domingo, 1 de março de 2015

450 anos da cidade do Rio de Janeiro

Em comemoração aos 450 anos da cidade do Rio de Janeiro, a qual faz aniversário neste dia 1 março, sendo uma das cidades mais famosas do Brasil e do mundo, conhecida pelo epíteto de "Cidade Maravilhosa", decidi escrever esse texto no qual procurei contar um pouco da história da fundação da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, abordando a origem do nome "Rio de Janeiro", comentando acerca das visitas e exploração da baía de Guanabara, a colônia francesa da França Antártica (1555-1560), e as campanhas de conquista da baía para se firmar a fundação da cidade (1560/1564-65/1567). Sendo que optei em dar destaque ao recorte temporal entre 1555 a 1567, focando os conflitos com os franceses e os tamoios. 

A origem do nome Rio de Janeiro:

Existem controvérsias de quem teria sido o responsável por nomear a baía de Guanabara com o nome de Rio de Janeiro. Vivaldo Coaracy (1988, p. 301) apontou que entre os principais nomes para tal proeza se encontravam os capitães André Gonçalves, Gaspar de Lemos, D. Nuno Manuel, Fernando de Noronha e Américo Vespúcio. Coaracy defende que o mais provável teria sido André Gonçalves. De qualquer forma, se foi um desses ou não, é sabido que Américo Vespúcio estava entre eles, compondo a tripulação portuguesa enviada pelo rei D. Manuel I ainda em 1501, para explorar e mapear a costa da Terra de Santa Cruz (segundo nome do Brasil). 

"A expedição tomou contacto com terras do Brasil no dia 16 de agosto de 1501 e por ser esse dia consagrado pela Igreja a São Roque, deu este nome ao cabo que avistou. Daí em diante é fácil seguir o itinenário percorrido, pelas denominações tomadas ao calendário eclesiástico com que o comandante André Gonçalves provavelmente, deixou marcada a sua passagem: Cabo de Santo Agostinho (28 de agosto), Rio São Francisco (4 de outubro), Baía de Todos os Santos (1 de novembro), Cabo de São Tomé (21 de dezembro)". (COARACY, 1988, p. 302).

No dia 1 de janeiro de 1502 a pequena frota de três naus chegou a barra (foz) de uma baía, a qual tomaram como sendo um rio, então a chamaram de Rio de Janeiro. O historiador Pedro Calmon questionou se teria sido um equívoco dos portugueses em chamar de rio a baía, alegando que "rio" poderia ser empregado para se referir a estuário e lagamar. 

No entanto, o nome Rio de Janeiro continuou a ser usado pelos portugueses por vários anos. No Tratado do Brasil (1576) de Pero de Magalhães Gândavo, ele se referiu ao Rio de Janeiro como sendo um rio de fato. Já Gabriel Soares de Souza em seu Tratado descritivo do Brasil (1587), utilizou o nome Rio de Janeiro, mas se referiu a esse como sendo uma baía. Frei Vicente do Salvador um dos mais importantes cronistas da época colonial, o qual no ano de 1627 publicou o livro História do Brasil: 1500-1627, ainda continuava a usar o nome Rio de Janeiro para se referir a baía de Guanabara.

"O Rio de Janeiro está em vinte e tres graus debaixo do tropico de Capricornio, e impropriamente se chama de rio, porque antes é um braço de mar, que alli entra por uma bocca estreita que se pode facilmente defender de uma parte a outra com artilharia; mas dentro faz uma bahia ou enseada em que entram muitos rios e tem perto de quarenta ilhas, das quaes as maiores se povoam e as menores servem de ornar o sitio, ou de portos onde se abriguem os navios". (SALVADOR, 1918, p. 169).

Uma terra descolonizada:

No ano de 1504 o navegador português Gonçalo Coelho adentrou as águas do suposto "rio de Janeiro", vindo a descobrir que se tratava de uma baía (CARVALHO, 1990, p. 23). Gonçalo Coelho teria realizado contato com os indígenas e estabelecido acampamento provisório, chamado de "Casa de Pedra" o qual ficaria próximo ao rio Carioca, nome dado pelos indígenas que significa "casa de branco", para se referir ao acampamento de Coelho. O local foi escolhido por ser uma boa fonte de água potável, a qual ficou conhecida como Aguada dos Marinheiros. (COARACY, 1988, p. 303).

No anos seguintes novas visitas ao Rio de Janeiro continuaram a ocorrer, dentre as quais se conhecem a de João Dias de Sólis, navegador espanhol, ocorrida em 1515; a do francês Cristóvão Jaques em 1516 e depois em 1526. Segundo Coaracy (1988, p. 313) os franceses já haviam visitado o Brasil ainda no ano de 1503. Em 1519 tivemos a visita da importante expedição liderada por Fernão de Magalhães, incumbida de se realizar a primeira volta ao mundo.

Quando Fernão de Magalhães aportou na baía de Guanabara em 1519, durante sua expedição para se dar a volta ao mundo, um dos cronistas da expedição, o italiano Antonio Pigafetta (1985), relatou que não havia qualquer povoação europeia naquela baía (o que sugere que a Casa de Pedra erguida por Gonçalo Coelho, já tivesse sido destruída a tempos). Pigafetta descreve que os nativos tiveram muita curiosidade quanto aos europeus e seus objetos, no entanto, ele menciona que alguns já estavam familiarizados com os homens brancos. A expedição espanhola chegou ali em 13 de dezembro, voltando a partir em 27 do mesmo mês. Na ocasião, Magalhães achando que aquelas terras ainda fossem desconhecidas, batizou a baía com o nome de Santa Luzia, pois dia 13 de dezembro é sua data litúrgica.

De qualquer forma, outros navios europeus também voltaram a passar pela baía para ir coletar pau-brasil, aves nativas, outros tipos de plantas, e reabastecer-se com água e alimentos, ou fazer a faxina (limpar e reparar a embarcação). E assim anos foram se passando. Três décadas transcorreram até que Portugal decidiu colonizar o Brasil de fato, e quando no ano de 1534 o rei D. João III instituiu a criação das capitanias donatárias, a baía do Rio de Janeiro, como era mais conhecida, passou a pertencer ao território da Capitania de São Vicente (segunda porção), cuja capital era a Vila de São Vicente, na ilha homônima (hoje no estado de São Paulo). Levaria-se mais trinta anos até que uma cidade fosse fundada as margens da baía, até lá, aquelas terras haviam sido pouco exploradas, seus indígenas ainda eram considerados bastante agressivos.

Os cronistas coloniais referem em seus relatos que as terras entorno da "baía do Rio de Janeiro" eram bastante férteis, alguns chegam a dizer que se encontravam entre as mais férteis de toda a colônia.

