22 de abril de 1500, foi o dia que entrou na história portuguesa, como a data em que o Brasil foi descoberto. Embora as palavras descobrir, descoberta e descobrimento possuam sentido no contexto histórico e literário daquela época, hoje os historiadores questionam o emprego desse termo para o nosso contexto acerca do entendimento do que foi o "descobrimento do Brasil".
De qualquer forma, eu prefiro usar as expressões "criação do Brasil" ou "fundação do Brasil" (mesmo que se demorou vários anos para que a colônia passasse a ser reconhecida oficialmente com o nome de Brasil), e para respaldar isso, dispomos do primeiro documento português que se conhece acerca do Brasil, a carta redigida pelo fidalgo Pero Vaz de Caminha (1450-1500), o qual foi incumbido de ser escrivão da futura feitoria de Calicute, quando este chegasse a Índia, em 1500. Caminha acabou não assumindo o posto de escrivão da nova feitoria, pois morreu em combate, segundo sugerem alguns relatos, vindo a falecer em dezembro de 1500.
Entretanto, antes que a armada de Pedro Álvares Cabral (c. 1467/68 - c. 1520) chegasse a Índia; em abril de 1500, a expedição viajou a América do Sul, a fim de fazer o reconhecimento oficial das terras acordadas pela Coroa Portuguesa com a Coroa Espanhola, no Tratado de Tordesilhas (1494). Sabe-se que antes de Cabral realizar o reconhecimento oficial e tomar posse, outros navegantes já haviam avistado a costa brasileira, como o português Duarte Pacheco Pereira por volta de 1498, e os espanhóis Vincente Yánez Pinzón e Diogo de Lepe, ambos em 1499.
Existem controvérsias se Duarte Pacheco realmente avistou o Brasil, mas sabe-se que Pinzón e Lepe avistaram a costa na altura do que hoje é Pernambuco. Mas pelo fato de serem terras portuguesas, eles não tinham autorização para investigá-las. Cabendo a Cabral fazer isso no ano seguinte, antes de ir para as Índias.
Todavia, o texto a seguir não é de minha autoria, apenas realizei essa introdução, para depois deixar os leitores conferir a carta escrita por Caminha, a qual para alguns historiadores é a "certidão de nascimento e de batismo" do Brasil.
A carta de Pero Vaz de Caminha possui uma importância magna para a história brasileira pelos seguintes motivos: foi o primeiro documento português o qual descreveu a geografia da costa brasileira (mesmo que limitada a uma pequena porção da costa, hoje referente a costa do estado da Bahia); foi o primeiro relato a comentar brevemente sobre a fauna e flora (mesmo que o autor não tenha entrado em detalhes acerca dos tipos e espécies); o primeiro relato que se tem sobre os indígenas "brasileiros", no qual Caminha relatou as seguintes impressões: a aparência deles (adornos, pinturas corporais, cortes de cabelo); suas armas, moradias, apetrechos, etc.; sobre sua suposta inocência quanto a nudez, daí não terem "vergonha" de andarem sem roupa; sobre seu desconhecimento de Deus, e possivelmente que não possuíssem fé; sobre sua ingenuidade e aparente atraso civilizatório.
A carta também relata o primeiro contato oficial entre portugueses e os indígenas daquela parte do continente americano. Relata a primeira missa ocorrida na nova terra, além do levantamento e "chantada" da cruz e da bandeira com o brasão de armas da Coroa Portuguesa, o que mostra as cerimônias de reconhecimento e tomada de posse; sendo que a cruz não foi apenas para a missa, mas também era o "padrão", pelo qual os portugueses usavam para reconhecer as terras da sua Coroa. Relata o primeiro nome oficial daquela terra recém descoberta (ou "achada", como Caminha menciona). Relata a criação de nomes próprios para determinadas localidades como o Monte Pascoal, o rio Diogo Dias e a angra Porto Seguro.
A carta também relata o contato entre os portugueses e indígenas ao longo de vários dias; como também se tornou o primeiro documento a comunicar o rei D. Manuel I, sobre o reconhecimento daquelas terras acordadas desde 1494, as quais passaram a serem chamadas de Ilha de Vera Cruz.
Sendo assim, o Brasil nasceu em terras pagãs, mas foi batizado com nome cristão.
Fac-símile da primeira página da Carta de Pero Vaz de Caminha, 1 de maio de 1500. |
Carta de Pero Vaz de Caminha
Senhor,
Posto
que o Capitão-mor desta vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a
Vossa Alteza a nova do achamento desta
vossa terra nova, que ora nesta navegação se achou, não deixarei também de
dar disso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder, ainda que —
para o bem contar e falar — o saiba pior que todos fazer.
Tome
Vossa Alteza, porém, minha ignorância por boa vontade, e creia bem por certo
que, para aformosear nem afear, não porei aqui mais do que aquilo que vi e me
pareceu. Da marinhagem e singraduras do caminho não darei aqui conta a Vossa
Alteza, porque o não saberei fazer, e os pilotos devem ter esse cuidado.
Portanto,
Senhor, do que hei de falar começo e digo: A partida de Belém, como Vossa Alteza sabe, foi segunda-feira, 9 de março. Sábado, 14 do dito mês, entre as oito e
nove horas, nos achamos entre as Canárias,
mais perto da Grã-Canária, e ali
andamos todo aquele dia em calma, à vista delas, obra de três a quatro léguas.
E domingo, 22 do dito mês, às dez horas, pouco mais ou menos, houvemos vista
das ilhas de Cabo Verde, ou melhor,
da ilha de S. Nicolau, segundo o
dito de Pero Escolar, piloto.
Na
noite seguinte, segunda-feira, ao amanhecer, se perdeu da frota Vasco de Ataíde
com sua nau, sem haver tempo forte nem contrário para que tal acontecesse. Fez
o capitão suas diligências para o achar, a uma e outra parte, mas não apareceu
mais! E assim seguimos nosso caminho, por este mar, de longo, até que, terça-feira das Oitavas de Páscoa, que
foram 21 dias de abril, estando da
dita Ilha obra de 660 ou 670 léguas, segundo os pilotos
diziam, topamos alguns sinais de terra, os quais eram muita quantidade de ervas
compridas, a que os mareantes chamam botelho, assim como outras a que dão o
nome de rabo-de-asno.
