segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

A Mãe e os irmãos de Jesus

A Mãe e os irmãos de Jesus


Joaquim Carreira das Neves
padre e teólogo

1. Introdução

Ao longo dos dois mil anos de Cristianismo a questão da mãe e dos irmãos de Jesus tem sido levantada, à luz da história, exegese e fé cristãs, de maneiras diferentes. O assunto é delicado porque implica a fé das igrejas cristãs – católica, ortodoxa e protestante –, dependente dos textos bíblicos que a confirmam e da tradição exegética sobre esses textos, nem sempre coincidente.

A “doutrina” eclesial da Igreja Católica Romana defende que Maria, mãe de Jesus, deu à luz o seu filho Jesus de maneira virginal e que os “irmãos de Jesus”, referidos nos evangelhos (Mc 3, 22 e par.; 6, 3 e par.), são parentes próximos. É também esta a doutrina dos ortodoxos. Os protestantes, por sua vez, defendem que Jesus nasceu de uma mãe virgem, segundo as narrativas dos evangelhos da infância (Lc 1-2 e Mt 1-2), mas que os “irmãos” são filhos do casal Maria e José.

Este assunto foi objecto de posições diferentes nos Padres da Igreja, sobretudo antes do Concílio de Niceia, onde se definiu a natureza humana e divina de Jesus, e Maria, mãe de Jesus, como theotokos (mãe de Deus). A partir daqui, a Igreja Católica e Ortodoxa viram sempre nos “irmãos” de Jesus “parentes” próximos já que era esta a designação normal na cultura antropológica semita ambiental, como, ainda hoje, existe entre africanos, árabes ou índios americanos1. A partir de Lutero, por motivos doutrinais de apologética protestante, baseada literalmente nos textos evangélicos, os protestantes distinguiram o nascimento virginal de Jesus do nascimento normal dos “irmãos”. Esta tomada de posição está ferida de apologética ou “posição doutrinal”, mas assente na literalidade dos textos. Outro tanto se pode dizer da posição católica e ortodoxa, determinada pela doutrina de Maria “theotokos”, aparentemente contrária à letra dos textos.

Modernamente, o assunto tem sido objecto de estudos “científicos” baseados na filologia, texto e contexto, cultura antropológica e cultura teológica da tradição. De facto, o assunto está envolvido numa teia de fé e cultura, difícil de desfazer e descodificar para apresentar uma tese ou conclusão absolutamente científica.

A matéria em causa é tanto mais sensível quanto a necessidade de ver claro, nos nossos dias, por causa das ciências biológicas e ginecológicas modernas, que não existiam no tempo de Jesus, e por causa do que ultimamente se escreve sobre o casamento de Jesus, sobressaindo a literatura à volta do romance de Dan Brown, O Código Da Vinci2. No entanto, o que nos move a escrever este trabalho é a obra recente de John P. Meier, A Marginal Jew. Rethinking the Historical Jesus. Trata-se de um exegeta católico, americano, que defende a verdade histórica, biológica, dos irmãos de Jesus. A sua obra é constituída por três grandes volumes, porventura a obra mais importante, nestes últimos anos, sobre a pessoa de Jesus à luz da história e da exegese bíblica3. O subtítulo da obra é bem explícito: Repensar o Jesus histórico.

Têm abundado, ultimamente, obras importantes sobre o Jesus da “história”, mas, de entre todas, talvez seja esta a mais completa. Juntamente com J. P. Meier, também o exegeta católico Xabier Pikaza, com vários trabalhos importantes no campo da exegese bíblica e da história das religiões, defende a tese dos irmãos de Jesus como irmãos de sangue4.

O nosso estudo tem três tempos. No primeiro expomos a tese de J. P. Meier e de X. Pikaza, no segundo faremos as nossas observações “críticas”, de fundo exegético (texto e contexto, filologia e cultura antropológica bíblica) e, finalmente, no terceiro, tiraremos algumas conclusões.

