quarta-feira, 8 de outubro de 2014

A história política e o conceito de cultura política

A história política e o conceito de cultura política*


Rodrigo Patto Sá Motta
UFMG


Falar do retorno da História Política já virou lugar comum. Vários autores têm se dedicado a analisar o fenômeno, mostrando como tem havido uma recuperação da influência desta área de pesquisa histórica nos últimos trinta anos, após décadas de declínio em detrimento da história social e econômica. A recuperação do prestígio dos estudos políticos entre a historiografia recente tem sido possível, em grande medida, devido à renovação das abordagens. Não tem havido, obviamente, uma volta pura e simples do velho enfoque “positivista”, marcado por uma perspectiva elitista e factualista.

Tal como se deu em outros setores da disciplina histórica a renovação foi viabilizada, em grande medida, pela incorporação de elaborações teóricas e metodológicas das ciências sociais. Aliás, a trajetória da historiografia no século XX é incompreensível sem a menção ao frutuoso ─ embora nem sempre pacífico ─ contato estabelecido com as ciências sociais.

No que se refere ao “redespertar” da História Política existem, basicamente, duas vertentes de pesquisa. Primeiramente, há uma linha marcada pela renovação dos enfoques sobre objetos tradicionais da política, como organizações estatais, instituições e movimentos políticos. Nesta dimensão, os historiadores têm se valido principalmente da contribuição da ciência política e da sociologia política para enriquecerem suas análises. Sua atenção tem se voltado para o estudo do comportamento eleitoral, do funcionamento dos grupos de pressão, da opinião pública, relações internacionais, entre outros.1 Tais pesquisas demonstram a preocupação de superar a velha abordagem política. Voltam-se para a explicação de práticas coletivas e comportamentos sociais, fugindo à perspectiva tradicional centrada nas elites e no Estado.

A outra vertente baseia-se não apenas na utilização de enfoques novos, mas também na exploração de novos objetos, desconhecidos pelas análises políticas clássicas. O enfoque tradicional da política ─ e não devemos considerar tradicional como sinônimo de ruim ou ultrapassado ─ é voltado para o estudo dos mecanismos de funcionamento do poder, as intenções e interesses dos agentes políticos e as ações empreendidas para a conquista e a conservação do poder. Os novos objetos de pesquisa em questão se concentram em torno dos conceitos de imaginário, simbologia e cultura.

A ênfase proposta é trabalhar a política não no nível da consciência e da ação informada por projetos e interesses claros e racionais, mas no nível do inconsciente, das representações, do comportamento e dos valores. Na verdade, os novos enfoques e as novas conceitualizações são mais citados que discutidos e problematizados. Nesta área, tem havido muita empiria e pouca teoria. Na medida em que o fenômeno se encaminha, virtualmente, para se constituir em moda acadêmica, já se pode perceber a utilização dos “novos” conceitos com muita sofreguidão, freqüentemente de maneira imprópria ou imprecisa.

Porém, como sabemos, a interlocução de base científica depende, para ser viável, de uma clareza mínima quanto aos conceitos em uso. Ë nesse sentido que se insere este trabalho. A proposta é contribuir para o esclarecimento de alguns dos conceitos em uso na “nova” História Política, tentar estabelecer com mais precisão o seu raio de abrangência e, também, mostrar a sua validade enquanto instrumentos para facilitar nossa compreensão da realidade histórica, para além de qualquer modismo. Mais precisamente, discutirei o conceito de cultura política, que me parece ser um dos mais férteis nesta área.

A definição conceitual de cultura é extremamente polêmica. Mesmo entre os antropólogos, cuja contribuição nesta área é extremamente valorosa, não há consenso quanto ao estabelecimento do significado do conceito.2 Contudo, para nossos fins, optamos por lançar mão de uma definição que, mesmo não sendo consensual, é pelo menos a mais corrente entre os estudos etnológicos. Cultura, então, seria o conjunto complexo constituído pela linguagem, comportamento, valores, crenças, representações e tradições partilhados por determinado grupo humano e que lhe conferem uma identidade.