E
quarta-feira seguinte, pela manhã, topamos aves a que chamam fura-buxos. Neste
dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra! Primeiramente dum grande
monte, mui alto e redondo; e doutras serras mais baixas ao sul dele; e de terra
chã [terra plana], com grandes arvoredos: ao monte alto o capitão pôs nome – o Monte Pascoal e à terra – a Terra da Vera Cruz. Mandou lançar o
prumo.
Acharam
vinte e cinco braças; e ao sol posto, obra de seis léguas da terra, surgimos
âncoras, em dezenove braças — ancoragem limpa. Ali permanecemos toda aquela
noite. E à quinta-feira, pela manhã, fizemos vela e seguimos em direitos à
terra, indo os navios pequenos diante, por dezessete, dezesseis, quinze,
catorze, treze, doze, dez e nove braças, até meia légua da terra, onde todos
lançamos âncoras em frente à boca de um rio. E chegaríamos a esta ancoragem às
dez horas pouco mais ou menos.
Dali
avistamos homens que andavam pela praia, obra de sete ou oito, segundo disseram
os navios pequenos, por chegarem primeiro. Então lançamos fora os batéis e
esquifes [tipos de botes], e vieram logo todos os capitães das naus a esta nau do Capitão-mor,
onde falaram entre si. E o Capitão-mor mandou em terra no batel a Nicolau Coelho para ver aquele rio.
E
tanto que ele começou de ir para lá, acudiram pela praia homens, quando aos
dois, quando aos três, de maneira que, ao chegar o batel à boca do rio, já ali havia dezoito ou vinte homens. Eram pardos, todos nus, sem coisa
alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas mãos traziam arcos com suas setas.
Vinham todos rijos sobre o batel; e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem
os arcos. E eles os pousaram.
Ali
não pôde deles haver fala, nem entendimento de proveito, por o mar quebrar na
costa. Somente deu-lhes um barrete vermelho e uma carapuça de linho que levava
na cabeça e um sombreiro preto. Um deles deu-lhe um sombreiro [cocar] de penas de ave,
compridas, com uma copazinha de penas vermelhas e pardas como de papagaio; e
outro deu-lhe um ramal grande de continhas brancas, miúdas, que querem parecer
de aljaveira, as quais peças creio que o Capitão manda a Vossa Alteza, e com
isto se volveu às naus por ser tarde e não poder haver deles mais fala, por
causa do mar. Na noite seguinte, ventou tanto sueste com chuvaceiros que fez
caçar as naus, e especialmente a capitânia [navio do capitão].
E
sexta pela manhã, às oito horas, pouco mais ou menos, por conselho dos pilotos,
mandou o Capitão levantar âncoras e fazer vela; e fomos ao longo da costa, com
os batéis e esquifes amarrados à popa na direção do norte, para ver se
achávamos alguma abrigada e bom pouso, onde nos demorássemos, para tomar água e
lenha. Não que nos minguasse, mas por aqui nos acertarmos. Quando fizemos vela,
estariam já na praia assentados perto do rio obra de sessenta ou setenta homens
que se haviam juntado ali poucos e poucos.
Fomos
de longo, e mandou o Capitão aos navios pequenos que seguissem mais chegados à
terra e, se achassem pouso seguro para as naus, que amainassem. E, velejando
nós pela costa, obra de dez léguas do sítio donde tínhamos levantado ferro,
acharam os ditos navios pequenos um recife com um porto dentro, muito bom e
muito seguro, com uma mui larga entrada. E meteram-se dentro e amainaram [baixar as velas].
As
naus arribaram sobre eles; e um pouco antes do sol posto amainaram também, obra
de uma légua do recife, e ancoraram em onze braças. E estando Afonso Lopes, nosso piloto, em um
daqueles navios pequenos, por mandado do Capitão, por ser homem vivo e destro
para isso, meteu-se logo no esquife a sondar o porto dentro; e tomou dois
daqueles homens da terra, mancebos e de bons corpos, que estavam numa almadia [canoa].
Um
deles trazia um arco e seis ou sete setas; e na praia andavam muitos com seus
arcos e setas; mas de nada lhes serviram. Trouxe-os logo, já de noite, ao
Capitão, em cuja nau foram recebidos com muito prazer e festa. A feição deles é
serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes,
bem-feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem estimam de cobrir ou de
mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto.
Ambos traziam os beiços de baixo furados e metidos neles seus ossos brancos e
verdadeiros, de comprimento duma mão travessa, da grossura dum fuso de algodão,
agudos na ponta como um furador.
Metemo-nos
pela parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os
dentes é feita como roque de xadrez, ali encaixado de tal sorte que não os
molesta, nem os estorva no falar, no comer ou no beber. Os cabelos seus são
corredios. E andavam tosquiados, de tosquia alta, mais que de sobrepente, de
boa grandura e rapados até por cima das orelhas. E um deles trazia por baixo da
solapa, de fonte a fonte para detrás, uma espécie de cabeleira de penas de ave
amarelas, que seria do comprimento de um coto, mui basta e mui cerrada, que lhe
cobria o toutiço [nuca] e as orelhas.
E
andava pegada aos cabelos, pena e pena, com uma confeição branda como cera (mas
não o era), de maneira que a cabeleira ficava mui redonda e mui basta, e mui igual,
e não fazia míngua mais lavagem para a levantar. O Capitão, quando eles vieram,
estava sentado em uma cadeira, bem vestido, com um colar de ouro mui grande ao
pescoço, e aos pés uma alcatifa [tipo de tapete] por estrado.
Sancho de Tovar, Simão de Miranda, Nicolau Coelho, Aires
Correia, e nós outros que aqui na nau com ele vamos, sentados no chão, pela
alcatifa. Acenderam-se tochas. Entraram. Mas não fizeram sinal de cortesia, nem
de falar ao Capitão nem a ninguém. Porém um deles pôs olho no colar do Capitão,
e começou de acenar com a mão para a terra e depois para o colar, como que nos
dizendo que ali havia ouro.
Também
olhou para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente
para o castiçal como se lá também houvesse prata. Mostraram-lhes um papagaio
pardo que o Capitão traz consigo; tomaram-no logo na mão e acenaram para a
terra, como quem diz que os havia ali. Mostraram-lhes um carneiro: não fizeram
caso. Mostraram-lhes uma galinha, quase tiveram medo dela: não lhe queriam pôr
a mão; e depois a tomaram como que espantados.