2. As teses de J. P. Meier e X. Pikaza

O autor J. P. Meier começa por apresentar o parecer de Hegesipo, do séc. II, um judeu convertido a Jesus Cristo, que nomeia os irmãos de Jesus como irmãos de sangue, distintos dos tios e primos que também nomeia. No entanto, Hegesipo parece aceitar a conceição virginal de Maria, de modo que os seus irmãos seriam apenas “meio-irmãos” de Jesus, isto é, da mesma mãe, mas não do mesmo pai pelo facto de Jesus não ser filho biológico do pai José. Apresenta, depois, o parecer do Protoevangelho de Tiago, também do séc. II, que defende a conceição virginal de Maria em relação ao filho Jesus e sua virgindade por toda a vida, de modo que os “irmãos” e “irmãs” dos evangelhos seriam filhos de um primeiro matrimónio de José, entretanto viúvo, que, por vontade de Deus, aceitou casar com Maria, já avançado em idade.

Pelo contexto, a obra foi escrita para resolver a questão dos “irmãos” de Jesus segundo a tradição “católica”, já então prevalecente. Tratava-se, realmente, de irmãos de sangue, mas não de Maria. Finalmente, apresenta o parecer de S. Jerónimo, no seu tratado Contra Helvidius, nos finais do séc. IV (ca. 383). Segundo Jerónimo, tanto José como Maria permaneceram sempre virgens; os “irmãos-irmãs” seriam parentes próximos de Jesus, como era costume tratar os parentes próximos das famílias e tribos. Foi esta a tese que prevaleceu na Igreja Católica Romana, enquanto que a tese defendida pelo Protoevangelho de Tiago prevaleceu na Igreja Ortodoxa. Muitos protestantes defendem a tese dos irmãos de sangue de Jesus por causa do texto de Mt 1, 25: “E ele [José] não a conheceu [Maria] até ela dar à luz um filho, a quem pôs o nome de Jesus.”

Se José “não a conheceu”, isto é, não teve relações matrimoniais, sexuais, para a concepção de Jesus, teve-as depois, para a concepção dos outros filhos-filhas. De facto, o verbo “conhecer” é, no hebraico (yada’ ), uma expressão semita para expressar as relações matrimoniais entre marido e esposa (cf. Gn 4, 1). Mas o imperfeito grego não a conheceu/conhecia (eginôsken) pode significar que José nunca teve relações matrimoniais com a sua esposa Maria, mesmo depois de ter dado à luz o filho Jesus.

Realmente, na mentalidade semita, a conjunção hebraica ‘ad e correspondente grega heôs hou, que traduzimos por até, não significa que haja um depois diferente de um antes. Os exemplos bíblicos abundam. No Sl 110, 1: “O Senhor [Deus] disse ao meu senhor [Rei]: ‘Senta-te à minha direita até (‘ad; heôs hou) colocar os teus inimigos debaixo dos teus pés”. Não significa que Deus deixe de proteger o seu Rei depois deste conquistar os inimigos. O mesmo Mateus, em 12, 20, citando Is. 42, 1-4 escreve acerca do “Servo de Yahvé: “Não há-de quebrar a cana fendida, /nem apagar a mecha que fumega, / até [heôs an] conduzir a minha vontade à vitória.” Mateus não quer significar que Jesus – o verdadeiro Servo – deixe a mansidão ou não violência depois da sua vitória.

Mas J. P. Meier não infere deste texto que Maria e José não pudessem ter relações posteriormente porque é o mesmo Mateus que em 13, 55 escreve acerca do que diziam os habitantes de Nazaré: “Não é Ele o filho do carpinteiro? Não se chama sua mãe Maria, e seus irmãos Tiago, José, Simão e Judas? Suas irmãs não estão todas entre nós”, que J. P. Meier, neste caso concreto, aceita como irmãos biológicos5.
Outro tanto defende J. P. Meier sobre o texto de Mt 12, 46-50 (Mc 3, 31-35; Lc 8, 19-21): “Estava Ele ainda a falar à multidão, quando apareceram sua mãe e seus irmãos, que, do lado de fora, procuravam falar-lhe. Disse-lhe alguém: ‘A tua mãe e os teus irmãos estão lá fora e querem falar-te. ’ Jesus respondeu ao que lhe falara: ‘Quem é a minha mãe e quem são os meus irmãos?’ E, indicando com a mão os discípulos, acrescentou: ‘Aí estão minha mãe e meus irmãos; pois, todo aquele que fizer a vontade de meu Pai que está no Céu, esse é que é meu irmão, minha irmã e minha mãe”.