Pero Gândavo em seus livros Tratado da Terra do Brasil e História da Província Santa Cruz, a qual vulgarmente chamamos de Brasil (1576) escreveu o seguinte sobre o Rio de Janeiro, já se referindo a ela como capitania na época, ainda assim, esboça as potencialidades daquela terra que tardou a ser colonizada. 

“A Capitania do Rio de Janeiro, Cidade de São Sebastião, está sessenta léguas do Espírito Santo em vinte e três graus e um terço, terra d’el-Rei Nosso Senhor. Pode ter pouco mais ou menos cento e quarenta vizinhos, agora se começa de povoar novamente. Esta é a mais fértil e viçosa terra que há no Brasil. Tem terras mui singulares e muitas águas para engenhos de açúcar. Há nela muito infinito pau do Brasil, de que os moradores da terra fazem muito proveito. Esta capitania tem um rio mui largo e formoso; divide-se dentro em muitas partes, e quantas terras estão ao longo dele se podem aproveitar, assim pera roças de mantimentos como pera canas-de-açúcar e algodões, porque são mui viçosas e melhores de quantas há por toda esta costa. Há nesta cidade um mosteiro de padres da Companhia de Jesus, os quais também aumentaram muito esta terra e desejam muito vê-la povoada de muitos moradores, porque são como digo as terras desta capitania mui largas, e sabem quão proveitosas são para toda gente pobre que as for possuir. E por tempo hão de se fazer nelas grandes fazendas: e os que lá forem viver com esta esperança não se acharão enganados”. (GÂNDAVO, 2008, p. 48). 

Nota-se nesse relato do cronista flamengo o fato dele considerar a baía de Guanabara como sendo um rio, mas a grande questão diz respeito a seu discurso em dizer que tratava-se das "terras mais férteis do Brasil". Até poderia ser, mas há uma condição a ser considerada, algo que o historiador Capistrano de Abreu já havia apontando no século XIX:

“Mais de uma vez repete que seu projeto se reduz a mostrar as riquezas da terra, os recursos naturais e sociais nela existentes, para excitar as pessoas pobres a virem povoá-la; seus livros são uma propaganda de imigração”. (ABREU in GÂNDAVO, 2008, p. 20). 

“Sua inspiração é principalmente utilitária, mas a cada instante o autor se distrai e mostra as faces de seu espírito: é um espírito indagador, curioso, convicto de que sob a aparência das cousas se escondem mistérios, uma vez indicando-os apenas, outras vezes revelando-os”. (ABREU in GÂNDAVO, 2008, p. 21).

De qualquer forma, propaganda em demasia ou não, Gândavo não foi o único a fazer isso, pois foi uma prática comum dos cronistas exaltar as potencialidades da terra, como forma de ganhar apresso do rei ou de algum nobre, os quais eventualmente poderia recompensá-los. No entanto, não podemos considerar tudo mera propaganda, de fato a terra era fértil, havia muitos rios e riachos que desaguam na baía, o pau-brasil naquele tempo era abundante; havia boa quantidade de pescado, o que contribuía para alimentar a população, e de fato os índios tiravam proveito disso. Mas diante dessas potencialidades, por que houve demora em se colonizar aquelas terras? Só não foi por clemência aos índios.

Os motivos pelos quais não ocorreu interesse em se colonizar essas terras, não são totalmente conhecidos. Martim Afonso de Sousa (1490/1500-1571) capitão donatário de São Vicente, não mostrou interesse pela segunda porção de suas terras, tendo se dedicado a desenvolver sua vila, a qual foi a primeira onde se construiu um engenho de açúcar. No entanto, Martim Afonso havia visitado o Rio de Janeiro, tendo permanecido ali por pelo menos três meses, realizando amizade com os tamoios, como também explorado as redondezas. Para Coaracy (1988, p. 306-307), teria sido um dos motivos para ele ter solicitado do rei que aquelas terras fizessem parte de sua capitania, pois havia enxergado potencial nelas.

Não obstante, no ano de 1533 o rei D. João III incumbiu Martim Afonso de liderar uma expedição na Índia, e assim ele deixou sua capitania em outras mãos e seguiu para o outro lado do mundo.  Posteriormente ele se tornou vice-rei da Índia. Seus sucessores não mostraram interesse naquelas terras, embora haja relatos que sesmarias foram doadas nas cercanias da baía, mas aqueles que receberam tais terras não possuíam recursos para ali se estabelecerem num ambiente considerado hostil.

Já frei Vicente do Salvador (1918, p. 169) sugeriu que a não ocorrência da colonização das terras da baía de Guanabara se deu devido a "covardia" de Pero de Góis da Silveira, então capitão donatário da Capitania de São Tomé, a qual fazia fronteira com a segunda porção da Capitania de São Vicente. Tal fronteira se encontra hoje nas terras do município de Macaé no estado do Rio de Janeiro. Pero de Góis havia fundado uma vila próxima ao rio Paraíba do Sul, ainda em meados da década de 1530. 

No entanto, após alguns anos de lutas contra os indígenas dos Goitacazes (SALVADOR, 1918, p. 92), ele abandonou com sua gente aquela vila e se refugiou na Capitania do Espírito Santo, tendo largado sua capitania. De acordo com frei Vicente do Salvador, Pero de Góis teria supostamente ideias de colonizar as terras da "baía do Rio de Janeiro", mas devido a agressividade dos indígenas ele acabou desistindo.

Mapa das primeira Capitanias hereditárias. O Rio de Janeiro pertencia ao território da segunda porção da Capitania de São Vicente.

A França Antártica:

Devido a essa falta de empenho por parte da capitania de São Vicente, a baía de Guanabara se tornou presa fácil para os franceses, os quais já algum tempo iam ali coletar pau-brasil, além de que alguns deles acabaram ficando naquelas terras, tornando-se membros das tribos e constituindo família. A presença francesa na costa brasileira ocorreu de Norte a Sul, indo do Amazonas ao Rio Grande do Sul. Logo, se encontram várias "praias dos franceses" pela costa brasileira. No entanto, o caso do Rio de Janeiro é importante, pois ali se estabeleceu uma das duas colônias que o Reino de França instituiu ilegalmente no Brasil.

Mapa francês da baía de Guanabara. c. 1555. No mapa se ver os principais pontos topográficos e o nome de aldeias indígenas. Um fato curioso é que no mapa mostra o Pão de Açúcar como ilha, assim como, originalmente era.