Deram-lhes
ali de comer: pão e peixe cozido, confeitos, fartéis [pastéis], mel e figos passados. Não
quiseram comer quase nada daquilo; e, se alguma coisa provaram, logo a lançaram
fora. Trouxeram-lhes vinho numa taça; mal lhe puseram a boca; não gostaram
nada, nem quiseram mais. Trouxeram-lhes a água em uma albarrada. Não beberam.
Mal a tomaram na boca, que lavaram, e logo a lançaram fora.
Viu
um deles umas contas de rosário, brancas; acenou que lhas dessem, folgou muito
com elas, e lançou-as ao pescoço. Depois tirou-as e enrolou-as no braço e
acenava para a terra e de novo para as contas e para o colar do Capitão, como
dizendo que dariam ouro por aquilo. Isto tomávamos nós assim por assim o
desejarmos. Mas se ele queria dizer que levaria as contas e mais o colar, isto
não o queríamos nós entender, porque não lhe havíamos de dar. E depois tornou
as contas a quem lhes dera.
Então
estiraram-se de costas na alcatifa [tapete], a dormir, sem buscarem maneira de cobrirem
suas vergonhas, as quais não eram fanadas; e as cabeleiras delas estavam bem
rapadas e feitas. O Capitão lhes mandou pôr por baixo das cabeças seus coxins [almofadas];
e o da cabeleira esforçava-se por não a quebrar.
E
lançaram-lhes um manto por cima; e eles consentiram, quedaram-se e dormiram. Ao
sábado pela manhã mandou o Capitão fazer vela, e fomos demandar a entrada, a
qual era mui larga e alta de seis a sete braças. Entraram todas as naus dentro;
e ancoraram em cinco ou seis braças – ancoragem dentro tão grande, tão formosa
e tão segura, que podem abrigar-se nela mais de duzentos navios e naus. E tanto
que as naus quedaram ancoradas, todos os capitães vieram a esta nau do
Capitão-mor.
E
daqui mandou o Capitão a Nicolau Coelho
e Bartolomeu Dias que fossem em terra e levassem aqueles dois homens e os
deixassem ir com seu arco e setas, e isto depois que fez dar a cada um sua
camisa nova, sua carapuça vermelha e um rosário de contas brancas de osso, que
eles levaram nos braços, seus cascavéis [bugigangas] e suas campainhas [pequenos sinos].
E
mandou com eles, para lá ficar, um mancebo degredado [condenado a exílio], criado de D. João Telo, a que chamam Afonso Ribeiro, para lá andar com eles
e saber de seu viver e maneiras. E a mim mandou que fosse com Nicolau Coelho.
Fomos assim de frecha [ir de depressa] diretos à praia. Ali acudiram logo obra de duzentos
homens, todos nus, e com arcos e setas nas mãos. Aqueles que nós levávamos
acenaram-lhes que se afastassem e pousassem os arcos; e eles os pousaram, mas
não se afastaram muito.
E
mal pousaram os arcos, logo saíram os que nós levávamos, e o mancebo degredado
com eles. E saídos não pararam mais; nem esperavam um pelo outro, mas antes
corriam a quem mais corria. E passaram um rio que por ali corre, de água doce,
de muita água que lhes dava pela braga; e outros muitos com eles. E foram assim
correndo, além do rio, entre umas moitas de palmas onde estavam outros.
Ali
pararam. Entretanto foi-se o degredado com um homem que, logo ao sair do batel,
o agasalhou e o levou até lá. Mas logo tornaram a nós; e com ele vieram os
outros que nós leváramos, os quais vinham já nus e sem carapuças. Então se
começaram de chegar muitos. Entravam pela beira do mar para os batéis, até que
mais não podiam; traziam cabaços de água, e tomavam alguns barris que nós
levávamos: enchiam-nos de água e traziam-nos aos batéis. Não que eles de todos
chegassem à borda do batel.
Mas
junto a ele, lançavam os barris que nós tomávamos; e pediam que lhes dessem
alguma coisa. Levava Nicolau Coelho cascavéis [bugigangas] e manilhas [tubos]. E a uns dava um
cascavel, a outros uma manilha, de maneira que com aquele engodo quase nos queriam
dar a mão. Davam-nos daqueles arcos e setas por sombreiros e carapuças de linho
ou por qualquer coisa que homem lhes queria dar. Dali se partiram os outros
dois mancebos, que os não vimos mais.
Muitos
deles ou quase a maior parte dos que andavam ali traziam aqueles bicos de osso
nos beiços. E alguns, que andavam sem eles, tinham os beiços furados e nos
buracos uns espelhos de pau, que pareciam espelhos de borracha; outros traziam
três daqueles bicos, a saber, um no meio e os dois nos cabos. Aí andavam outros,
quartejados de cores, a saber, metade deles da sua própria cor, e metade de
tintura preta, a modos de azulada; e outros quartejados de escaques.
Ali
andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos
muito pretos, compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão
cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não
tínhamos nenhuma vergonha. Ali por então não houve mais fala ou entendimento
com eles, por a barbaria deles ser tamanha, que se não entendia nem ouvia
ninguém. Acenamos-lhes que se fossem; assim o fizeram e passaram-se além do
rio.
Saíram
três ou quatro homens nossos dos batéis, e encheram não sei quantos barris de
água que nós levávamos e tornamo-nos às naus. Mas quando assim vínhamos,
acenaram-nos que tornássemos. Tornamos e eles mandaram o degredado e não
quiseram que ficasse lá com eles. Este levava uma bacia pequena e duas ou três
carapuças vermelhas para lá as dar ao senhor, se o lá houvesse. Não cuidaram de
lhe tomar nada, antes o mandaram com tudo.
Mas
então Bartolomeu Dias o fez outra vez tornar, ordenando que lhes desse aquilo.
E ele tornou e o deu, à vista de nós, àquele que da primeira vez agasalhara.
Logo voltou e nós trouxemo-lo. Esse que o agasalhou era já de idade, e andava
por louçainha todo cheio de penas, pegadas pelo corpo, que parecia asseteado [flechado] como S. Sebastião.
Outros
traziam carapuças [cocares] de penas amarelas; outros, de vermelhas; e outros de verdes.
E uma daquelas moças era toda tingida, de baixo a cima daquela tintura; e certo
era tão bem-feita e tão redonda, e sua vergonha (que ela não tinha) tão
graciosa, que a muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera
vergonha, por não terem a sua como ela. Nenhum deles era fanado [depilado], mas, todos
assim como nós.