Segundo o nosso autor, a metáfora bíblica só tem verdadeiro sentido se o texto referir os seus irmãos biológicos como refere a sua mãe biológica, “pelo menos aos olhos dos redactores dos evangelhos”6. Esta última observação é importante porque o evangelista, tanto em relação ao texto anterior como em relação a este, não está a narrar “em directo”, mas a dizer o que pensavam as pessoas sobre Jesus e seus familiares “irmãos e irmãs”: “Disse--lhe alguém” (12, 47a). Também em 13, 55 não é o evangelista que apresenta “sua mãe Maria e seus irmãos Tiago, José, Simão e Judas”, mas os “habitantes na sinagoga”, cheios de admiração pelas parábolas de Jesus. O evangelista não se interessa por aquilo que pensa – narrativa em directo – mas por aquilo que pensam os outros – narrativa em indirecto. Em sentido contrário Lc 3, 23, ao abrir a narrativa da vida apostólica de Jesus, escreve. “Ao iniciar o seu ministério, Jesus tinha cerca de trinta anos. Supunha-se que era filho de José…”.

O povo supunha, como é natural, que Jesus fosse filho de José, mas a verdade é que o narrador pensa doutra maneira. No nosso caso, os três sinópticos apenas narram o que o povo dizia – e pensava – sobre Maria e os irmãos e irmãs de Jesus, conforme a tradição histórica que chegou até eles. Os evangelistas não nos apresentam um caderno de “intenções”. Este assunto será tratado mais amplamente na segunda
parte do nosso trabalho. J. P. Meier refere, depois, os dois casos típicos das cartas de Paulo em 1Cor 9, 5 e Gl 1, 19. Na 1Cor 9, 5 escreve o apóstolo: “Não temos o direito de levar conosco, nas viagens, uma mulher cristã, como os restantes Apóstolos, os irmãos
do Senhor e Cefas?”. Em Gl 1, 19 escreve: “Mas não vi nenhum outro Apóstolo, a não ser Tiago, o irmão do Senhor.” Segundo o autor, ao contrário dos evangelhos, Paulo refere os acontecimentos do seu tempo, que bem conhecia.

Mais ainda, Paulo, como bom conhecedor do grego, sabia distinguir perfeitamente entre “irmão” (adelphós) e “primo” (anepsios). Semelhante distinção aparece em Cl 4, 10: “Saúda-vos Aristarco, meu companheiro de prisão, bem como Marcos, primo de Barnabé.” Embora a carta aos Colossenses, segundo a exegese mais recente, pertença às deutero-paulinas, é um bom exemplo de como naquele tempo se distinguia, na linguagem grega, entre “irmão” e “primo”. Finalmente, J. P. Meier apresenta ainda os textos de Ac 1, 14 e o exemplo de Flávio Josefo ao nomear Tiago como “irmão de Jesus”7.

2. Anotações às teses em estudo

Comecemos por referir o dado histórico do corte de Jesus com a sua família de sangue. Segundo Mc 3, 20-22, 31-35, o corte de Jesus com a sua família de sangue constituiu um “escândalo”: “Tendo Jesus chegado a casa [em Cafarnaum], de novo a multidão acorreu, de tal maneira que nem podiam comer. E quando os seus familiares (hoi par’ autou) ouviram isto, saíram a ter mão nele, pois diziam: ‘está fora de si!’ (está louco!)”. Este texto é fundamental para “descobrirmos” o real Jesus da história. Uma simples leitura mostra que Marcos mistura na narrativa duas realidades (o chamado método sandwich): a questão sobre os familiares de Jesus, nos vv. 20-21 e 31-35, e a questão do libelo dos “doutores da Lei” contra Jesus com a afirmação: “Ele tem Belzebu”, e respectiva resposta de Jesus com duas pequenas parábolas, nos vv. 22-30.