Todavia, o envolvimento dos franceses na história do Brasil, diz respeito ao fato que embora Portugal e Espanha houvessem negociado a divisão das terras do Novo Mundo no Tratado de Tordesilhas (1494), não significa que as outras nações europeias concordaram em serem excluídas. Logo, a França foi uma dessas nações que realizaram expedições de reconhecimento ao Brasil e outras terras do Novo Mundo. 

No ano de 1550, o ouvidor-geral Pero de Góis que seguia de viagem de São Vicente para a Bahia, aportou no Rio de Janeiro, onde capturou dois franceses que já viviam ali algum tempo. Eles foram levados para Salvador como prisioneiros, mas o governador Tomé de Sousa, lhes perdoou e permitiu que retornassem a sua pátria. Três anos depois Tomé de Sousa visitou a Guanabara, e reportou o seguinte: 

"Eu entrey no Rio de Janeiro que está nesta costa na capitande Martim Affonso 50 lleguas de São Vicente e 50 do Espirito Santo, mando o debuxo della a V. A. mas tudo he graça ho que se della pode dizer senão pinte quem quizer como deseje um Rio isso tem este de Janeiro, parece-me que V. A. deve mandar fazer ally hua povoação honrada e boa porque ya nesta costa non ha rio em que entrem francezes senão neste...". (COARACY, 1988, p. 308).

Nesse relato encaminhado em carta ao rei D. João III, o governador-geral do Brasil já mostrava preocupação com a constante presença francesa no Rio de Janeiro. O fato dele recomendar que uma povoação fosse ali feita, seria forma de proteger aquelas terras que estavam abandonadas por seu capitão donatário. O alerta não foi atendido.

No ano de 1554 o fidalgo, cavaleiro da Ordem de Malta e diplomata francês Nicolas Durand de Villegagnon (1510-1571) havia participado de uma expedição ao Cabo Frio (atualmente no estado do Rio de Janeiro), de lá ele seguiu a baía de Guanabara onde constatou a falta de ocupação portuguesa no local, e cogitou ser favorável para o desenvolvimento de uma colônia francesa. Villegagnon procurou fazer amizade com os Tamoios e Tupinambás, povos indígenas que habitavam do Cabo Frio à baía de Guanabara. 

"Este ousado nauta, natural de Provins, tinha-se antes feito célebre principalmente pelo modo com que, apezar dos cruzeiros inglezes, havia atrevidamente transportado para França a Rainha Maria de Escócia, que estava em Dumberton, porto de seu reino. Espírito emprehendedor e amigo de celebridade, teve occasião de saber o que era o Brazil, e como tanta riqueza e tanta terra e tantos portos estavam desattendidos. Ideou pois uma colonisação e ponto grande nestas paragens, escolhendo desde logo para o assento della a portentosa bahia de Janeiro, chamada por alguns do paiz Iterone ou Nicteroy e por outros Guánabará". (VARNHAGEN, 1877, p. 276).  

Retrato de Nicolas de Villegagnon.

Retornando a França, ele relatou suas observações sobre o Brasil, mas principalmente sobre a baía de Guanabara, contando ao rei Henrique II e Diane de Poitiers (amante do rei). O soberano francês ficou entusiasmado com o promissor relato de seu cavaleiro, então incumbiu seu ministro o almirante Gaspar II de Coligny a armar os preparativos da expedição ao Brasil, na qual Villegagnon recebeu o comando. O monarca francês já possuía interesse no Brasil antes desse relatório, mas não havia cogitado montar uma colônia lá. 

“Afinal, com dois navios bem artilhados e municionados e carregando todos os aprestos à construção de um forte, formou-se a expedição que, a 12 de julho de 1555, deixou o porto do Havre rumo ao do Rio de Janeiro, onde ancorou a 10 de novembro do precitado ano. Feito o reconhecimento da baía, Villegagnon escolheu a pequena ilha de Serigipe – atual Villegaignon, para a sede do governo da colônia, em cujo arranjo e defesa ele demonstrou o propósito de obra duradoura, obra que, na verdade, causou entusiasmo, teceu esperanças e moveu o tráfego mercantil no porto do Rio de Janeiro”. (GONÇALVES, 2004, p. 41).

André Thevet
Nessa expedição Villegagnon havia levado duas naus e uma embarcação de suprimentos, tendo levado algumas centenas de pessoas, o que incluiu dois padres beneditinos e o frei franciscano André Thevet (1502-1590), responsável por escrever o primeiro relato sobre a colônia da França Antártica, intitulada Les singularitez de la France Antarctique (1558), a qual possuía 41 xilogravuras. Thévet já havia visitado o Brasil anteriormente, estando familiarizado com o clima, a natureza e os nativos, daí ele ter sido um dos nomes escolhidos por Coligny para participar dessa expedição de colonização. Além de religiosos católicos, seguiam militares, artesãos, construtores e alguns nobres, como Bois Le Comte, sobrinho do almirante. Inicialmente o almirante Villegagnon ordenou o estabelecimento de um fortim na ilhota da Laje, logo na entrada da baía. Mas devido a falta de recursos no local e o fato da maré subir muito naquele lugar, ele acabou desistindo de ali erguer um fortim e preferiu montar um forte em outro lugar.

André Thevet (1978, p. 93) conta que os índios que ali viviam receberam com grandes festejos os franceses, realizando um banquete para lhes dar as boas-vindas. Lembrando que eles já eram conhecidos por ali a vários anos, e eram bem mais quistos do que os portugueses, pois os indígenas consideravam os franceses como amigos que viam coletar madeira e outros recursos, mas não vinham com a intenção de conquistá-los e escravizá-los. 

"Depois de permanecermos ali pelo espaço de dois meses, durante os quais procedemos ao exame de todas as ilhas e sítios da terra firma, batizou-se toda a região circunvizinha, que fora por nós descoberta, de França Antártica. Não se encontrou um lugar mais conveniente para estabelecer-se uma colônia fortificada de quem uma ilhota minúscula, de apenas uma légua de circuito, situada quase na boca deste rio de que estamos falando, à qual se deu o nome de Coligny, assim como também o forte nela edificado. Trata-se de uma ilha muito aprazível, recoberta de enorme quantidade de palmeiras, cedros, paus-brasis e arbustos aromáticos, verdejantes durante todo o ano. Na verdade, ali não havia água doce, mas esta não tinha de ser trazida de muito longe". (THEVET, 1978, p. 94). 

A ilha que Thevet chamava de Coligny, era chamada de Serigipe pelos nativos, hoje é mais conhecida como ilha de Villegagnon. Por sua vez, na praia em terra firme, diante da ilha, foi erguida uma vila, que foi chamada de Henryville, em homenagem ao rei de França. (VARNHAGEN, 1854, p. 230).

