Ariano Suassuna e o mito do cabreiro
Maria Aparecida Lopes Nogueira
O processo que envolve a adjetivação armorial é uma
tentativa de sobrevoar a obra de Ariano Suassuna. Parte do pressuposto de que
as imagens se constituem em elementos potencializadores da compreensão, pois
transbordam as objetivações explícitas do real. Por isso, logo de início,
advirto que a vida e as ideias do autor ultrapassam os limites da categorização
armorial e de quaisquer outras possíveis categorizações; pois trata-se
de uma obra pulsante, aberta a recriações e bricolagens ad infinitum.
Ariano emerge de um quadro interpretativo da ordem do
vivido, da corporificação, da encarnação. “Tudo que eu digo na minha literatura
tem a ver com cabra”; afirma o autor, no documentário O Sertão Mundo de
Suassuna, um filme armorial de Douglas Machado. Nesse âmbito, o Cabreiro é
a metáfora viva que expressa a universalidade da obra; desdobrando-se em
uma infinidade de significações, capazes de forjarem sentidos para sua existência,
retroalimentando-o incessantemente:
“Eu sempre tive uma grande simpatia pela cabra. (...) Sempre
achei que ela poderia ser a solução para uma total revitalização política, literária
e econômica do sertão nordestino”2
Do mesmo modo que “a cabra é trancada por dentro.
Condenada à caatinga seca”, segundo os belos versos de João Cabral de Melo
Neto, reconheço que Ariano também o é, afinal são seres de mesma
natureza. Trata-se de um tipo de antropomorfização que traz à tona a
constante tensão entre natureza e cultura, deixando claro que as relações do
homem com o meio natural desempenham, antes de qualquer coisa, um papel de objeto
do pensamento.
Focalizar a intrincada teia que envolve o homem e a cabra
significa participar do devir do Cabreiro. Através do que ouve e
escreve, Ariano-Cabreiro saboreia a palavra; e, tal como as cabras,
tresmalhou-se pelas encostas e mistérios em tempos imemoriais. Por isso sua
palavra requer, sempre, um novo onirismo.
Nessa perspectiva, o transbordamento de imagens que ocorre a
partir da estranha e forte fraternidade que religa Ariano e a cabra impõe uma
ordenação ao caos primordial. Os pastores
de Virgílio e de Longo podem ser compreendidos, então, como arquétipos desse companheirismo.
Nosso autor é membro da Associação Brasileira de Criadores
de Cabras. Em sociedade com o primo Manuel Dantas Vilar, o Manelito, sua
criação tem como objetivos a preservação e regeneração da cabra nativa do
sertão nordestino. Costuma reafirmar: “somos criadores de cabra
ibero-brasileiras (como o povo brasileiro), vermelhas, brancas e negras-azuis”.
As vermelhas possuem uma lista preta no dorso, em homenagem ao time de futebol que
torce, o Sport Clube do Recife.
Acalentado por Dáfnis, um pastor – personagem do livro
de Longo, “Dáfnis e Cloé” -, sua alma de Cabreiro entrega-se às malhas da
tensão existente entre o real e o irreal; acredita que uma beleza invisível
subjaz a todas as coisas.
O Cabreiro é um criador de cabras, um ser em vertigem que
transita entre as margens do Mediterrâneo, a península ibérica, o Oriente, o
sertão nordestino e as montanhas, onde tudo foi convertido em pedra. E “Se a
serra é terra, a cabra é pedra”, segundo o mesmo poeta João Cabral. Por
isso, não é simples coincidência que seu principal livro tenha como mote a
pedra, a partir de um episódio sebastianista ocorrido no sertão pernambucano,
em 1838.
Em seu “O Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue
do Vai-e-Volta”, Ariano, ou melhor, Quaderna, narrador e personagem principal,
vê-se enredado em um processo; a narrativa se desenvolve enquanto ele presta um
longo depoimento ao juiz-corregedor.
Mas não se trata de um romance histórico, pois o autor
transfigura/poetiza a realidade: “São as duas enormes pedras castanhas a que já
me referi, meio cilíndricas, meio retangulares, altas, compridas, estreitas,
paralelas e mais ou menos iguais, que, saindo da terra para o sol esbraseado,
numa altura de mais de vinte metros, formam a torre do meu Castelo, da Catedral
encantada que os Reis meus antepassados revelaram como pedras angulares do
nosso Império do Brasil. [...] As pedras e lajedos do nosso sagrado Cariri
encontram-se, às vezes, em aglomerados que parecem Fortalezas ou Castelos
arruinados.