Como se vê, a abordagem de aspectos culturais coloca a História em contato direto com as elaborações da Antropologia. Na verdade, esta tem sido, nos últimos anos, uma das parceiras mais instigantes dos historiadores, colocando-nos desafios e contribuindo para o alargamento de nossos horizontes de pesquisa.

Acredito que a principal contribuição dos estudos antropológicos, neste sentido, diz respeito à percepção acerca da mudança social. A historiografia, tradicionalmente, sempre foi obsedada pela idéia de mudança, de transformação social. Pode-se mesmo dizer que a noção de dinâmica é uma de suas características basilares. A ciência da história se constituiu baseada na crença de que as sociedades humanas mudam e o tempo é o referencial que permite observar e avaliar as mudanças. Se não há transformação passado e presente são o mesmo e perde sentido toda abordagem diacrônica: no limite, a História não teria mais razão de ser.

Pois bem, o enfoque antropológico estimulou os historiadores a terem sensibilidade também para a não-mudança, para a permanência, para a estrutura. Daí advém o interesse pelo estudo da cultura, ou das culturas: a busca de relações perenes, estruturadas, enfim, a realização de abordagens sincrônicas.

Nos últimos anos, tem havido uma tendência, entre segmentos da historiografia, a utilizar e a trabalhar com o conceito de cultura em detrimento de “mentalidades”. Este, mais antigo entre os historiadores, foi trazido à tona no bojo dos esforços renovadores da tradição dos Annales. Sua funcionalidade se prendia ao esforço de pesquisar as representações mentais de determinados grupos e determinados momentos históricos, num enfoque diverso em relação à tradicional História das Idéias, pois voltado para elaborações não sistematizadas e inconscientes. Certamente a História das Mentalidades teve uma de suas inspirações básicas na psicologia, ciência constituída nas primeiras décadas do século e que exerceu enorme fascínio sobre os estudiosos das ciências humanas.

O deslocamento de “mentalidades” em favor de “cultura” deve-se, em certa medida, ao crescente prestígio da antropologia a partir da segunda metade do século. Mas o principal problema é a imprecisão conceitual de “mentalidades”. Até seus defensores e os pesquisadores que trabalham nesta perspectiva encontram dificuldades para definir o conceito.3 Outro dado polêmico é que os trabalhos na linha das mentalidades tendem a estabelecer uma homogeneização exagerada entre os grupos sociais abordados. Raramente conseguem perceber as nuanças existentes na maioria das sociedades, analisando uma mentalidade coletiva que, muitas vezes, passa por cima das diferenças e especificidades.

Nesse sentido, o conceito cultura possui algumas vantagens. Ele é mais consistente e permite abordar com mais precisão o mesmo tipo de fenômeno, qual seja, as representações mentais. Por outro lado, adequa-se melhor à necessidade de respeitar as particularidades existentes entre os grupos ou dentro deles, evitando assim as generalizações abusivas. Norbert Elias analisou esta característica do conceito de cultura, sua propensão a enfatizar as diferenças e as identidades particulares de grupos. Exatamente por isto teria havido praticamente o abandono da expressão “civilização” em favor de “cultura”.4

Pois bem, a partir desta caracterização geral destaca-se o conceito de cultura política, nosso objeto de discussão. Este pode ser caracterizado como o conjunto de normas, valores, atitudes, crenças, linguagens e imaginário, partilhados por determinado grupo, e tendo como objeto fenômenos políticos.

Assim como a conceituação geral de cultura, só faz sentido falar-se em cultura política quando se trata de normas, valores, etc razoavelmente arraigados, estruturados; quando se estabelecem tradições que são reproduzidas por várias gerações. O conceito não se aplica a fenômenos superficiais e passageiros.