A Fortaleza de São Francisco Xavier. Litogravura de Pieter Godfred Bertichem, 1856. Embora conste na imagem o título de Fortaleza de Villegagnon. Tal fortaleza foi erguida na área do antigo Forte de Coligny. 

Os franceses conseguiram manter sigilo de sua colônia por alguns anos. Além dos mais, a administração do governo-geral de Duarte da Costa passava por problemas na década de 1550, não dando espaço para uma expedição contra os franceses, além do fato de não se conhecer a existência da colônia francesa na baía de Guanabara, pois como foi dito anteriormente, aquelas terras passaram vários anos sem serem colonizadas. De toda forma, o segredo francês durou por alguns anos, pois apenas em 1560, ou seja, já transcorridos cinco anos de ocupação francesa é que houve uma ação por parte dos portugueses.

A primeira expedição de Mem de Sá (1560):

De acordo com Capistrano de Abreu (1918, p. 48), devido a desentendimentos internos, por motivos políticos, sociais e religiosos, além de problemas em relação a manutenção da colônia, Villegagnon além desses problemas, também sofreu uma tentativa de motim (VARNHAGEN, 1877, p. 278), teria considerado como a gota d'água, e decidido abandonar a chefia da colônia. No ano de 1559 navios franceses sob comando do senhor Bois le Comte, retornavam a colônia, e foi em um desses navios que o almirante voltou para a França, tendo seu sobrinho assumido a chefia da colônia. 

Bois le Comte havia trazido artesãos para desenvolver uma olaria e ferraria na colônia; agricultores, cinco mulheres (pois inicialmente vieram apenas homens, os quais viviam com índias) para se realizar casamentos com "sangue francês", além de serem matrimônios oficiais, pois nem todos os habitantes da colônia, reconheciam como legítima a união de um francês com uma índia. Nessa expedição também vieram doze pastores calvinistas, entre os quais Philippe de Corguilleray, senhor Du Pont, bastante respeitado entre os huguenotes; Pedro Richier e Guilherme Chartier, os quais foram designados como líderes da expedição huguenote (SOUTHEY, 1862, p. 385). Enviados pelo próprio ministro Coligny (o qual se tornou um dos líderes do movimento protestante na França). 

Entre esses calvinistas estava Jean de Léry (1536-1613), na época um seminarista. Léry é um nome de destaque, pois redigiu um livro intitulado Histoire d'un voyage aux terres du Brésil (1578), obra sobre a história natural brasileira tão importante quanto a de André Thevet. 

Villegagnon não aprovou a vinda de pastores, pois sabia que havia interesse dos huguenotes em se "criar uma espécie de asilo para eles no Novo Mundo", longe das guerras religiosas que começavam a se espalhar por partes da Europa. Além disso, os pastores foram enviados com a missão de também catequizar os indígenas, algo que não agradou os missionários franciscanos e beneditinos que estavam ali. 

No final daquele ano o almirante foi embora. De acordo com Robert Southey (1862, p. 395), Villegagnon tinha planos de retornar ao Brasil, trazendo uma grande armada para consolidar a influência francesa no Rio de Janeiro, como também atacar outras localidades, no entanto, devido as guerras religiosas que dividiam a França, o rei não lhe forneceu ajuda, e os líderes huguenotes não foram consultados, pois o almirante não confiava nestes. Ele acabou desistindo de retornar ao Brasil.

Se anteriormente o então governador-geral do Brasil, Duarte da Costa não realizou nenhuma iniciativa para expulsar os franceses da baía de Guanabara, além do fato que Tomé de Sousa, seu antecessor havia chamado a atenção para o perigo dos franceses naquela região, ambos os governadores-gerais nada fizeram para impedir que os franceses continuassem a retornar ao Cabo Frio e a Guanabara. Coube ao terceiro governador-geral Mem de Sá (1500-1572) fazer isso. Ele chegava ao Brasil no ano de 1557 aguardado com grande expectativa.

"A situação crítica em que estava o Brazil pedia um governador activo, entedido, e sobretudo honesto. Todos estes dotes reunia o dezembargador Men de Sá, fidalgo de Casa e do Conselho do Rei, irmão do conhecido poeta Francisco de Sá de Miranda, e que no cargo de chefe da administração geral do Brazil sustentou os créditos de que já gosava, como "homem de grande coração, zelo e prudencia, acompanhado de lettras e experiencia de paz e guerra". (VARNHAGEN, 1877, p. 281). 
Retrato de Mem de Sá, terceiro governador-geral do Brasil (1558-1572).

Tomando posse em 3 de janeiro de 1558 do cargo de governador-geral, de início ele decidiu cuidar de assuntos administrativos e burocráticos, já que ainda naquele momento não se sabia da existência da França Antártica, embora navegadores haviam relatado um aumento significativo de navios franceses pela costa sul da colônia. Em 1559, o governador tomou conhecimento da existência da colônia francesa na baía de Guanabara, então enviou uma carta a rainha regente Catarina da Áustria, a qual cuidava do trono para seu neto D. Sebastião, que na época ainda era uma criança. A rainha tomando conhecimento da ameaça francesa no sul do Brasil, tratou de despachar ordens para enviar um exército para expulsá-los.

"No mez de novembro do mesmo anno (1559), chegava á Bahia, commandada pelo capitão mór Bartholomeu de Vasconcellos da Cunha, a armada destinada ao Rio de Janeiro contra os Francezes, devendo receber de Men de Sá as ordens convenientes sobre o modo de os aggredir, atacando-os, ou obrigando-os pelo bloqueo". (VARNHAGEN, 1877, p. 288). 

Mesmo tendo recebido apoio vindo de Portugal, Mem de Sá decidiu adiar o ataque a colônia franca, no intuito, de se conseguir mais homens para a expedição. Ele ordenou que homens aptos ao combate, o que incluiu colonos e índios, a serem convocados para compor uma tropa. O governador fez a mesma exigência para os capitães donatários do Espírito Santo e de São Vicente, que estes enviassem homens, navios e recursos para ajudar na batalha. 

No caso de São Vicente é importante mencionar a participação do importante padre jesuíta Manuel da Nóbrega (1517-1570) como mediador do governador com o capitão donatário de São Vicente, além do fato que o padre participou dessa expedição, tendo sido testemunha ocular. Em algumas de suas cartas, ele relatou o ocorrido na baía de Guanabara naquela ocasião (VARNHAGEN, 1877, p. 288).

No dia 15 de março de 1560 a expedição liderada por Mem de Sá adentrou a baía de Guanabara. De início o governador encaminhou uma proposta de rendição, mas o governador Bois Le Comte negou a aceitar os termos de rendição. Então Mem de Sá ordenou que seus homens aportassem na ilha e preparassem a artilharia e os postos de ataque para sitiar o forte Coligny. A luta durou dois dias e duas noites.  Segundo os relatos do governador e do padre Nóbrega, havia mais de setenta franceses no forte, e entre 800 a 1000 indígenas os auxiliando (VARNHAGEN, 1877, p. 289).