A partir daí, toda vez que eu lembrava dos dois rochedos
gêmeos da Pedra do Reino, era como se eles fossem, além da Catedral Soterrada
que os Reis, meus antepassados, tinham revelado, a Fortaleza e o castelo onde
se fundamenta a realeza do nosso sangue” (1971:33-34).
A pedra-cabra irrompe como metáfora crua do sertão; possui
forte couraça de aço a fim de resistir à caatinga. Sem dúvida, esse é um dos
temas obsessivos que religam o conjunto da obra. A escrita forte, áspera e
insana de Ariano ressoa na plenitude de um Quaderna que percorre ad
infinitum o trajeto que vai da tragédia à comédia, reiterando uma tensão
permanente.
Pode-se mesmo falar de um idioma pedregoso, especificidade
daqueles que entreabrem um sertão alucinado, povoado de mitos, desejos,
bifurcações, sonhos, delírios e devaneios: intensa busca de um Édipo interior
que decifre os enigmas daquela terra-brasa:
“Minha história só será entendida integralmente por uma
pessoa para quem a palavra ‘pedra’ representasse tudo o que significa para mim.
Uma pessoa que, ao ouvir dizer ‘pedra´, entrasse imediatamente em um reino,
pobre mas reluzente. (...) Arcanjos de quartzo e de cristal-de-rocha, me
revelariam o Sentido do Mundo!” (1974b:80).
Em meio às pedras, homem e cabra ocupam a terra-seca – o
sertão que é o mundo – com sua “alma-caroço”. Vale ressaltar que o ritual dionisíaco
originou a tragédia. Em grego, tragos significa bode, animal sagrado. Os
sátiros são homens-bode; o próprio Dioniso assumiu esta forma, em uma de suas
metamorfoses para fugir dos Titãs; Zeus foi amamentado por uma cabra. Mas o
mito se atualiza, por isso o Cabreiro pulsa em alguns momentos da obra de
Virgílio, Longo, Raduan Nassar, João Cabral de Mello Neto e Ariano Suassuna,
entre outros, reiterando sua universalidade e suas especificidades.
Ariano cria uma obra, ao mesmo tempo, tumultuada, insolente,
aberrante, leve, risonha e delirante. Guarda consigo um tempo: o tempo da
infância, quando ainda desfrutava da companhia do pai – o advogado, presidente
da Paraíba e deputado João Suassuna -, assassinado covardemente no Rio de
Janeiro, com três tiros pelas costas, durante os episódios que antecederam a
Revolução de 30:
(Lembrança de Meu Pai) – Com Mote de Janice Japiassu
Aqui morava um Rei, quando eu menino
vestia ouro e Castanho no gibão.
Pedra da Sorte sobre o meu Destino,
Pulsava, junto ao meu, seu coração.
Para mim, seu Cantar era divino
Quando, ao Som da Viola e do bordão
Cantava com voz rouca o Desatino,
o Sangue, o riso e as mortes do Sertão.
Mas mataram meu Pai. Desde esse dia
eu me vi Cego, sem meu Guia,
que se foi para o Sol, transfigurado.
Sua efígie me queima. Eu sou a presa,
ele a brasa que impele ao Fogo, acesa,
Espada de ouro em Pasto ensangüentado.
(1974:99).
O Cabreiro-Ariano também é lírico, contemplativo; seu ofício
é ruminar as palavras e as mesmas lembranças tornadas pedras. É atravessado por
uma força peculiar que reencontra o passado a todo instante, através da
singularidade de uma cólera petrificada, ressonância da sabedoria e fortaleza
de Dona Ritinha, sua mãe, quando impediu que os filhos e toda a família
vingassem o assassinato do pai. Já não se percebe no tempo, revolve a terra
magra, o corpo magro e sonha com um sertão, não importa qual. Há grandeza e orgulho
nesse passado que teima em reencontrar: pai, mãe, irmãos e irmãs, tios, tias, primos,
primas e amigos.