Poderíamos dar um exemplo, entre muitos possíveis, para tornar mais clara a análise. No mundo contemporâneo constituiu-se uma cultura política socialista que, tendo se estabelecido entre o início e o meio do século XIX, foi reproduzindo-se ao longo das décadas, atravessou o século seguinte e está presente até hoje, embora no momento viva uma séria crise.

A cultura socialista possui todos os elementos necessários para caracterizá-la enquanto tal: valores, atitudes, crenças, normas e um imaginário que têm garantido ao grupo uma forte identidade própria nos últimos cento e cinquenta anos.

Não seria possível dar por terminada a discussão conceitual sem enfrentar outro conceito polêmico e de difícil definição, mas profundamente ligado às novas perspectivas de pesquisa na área da História Política. Trata-se do conceito de imaginário. Imaginário ou imaginação social, como preferem alguns autores, passou a ser considerado um objeto de estudo fundamental para a compreensão não somente das representações mentais estabelecidas pelos grupos sociais, mas também para o equacionamento da lógica das práticas e dos comportamentos coletivos.

Polissêmica, como costumam ser as expressões utilizadas pelas ciências sociais, a palavra imaginário tem causado alguma confusão. O sentido ao qual nos referimos, obviamente, não é o de uso corrente, que tem imaginário como sinônimo de ilusório, irreal, algo construído arbitrariamente pela imaginação. A definição da palavra que nos interessa é mais recente, e entende o imaginário como sendo o conjunto de representações mentais de um determinado grupo, representações viabilizadas através de imagens. Nas palavras de Gilbert Durand,

“A consciência dispõe de duas maneiras para representar o mundo. Uma direta, na qual a coisa mesma parece apresentar-se ante o espírito, como na percepção e na simples sensação. Outra, indireta, quando, por uma ou outra razão, a coisa não pode representar-se em „carne e osso‟ à sensibilidade, como por exemplo, ao recordar nossa infância (...), ao compreender como giram os elétrons ao redor do núcleo atômico ou ao representar o além morte. Em todos estes casos de consciência indireta, o objeto ausente se re-presenta ante ela através de uma imagem, no sentido mais amplo do termo”.5

O imaginário social seria, portanto, a representação ou o conjunto de representações imagéticas de determinados aspectos ou fenômenos da vida social como, anseios, temores, utopias, valores, crenças, etc. Tais representações encerram uma importância fundamental, na medida em que tornam aceitáveis e assimiláveis determinados aspectos da realidade, contribuindo para conferir coesão e identidade aos diversos grupos sociais. Na verdade, a vivência social seria inconcebível sem a mediação das representações imaginárias. O imaginário, aqui, diz respeito à construção de representações da realidade que dificilmente coincidem totalmente com o real. Mas, também não é pura e simplesmente uma mistificação.

Dentro do amplo espectro constituído pelo imaginário podemos destacar algumas categorias de representação importantes, como símbolos, mitos e ritos. As definições conceituais precisas destas expressões são extremamente polêmicas, tendo sido largamente debatidas nos últimos anos por antropólogos e psicólogos, principalmente. Os elementos rituais e míticos freqüentemente carregam uma forte carga simbólica, o que permite a alguns autores considerá-los formas de representação simbólica. Não desejando entrar nessa polêmica, me limitarei a expor as definições mais usuais dos três conceitos, de modo a poder avançar a nossa discussão.

Símbolo seria uma forma de representação, um tipo de signo, cujo significado não pode ser apresentado diretamente. O símbolo se refere a um sentido, não a uma coisa tangível. Ele trabalha com uma ordem de fenômenos invisíveis e virtualmente inefáveis.6 Vamos exemplificar para tornar mais fácil a compreensão, utilizando-nos da simbologia política. As bandeiras e os hinos nacionais são, por excelência, representações simbólicas: elas representam a nação e resumem sentidos e valores atribuídos ao grupo, como a história comum, as glórias passadas, os sacrifícios heróicos dos mártires. Elas encarnam uma carga simbólica que o signo comum absolutamente não possui.