E
com isto nos tornamos e eles foram-se. À tarde saiu o Capitão-mor em seu batel
com todos nós outros e com os outros capitães das naus em seus batéis a folgar
pela baía, em frente da praia. Mas ninguém saiu em terra, porque o Capitão o
não quis, sem embargo de ninguém nela estar. Somente saiu — ele com todos nós —
em um ilhéu grande, que na baía está e que na baixa-mar [maré baixa] fica mui vazio. Porém é
por toda a parte cercado de água, de sorte que ninguém lá pode ir, a não ser de
barco ou a nado.
Ali
folgou ele e todos nós outros, bem uma hora e meia. E alguns marinheiros, que
ali andavam com um chinchorro [tipo de rede de pesca], pescaram peixe miúdo, não muito. Então
volvemo-nos às naus, já bem de noite. Ao domingo
de Pascoela pela manhã, determinou o Capitão de ir ouvir missa e pregação
naquele ilhéu. Mandou a todos os capitães que se aprestassem nos batéis e
fossem com ele. E assim foi feito.
Mandou
naquele ilhéu armar um esperavel [tipo de tenda], e dentro dele um altar mui bem corregido. E
ali com todos nós outros fizeram dizer
missa, a qual foi dita pelo padre
frei Henrique, em voz entoada, e oficiada com aquela mesma voz pelos outros
padres e sacerdotes, que todos eram ali. A qual missa, segundo meu parecer, foi
ouvida por todos com muito prazer e devoção.
Ali
era com o Capitão a bandeira de Cristo,
com que saiu de Belém, a qual esteve sempre levantada, da parte do Evangelho.
Acabada a missa, desvestiu-se o padre e subiu a uma cadeira alta; e nós todos
lançados por essa areia. E pregou uma solene e proveitosa pregação da história
do Evangelho, ao fim da qual tratou da nossa vinda e do achamento desta terra,
conformando-se com o sinal da Cruz, sob cuja obediência viemos, o que foi muito
a propósito e fez muita devoção.
Enquanto
estivemos à missa e à pregação, seria na praia outra tanta gente, pouco mais ou
menos como a de ontem, com seus arcos e setas, a qual andava folgando. E
olhando-nos, sentaram-se. E, depois de acabada a missa, assentados nós à
pregação, levantaram-se muitos deles, tangeram corno ou buzina, e começaram a
saltar e dançar um pedaço. E alguns deles se metiam em almadias [jangadas] — duas ou três
que aí tinham — as quais não são feitas como as que eu já vi; somente são três
traves, atadas entre si.
E
ali se metiam quatro ou cinco, ou esses que queriam não se afastando quase nada
da terra, senão enquanto podiam tomar pé. Acabada a pregação, voltou o Capitão,
com todos nós, para os batéis, com nossa bandeira alta. Embarcamos e fomos
todos em direção à terra para passarmos ao longo por onde eles estavam, indo,
na dianteira, por ordem do Capitão, Bartolomeu Dias em seu esquife, com um pau
de uma almadia que lhes o mar levara, para lhe dar; e nós todos, obra de tiro
de pedra, atrás dele. Como viram o esquife de Bartolomeu Dias, chegaram-se logo
todos à água, metendo-se nela até onde mais podiam.
Acenaram-lhes
que pousassem os arcos; e muitos deles os iam logo pôr em terra; e outros não.
Andava aí um que falava muito aos outros que se afastassem, mas não que a mim
me parecesse que lhe tinham acatamento ou medo. Este que os assim andava
afastando trazia seu arco e setas, e andava tinto de tintura vermelha pelos
peitos, espáduas, quadris, coxas e pernas até baixo, mas os vazios com a
barriga e estômago eram de sua própria cor. E a tintura era assim vermelha que
a água a não comia nem desfazia, antes, quando saía da água, parecia mais
vermelha.
Saiu
um homem do esquife de Bartolomeu Dias e andava entre eles, sem implicarem nada
com ele para fazer-lhe mal. Antes lhe davam cabaças de água, e acenavam aos do
esquife que saíssem em terra. Com isto se volveu Bartolomeu Dias ao Capitão; e
viemo-nos às naus, a comer, tangendo gaitas e trombetas, sem lhes dar mais
opressão. E eles tornaram-se a assentar na praia e assim por então ficaram.
Neste ilhéu, onde fomos ouvir missa e pregação, a água espraia muito, deixando
muita areia e muito cascalho a descoberto.
Enquanto
aí estávamos, foram alguns buscar marisco e apenas acharam alguns camarões
grossos e curtos, entre os quais vinha um tão grande e tão grosso, como em
nenhum tempo vi tamanho. Também acharam cascas de berbigões e amêijoas, mas não
toparam com nenhuma peça inteira. E tanto que comemos, vieram logo todos os
capitães a esta nau, por ordem do Capitão-mor, com os quais ele se apartou, e
eu na companhia.
E
perguntou a todos se nos parecia bem mandar a nova do achamento desta terra a
Vossa Alteza pelo navio dos mantimentos, para a melhor a mandar descobrir e
saber dela mais do que nós agora podíamos saber, por irmos de nossa viagem. E
entre muitas falas que no caso se fizeram, foi por todos ou a maior parte dito
que seria muito bem. E nisto concluíram. E tanto que a conclusão foi tomada,
perguntou mais se lhes parecia bem tomar aqui por força um par destes homens
para os mandar a Vossa Alteza, deixando aqui por eles outros dois destes
degredados.
Sobre
isto acordaram que não era necessário tomar por força homens, porque era geral
costume dos que assim levavam por força para alguma parte dizerem que há ali de
tudo quanto lhes perguntam; e que melhor e muito melhor informação da terra
dariam dois homens destes degredados que aqui deixassem, do que eles dariam se
os levassem, por ser gente que ninguém entende.
Nem
eles tão cedo aprenderiam a falar para o saberem tão bem dizer que muito melhor
estoutros o não digam, quando Vossa Alteza cá mandar. E que, portanto, não
cuidassem de aqui tomar ninguém por força nem de fazer escândalo, para de todo
mais os amansar e apacificar, senão somente deixar aqui os dois degredados,
quando daqui partíssemos.
E
assim, por melhor a todos parecer, ficou determinado. Acabado isto, disse o
Capitão que fôssemos nos batéis em terra e ver-se-ia bem como era o rio, e
também para folgarmos. Fomos todos nos batéis em terra, armados e a bandeira
conosco. Eles andavam ali na praia, à boca do rio, para onde nós íamos; e,
antes que chegássemos, pelo ensino que dantes tinham, puseram todos os arcos, e
acenavam que saíssemos.