Sua estética tem como uma das matrizes esse passado que
carrega com tanto carinho, por isso considera, também, a beleza do feio e do
desarmonioso:
(...) “Eu acho o Sertão bonito exatamente por causa daquilo
que os delicados acham feio nele – o nosso Povo mameluco,
tapuio-ibérico, de cara de bronze e pedra; o Sol implacável; os nossos
estranhos heróis, personagens de uma Legenda obscura e extraviada; as estradas
e Caatingas empoeiradas, pedreguentas e espinhosas; as casas-fortes quadradas,
brancas, achatadas e baixas, meio mouras, de paredes de pedra-e-cal ou de
taipa, e de chão de tijolo; e a Caatinga espinhosa e selvagem, povoada de
répteis envenenados, de aves de rapina, escorpiões, marimbondos e
piolhos-de-cobra” (1977:65).
Mas o homem que vive da cabra desconfia dela, pois segundo
afirmam, tem parte com o diabo. Como todo sertanejo, desconfia de tudo,
prisioneiro que é dos próprios dramas. Agora, novamente na condição de Secretário
de Cultura do Estado de Pernambuco3, apesar da suposta fragilidade, sabe-se capaz
de pedra, enfrenta as tormentas e críticas de forma incansável, com a
sabedoria do Mestre que se tornou ao longo dos anos.
Como um Quixote, cavalga o Brasil inteiro na defesa
da cultura nacional, sem xenofobia. Alerta os desatentos, des-desertifica os corações,
sobe e desce de aviões, atravessa rios, matas, avenidas, para cumprir a missão
que se impôs: semear sonhos de um país mais justo e mais fraterno. Costuma
cantar o frevo de bloco “Madeira que o Cupim não Rói”, de autoria de Capiba,
uma espécie de emblema da vitória da cultura brasileira:
“Madeira do Rosarinho
Vem à cidade sua fama mostrar.
E trás com seu pessoal
Seu estandarte tão original.
Não vem pra fazer barulho
Só vem dizer, e com satisfação:
Queiram ou não queiram os juízes,
O nosso Bloco é de fato campeão.
E se aqui estamos
Cantando esta canção,
Viemos defender a nossa tradição.
E dizer bem alto
Que a injustiça dói.
Nós somos madeira-de-lei
Que o cupim não rói”.
Como João Grilo e Chicó, desperta, rodopia,
reinventa a vida restituindo ininterruptamente o dom do maravilhoso e da graça,
pois Ariano-Cabreiro é uma criança risonha a desentranhar sonhos e brincadeiras.
Em o “Auto da Compadecida”, sua peça mais conhecida, os referidos personagens
não param de aprontar, sob as bênçãos de Nossa Senhora, a Compadecida. Segundo
o próprio autor, é preciso compreender que as artimanhas expressam que a
astúcia é a coragem do pobre; são as condições de escassez do sertão que
fomentam uma aprendizagem arrancada na dureza da vida, aquela que ajuda a driblar
a fome e a humilhação.
São eles, também, os palhaços-do-cotidiano, que ainda
gargalham, desdenhando de si mesmos e da lógica econômica que – infelizmente –
predomina na nossa sociedade. Exigem respeito, tolerância, dignidade, casa,
saúde e educação, como qualquer homo sapiens sapiens. Apesar de
tantos problemas a enfrentar, no diálogo a seguir, João Grilo e Chico
nos ensinam a importância de mentir; ou melhor, de tingir com cores fortes
o tom desbotado da vida:
Chicó:
Foi uma velha que me vendeu barato, porque ia se mudar, mas
recomendou todo o cuidado, porque o cavalo era bento. E só podia ser mesmo,
porque cavalo bom como aquele eu nunca tinha visto. Uma vez corremos atrás de
uma garrota, das seis da manhã até as seis da tarde, sem parar nem um momento,
eu a cavalo, ele a pé. Fui derrubar a novilha já de noitinha, mas quando acabei
o serviço e enchocalhei a rês, olhei ao redor, e não conhecia o lugar em que
estávamos. Tomei uma vereda que havia assim e saí tangendo o boi...
João Grilo:
O boi? Não era uma garrota?
Chicó:
Uma garrota e um boi.
João Grilo:
E você corria atrás dos dois de uma vez?
Chicó, irritado:
Corria, é proibido?
João Grilo:
Não, mas eu me admiro é eles correrem tanto tempo juntos,
sem se apartarem. Como foi isso?