Mapa francês mostrando o cerco dos navios portugueses ao forte de Coligny durante os dias 15 a 17 de março de 1560. Nota-se no mapa, no lado esquerdo, Henryville, o núcleo urbano da França Antártica. Mapa publicado na edição de 1575 de Singularidades da França Antártica.

Mesmo com esse número grande de combatentes (valores questionáveis), após os dois dias de conflitos, os franceses se renderam. De acordo com os relatos da época, a comida, a água e a munição que eles possuíam armazenados no forte não eram suficientes para sustentar todo aquele contingente por alguns dias. No entanto, a população que se encontrava em Henryville acabou fugindo para a floresta, indo se abrigar nas aldeias.

Os franceses que se renderam e outros que foram capturados, foram feitos prisioneiros e seus navios foram confiscados, inclusive um deles foi confiscado por Estácio de Sá. Não obstante, o governador ordenou que o forte fosse destruído, que Henryville fosse incendiada e até mesmo enviou tropas para procurar os franceses que haviam ido se esconder nas aldeias, chegando a ordenar a rapina e a destruição de algumas dessas aldeias (COARACY, 1988, p. 312). 

Não conseguindo encontrar Bois Le Comte, além de ser arriscado tentar procurar os franceses foragidos, como também não dispunha de homens suficientes e recursos para mantê-los naquele território hostil, pois embora os franceses estivessem em menor número, havia centenas de índios por lá e a maioria das aldeias da baía eram lhe favoráveis. 

Mem de Sá decidiu seguir com seus navios para a Vila de São Vicente, para repará-los dos danos causados pela artilharia inimiga, descansar um pouco e depois retornar para a capital Salvador. Mem de Sá não ordenou que nenhuma guarnição ou vila fosse fundada naquele momento, no entanto, seu sobrinho Estácio de Sá em 1561 viajou a Lisboa, indo solicitar apoio da Coroa. Em 1562, Mem de Sá criou a Capitania do Rio de Janeiro (FRIDMAN, 2008, p. 78), a qual passava a ocupar o antigo território da segunda porção da Capitania de São Vicente. Apenas em 1565 é que a capitania foi efetivada com a criação de uma cidade.

A expedição de Estácio de Sá (1564-1565): 

Estácio de Sá foi o responsável por liderar a segunda expedição lusa contra os franceses na Guanabara, como também foi o fundador da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, além de se tornar o primeiro capitão-mor da Capitania do Rio de Janeiro. Mas isso ocorreu em 1565, ou seja, cinco anos após a expedição realizada por seu tio. Logo, antes de chegar a essa data, farei uma breve recapitulação.

Estácio de Sá (1520-1567), era filho de Gonçalo Correia e Filipa de Sá, logo, Estácio era sobrinho de Mem, por via feminina. Ele também teve um irmão chamado Francisco de Sá, mas fruto do segundo casamento de seu pai. Diferente do que se ver em alguns sites, Estácio já morava no Brasil a alguns anos, trabalhando com seu tio, tendo aproveitado a posição que ele conseguiu como governador-geral. Embora ele tenha comandado a segunda expedição, ele como já dito, havia participado da primeira expedição à França Antártica.

Em data incerta do ano de 1561 ele retornou a Portugal, indo solicitar a Corte apoio para se fundar um povoado na baía de Guanabara, assim como, expulsar o restante dos franceses que ficaram por lá. Só que o apoio tardou a chegar. Não entrarei em detalhes, mas apenas em 1563, Estácio retornava ao Brasil a bordo da Santa Maria, a Nova, com uma parca ajuda cedida pela Coroa. 

Logo, ele foi recorrer ao seu tio, o qual lhe forneceu alguns homens e recursos, no entanto, novamente o governador-geral enviou pedidos as capitanias do Espírito Santo e de São Vicente para enviarem reforços como da última vez. O governador enviou o ouvidor Braz Fragoso como seu representante direto, para aplicar suas ordens. O reforço de São Vicente não chegou naquele momento, mas o capitão-provedor do Espírito Santo, Belchior de Azeredo forneceu recursos e homens a expedição de Estácio, indo pessoalmente participar dessa empreitada. Da capitania espírito-santense também foi o valoroso índio temininó Martim Affonso Arariboia, liderando sua própria tropa (VARNHAGEN, 1877, p. 296). 

Estátua de Arariboia em Niterói. 

É preciso recordar que nessa época não havia um exército fixo na colônia. Os colonos dependiam da ajuda militar enviada pela metrópole, ou teriam que formar milícias. Isso pode parecer descaso da administração portuguesa, mas na verdade Portugal não possuía uma força militar ampla, além do fato de se evitar deixar um exército posicionado na colônia, pois esse poderia acabar se rebelando. 

De qualquer forma os preparativos para a segunda expedição demoraram mais um pouco do que Estácio gostou, apenas no ano de 1564, sua expedição adentrou a baía de Guanabara indo aportar próximo da ilha de Villegagnon. Os franceses não haviam reerguido aquele forte, mas haviam erguido trincheiras e postos de defesa em vários pontos da baía. Reforços haviam chegado nestes últimos anos, além do fato de que os tamoios e tupinambás decidiram massivamente entrar nessa briga.

"Reconheceu Estácio de Sá que com as forças de desembarque às suas ordens não poderia enfrentar vantajosamente o inimigo. Durante dois meses manteve-se, praticamente assediado, na Ilha de Villegagnon, repelindo os assaltos que lhe faziam. A situação era precária. Quando mandava buscar a água imprescindível à guarnição à aguada do Carioca, suas embarcações eram atacadas pelos índios, obrigando-os a ferozes combates. Resolveu enviar um barco a São Vicente, a buscar o Padre Nóbrega para pedir-lhe conselho. Numa de suas cartas Anchieta narra miudamente os incidentes então ocorridos com a acidentada viagem dos dois jesuítas salvos, quando já se julgavam perdidos, pelo inesperado retorno da frota que deixara o Rio". (COARACY, 1988, p. 313). 

A conselho do padre Manuel da Nóbrega, Estácio ordenou retirada de sua expedição e viajou para o sul, indo para a Vila de São Vicente, pois Nóbrega havia lhe assegurado conseguir reforços para sua empresa. No entanto, o apoio tardou a ser reunido, pois os vicentinos estavam tendo problemas com os índios no planalto do Piratininga, nas cercanias da Vila de São Paulo do Piratininga. O próprio Estácio viajou para lá, a fim de ajudar nos combates. Mas resolvido todos esses problemas, já no começo de 1565, finalmente Estácio conseguiu seus reforços, o que contava com vicentinos, paulistas e vários indígenas. Então eles seguiram de volta a Guanabara (COARACY, 1988, p. 313).