Mas,
tanto que os batéis puseram as proas em terra, passaram-se logo todos além do
rio, o qual não é mais largo que um jogo de mancal. E mal desembarcamos, alguns
dos nossos passaram logo o rio, e meteram-se entre eles. Alguns aguardavam;
outros afastavam-se. Era, porém, a coisa de maneira que todos andavam
misturados. Eles ofereciam desses arcos com suas setas por sombreiros e
carapuças de linho ou por qualquer coisa que lhes davam.
Passaram
além tantos dos nossos, e andavam assim misturados com eles, que eles se
esquivavam e afastavam-se. E deles alguns iam-se para cima onde outros estavam.
Então o Capitão fez que dois homens o tomassem ao colo, passou o rio, e fez
tornar a todos. A gente que ali estava não seria mais que a costumada. E tanto
que o Capitão fez tornar a todos, vieram a ele alguns daqueles, não porque o
conhecessem por Senhor, pois me parece que não entendem, nem tomavam disso
conhecimento, mas porque a gente nossa passava já para aquém do rio.
Ali
falavam e traziam muitos arcos e continhas daquelas já ditas, e resgatavam-nas
por qualquer coisa, em tal maneira que os nossos trouxeram dali para as naus
muitos arcos e setas e contas [rosários]. Então tornou-se o Capitão aquém do rio, e logo
acudiram muitos à beira dele. Ali veríeis galantes, pintados de preto e
vermelho, e quartejados, assim nos corpos, como nas pernas, que, certo,
pareciam bem assim.
Também
andavam, entre eles, quatro ou cinco mulheres moças, nuas como eles, que não
pareciam mal. Entre elas andava uma com uma coxa, do joelho até o quadril, e a
nádega, toda tinta daquela tintura preta; e o resto, tudo da sua própria cor.
Outra trazia ambos os joelhos, com as curvas assim tintas, e também os colos
dos pés; e suas vergonhas tão nuas e com tanta inocência descobertas, que nisso
não havia nenhuma vergonha.
Também
andava aí outra mulher moça com um menino ou menina ao colo, atado com um pano
(não sei de quê) aos peitos, de modo que apenas as perninhas lhe apareciam. Mas
as pernas da mãe e o resto não traziam pano algum. Depois andou o Capitão para
cima ao longo do rio, que corre sempre chegado à praia. Ali esperou um velho,
que trazia na mão uma pá de almadia [tora usada para fazer jangada].
Falava,
enquanto o Capitão esteve com ele, perante nós todos, sem nunca ninguém o
entender, nem ele a nós quantas coisas que lhe demandávamos acerca de ouro, que
nós desejávamos saber se na terra havia. Trazia este velho o beiço tão furado,
que lhe caberia pelo furo um grande dedo polegar, e metida nele uma pedra
verde, ruim, que cerrava por fora esse buraco.
O
Capitão lha fez tirar. E ele não sei que diabo falava e ia com ela direito ao
Capitão, para lha meter na boca. Estivemos sobre isso rindo um pouco; e então
enfadou-se o Capitão e deixou-o. E um dos nossos deu-lhe pela pedra um
sombreiro velho, não por ela valer alguma coisa, mas por amostra. Depois
houve-a o Capitão, segundo creio, para, com as outras coisas, a mandar a Vossa
Alteza.
Andamos
por aí vendo a ribeira, a qual é de muita água e muito boa. Ao longo dela há
muitas palmas, não muito altas, em que há muito bons palmitos. Colhemos e
comemos deles muitos. Então tornou-se o Capitão para baixo para a boca do rio,
onde havíamos desembarcado. Além do rio, andavam muitos deles dançando e
folgando, uns diante dos outros, sem se tomarem pelas mãos. E faziam-no bem.
Passou-se
então além do rio Diogo Dias,
almoxarife que foi de Sacavém, que é homem gracioso e de prazer; e levou
consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se com eles a dançar,
tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam, e andavam com ele muito bem ao
som da gaita. Depois de dançarem, fez-lhes ali, andando no chão, muitas voltas
ligeiras, e salto real, de que eles se espantavam e riam e folgavam muito.
E
conquanto com aquilo muito os segurou e afagou, tomavam logo uma esquiveza como
de animais monteses, e foram-se para cima. E então o Capitão passou o rio com
todos nós outros, e fomos pela praia de longo, indo os batéis, assim, rente da
terra. Fomos até uma lagoa grande de água doce, que está junto com a praia, porque
toda aquela ribeira do mar é apaulada por cima e sai a água por muitos lugares.
E depois de passarmos o rio, foram uns sete ou oito deles andar entre os
marinheiros que se recolhiam aos batéis.
E
levaram dali um tubarão, que Bartolomeu Dias matou, lhes levou e lançou na
praia. Bastará dizer-vos que até aqui, como quer que eles um pouco se
amansassem, logo duma mão para outra se esquivavam, como pardais, do cevadoiro.
Homem não lhes ousa falar de rijo para não se esquivarem mais; e tudo se passa
como eles querem, para os bem amansar. O Capitão ao velho, com quem falou, deu
uma carapuça vermelha.
E
com toda a fala que entre ambos se passou e com a carapuça que lhe deu, tanto
que se apartou e começou de passar o rio, foi-se logo recatando e não quis mais
tornar de lá para aquém. Os outros dois, que o Capitão teve nas naus, a que deu
o que já disse, nunca mais aqui apareceram – do que tiro ser gente bestial, de
pouco saber e por isso tão esquiva. Porém e com tudo isso andam muito bem
curados e muito limpos.
E
naquilo me parece ainda mais que são como aves ou alimárias monteses, às quais
faz o ar melhor pena e melhor cabelo que às mansas, porque os corpos seus são
tão limpos, tão gordos e tão formosos, que não pode mais ser. Isto me faz
presumir que não têm casas nem moradas a que se acolham, e o ar, a que se
criam, os faz tais. Nem nós ainda até agora vimos nenhuma casa ou maneira
delas. Mandou o Capitão aquele degredado Afonso
Ribeiro, que se fosse outra vez com eles. Ele foi e andou lá um bom pedaço,
mas à tarde tornou-se, que o fizeram eles vir e não o quiseram lá consentir.