Chicó:
Não sei, só sei que foi assim
(1989:27-28).
Não é segredo para ninguém a grande admiração que Ariano tem
pelo mentirosos e doidos; que, segundo ele, são nossos Aedos, possuem a
capacidade de tornar a vida mais bela e agradável. Um processo de identificação
aproxima o autor desses personagens, dando a ver mais uma dimensão do nosso
Cabreiro: a de contador de histórias, característica que herdou da família:
“Manoel Bento, um doido, morador de Taperoá, sertão da
Paraíba, certa vez foi encontrado indócil, procurando algo: ‘Homem, está
procurando o quê?’ Respondeu: ‘Uma carteira cheia de dinheiro!’ Mal
respondeu, viu-se rodeado por um bom número de pessoas, que
também passaram a procurar a tal carteira. Depois de algum tempo, uma delas, já
impaciente, perguntou a Manoel: ‘Você tem certeza que perdeu a carteira aqui?’
‘Eu não perdi nada, não... Estou querendo é achar uma carteira cheia de
dinheiro!’”.
Impregnado de uma oralidade profunda, as temáticas da
insanidade e da mentira se repetem; elas delineiam os contornos de uma recusa
em defrontar-se com o real, utilizando o humor como estratégia. Na condição de
palhaço-contador de histórias ou poeta da vida, preserva na alma a ingenuidade
e o frescor dos sentimentos encontrados nas Mil e Uma Noites,
revelando a força de um imaginário nômade do deserto, que continua encantando todos
nós:
“De outra vez, o mesmo Manoel Bento foi encontrado, numa
manhã, com o ouvido encostado na parede. O curioso que o flagrou, resolveu
imitá-lo. Já cansado, no final da manhã, lamentou-se: ‘Eu não estou
ouvindo nada’. ‘Pois é, desde cedo que
eu estou tentando, e, até agora, também não consegui ouvir nada’”.
A contação de histórias pode ser percebida como um exercício
de revitalização da palavra-imagem, tão cara ao escritor. É a palavra-imagem que
possibilita o enfrentamento das intempéries, uma espécie de resistência à dor,
ao sofrimento e às injustiças do mundo.
Por isso a oralidade permanece viva na produção, manutenção
e transmissão do capital cultural, apesar do amplo leque de suportes de
comunicação disponíveis nos dias atuais.
O Cabreiro-Ariano também é marcado por uma religiosidade
profunda, que ressoa na sua alma de profeta, retroalimentada pelo Barroco. Como
se fora o pastor amoroso de Fernando Pessoa, ou – mais especificamente –
Alberto Caeiro, sua conversão ao catolicismo foi influenciada por Zélia, sua
esposa, que conheceu aos vinte anos de idade, um encontro definitivo:
“Foi aí que, por sorte minha, surgiu diante de mim – como
uma bênção que me tivesse sido enviada do Sol, como uma compensação à minha
infância sangrenta e atormentada – a figura da Mulher, aquela que passará a ser
o resumo ancestral e sagrado da vida. Foi uma espécie de revelação. Eu a via,
gentil e sem afetação, como se estivesse em comunicação direta com a corrente
subterrânea e sagrada do Mundo, com o dom da vida que somente ela era capaz de
comunicar ao meu sangue ferido. Meu sangue iluminou-se e a crispação
desapareceu.
(...) Era ela, a Mulher, mito e legenda do meu sonho. O
corpo feminino aparecia-me identificado com uma clareira de Caatinga sertaneja,
povoada de rosas selvagens, coroas-de-frade e macambiras.” (1999:171-172).
Segundo nosso autor, ainda hoje, boa parte dos grandes artistas
brasileiros baseiam-se no Barroco; Guimarães Rosa, Euclides da Cunha, José Lins
do Rego, Joaquim Cardozo e João Cabral de Melo Neto, são apenas alguns deles:
“A grande coisa do barroco é que ele é um estilo de arte e
uma visão de mundo, que se caracteriza pela unidade dos contrários, o que é
muito importante para o Brasil. É a primeira manifestação romântica de dissolução
do clássico. Por isso mesmo ele tem elementos clássicos e românticos, medievais
e renascentistas, pagãos e religiosos, trágicos e cômicos. Eu sou religioso
também, daí minha atração por isso. Mas não se esqueça de que esse lado
religioso do barroco tem sua contrapartida nisso que eu estava chamando de picaresco.