Partida de Estácio de Sá. Benedito Calixto. Na pintura se ver Manuel da Nóbrega benzendo o padre Anchieta, estando diante deles Estácio de Sá.

Em fevereiro a nova expedição estava de volta ao Rio de Janeiro, agora bem mais equipada e reforçada, Estácio decidiu fundar uma povoação e começar a erguer uma fortificação.

A cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro:

No dia 1 de março de 1565 foi lançada a pedra-base para a fundação de uma cidade na costa da baía de Guanabara. Estácio optou em chamá-la de Rio de Janeiro, nome pelo qual aquela baía era mais conhecida. No entanto, era costume português nomear as vilas e povoações com nome de santos e santas, além de dedicar padroeiros a estas vilas. Embora a cidade se chama-se São Sebastião, o nome não se deu propriamente ao santo, mas ao rei de Portugal, D. Sebastião I. Pelo fato do rei ter o mesmo nome do santo, optou-se em se seguir essa tradição, e São Sebastião tornou-se padroeiro do Rio de Janeiro. 

Afresco em azulejos retratando a fundação de São Sebastião do Rio de Janeiro por Estácio de Sá, em 1 de março de 1565.

"A expedição desembarcou no istmo situado entre o Pão de Açúcar e o Morro da Cara de Cão, começando logo a construir uma trincheira de defesa, as primeiras casas, abrindo um poço ou cacimba, levantando as paredes da primeira igreja, consagrada a São Sebastião e em que oficiava o Padre Gonçalo de Oliveira que, com o Irmão José de Anchieta, por ordem de Nóbrega, acompanhara o Fundador. Ali nasceu a cidade". (COARACY, 1988, p. 313).

José de Anchieta (1534-1597), responsável pela fundação do Colégio de São Paulo do Piratininga, que originou posteriormente uma vila, sendo o berço da atual cidade de São Paulo, também esteve associado a fundação da cidade do Rio de Janeiro, não como fundador, mas como um dos primeiros missionários jesuítas a atuar na cidadezinha, que no início não passava de uma povoação estabelecida entre o Morro Cara de Cão e do Pão de Açúcar, que naquela época ainda eram uma ilha (foi no século XVII que a região foi aterrada). Logo, a chamada Cidade Velha como viria a ficar conhecida, foi erguida no que hoje é o bairro da Urca

Atualmente existe a Praça de Fundação da Cidade, localizada na Praia de Fora, ao lado da Fortaleza de São João no bairro da Urca. O local consiste no marco zero, onde em 1565 Estácio de Sá lançou as bases para se criar a cidade.

Fotografia da Praça de Fundação da Cidade, vista a partir da Fortaleza de São João, Urca.

Já o marco de posse, feito de granito para simbolizar o marco zero da cidade, não se localiza na Praça de Fundação da Cidade, mas atualmente se encontra exposto na Igreja de São Sebastião dos Capuchinhos, no bairro da Tijuca. O monólito de pedra, de mais de dois metros de altura, o qual ainda se pode ver as gravações datadas do século XVI, está exposto ao público. 

Marco de posse da cidade do Rio de Janeiro. Atualmente em exposição na Igreja de São Sebastião, Tijuca.

"Arbitrou o capitão mór que o termo da cidade se estenderia, como o da Bahia, até um raio, para cada lado de seis léguas; e para patrimônio da camara e rocio da povoação doou legua e meia de terra. Por armas lhe concedeu um mólho de settas, alusivas aos supplicio do santo invocado". (VARNHAGEN 1877, p. 303). 

Brasão de Armas da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.

A Cidade Velha permaneceu ali localizada na ilha com os três morros (Cão, Pão de Açúcar e Urca) por dois anos, tendo se espalhado pela ilha. Estácio como capitão-mor designou sesmarias para vários homens, no entanto, devido a insegurança fora dos muros, tais famílias que receberam as datas de terra, tiveram que adiar sua mudança. Basicamente por estes dois anos, eles ficaram restritos a ilha. Não obstante, Estácio exercendo suas funções administrativas também nomeou as autoridades e os oficiais da Câmara do Rio de Janeiro.

"Juiz pedâneo (Antônio Martins Namorado), Procurador do Povo (João Prosse), Meirinho (Antônio Martins), Tabelião (Pedro Costa), Alcaide-mor (Francisco Pinto), Alcaide-pequeno (Francisco Fernandes), Porteiro e Pregoeiro da Câmara (Batista Fernandes)". (COARACY, 1988, p. 314).

"Dois anos permaneceu Estácio de Sá tenazmente plantado ali, junto à Cara de Cão. Foram dois anos de lutas continuadas, repelindo assaltos, combatendo franceses e tamoios, enfrentando ciladas armadas às suas embarcações quando estas se aventuravam no interior da baía. [...] Foram dois anos de lutas, sacrifícios e dificuldades em que só a pertinácia e decisão do Fundador, com o exemplo de sua intrepidez, mantiveram irredutível a posição portuguesa". (COARACY, 1988, p. 314-315).

A segunda expedição de Mem de Sá (1567):

Estácio não dispunha de gente suficiente para adentrar o território inimigo e desembarcar os franceses e seus aliados tamoios. O padre Anchieta em fins de 1566 partiu para Salvador indo solicitar do governador-geral ajuda imediata. O jesuíta relatou ao governador o ocorrido nos últimos dois anos, como esboçou a necessidade de um socorro rápido, senão a cidade corria o risco de ser tomada. Mem de Sá deu ordens para convocar uma nova expedição e para sua sorte chegava naquele tempo o capitão Cristóvão de Barros, enviado de Lisboa com alguns navios e soldados para auxiliar o capitão-mor Estácio de Sá. 

No trajeto até o Rio de Janeiro, Mem de Sá foi convocando homens pelas Capitanias de Porto Seguro e Espírito Santo, e na manhã de 18 de janeiro de 1567 a nova expedição formada por onze navios e centenas de homens aportaram diante da cidadezinha. Nessa expedição nos informa Coaracy (1988, p. 315) que seguiam junto o bispo D. Pedro Leitão, o visitador dos jesuítas, Inácio de Azevedo, e Salvador Correia de Sá, parente (na verdade era primo, mas era tratado como sobrinho) do governador e figura importante na história do Rio de Janeiro. 