E
deram-lhe arcos e setas; e não lhe tomaram nenhuma coisa do seu. Antes – disse
ele – que um lhe tomara umas continhas amarelas, que levava, e fugia com elas,
e ele se queixou e os outros foram logo após, e lhes tomaram e tornaram-lhes a
dar; e então mandaram-no vir. Disse que não vira lá entre eles senão umas choupaninhas [ocas] de rama verde e de fetos
muito grandes, como de Entre Douro e
Minho. E assim nos tornamos às naus, já quase noite, a dormir.
À
segunda-feira, depois de comer, saímos todos em terra a tomar água. Ali vieram
então muitos, mas não tantos como as outras vezes. Já muito poucos traziam
arcos. Estiveram assim um pouco afastados de nós; e depois pouco a pouco
misturaram-se conosco. Abraçavam-nos e folgavam. E alguns deles se esquivavam
logo. Ali davam alguns arcos por folhas de papel e por alguma carapucinha velha
ou por qualquer coisa.
Em
tal maneira isto se passou, que bem vinte ou trinta pessoas das nossas se foram
com eles, onde outros muitos estavam com moças e mulheres. E trouxeram de lá
muitos arcos e barretes de penas de aves, deles verdes e deles amarelos, dos
quais, creio, o Capitão há de mandar amostra a Vossa Alteza. E, segundo diziam
esses que lá foram, folgavam com eles. Neste dia os vimos mais de perto e mais
à nossa vontade, por andarmos quase todos misturados.
Ali,
alguns andavam daquelas tinturas quartejados; outros de metades; outros de
tanta feição, como em panos de armar, e todos com os beiços furados, e muitos
com os ossos neles, e outros sem ossos. Alguns traziam uns ouriços verdes, de
árvores, que, na cor, queriam parecer de castanheiros, embora mais pequenos. E
eram cheios duns grãos vermelhos pequenos, que, esmagando-os entre os dedos,
faziam tintura muito vermelha, de que eles andavam tintos. E quanto mais se
molhavam, tanto mais vermelhos ficavam.
Todos
andam rapados até cima das orelhas; e assim as sobrancelhas e pestanas. Trazem
todos as testas, de fonte a fonte, tintas da tintura preta, que parece uma fita
preta, da largura de dois dedos. E o Capitão mandou aquele degredado Afonso
Ribeiro e a outros dois degredados, que fossem lá andar entre eles; e assim a
Diogo Dias, por ser homem ledo, com que eles folgavam. Aos degredados mandou
que ficassem lá esta noite.
Foram-se
lá todos, e andaram entre eles. E, segundo eles diziam, foram bem uma légua e
meia a uma povoação, em que haveria nove ou dez casas, as quais eram tão
compridas, cada uma, como esta nau capitânia. Eram de madeira, e das ilhargas
de tábuas, e cobertas de palha, de razoada altura; todas duma só peça, sem
nenhum repartimento, tinham dentro muitos esteios; e, de esteio a esteio, uma
rede atada pelos cabos, alta, em que dormiam. Debaixo, para se aquentarem,
faziam seus fogos. E tinha cada casa duas portas pequenas, uma num cabo, e
outra no outro. Diziam que em cada casa se recolhiam trinta ou quarenta
pessoas, e que assim os achavam; e que lhes davam de comer daquela vianda, que
eles tinham, a saber, muito inhame e outras sementes, que na terra há e eles
comem.
Mas,
quando se fez tarde fizeram-nos logo tornar a todos e não quiseram que lá
ficasse nenhum. Ainda, segundo diziam, queriam vir com eles. Resgataram lá por
cascavéis e por outras coisinhas de pouco valor, que levavam, papagaios
vermelhos, muito grandes e formosos, e dois verdes pequeninos e carapuças de
penas verdes, e um pano de penas de muitas cores, maneira de tecido assaz
formoso, segundo Vossa Alteza todas estas coisas verá, porque o Capitão vo-las
há de mandar, segundo ele disse. E com isto vieram; e nós tornamo-nos às naus.
À
terça-feira, depois de comer, fomos em terra dar guarda de lenha e lavar roupa.
Estavam na praia, quando chegamos, obra de sessenta ou setenta sem arcos e sem
nada. Tanto que chegamos, vieram logo para nós, sem se esquivarem. Depois
acudiram muitos, que seriam bem duzentos, todos sem arcos; e misturaram-se
todos tanto conosco que alguns nos ajudavam a acarretar lenha e a meter nos
batéis.
E
lutavam com os nossos e tomavam muito prazer. Enquanto cortávamos a lenha,
faziam dois carpinteiros uma grande Cruz, dum pau, que ontem para isso se
cortou. Muitos deles vinham ali estar com os carpinteiros. E creio que o faziam
mais por verem a ferramenta de ferro com que a faziam, do que por verem a Cruz,
porque eles não têm coisa que de ferro seja, e cortam sua madeira e paus com
pedras feitas como cunhas, metidas em um pau entre duas talas, mui bem atadas e
por tal maneira que andam fortes, segundo diziam os homens, que ontem a suas
casas foram, porque lhas viram lá.
Era
já a conversação deles conosco tanta, que quase nos estorvavam no que havíamos
de fazer. O Capitão mandou a dois degredados e a Diogo Dias que fossem lá à
aldeia (e a outras, se houvessem novas delas) e que, em toda a maneira, não
viessem dormir às naus, ainda que eles os mandassem. E assim se foram. Enquanto
andávamos nessa mata a cortar lenha, atravessavam alguns papagaios por essas
árvores, deles verdes e outros pardos, grandes e pequenos, de maneira que me
parece que haverá muitos nesta terra. Porém eu não veria mais que até nove ou
dez.
Outras
aves então não vimos, somente algumas pombas-seixas, e pareceram-me bastante
maiores que as de Portugal. Alguns diziam que viram rolas; eu não as vi. Mas,
segundo os arvoredos são mui muitos e grandes, e de infindas maneiras, não
duvido que por esse sertão haja muitas aves! Cerca da noite nos volvemos para
as naus com nossa lenha. Eu creio, Senhor, que ainda não dei conta aqui a Vossa
Alteza da feição de seus arcos e setas.
Os
arcos são pretos e compridos, as setas também compridas e os ferros delas de
canas aparadas, segundo Vossa Alteza verá por alguns que – eu creio — o Capitão
a Ele há de enviar.
À
quarta-feira não fomos em terra, porque o Capitão andou todo o dia no navio dos
mantimentos a despejá-lo e fazer levar às naus isso que cada uma podia levar.