(...) Eu gosto mais do auto numa linha vicentina, onde se une o pensamento
religioso e uma visão cômica e satírica. [É também] uma forma de religião que
não deixa de lado a luta social.” (Revista Vintém, no. 2, 1998:5).
Como visão de mundo, o Barroco expressa o tecer junto, o pulsar
simultâneo de elementos contraditórios, presente em toda a obra de Ariano. As
bases de uma mensagem teológica são buscadas nas fontes populares e eruditas e
no auto sacramental, como se pode perceber, por exemplo, nas peças A Pena e
a Lei e no Auto João da Cruz, e no romance A Pedra do
Reino.
Seu catolicismo sertanejo recusa a passividade, supõe
atuação contínua na direção de uma fraternização, afinal, segundo ele, “todos nós
possuímos nossos arraiais de Canudos. Quando humilhamos ou desrespeitamos
nossos empregados, estamos repetindo o que aconteceu em Canudos: é o Brasil
Oficial massacrando o Brasil Real”. Os integrantes do Brasil Real constituem,
juntamente com outros grupos sócio-culturais de pobres e excluídos, espalhados
pelo mundo, os Povos da Rainha do Meio-Dia.
A pulsão de Ariano é criar uma literatura que contenha as
marcas da alma do povo brasileiro, dos povos da Rainha do Meio-Dia, por isso
sua obra é – simultaneamente – tradicional e popular, clássica e barroca, uma
fusão entre o trágico e o cômico:
“Quanto mais humanas e coletivas sejam as histórias, quanto
mais vivos os personagens, tanto maior número de pessoas, seja em quantidade
seja em qualidade, será afetado por elas, uma Arte que, sem concessões de
nenhuma espécie, atinja profundamente tanto o público comum que vai ao teatro
ver um espetáculo, como o rapaz pobre da torrinha, que vai ali em busca de alguma
coisa que lhe é quase tão necessária quanto o sono, será sempre superior àquela
que só atinja um ou outro” (In: FREIRE, 1962:477-478).
Ariano consolida sua linhagem literária dialogando com
Homero, Cervantes, Shakespeare, Molière, Lope de Vega, Garcia Lorca, Gogol, Tolstoi
e Dostoiévski; ou seja, com todos aqueles que concebem sua obra recriando os
mitos nacionais e populares de seu povo.
A partir de todas essas matrizes nosso Cabreiro sonha com
uma Arte Total, expressa de forma contundente no Movimento Armorial;
substantivo que – através de suas mãos – se transformou em adjetivo:
“O Movimento Armorial pretende realizar uma Arte brasileira
erudita a partir das raízes populares da nossa Cultura. Por isso, algumas
pessoas estranham que tenhamos adotado o nome de ‘armorial’ para denominá-lo. Acontece que, sendo ‘armorial’ o conjunto de
insígnias, brasões, estandartes e bandeiras de um povo, no Brasil, a Heráldica
é uma Arte muito mais popular do que qualquer outra coisa. Assim, o nome
que adotamos significava, muito bem, que nós desejávamos ligar-nos a essas
heráldicas raízes da Cultura popular brasileira” (O Movimento Armorial,
1974:7-9).
A reflexão estética do Movimento recusa a hierarquia social
de valores estéticos. Portanto, não se trata aqui de fazer concessões à arte
popular, pois ela possui um alto grau de qualidade, sofisticação e complexidade
semelhante à erudita, devendo ser apreciada em si mesma.
Fiel a esse ideário, segue seu ofício de Cabreiro, às vezes
com um estranho sentimento de quem é percebido como alguém fora do seu tempo.
Mesmo embebido pela ciclicidade dos mitos, pelo eterno retorno, imprime as
marcas do contexto sócio-histórico à sua criação; convicto de que é na
caminhada que o homem encontra sentidos para viver, e que deve exercer uma
severa auto-crítica, reconhecer os possíveis erros e modificar-se.
Que tenho sido?... Que ventos meus doces antepassados têm me
soprado?... Qual o fogo esquenta o tacho das horas que desfruto com minha mulher,
filhos, netos, amigos e alunos das aulas-espetáculo?... Talvez essas
sejam algumas entre as tantas questões que o Mestre Ariano se põe. Atento ao
reino da cidade de Taperoá, no estado da Paraíba, espaço sagrado de sua
literatura, faz escorrer em nós o leite dos rios sertanejos, mesmo dos rios assoreados.