No dia 20 de janeiro (dia de São Sebastião) foi decidido iniciar-se os ataques aos redutos dos franceses e dos tamoios. O alvo inicial foi a fortificação de Uruçamorim ou Uruçumirim (localizado no bairro da Glória próximo ao aterro do Flamengo). Com essa fortificação os franceses e tamoios asseguravam o controle da aguada do Carioca, importante fonte de água potável, além do fato, que tal fortificação inimiga distava poucos quilômetros da Cidade Velha. 

A batalha foi intensa naquele dia, mas os portugueses obtiveram vitória, e curiosamente as fontes relatam que havia poucos franceses ali, sendo na maioria indígenas. A fortificação foi demolida e os franceses feitos prisioneiros foram posteriormente executados. Entretanto, durante essa batalha Estácio foi ferido por uma flecha no rosto. Um mês depois ele faleceu devido a infecção do ferimento. Com a morte de Estácio, seu tio assumiu o comando como capitão-mor.

Túmulo de Estácio de Sá, atualmente na Igreja de São Sebastião dos Capuchinhos, Tijuca.

Robert Southey (1862, p. 423) salienta que com a queda de Uruçamorim, pelo menos quatro navios franceses conseguiram fugir, partindo em direção a Pernambuco. No entanto, a batalha de conquista não estava terminada. Após a morte de Estácio, o governador Mem ordenou novo ataque a outra importante defesa na baía, o forte de Pernapucu (também chamado de Paranapuai, Paranapuã, Paranápecú, etc.), localizado na Ilha dos Gatos ou Ilha dos Maracayás, a qual consiste na maior ilha da baía de Guanabara, conhecida hoje mais pelo nome de Ilha do Governador. Segundo carta do próprio Mem de Sá, naquela ilha estariam alojados pelo menos mil indígenas.

Após três dias de ferrenhas batalhas na ilha, os índios e alguns poucos franceses que se encontravam por ali, acabaram se rendendo. Mem de Sá que comandou o ataque, ordenou que os indígenas fossem feitos prisioneiros e depois vendidos ou dados como escravos. Após essa vitória os outros redutos franceses acabaram desistindo de manter resistência. Alguns aproveitaram para fugir em seus navios e outros fugiram por terra, seguindo em direção ao Cabo Frio ou outra localidade para serem resgatados. De qualquer forma, os poucos franceses e tamoios que tentaram alguma resistência foram derrotados. E, assim Mem de Sá consolidava a conquista da baía de Guanabara. 

A segunda cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro:

Após firmar o poderio militar na baía de Guanabara, acabando com as últimas revoltas e se certificando que as demais tribos dos tamoios e tupiniquins, assim como, os próprios franceses por hora não tentariam nenhuma nova revolta ou tornariam a atacar os navios e a cidade, Mem de Sá tratou de transferir o local da cidade para um sítio que ele considerava ser mais seguro. O novo local foi o Morro do Castelo, o qual ficava no atual centro da cidade.

Infelizmente o Morro do Castelo não existe mais. As construções históricas e casas que ali existiam foram destruídas a partir de 1921, para ceder espaço em reformas urbanísticas. Sua terra foi usada para aterrar outros locais da cidade. No entanto, algumas pessoas se perguntam se existiu um castelo naquele morro, que teria dado tal nome aquele local. Na verdade nunca houve um castelo propriamente. No século XVI quando o local passou a ser ocupado, a palavra castelo era usada como sinônimo de fortificação, logo, em alguns mapas e livros, se encontra o emprego da palavra castelo para se referir a fortes ou fortalezas. 

No caso do Morro do Castelo, no ano de 1567, o governador Mem de Sá ordenou a construção da Fortaleza de São Sebastião (ou São Januário), do Forte de São Tiago da Misericórdia e de uma bateria consagrada a Sant'ana. Além dessas fortificações, foram erguidos muros, paliçadas e fossos, para reforçar a nova cidade. E como inicialmente as casas, a igreja dos jesuítas, a igreja de São Sebastião, a câmara, a cadeia, o mercado, a praça, a casa do governador, entre outras construções foram erguidas sobre a área do morro (FRIDMAN, 2010, p. 79). O local posteriormente ficou conhecido como Morro do Castelo devido a ser murado e possuir fortificações, embora também fosse conhecido por outros nomes (ver nota 3). 

Mapa da baía de Guanabara com algumas das suas localidades. No entanto, destaque para a localização da Cidade Velha e da Cidade Nova.

Embora Estácio tenha concedido sesmarias desde 1565, sendo a primeira doada à Companhia de Jesus (COARACY, 1988, p. 316), finalmente os seus donos puderam se mudar para suas terras. No caso dos jesuítas eles se mudaram para o norte da nova cidade, indo se estabelecer com parte dos indígenas rendidos durante a conquista dos dois fortes, já que muitos deles foram usados como escravos para construir a cidade, mas agora concluído as obras, os jesuítas se incumbiram de catequizá-los. 

Mais ao norte da povoação jesuíta, se estabeleceu uma aldeia sob comando de Martim Affonso Arariboia, chefe indígena que acompanhou o governador e serviu durante essa segunda expedição. Sua aldeia foi erguida onde hoje é o bairro de São Cristovão, mas em 1573 ele foi enviado para o outro lado da baía, para uma localidade chamada de São Lourenço, hoje em Niterói (SOUTHEY, 1862, p. 426).

Salvador de Sá quando foi designado em 1568 capitão-mor do Rio de Janeiro, recebeu de seu tio metade das terras da Ilha do Governador, anos depois ele solicitou a Coroa o restante da ilha que pertencia a seu tio. De fato o nome da ilha não se deve a Mem de Sá, mas a Salvador de Sá, pois como ele se tornou senhor daquela ilha, tendo construído engenhos e plantado cana, as pessoas passaram a se referi-la como "ilha do governador" (COARACY, 1988, p. 320). 

Mapa atual do Rio de Janeiro, editado pelo autor. Nos círculos vermelhos se encontram as principais localidades mencionadas ao longo do texto.

Considerações finais:

"Quando já não havia risco de invasões, em 1576 ou 1596 (há divergências quanto à data foi iniciada a descida para a várzea. O centro econômico, administrativo e de devoção deslocou-se para a praia dom Manuel, onde estava instalado o porto dos Padres da Companhia. Tal ancoradouro, resguardado pelo pontal do Calabouço, demarcava a Porta da Cidade, posteriormente denominada de Beco da Música. Na praia, a rua Direita tornou-se o eixo principal no qual foram edificados a Casa do Sal, os trapiches, o armazém de óleo de peixe, as igrejas e as fortificações". (FRIDMAN, 2010, p. 79). 