Analisemos agora os ritos, outra área de pesquisa fundamental para a “nova” História Política. Eles se configuram como uma “série de atos solenes, repetitivos e codificados, de ordem verbal, gestual e postural, de forte conteúdo simbólico”.7 As práticas rituais fazem parte do repertório cultural de todos os grupos humanos. Elas constituem um elemento fundamental no sentido da reprodução e mesmo da elaboração dos valores e normas constituidoras dos diversos grupos sociais.

Por um lado, o ritual tem uma importante dimensão simbólica, na medida em que representa e sintetiza determinados elementos da cultura da coletividade em questão. Assim, ele pode simbolizar a união e a coesão do grupo, como num desfile militar; ou a força do líder, como num comício nazista; ou a comunhão com Deus, como numa missa. Por outro lado, os rituais cumprem uma função integradora, pois disseminam as normas e valores sustentadores da vivência coletiva. Além disso, reforçam o sentimento de identidade do grupo, através da repetição ritualizada de cerimônias coletivas. Virtualmente invariável, o ritual, exatamente por sua feição repetitiva, afiança a força e a perenidade da mensagem e do próprio grupo, incutindo segurança e fé no porvir.

Quanto aos mitos, trata-se de outra conceituação polêmica. Originalmente, os mitos eram considerados exclusivamente como narrativas fabulosas, ilusórias. Recentemente, porém, os especialistas tem tido uma maior sensibilidade para a importância social do mito como elemento central nas diversas formações culturais. Eles representam histórias de caráter sagrado, revelações primordiais e atuam na constituição de modelos exemplares.8 Os mitos são elementos importantes do imaginário social, na medida em que transmitem mensagens, ajudam a forjar valores identitários e contribuem para dar coesão aos diversos grupos.9

No que se refere às mitologias políticas, uma da formas mais recorrentes é o mito do líder. Ele é apresentado como um indivíduo portador de qualidades acima da média, exemplo e protótipo perfeito a ser seguido e imitado pelos seres normais. Sua figura mitificada atua como pólo unificador do grupo, reunindo em torno de si os membros da coletividade que se identificam com a imagem projetada pelo líder. Além disso, o mito infunde esperança: sua mensagem invariavelmente aponta para uma redenção próxima e para um futuro melhor.10

Pois bem, o argumento então é que o imaginário político pode ser considerado como um dos elementos constituidores da cultura política. O largo espaço utilizado para trabalhar com a conceituação ligada ao imaginário se deve à complexidade e à polêmica de que se reveste e não a uma desconsideração aos outros elementos integrantes do universo cultural.

Aliás, é interessante frisar a importância de se encarar as diversas dimensões da cultura como um todo orgânico. O imaginário, fenômeno situado no nível das representações, não faz sentido sem o estudo das práticas culturais. O imaginário não é uma espécie de fantasmagoria alheia à realidade, como muitas vezes é entendido. As representações existem em função da necessidade humana de conferir ao mundo uma ordem e de compreender a realidade, ou, pelo menos, de conferir-lhe um sentido. São também instrumentos para a intervenção humana no real, na medida em que as representações podem informar a ação, propondo caminhos e possibilitando estratégias. Além disso, podem desempenhar o papel de legitimar determinadas práticas e configurações sociais, como relações sociais hierarquizadas e privilégios.

Dessa maneira, em se tratando da abordagem cultural, não há sentido em opor imaginário e realidade, representações e práticas. Trata-se de estudar os fenômenos culturais levando em conta as duas dimensões. Uma mitologia política, por exemplo, é constituída através de ações concretas, como discursos, propaganda, intervenção política, enfim. E ela só se estabelecerá efetivamente se expressar demandas ou temores sociais reais preexistentes, ou se conseguir criá-los.