A narrativa da primeira parte (vv. 20-21), onde se afirma que os familiares de Jesus o julgam “louco”8 e, por isso, o querem trazer para casa, é de tal modo estranha e “escandalosa” que Mateus e Lucas omitem pura e simplesmente a narrativa. E a família dos manuscritos dita “Ocidental” (D e W), pelo mesmo motivo, muda o texto de Marcos da seguinte maneira: “Quando os escribas e os outros [não são os familiares] ouviram isto sobre ele, saíram a ter mão nele, pois diziam: ‘Ele está fora de si!’ (está louco!)9”.

Como afirmámos, semelhante narrativa nunca poderia ter sido inventada pela fé cristã das igrejas primitivas. O corte de Jesus com a família e vice-versa é um facto histórico e da maior importância para descobrirmos a verdade histórica de Jesus. Quando isto aconteceu, Jesus já tinha há umas semanas (meses?) deixado a casa “paterna”, tinha ido ao encontro de João Baptista para ser baptizado, ter-se-ia retirado para o deserto para decidir sobre a sua vida (tentações) e, finalmente, teria regressado à Galileia, longe de Nazaré. Foi residir em Cafarnaum, em casa própria, onde começou a pregar sobre o Reino de Deus.

E uma das primeiras coisas que decidiu foi escolher alguns homens para o seguir. E nenhum desses homens era dos seus “familiares”! Pelos vinte e sete anos, Jesus cortou radicalmente com uma família – a de sangue – para estabelecer outra família – a da fé, o novo Israel.
A família de Jesus escandaliza-se perante o abandono do seu parente que se remete a uma vida totalmente marginal aos valores fundamentais do judaísmo como religião e cultura: casamento, zelo pelos pais e família, trabalho para melhorar o bem estar da família e conjunto “tribal”. No fundo, o que Jesus afirma é apenas isto: chegou o tempo novo de pôr em prática a vontade de Deus (v. 35: “Aquele que fizer a vontade de Deus, esse é que é meu irmão, minha irmã e minha mãe”).

Jesus tem consciência de que é Ele o enviado de Deus para repor “a vontade de Deus” – Reino de Deus – na religião judaica e, com ela, na sociedade judaica e universal. Diante desta consciência nem os seus “familiares” de sangue, nem os seus “familiares” religiosos o entendem. O mundo simbólico e semiótico de Jesus é diferente do mundo cultural do passado. Nem Jesus está contra a família de sangue ou contra a família religiosa judaica. Ele está noutra dimensão ou noutro mundo cultural. E todas as manifestações a seu favor ou contra ele, vindas dos fariseus, saduceus, sacerdotes, familiares, discípulos, Sinédrio, Pilatos embatem nesta alternativa: ser por Ele ou contra Ele, que o mesmo é dizer, ser a favor da “verdadeira vontade de Deus ou contra ela”10.
É neste contexto de sociologia religiosa que devemos entender a questão da mãe e dos irmãos de Jesus na sua especificidade. É muito estranho que em Mc 3, 21 o autor refira “os familiares” (hoi par’ autou) e que no v. 31 especifique estes “familiares” como “irmãos”, igualmente referenciados, logo a seguir, pela boca de alguns presentes: “a tua mãe e os teus irmãos estão lá fora…”. Em gramática narrativa há uma equivalência entre “familiares” (literalmente “os dele” ou “os da sua família”) e “irmãos”.

Não entendemos como é que J. P. Meier afirma que a metáfora dos “irmãos de fé” (“o meu irmão, a minha irmã e mãe são os que fazem
a vontade de Deus”) só se entende, pela lei do contraste, se “a mãe e os teus irmãos, que estão lá fora” forem irmãos de sangue, da mesma maneira que a mãe é a mãe de sangue. Quem está em causa são duas famílias: a do sangue e a da fé.