Abre valas, descobre nascentes de água, e acompanha seus filetes, marcando o caminho
com sua infinita sabedoria: é a arte de ensinar.
O Cabreiro é um sábio, mesmo à sombra, retira lições
luminosas, que a memória guardará para sempre. A serenidade e peraltice aos 82
anos4 desvelam um Ariano sensibilizado com o sol, o sal, a macambira, a terra
molhada, o cheiro de cabra, o canto dos aboiadores.
Um dos desejos que o movem é escrever e falar uma linguagem
saborosa, com gosto de quero-mais: caju, sopa, canjica, coalhada, mel. Recobre
as árvores desfolhadas do sertão com pavões super-coloridos; na madrugada,
agasalha os frios corredores da antiga casa da infância com o forte canto da
acauã. São imagens intensas, de extrema delicadeza, que transformam Ariano em
um ser do devir, aquele que se quer “imorrível”.
Não quer saber das regras do tempo, apenas mergulha nas tramas
tecidas pelos mitos. Rever seus escritos, suas peças, elabora novos textos,
concede entrevistas, escreve um romance que está sendo gestado há mais de vinte
anos. Faz mil planos, projetos; alguns deles pretende finalizar aos 200 anos de
idade.
“Ô de casa!” Grita alguém na calçada. Rapidamente levanta e
diz: “É um suplicante; vou atendê-lo!” Afinal, o homem pode estar com fome: não
pode esperar; a fome não espera. Após uma rápida conversa, retorna consternado com
o fato de que ainda existam tantos suplicantes no mundo. Fala baixinho, para si
mesmo: tenho esperança que isso um dia vai acabar! O tempo não o fez curvar-se.
Continua esguio, caminhando com desenvoltura; no olhar, a franqueza e a ternura
dos desassombrados. Ariano, o Cabreiro Tresmalhado, não teme o espelho. A obra
forja uma dialogia profunda entre a rouquidão e a limpidez, o silêncio e o
ruído, entre o que se mostra e o que se oculta. Aí está sua festa: dança,
canta, chora, dá cambalhotas e gargalha. E Ariano, enfim, grita um viva para
a vida, expresso de forma contundente no Auto da Compadecida:
Palhaço:
Ao escrever esta peça, onde combate o mundanismo, praga de
sua igreja, o autor quis ser representado por um palhaço, para indicar que
sabe, mais do que ninguém, que sua alma é um velho catre, cheio de insensatez e
de solércia. Ele não tinha o direito de tocar nesse tema, mas ousou fazê-lo, baseado
no espírito popular de sua gente, porque acredita que esse povo sofre, é um
povo salvo e tem o direito a certas intimidades.
Atores, respondendo
ao canto:
Perna fina no meio do mar.
Palhaço:
Oi, eu vou ali e volto já.
Atores, saindo:
Oi, cabeça de bode não tem que chupar”.
(1989:23-25).
Notas:
1 Antropóloga, Professora do
Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE). Coordenadora do Núcleo Ariano Suassuna de Estudos Brasileiros e
Pesquisadora e Vice-Líder do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre o
Imaginário/UFPE; Pesquisadora do Laboratório de Ensino e Pesquisa em
Complexidade, Interdisciplinaridade e Desenvolvimento Humano (LAPIDEH-Centro de
Pesquisas Aggeu Magalhães/FIOCRUZ).
2 As falas de Ariano Suassuna que
estão presentes nesse texto foram “retiradas” do convívio da autora com o próprio
Ariano Suassuna, nos mais diversos momentos da convivência entre ambos.
3 Em 2009, Suassuna assume pela
segunda vez este cargo. Anteriormente havia sido secretário do governo de Miguel
Arraes. Antes disso, também fora Secretário Municipal de Cultura em Recife, na
década de 70.
4 Ariano Suassuna nasceu em 1927.
Referências Bibliográficas
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_____________ (1999). Poemas.
Seleção, organização e notas Carlos Newton Lima Júnior. Recife: Editora
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Fonte: NOGUEIRA, Maria Aparecida Lopes. Ariano Suassuna e o mito do cabreiro. Aurora, n. 6, 2009.
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