Qual a contribuição efetiva que a abordagem cultural pode trazer à História Política? Ela contribui para desvendar os mecanismos de funcionamento do poder, enriquecendo e tornando mais complexa nossa compreensão acerca dos fenômenos de natureza política. Não se trata de opor a abordagem cultural à ciência política clássica, como se fossem perspectivas excludentes. Trata-se de explorar uma vertente de pesquisa não desenvolvida pelos enfoques tradicionais da política, notadamente no que diz respeito ao estudo dos comportamentos políticos e do imaginário.

Os processos de legitimação política passam pelo estabelecimento de um imaginário que resume e simboliza, a nível da mentalidade popular, as mensagens e valores do poder. O poder necessita, além das estruturas burocráticas, além das instituições representativas e/ou coercitivas, da criação de imagens que atinjam de maneira imediata os corações e mentes da população; freqüentemente mais os corações que as mentes. O estabelecimento dos elementos de uma cultura política, notadamente a nível do imaginário simbólico, exerce um papel coesionador fundamental sobre as organizações sociais.

Podemos exemplificar com o fenômeno do culto à nação. No mundo moderno ela se transformou num dos principais ─ senão o principal ─ fator de legitimação da ordem política. Os indivíduos acreditam ser justo e correto viverem na coletividade porque fariam parte de um conjunto social pleno de sentido, marcado por características identitárias comuns. A nação traria a marca de uma história comum e de valores culturais partilhados. Tal ideário nacional é estabelecido e reproduzido através de práticas culturais e representações simbólicas, que resumem o sentido da mensagem para os integrantes do grupo. Contudo, não se deve encarar o fenômeno nacional como mera manipulação, como invenção arbitrária: trata-se de realidades que são revestidas com a aura do mito e com o manto do sagrado, constituindo-se em estruturas culturais.

Resumindo, a análise dos fatores culturais ajuda a esclarecer e a compreender a ocorrência de determinados comportamentos políticos, que não se explicam somente pela vontade, pelo interesse ou por ações concertadas no plano racional, mas também pela crença, pela fé, pela força da tradição ou do costume e por determinações originadas no plano do inconsciente.

Porém, se a abordagem cultural da História Política carrega inovações e perspectivas positivas, encerra também alguns perigos. Um problema sério é o risco de estabelecerem-se uniformizações exageradas. Sob a guarida do conceito de cultura pode-se fazer generalizações abusivas, perdendo a dimensão da complexidade dos grupos sociais. Atribuir a um determinado grupo valores, comportamentos e imaginário comuns muitas vezes pode não corresponder à realidade. As sociedades, principalmente as complexas, normalmente são marcadas por nuanças, particularidades e divisões internas. As estruturas culturais em questão podem não ser partilhadas por toda a coletividade.

Exatamente por isso forjou-se o conceito de subcultura, para dar conta da complexidade do social. Nesta perspectiva, as grandes formações sociais poderiam ser compostas de subculturas, que partilhariam de alguns elementos da cultura mater, por assim dizer, mas ao mesmo tempo possuiriam características próprias. Assim, no que diz respeito às sociedades políticas contemporâneas, pode-se falar na existência de subculturas como a nacionalista ou a comunista, por exemplo. Ressalte-se, no entanto, que o conceito de cultura é o mais adequado para tratar do particular, do específico, em contraposição a outros como “civilização” e mesmo “mentalidades”, que têm maior propensão para a uniformização.

Outro aspecto problemático da utilização do recorte cultural é o risco da perda da dimensão histórica. Uma parte considerável das análises de inspiração antropológica, normalmente associadas à antropologia estruturalista, tendem a abordar a dimensão cultural de maneira estática, acrônica. Constituiu-se em moda no período de maior influência do estruturalismo desdenhar da importância da história, opondo-a à estrutura. Ao par antitético estrutura-história associava-se a antítese sincronia-diacronia.