Com o estabelecimento da segurança na região algo que não veio de imediato, pois há relatos de ataque dos tupinambás, no entanto, com a segurança estabelecida a população urbana começou a crescer e a cidade desceu do Morro do Castelo se espalhando em torno deste. Por sua vez as fazendas começaram a se expandir e novas sesmarias foram sendo doadas nos anos seguintes. 

Apenas no curto governo de Estácio de Sá pelo menos 30 sesmarias foram doadas (FRIDMAN, 2010, p. 83), abrangendo as atuais áreas que iam da Lagoa Rodrigo de Freitas até o bairro de São Cristóvão. No século seguinte, já temos sesmarias mais distantes, incluindo a ilha de Paquetá, as terras que hoje são Duque de Caxias, Niterói e São Gonçalo, etc., além de se expandir pela região sul e sudoeste do atual Rio de Janeiro.

A história da fundação da Capitania do Rio de Janeiro e da sua capital, assim como, ocorreu com outras vilas e cidades do Brasil, foi uma história de batalhas, pois já houve tempo em que se dizia que o Brasil se formou de forma pacífica. Foram necessárias três expedições para firmar o controle português em terras que já pertenciam a Coroa. Para se ter ideia, a Capitania da Paraíba fundada vinte anos depois (em 1585), necessitou de cinco expedições para ser fundada.

Além do fato que os franceses iam ali para coletar pau-brasil e já eram amigos dos potiguaras. Portugal temendo que uma nova colônia franca se estabelece-se naquela região, ou pudesse surgir na Capitania do Rio Grande (do Norte), ordenou empenho para se fundar uma cidade ali. Embora que Rio Grande, Paraíba, Itamaracá e Pernambuco se livraram da ameaça francesa, o Maranhão não teve o mesmo destino, vindo a se formar uma segunda colônia francesa ali, chamada de França Equinocial que durou poucos anos no começo do século XVII.

NOTA: A fortaleza de São Francisco Xavier na ilha de Villegagnon ainda existe em parte. Dividindo espaço com as edificações da Escola Naval do Rio de Janeiro, fundada em 1938. 
NOTA 2: A Igreja de São Sebastião na qual reside os restos mortais de Estácio de Sá e o marco de fundação da cidade, não deve ser confundida com a Catedral de São Sebastião, localizada no centro da cidade.
NOTA 3: O morro do Castelo foi conhecido por outros nomes como: morro do Descanso, da Sé, de São Januário, de São Sebastião. 
NOTA 4: Segundo Varnhagen, maracayá ou maracajá era a palavra em tupi para designar gato selvagem. Logo, os portugueses traduziram a palavra para gato, daí Ilha dos Gatos. 
NOTA 5: Os tamoios e tupinambás não era um mesmo povo, no entanto, na década de 1560, os tupinambás haviam formado uma aliança que ficou conhecida nos livros de história como Confederação dos Tamoios, que incluía os tupinambás, aimorés e guaianazes. Daí nos livros se referirem aos indígenas do Rio de Janeiro como tamoios devido a essa aliança, mas de fato não se tratava do povo tamoio.
NOTA 6: Existe um monumento a Estácio de Sá, localizado no aterro do Flamengo. O monumento lembra um obelisco. 
NOTA 7: Bois Le Comte após ser derrotado em 1567, deixou o Brasil. Assim como seu tio, ele nunca mais voltou. 
NOTA 8: Em 1711 os franceses empreenderam um ataque arriscado na tentativa de conquistar o Rio de Janeiro. Antes disso, eles tentaram ocupar outras regiões da costa, inclusive praticando pirataria, atacando os navios portugueses. 
NOTA 9: O seriado francês Vermelho Brasil (Rouge Brésil) baseado no livro homônimo de Jean-Christope Rufin, conta a história da fundação e resistência da França Antártica. Em 2014 a minissérie foi lançada em formato de filme. 
NOTA 10: Em 1629-1630 os holandeses cogitaram atacar e conquistar o Rio de Janeiro, mas como obtiveram êxito e conquistar Olinda, então capital da Capitania de Pernambuco, optaram em permanecer no Nordeste e conquistar as capitanias vizinhas. 

Referências Bibliográficas:
ABREU, João Capistrano de. Capítulos de história colonial: 1500-1800. Rio de Janeiro, impresso por M. Orosco & C., 1907. 
CARVALHO, Carlos Delgado de. História da cidade do Rio de Janeiro. 2a ed, Rio de Janeiro, Secretária Municipal de Cultura e Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, 1990.  
COARACY, Vivaldo. Memórias da Cidade do Rio de Janeiro. Belo Horizonte, Ed. Itatiaia, 1988.  
FRIDMAN, Fania. São Sebastião do Rio de Janeiro: séculos XVI e XVII. In: PINHEIRO, Augusto Ivan de Freitas (org.). Rio de Janeiro: cinco séculos de história e transformações urbanas. Rio de Janeiro, Casa da Palavras, 2010. 
GÂNDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil: história da província Santa Cruz, a qual vulgarmente chamamos de Brasil. Introdução Capistrano de Abreu, notas de Rodolfo Garcia, advertência de Afrânio Peixoto. Brasília, Senado Federal, Conselho Editorial, 2008. (Coleções Senado Federal - vol. 100). 
GONÇALVES, Aureliano Restier. Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro: terras e fatos. Rio de Janeiro, Secretária Municipal das Culturas e Arquivo Geral da cidade do Rio de Janeiro, 2004. (Coleção Memória Carioca, volume 4). 
PIGAFETTA, Antonio. A Primeira Viagem ao Redor do Mundo: o diário da expedição de Fernando de Magalhães. Tradução de Jurandir Soares dos Santos, introdução e notas de Carlos Amoretti. Porto Alegre, L&PM, 1985. 
SALVADOR, Vicente do. História do Brasil: 1500-1627. Nova edição revista por Capistano de Abreu. São Paulo/Rio de Janeiro, impresso por Weiszflog Irmãos, 1918.  
SOUTHEY, Roberto. História do Brazil, tomo I. Tradução de Luiz Joaquim Oliveira e Castro, notas do Cônego J. C. Fernandes Pinheiro. Rio de Janeiro, Livraria B. L. Garnier, 1862. 6v. 
SOUZA, Gabriel Soares de. Tratado descritivo do Brasil em 1587. 3a ed, por Francisco Adolfo de Varnhagem. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1938. (Coleção Brasiliana, série 5a, vol. 117). 
THEVET, André. As singularidades da França Antártica. Tradução Eugênio Amado. Belo Horizonte, Ed. Italaia, 1978. 
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brazil, tomo 1. 2a ed, Rio de Janeiro, E. e H. Lammaert, 1877. 2v.    

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As capitais do Brasil

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