Defender que se trata de irmãos de sangue é uma questão de cultura religiosa; a gramática tanto afirma que se trata de família de sangue em sentido estrito (irmãos, irmãs) como em sentido lato (família alargada, tribo). E, como apontámos, o autor não está a fazer uma narrativa “em directo”, mas “em indirecto”: “Estão lá fora a tua mãe e os teus irmãos…”. O problema não reside na filologia e na gramática, mas no texto e respectivo contexto com a sua ambivalência.

Merece um pouco de atenção o texto de Mc 6, 3 e par.: “Não é Ele o filho do carpinteiro, o filho de Maria e irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão? E as suas irmãs não estão aqui entre nós?” Geralmente, na cultura familiar de então, os filhos eram nomeados pelo patronímico, ao contrário do nosso texto (ver Mc 10, 35, os filhos de Zebedeu e Mt 16, 17, “Simão bar [filho de] Jonas”). Para alguns autores, também de acordo com a cultura daquele tempo, semelhante relação de filho exclusivamente com a mãe, tinha sabor estranho; era um eufemismo para indicar um nascimento ilegítimo.

Mas há documentação em contrário. Flávio Josefo fala de “João filho de Dorcas”11 e de “José filho de Iatrine” (parteira)12. E quando Marcos apresenta as mulheres junto à cruz relaciona-as com os filhos e não com os maridos (15, 40: “Maria, mãe de Tiago Menor e de José”). Modernamente, muitos exegetas perguntam se Mc 15, 40 e paralelos Mt 27, 56 e Lc 24, 10, não refere a “mãe de Tiago” como o Tiago, chamado “irmão de Jesus”, responsável pela comunidade judeu-cristã de Jerusalém. De facto, em Mc 6, 3, entre os quatro “irmãos” de Jesus – Tiago, José, Judas e Simão – há dois com os mesmos nomes: Tiago e José (ver Mt 13, 53). Esta tese, em nosso entender, tem muitas probabilidades se, de facto, os nomes em questão não aparecem apenas por motivos biográficos, mas, por motivos eclesiais, isto é, por serem nomes bem conhecidos da igreja primitiva judeu-cristã, onde desempenhavam ministérios ou serviços.

Se assim é, o Tiago de Gl 2, 19 só pode ser este Tiago, “o irmão do Senhor”. As duas pessoas mais importantes para Paulo, nesta visita a Jerusalém, são Cefas e Tiago, “o irmão do Senhor”. Não devemos esquecer que para Paulo, ele é Apóstolo como os Doze são Apóstolos e que, na 1Cor 15, 6-7, apresenta como testemunhos do Ressuscitado Cefas, os Doze, quinhentos irmãos, Tiago, todos os Apóstolos e, finalmente, ele próprio (“…apareceu-me também a mim, como a um aborto”). Os nomes das pessoas não aparecem por acaso. Dependem das suas funções eclesiais, a começar pelo testemunho sobre o Ressuscitado. Se não tivessem acreditado no Ressuscitado, não seriam nomeados, nem teriam tais funções.

Também é neste sentido que devemos compreender o texto de Paulo em 1Cor 9, 5: “Não temos o direito de levar conosco, nas viagens, uma mulher-irmã (adelphèn gynaika), como os restantes Apóstolos, os irmãos do Senhor e Cefas?”. Que tipo de “Apóstolos” refere Paulo? Já vimos que na 1Cor 15, 6-7, Paulo distingue entre “os Doze” e “todos os Apóstolos”. Então, na 1Cor 9, 5, ao referir Cefas em particular, como faz em 1Cor 15, 6, e “os restantes Apóstolos”, não tem em vista os Doze, mas os “Apóstolos” que, como ele, evangelizavam de terra em terra. E, neste contexto, quem são os “irmãos do Senhor”, acompanhados de uma “mulher-irmã” como os “restantes Apóstolos e como Cefas?”.