Criticou-se corretamente a historiografia por sua obsessão pela transformação e incapacidade de perceber a permanência, as relações estruturais. Contudo, a crítica ao historicismo levou à absolutização do fenômeno estrutural, à observação exclusivamente de fatores e relações sociais tidas como imutáveis. As estruturas, incluindo obviamente as culturais, passaram a ser encaradas como uma realidade suprahistórica: não tinham gênese nem tampouco passavam por processos de transformação. O sujeito da história, o homem, deixou de ser encarado como um agente transformador. Tornou-se joguete indefeso de determinações estruturais transcendentes.

A História aprendeu com seus críticos a ter sensibilidade para os fenômenos estruturais, daí o interesse atual pelos estudos de cultura política. Mas nosso enfoque deve ser diverso em relação ao da antropologia estruturalista, sob pena de implodirmos o objeto histórico. O recorte historiográfico só faz sentido tendo como referência o estudo da gênese e do desenvolvimento dos fenômenos sociais. Nesta perspectiva, devemos efetivamente estar atentos e investir na análise estrutural. Contudo, cabe-nos não perder de vista a dimensão da historicidade. As estruturas não são entes abstratos surgidos do nada e infensos à ação humana: também possuem gênese e passam por transformações, mesmo que estas sejam lentas.11 Concluindo, a História Política tem muito a ganhar com a utilização do instrumental teórico e conceitual dos estudos culturais. Amplas perspectivas de renovação se abrem à nossa frente. Contudo, devemos lançar mão da colaboração das ciências sociais de maneira crítica e cuidadosa, sem renunciar às características básicas que norteiam o trabalho do historiador.

NOTAS:
*Esse trabalho fez parte da mesa redonda “A discussão sobre cultura política na historiografia”, apresentada no dia 23 de julho de 1996.
1 FERREIRA, Marieta de Moraes. A história política hoje: tendências e desafios. Anais do IX Encontro da ANPUH/MG. Juiz de Fora, 1994, p. 165.
2 A esse respeito, conferir LEACH, Edmund. Cultura/Culturas. Enciclopédia Einaudi. Vol. 5 (Anthropos-Homem). Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985. Pp. 102-133.
3 Cf VOVELLE, Michel. Ideologias e mentalidades. São Paulo: Brasiliense, 1987. P.15. Para este autor, a melhor definição da História das Mentalidades seria “uma história das visões de mundo”.
4 ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990. p. 25.
5 DURAND, Gilbert. La imaginación simbólica. Buenos Aires: Amorrortu, 1971. pp. 9,10. Tradução nossa.
6 Idem, pp. 12-21.
7 RIVIÈRE, Claude. As liturgias políticas. Rio de Janeiro: Imago, 1989. p.13.
8 ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972. pp. 7 a 13.
9 Cf. GIRARDET, Raoul. Mitos e mitologias políticas. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
10 Na história brasileira temos um exemplo interessante com Luiz Carlos Prestes, figura mitificada pelos comunistas: “A figura de Prestes se destacou como a de maior líder popular da nossa história. Ele é o mais alto intérprete dos mais profundos anseios das massas, encarna os interesses dos explorados e oprimidos, a consciência, a honra e o futuro da nação”. “Quando nosso povo comemora mais um aniversário de Prestes (...) as saudações e votos de longa vida que lhe dirige estão impregnados de carinho, reconhecimento, de confiança.(...) Não apenas evocamos os fatos marcantes de sua vida gloriosa, os feitos heróicos do general invencível, do patriota incomparável, do organizador sábio e incansável. Mais do que nunca sentimos a presença de Prestes, nos orgulhamos de tê-lo conosco, comandante ao leme, para as grandes lutas que já se iniciam”. (Voz Operária, 02/01/54, p.12. Cartas de leitores).
11 Devemos ressalvar que alguns setores da antropologia têm recuperado em suas pesquisas a dimensão histórica. Um dos trabalhos mais interessantes nesta linha é um livro de Marshall Sahlins, que tem o sugestivo nome de Ilhas de História. (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990).


Fonte: Revista de História: Anais do X Encontro de História, ANPUH-MG, 1996. p. 87-100. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário