelo Concílio de Calcedônia (451). A Igreja etíope é, portanto, herética e
cismática, seguindo o rito litúrgico e o calendário copta egípcio, além de
certos costumes sincréticos, como, por exemplo, “danças arrebatadas, tambores,
sacrifícios de cabras (...) interdição de entrar na igreja no dia seguinte a
relações sexuais e a observação do sábado em vez do domingo resultam da prática
judaica” (KI-ZERBO, s/d: p. 118).
É
mais uma aproximação com a lenda de Preste João, que também era herético
(nestoriano) e maravilhoso.
IV. Preste
João na África
O
avanço do Islão chegou a Etiópia.
Alguns
companheiros de Maomé, fugindo da aristocracia coraixita (originalmente da
tribo dos Quraish, do norte da Arábia, uma importante comunidade comercial de
Meca. LEWIS, 1990: p. 40-41), refugiaram-se em Aksum, em 615, instigados pelo
próprio Profeta, que teria lhes assegurado: “Se fordes para a Abissínia (...)
encontrareis um rei sob o qual ninguém é perseguido. É uma terra de justiça,
onde Deus trará o repouso às vossas tribulações” (KI-ZERBO, s/d: p. 152).
Nessa
tradição, a Etiópia também é a terra das maravilhas, como na descrição do reino
de Preste João. Mas a pirataria etíope no Mar Vermelho e suas razias nas costas
árabes (os etíopes pilharam Jeddah, porto de Meca, em 702) levaram o Profeta,
segundo outra tradição, a dizer: “Evitai toda a querela com os Etíopes, porque
eles receberam em herança nove décimos da coragem da humanidade” (KI-ZERBO,
s/d: p. 153).
É
mais uma oralidade que ajuda a conexão com Preste João: agora, os etíopes são
os inimigos dos árabes, portanto, amigos da Cristandade. O início da dinastia
Zagwés no século XII não interromperia o caráter maravilhoso da Etiópia
iniciado desde a visita da rainha de Sabá a Salomão: segundo alguns autores,
esta dinastia seria uma descendência salomônica por via de Balkis, uma das
criadas de Makeda, rainha de Sabá (KI-ZERBO, s/d: p. 155).
Assim
estava preparado o terreno para a chegada do reino de Preste João direto da
Ásia. Principalmente porque a Etiópia já possuía seu santo católico: Lalibela,
da dinastia zagwé, rei piedoso que fundou inúmeros igrejas e mosteiros
(KI-ZERBO, s/d: p. 153).
Após
a geografização do maravilhoso feita pelo cartógrafo genovês Angelino
Dulcert, temos notícia do encontro em Nápoles de um dominicano de origem
siciliana, Pedro Ranzano, com um embaixador do soberano etíope negus, de
nome Pedro Rambulo. O título oficial do imperador era Rei dos Reis (Negusa
nagast), que se explicava pelo grande número de príncipes da periferia do
império que reconheciam-lhe laços de vassalagem. Tais laços eram freqüentemente
consagrados através do casamento do rei etíope com princesas árabes, em
detrimento da monogamia cristã. Embora essas princesas fossem obrigadas a converter-se,
aconteciam casos de regentes filhas de príncipes muçulmanos, como, por exemplo
Helena, princesa que recebeu uma delegação portuguesa em 1520. A parte central
do império estava sob a autoridade absoluta dos negus (KI-ZERBO, s/d:
p. 229).
Este
embaixador estava em missão junto ao rei de Aragão, em 1450. Afirmou que seu
rei era o verdadeiro Preste João, descendente direto da rainha de Sabá, e que
seu reino havia sido evangelizado pelo apóstolo Tomás (MOLLAT, 1990: p. 37).
Além
de transferência geográfica, percebe-se aqui outro elemento mítico: o nome
Preste João começa a se tornar um título, intemporal. Assim, o “nome se
pereniza (...) mais conveniente para a lenda” (BRAGA JR., 1994: p. 20). Preste
João é sempre um rei, sacerdote, chefe religioso, inimigo do Islã (pelo menos
em teoria).
A
Europa receberia muitos embaixadores etíopes a partir de então, mas nenhum com
descrição tão precisa quanto Ranzano. As relações tornaram-se mais sólidas com
a fundação do Colégio Etíope, em 1474, pelo papa Sixto IV (de Savona,
1471-1484) e duas missões de Battista d’Imola (em 1482 e 1484) (MOLLAT, 1990:
p. 37).
V. A “morte”
do Mito
No
tempo do rei Lebna Denguel (Incenso da Virgem) (1508-1540) (KI-ZERBO, s/d: p.