Será que, em relação a Cefas, se trata da sua mulher? Pode ser, mas o texto não o afirma de modo claro. O mesmo pode dizer-se em relação aos outros grupos. Seria muito estranho que todos estes Apóstolos e todos estes irmãos do Senhor e Cefas se fizessem acompanhar pelas suas esposas. Trata-se de mulheres cristãs que ajudavam “apóstolos”, “irmãos do Senhor” e Cefas na sua evangelização. Paulo não especifica a modalidade da ajuda: estas mulheres abandonaram a casa e filhos, durante semanas ou meses, para acompanharem os seus maridos?

Com certeza que não foi assim. Trata-se de ajudas esporádicas. O autor apenas faz uma afirmação, sem especificar a modalidade. Mas os “irmãos do Senhor”, neste contexto tão generalizado, não parece referir os “poucos irmãos” de Jesus – quatro ao todo, segundo os evangelhos. A tese de J. P. Meier, em nosso entender, é demasiado apodítica, unilateral e muito circunstancializada, tal como acontece com todos quantos seguem esta tese, católicos ou protestantes.

Em relação ao texto de Flávio Josefo, é verdade que o escritor e biógrafo refere Tiago não como “irmão do Senhor”, mas simplesmente como “irmão de Jesus”. Nem podia ser de outra maneira. Trata-se de um escritor judeu que admirava a vida austera do judeu Tiago, injustamente martirizado pelos judeus, e do qual, diziam os judeus, era “irmão de Jesus”. O biógrafo diz o que diziam os judeus. Flávio Josefo nunca viu ou falou com Tiago e nunca investigou sobre a sua família13.

Xavier Pikaza defende que Maria, junto à cruz e no sepulcro vazio, segundo os sinópticos (Mc 15, 40 e par. Mt 27, 56; Lc 24, 10), conjuntamente com Mc 6, 3, que apresenta uma certa Maria, mãe de Tiago e de José, é a própria mãe de Jesus: “O testemunho do cumprimento ou plenitude cristã da mãe de Jesus segundo Marcos ficou velado na história posterior da piedade e teologia (que destacou sobretudo o testemunho de Jo 19, 25-27), mas constitui, a meu ver, um dado básico para o descobrimento do valor cristão da família de Jesus.

A sua mãe não ficou fechada no grupo dos irmãos que a quiseram arrancar à força da nova casa da igreja (Mc 3, 31-35), nem é uma mulher sem importância, como pensam os de Nazaré (Mc 6, 3), mas que, com Madalena e Salomé (e outras mulheres), é testemunha primordial da morte e Páscoa de Jesus, de maneira que pode aparecer precisamente aqui como mãe de outros “discípulos” que hão de percorrer igualmente o caminho da cruz e Páscoa de Jesus, seu irmão”14.

Não concordamos com este parecer. Se nos outros lugares, Marcos refere Maria como mãe de Jesus, seria muito estranho que não a apresentasse como mãe precisamente junto à cruz e no sepulcro. A Maria, junto à cruz, “mãe de Tiago Menor e de José” (Mc 15, 40) é diferente da Maria de Mc 6, 3. Os “dois irmãos” de Jesus, Tiago e José, de Mc 6, 3, é que poderão ser filhos de Maria, junto à cruz, de 15, 40.