Eles acudiram à praia; muitos, segundo das naus vimos. No dizer de Sancho de Tovar, que lá foi, seriam
obra de trezentos. Diogo Dias e Afonso
Ribeiro, o degredado, aos quais o Capitão ontem mandou que em toda maneira
lá dormissem, volveram-se, já de noite, por eles não quererem que lá ficassem.
Trouxeram
papagaios verdes e outras aves pretas, quase como pegas, a não ser que tinham o
bico branco e os rabos curtos. Quando Sancho de Tovar se recolheu à nau,
queriam vir com ele alguns, mas ele não quis senão dois mancebos dispostos e
homens de prol. Mandou-os essa noite mui bem pensar e curar.
Comeram
toda a vianda que lhes deram; e mandou fazer-lhes cama de lençóis, segundo ele
disse. Dormiram e folgaram aquela noite. E assim não houve mais este dia que
para escrever seja. À quinta-feira, derradeiro de abril, comemos logo, quase
pela manhã, e fomos em terra por mais lenha e água. E, em querendo o Capitão
sair desta nau, chegou Sancho de Tovar
com seus dois hóspedes.
E
por ele ainda não ter comido, puseram-lhe toalhas. Trouxeram-lhe vianda e
comeu. Aos hóspedes, sentaram cada um em sua cadeira. E de tudo o que lhes
deram comeram mui bem, especialmente lacão [pernil] cozido, frio, e arroz. Não lhes
deram vinho, por Sancho de Tovar dizer que o não bebiam bem. Acabado o comer,
metemo-nos todos no batel e eles conosco. Deu um grumete [ajudante de marinheiro] a um deles uma
armadura grande de porco montês, bem revolta.
Tanto
que a tomou, meteu-a logo no beiço, e, porque se lhe não queria segurar,
deram-lhe uma pequena de cera vermelha. E ele ajeitou-lhe seu adereço detrás
para ficar segura, e meteu-a no beiço, assim revolta para cima. E vinha tão
contente com ela, como se tivesse uma grande joia. E tanto que saímos em terra,
foi-se logo com ela, e não apareceu mais aí. Andariam na praia, quando saímos,
oito ou dez deles; e de aí a pouco começaram a vir mais.
E
parece-me que viriam, este dia, à praia quatrocentos ou quatrocentos e cinquenta.
Traziam alguns deles arcos e setas, que todos trocaram por carapuças ou por qualquer
coisa que lhes davam. Comiam conosco do que lhes dávamos. Bebiam alguns deles
vinho; outros o não podiam beber. Mas parece-me, que se lho avezarem, o beberão
de boa vontade. Andavam todos tão dispostos, tão bem-feitos e galantes com suas
tinturas, que pareciam bem.
Acarretavam
dessa lenha, quanta podiam, com mui boa vontade, e levavam-na aos batéis.
Andavam já mais mansos e seguros entre nós, do que nós andávamos entre eles.
Foi o Capitão com alguns de nós um pedaço por este arvoredo até uma ribeira
grande e de muita água que, a nosso parecer, era esta mesma, que vem ter à
praia, e em que nós tomamos água. Ali ficamos um pedaço, bebendo e folgando [divertindo-se], ao
longo dela, entre esse arvoredo, que é tanto, tamanho, tão basto e de tantas plumagens,
que homens as não podem contar. Há entre ele muitas palmas, de que colhemos
muitos e bons palmitos.
Quando
saímos do batel, disse o Capitão que seria bom irmos direitos à Cruz, que
estava encostada a uma árvore, junto com o rio, para se erguer amanhã, que é
sexta-feira, e que nos puséssemos todos de joelhos e a beijássemos para eles
verem o acatamento que lhe tínhamos. E assim fizemos. A esses dez ou doze que
aí estavam, acenaram-lhe que fizessem assim, e foram logo todos beijá-la.
Parece-me gente de tal inocência que, se homem os entendesse e eles a nós,
seriam logo cristãos, porque eles,
segundo parece, não têm, nem entendem em nenhuma crença.
E,
portanto, se os degredados, que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e
os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa intenção de Vossa Alteza,
se hão de fazer cristãos e crer em nossa santa fé, à qual praza a Nosso Senhor
que os traga, porque, certo, esta gente é boa e de boa simplicidade. E
imprimir-se-á ligeiramente neles qualquer cunho, que lhes quiserem dar.
E,
pois Nosso Senhor, que lhes deu bons corpos e bons rostos, como a bons homens,
por aqui nos trouxe, creio que não foi sem causa. Portanto Vossa Alteza, que
tanto deseja acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da sua salvação. E
prazerá a Deus que com pouco trabalho seja assim. Eles não lavram, nem criam.
Não há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem qualquer
outra alimária, que costumada seja ao viver dos homens.
Nem
comem senão desse inhame, que aqui há muito, e dessa semente e frutos, que a
terra e as árvores de si lançam. E com isto andam tais e tão rijos e tão
nédios [lustroso], que o não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes comemos. Neste
dia, enquanto ali andaram, dançaram e bailaram sempre com os nossos, ao som dum
tamboril dos nossos, em maneira que são muito mais nossos amigos que nós seus.
Se lhes homem acenava se queriam vir às naus, faziam-se logo prestes para isso,
em tal maneira que, se a gente todos quisera convidar, todos vieram.
Porém
não trouxemos esta noite às naus, senão quatro ou cinco, a saber: o
Capitão-mor, dois; e Simão de Miranda,
um, que trazia já por pajem; e Aires
Gomes, outro, também por pajem. Um dos que o Capitão trouxe era um dos
hóspedes, que lhe trouxeram da primeira vez, quando aqui chegamos, o qual veio
hoje aqui, vestido na sua camisa, e com ele um seu irmão; e foram esta noite
mui bem agasalhados, assim de vianda, como de cama, de colchões e lençóis, para
os mais amansar.
E
hoje, que é sexta-feira, primeiro dia de
maio, pela manhã, saímos em terra, com nossa bandeira; e fomos desembarcar
acima do rio contra o sul, onde nos pareceu que seria melhor chantar a Cruz, para melhor ser vista. Ali assinalou o
Capitão o lugar, onde fizessem a cova para a chantar. Enquanto a ficaram
fazendo, ele com todos nós outros fomos pela Cruz abaixo do rio, onde ela
estava. Dali a trouxemos com esses religiosos e sacerdotes diante cantando, em
maneira de procissão.