57), a regente Helena, uma princesa muçulmana convertida, mandou um mensageiro
a Portugal, Mateo, o Armênio, durante uma série de escaramuças do reino etíope
com as potências islâmicas da costa. Uma embaixada portuguesa foi enviada em
1520. No entanto, parece que os portugueses foram acolhidos sem entusiasmo,
pois Lebna Denguel teria ficado decepcionado com os magros presentes
provenientes da Europa. Ainda, quando lhe mostraram num mapa o pequeno Portugal
em comparação com seu reino (cuja extensão era exagerada por causa das técnicas
de representação cartográfica), Lebna Denguel encheu-se de orgulho e ficou
consternado com o fato dos reinos cristãos recorrerem às armas. De qualquer
modo, aceitou ceder Massawa como base naval a Portugal e prometeu a sua aliança
contra os Muçulmanos. Por sua parte, pediu artesãos e médicos (KI-ZERBO, s/d:
p. 57).
Na
embaixada portuguesa encontrava-se Francisco Alves, padre e e capelão. Devemos
a ele a primeira descrição do Preste João. Ele foi o primeiro cristão a
"ver", e, por consegüinte, "matar" o mito:
“Se
abriram as cortinas e subitamente vimos o Preste João, ricamente adornado sobre
uma plataforma de seis degraus. Tinha em sua cabeça uma grande coroa de ouro e
prata. Uma de suas mãos apoiava uma cruz de prata (...)”
“À
sua direita, um pajem apoiava uma cruz de prata bordada em forma de pétalas
(...) O Preste João usava um belo vestido de seda com bordados de ouro e prata
e uma camisa de seda com mangas largas. Era uma bela vestimenta, semelhante a
uma batina de um bispo, e ia de seus joelhos até o chão (...)”
“Sua
postura e seus modos são inteiramente dignos do poderoso personagem que é”. (MOLLAT,
1990: p. 39).
O
surgimento do mito é uma correspondência mental com a realidade. O mito é uma
das formas da consciência humana, “o exame dos mitos ilumina a estrutura dessa
consciência” (MORA, 1982: p. 266). Sua efervescência mostra uma tomada de
atitude, sua aceitação aponta em direção do anseio coletivo, personificação do
fabuloso na forma do reino imaginário, distante e inatingível. Sua inexistência
física amenizava os desgastes dos personagens concretos, talvez por isso “seu
conteúdo mítico e sua longa duração” (FRANCO JR., 1994).
Acreditar
em Preste João foi, para o homem dos séculos XII-XV, a esperança da cruzada, um
motivo para permanecer lutando, reconquistando. É esse espírito belicoso que
sempre insiste em renascer de nossas entranhas, mesmo com todo o racionalismo
delirante que cresce, século após século. É parte de nós.
Fontes
A Bíblia de
Jerusalém.
São Paulo: Edições Paulinas, 1991.
Carta do Preste
João das Índias.
Versões Medievais Latinas (trad. Leonor Buescu). Lisboa: Assírio &
Alvim, 1998.
GABRIELI, Francesco
(selected and translated). Arab historians of the crusades. Londres:
Routledge & Kegan Paul, 1984.
MARCO POLO. O
Livro das Maravilhas. Porto Alegre: L & PM, 1994.
Bibliografia
BRAGA JR. Elói. "Introdução". In: MARCO
POLO. O Livro das Maravilhas. Porto Alegre: L & PM, 1994.
CAHEN, Claude. Oriente
Y Occidente en tiempos de las cruzadas. México: Breviarios, Fondo de
Cultura Económica, 1989.
DUFFY, Eamon. Santos
& Pecadores. História dos Papas. São Paulo: Cosac & Naif, 1998.
FRANCO JR., Hilário. As
utopias medievais. São Paulo: Editora Brasiliense, 1992.
FRANCO JR., Hilário. A
construção de uma utopia: o império de Preste João. Conferência
proferida em 12-10-94 durante o I Simpósio Internacional de História Antiga e
Medieval e VI Simpósio de História Antiga, 10 a 14 de outubro de 1994, Porto
Alegre (notas pessoais).
KI-ZERBO, Joseph. História
da África Negra I. Viseu: Publicações Europa-América, s/d.
LEWIS, Bernard. Os
Árabes na História. Lisboa: Editorial Estampa, 1990.
LOYN, Henry R.
(org.). Dicionário da Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1990.
MEIER, John P. Um
judeu marginal — repensando o JESUS histórico. Rio de Janeiro: Imago
Editora, 1992.
MOLLAT, Michel. Los
Exploradores del siglo XIII al XVI — primeras miradas sobre nuevos mundos.
México: Fondo de Cultura Económica, 1990.
MORA, José
Ferrater. Dicionário de Filosofia. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1982.
RUNCIMAN, Steven. Historia
de las Cruzadas II. Madrid: Alianza Universidad, 1973.
Disponível em: http://www.ricardocosta.com/node/851.
Essa bibliografia é incrível, você tem todos esses livros?
ResponderExcluirMatheus esse artigo não é de minha autoria, então não possuo todos esses livros. Porém, tenho o livro do Marco Polo, o livro sobre os árabes e o dicionário da Idade Média.
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