Este assunto reaparece no quarto evangelho. Por causa da fé cristã e, no caso da Igreja Católica e ortodoxa, da devoção a Maria, Mãe de Jesus, há sempre o impulso “filial” para exaltar a Mãe de Jesus. Neste sentido, os crentes costumam apresentar outros textos de colorido positivo sobre Maria e os irmãos de Jesus. Assim aparece em Jo 2, 12: “Depois disto [bodas de Caná], Jesus desceu a Cafarnaum com sua mãe, os irmãos e os seus discípulos, e ficaram ali apenas alguns
dias.” Nesta versão do quarto evangelista, Jesus, mãe, irmãos e discípulos aparecem em total harmonia “familiar”, contradizendo, no mesmo evangelho, a versão de 7, 3-5. O mesmo acontece com a versão de Jo 19, 25-27. Não vamos, aqui, entrar na análise exegética desta última perícopa. Já o fizemos noutros lugares, mas a conclusão da exegese é que Maria não esteve junto à cruz15. Se assim fosse, os sinópticos tê-lo-iam assinalado.
O último texto é o de Ac 1, 14: “E todos unidos pelo mesmo sentimento, entregavam-se assiduamente à oração, com algumas mulheres, entre as quais Maria, mãe de Jesus, e com os irmãos de Jesus”. Estes textos também são para J. P. Meier e X. Pikaza exemplos vivos sobre os “irmãos de sangue” de Jesus. Em nosso entender, os textos de Jo 2, 12; 19, 25-29 e Ac 1, 14 são apresentados a partir da eclesiologia posterior à ressurreição. Não se identificam com a história do Jesus histórico, pregador do Reino. Estes “irmãos” de Jesus só podem ser os seus familiares de Nazaré, entretanto convertidos à fé no seu “parente”, o Messias, o Filho de Deus e o Ressuscitado.


Conclusão

J. P. Meier conclui: “Embora todos estes argumentos, tomados no seu conjunto, não nos apresentem uma certeza absoluta num assunto onde há poucas evidências, no entanto – prescindindo da fé e do ensino da Igreja posterior –, o historiador ou o exegeta deve fornecer um juízo sobre o NT e os textos patrísticos, tomados apenas como fontes históricas. Neste sentido, a opinião mais provável é que os irmãos e as irmãs de Jesus foram verdadeiramente irmãos de sangue (true siblings)”16. Em nosso entender, os textos apresentados pelos evangelhos, Paulo, Actos e Flávio Josefo, não nos conduzem a uma conclusão desta ordem.

O mundo semiótico destes textos é complexo e cheio de “mistério”. Neles existem os dois tempos da “história” de Jesus: antes da ressurreição e depois da ressurreição. Nenhum autor faz de biógrafo de Jesus, sua mãe e irmãos, segundo os parâmetros das biografias modernas. Atendendo à sociologia cultural de então, em nosso entender, o mais natural é que os “irmãos de Jesus” sejam parentes próximos. A tese contrária levanta mais problemas históricos, filológicos, sociais e religiosos do que a tese dos “irmãos” com sentido de parentes próximos.