Eram
já aí alguns deles, obra de setenta ou oitenta; e, quando nos viram assim vir,
alguns se foram meter debaixo dela, para nos ajudar. Passamos o rio, ao longo
da praia e fomo-la pôr onde havia de ficar, que será do rio obra de dois tiros
de besta. Andando-se ali nisto, vieram bem cento e cinquenta ou mais. Chantada a Cruz, com as armas e a divisa de
Vossa Alteza, que primeiramente lhe pregaram, armaram altar ao pé dela. Ali
disse missa o padre frei Henrique, a qual foi cantada e oficiada por esses já
ditos.
Ali
estiveram conosco a ela obra de cinquenta ou sessenta deles, assentados todos
de joelhos, assim como nós. E quando veio ao Evangelho, que nos erguemos todos
em pé, com as mãos levantadas, eles se levantaram conosco e alçaram as mãos,
ficando assim, até ser acabado; e então tornaram-se a assentar como nós. E
quando levantaram a Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se puseram assim
todos, como nós estávamos com as mãos levantadas, e em tal maneira sossegados,
que, certifico a Vossa Alteza, nos fez muita devoção.
Estiveram
assim conosco até acabada a comunhão, depois da qual comungaram esses
religiosos e sacerdotes e o Capitão com alguns de nós outros. Alguns deles, por
o sol ser grande, quando estávamos comungando, levantaram-se, e outros
estiveram e ficaram. Um deles, homem de cinquenta ou cinquenta e cinco anos,
continuou ali com aqueles que ficaram. Esse, estando nós assim, ajuntava estes,
que ali ficaram, e ainda chamava outros. E andando assim entre eles falando,
lhes acenou com o dedo para o altar e depois apontou o dedo para o Céu, como se
lhes dissesse alguma coisa de bem; e nós assim o tomamos.
Acabada
a missa, tirou o padre a vestimenta de cima e ficou em alva; e assim se subiu
junto com altar, em uma cadeira. Ali nos
pregou do Evangelho e dos Apóstolos, cujo dia hoje é, tratando, ao fim da
pregação, deste vosso prosseguimento tão santo e virtuoso, o que nos aumentou a
devoção. Esses, que à pregação sempre estiveram, quedaram-se como nós olhando
para ele. E aquele, que digo, chamava alguns que viessem para ali.
Alguns
vinham e outros iam-se. E, acabada a pregação, como Nicolau Coelho trouxesse muitas cruzes de estanho com crucifixos,
que lhe ficaram ainda da outra vinda, houveram por bem que se lançasse a cada
um a sua ao pescoço. Pelo que o padre
frei Henrique se assentou ao pé da Cruz e ali, a um por um, lançava a sua
atada em um fio ao pescoço, fazendo-lhe primeiro beijar e alevantar as mãos.
Vinham a isso muitos; e lançaram-nas todas, que seriam obra de quarenta ou cinquenta.
Isto
acabado – era já bem uma hora depois do meio-dia – viemos às naus a comer,
trazendo o Capitão consigo aquele mesmo que fez aos outros aquela mostrança
para o altar e para o Céu e um seu irmão com ele. Fez-lhe muita honra e deu-lhe
uma camisa mourisca e ao outro uma camisa destoutras.
E,
segundo que a mim e a todos pareceu, esta gente não lhes falece outra coisa
para ser toda cristã, senão entender-nos, porque assim tomavam aquilo que nos
viam fazer, como nós mesmos, por onde nos pareceu a todos que nenhuma
idolatria, nem adoração têm.
E
bem creio que, se Vossa Alteza aqui mandar quem entre eles mais devagar ande,
que todos serão tornados ao desejo de Vossa Alteza. E por isso, se alguém vier,
não deixe logo de vir clérigo para os batizar, porque já então terão mais
conhecimento de nossa fé, pelos dois degredados, que aqui entre eles ficam, os
quais, ambos, hoje também comungaram.
Entre todos estes que hoje vieram, não veio mais que uma mulher moça, a qual
esteve sempre à missa e a quem deram um pano com que se cobrisse.
Puseram-lho a redor de si.
Porém,
ao assentar, não fazia grande memória de o estender bem, para se cobrir. Assim,
Senhor, a inocência desta gente é tal, que a de Adão não seria maior, quanto a
vergonha. Ora veja Vossa Alteza se quem em tal inocência vive se converterá ou
não, ensinando-lhes o que pertence à sua salvação. Acabado isto, fomos assim
perante eles beijar a Cruz, despedimo-nos e viemos comer.
Creio,
Senhor, que com estes dois degredados ficam mais dois grumetes, que esta noite
se saíram desta nau no esquife, fugidos para terra. Não vieram mais. E cremos
que ficarão aqui, porque de manhã, prazendo a Deus, fazemos daqui nossa
partida.
Esta
terra, Senhor, me parece que da ponta que mais contra o sul vimos até à outra
ponta que contra o norte vem, de que nós deste porto houvemos vista, será
tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas por costa.
Tem,
ao longo do mar, nalgumas partes, grandes barreiras, delas vermelhas, delas
brancas; e a terra por cima toda chã e muito cheia de grandes arvoredos. De
ponta a ponta, é toda praia parma, muito chã e muito formosa.
Pelo
sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque, a estender olhos, não
podíamos ver senão terra com arvoredos, que nos parecia muito longa. Nela, até agora, não pudemos saber que haja
ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem lho vimos.
Porém
a terra em si é de muito bons ares, assim frios e temperados como os de Entre
Douro e Minho, porque neste tempo de agora os achávamos como os de lá. Águas
são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar,
dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem.
Porém o melhor
fruto, que nela se pode fazer, me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a
principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar. E que aí não houvesse
mais que ter aqui esta pousada para esta navegação de Calecute, bastaria. Quando mais disposição para se nela cumprir e
fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a saber, acrescentamento da nossa santa
fé.
E
nesta maneira, Senhor, dou aqui a Vossa Alteza do que nesta vossa terra vi. E,
se algum pouco me alonguei, Ela me perdoe, que o desejo que tinha, de Vos tudo
dizer, mo fez assim pôr pelo miúdo.
E, pois que, Senhor, é
certo que, assim neste cargo que levo, como em outra qualquer coisa que de
vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela peço
que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro – o que d'Ela
receberei em muita mercê.
Beijo as mãos de Vossa
Alteza.
Deste Porto Seguro, da
Vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500.
Pero Vaz de Caminha
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