Notas: 
1 É muito interessante ver este assunto no primeiro livro dos Macabeus, onde o lexema grego adelphoi (irmãos), tanto significa “irmãos de sangue”, “parentes” e “irmãos na fé”, isto é, em sentido próprio, umas vezes, e em sentido lato, outras vezes (2, 17: “Então os oficiais disseram a Matatias: ‘Tu és um líder importante e respeitado nesta cidade e tens o apoio dos teus filhos e parentes (adelphoi)”; 2, 20; 3, 2 (agora relacionado com Judas: “Todos os seus adelphoi (irmãos-parentes) e todos os que se tinham aliado ao seu pai ficaram ao seu lado…”: 3, 25; “Depois disso, todos começaram a ficar com medo de Judas e dos seus irmãos” (adelphoi, em sentido próprio), 3, 42 : “Judas e os seus irmãos” (sentido próprio); 4, 59: Judas, os seus irmãos (sentido próprio) e todo o povo de Israel…”; 5, 10: “e escreveram uma carta a Judas e aos seus irmãos” (sentido próprio); 5, 13: “Todos os nossos irmãos que moram na terra de Tob foram mortos” (sentido lato); 5, 14: “Judas e os seus irmãos” (sentido próprio); 5, 16: “…para ajudar os seus irmãos que estavam em perigo” (sentido lato); 5, 16. 17 (sentido lato); 5, 24: “Judas Macabeu e o seu irmão Jónatas” (sentido próprio); 5, 61: “O povo foi derrotado porque não deu atenção às ordens de Judas e dos seus irmãos”(sentido próprio); 6, 22: “Foram falar com o rei e disseram: ´Quanto tempo vai levar até que faças o que é justo e vingues os nossos irmãos?” (sentido lato); 7, 6: “Eles acusaram os seus compatriotas: “Judas e os seus irmãos mataram muitos dos teus amigos, ó rei…” (sentido próprio).
2 Cf. M. Sousa GONÇALVES, Que tem de errado “O Código Da Vinci”? (Rei dos Livros: Lisboa, 2005).
3 John P. MEIER, A Marginal Jew. Rethinking the Historical Jesus (Doubleday, New York, Vol. 1 de 1991, Vol. II de 1994, Vol III de 2001).
4 Xabier Pikaza, La nueva figura de Jesús, (Verbo Divino: Pamplona, 2003) 269-283.
5 J. P. MEIER, Ibid. 323: “The one mother and the four brothers, treated separately from Jesus’ merely legal father, are all the subject of the one verb, ‘is called.’ Then, as in Mark, the unnamed sisters are mentioned by the androcentric audience as an afterthought: ‘And are not all his sisters with us?’ Thus, simply on the level of Matthew’s redaction , it is difficult to maintain that the brothers are thought of only as stepbrothers or cousins of Jesus, when Matthew is at pains to separate the legal but not biological father of Jesus from Jesus’ real, biological mother. Faced with this great divide that he himself creates, Matthew chooses to place Jesus’ brothers with his biological mother, not his legal father”.
6 Idem, ibidem, 323.
7 Antiquitates Judaicae 20, 9.1 & 200.
8 O texto grego tem exestè, forma verbal composta de ek+histèmi (lit. “estar fora de”). Flávio Josefo usa o mesmo verbo para determinar a atitude do povo contra Jeremias, julgando-o “louco” (exestèkota) (Ant. 10, 114).
9 Cf. Bruce M. METZGER, A Textual Commentary on the Greek New Testament (United Bible Societies: London/New York, 1971) 81-82.
10 Cf. Carlos J. Gil ARBIOL, Los Valores Negados. Ensayo de exégesis sócio-científica sobre la autoestigmatización en el movimiento de Jesús (Verbo Divino: Pamplona, 2003) e Senén VIDAL, Los Tres Proyectos de Jesús y el Cristianismo Naciente (Sígueme: Salamanca, 2003), sobretudo pp. 23-26.
11 Bellum Judaicum 4. 145.
12 Vita 185.
13 A declaração de J. P. Meier: “This passage shows that, contrary to claims made at times by certain exegetes, ‘brothers of the Lord’ was not an invariable title that preclude some more exact designation, such as ‘the cousins of Jesus’”, em nada contraria a posição contrária.
14 X. PIKAZA, Ibidem, 271. O autor defende a mesma tese em Pan, casa y palabra. La iglesia en Marcos (Sígueme: Salamanca, 1998) 411-418. Ver também M. NAVARRO, “Cruzando fronteras, rompiendo estructuras. Estudio narrativo del itinerario de Maria de Nazaret en Mc”: Ephemerides Mariologicae 52 (2002) 191-224.
15 Ver especialmente o meu estudo Escritos de S. João (Universidade Católica: Lisboa, 2003) 271-272.
16 Idem, Ibidem, 331.


Um comentário:

  1. Fé e história não deviam ser misturadas. São de naturezas diferentes e conflitantes. Todavia, tudo há de ter uma explicação. A Academia, como uma criação cristã do Velho Mundo, desde sempre zela pela autobiografia da sua criadora – a nossa cultura cristã. Inicialmente, somente cristãos podiam se candidatar às universidades que se iniciaram em prédios contíguos às igrejas. Uma missa antecedia os exames a impregnar a consciência individual com o compromisso assumido com essa fé. Portanto, o compromisso entre a Academia e a fé cristã é, desde a sua origem, indissociável. Ao menos em parte do Novo Mundo, pois no Velho Mundo encontra-se em franco declínio.

    Texto na íntegra: http://cafehistoria.ning.com/profiles/blogs/paguei-pra-ver

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