domingo, 10 de abril de 2016

O Mito do Superman

Aproveitando o lançamento do filme Batman vs Superman: A Origem da Justiça (2016), o prelúdio para o aguardado filme da Liga da Justiça (2017), venho postar esse antigo trabalho originalmente publicado na década de 70, o qual foi incluído nas edições posteriores, do livro Apocalípticos e Integrados (1965), escrito pelo renomado filósofo, escritor, ensaísta, semiótico, simbologista, professor e crítico literário Umberto Eco (1932-2016), o qual em um dos capítulos deste livro, intitulado O Mito do Superman, ele se propôs analisar o personagem de histórias em quadrinhos a partir da estética literária, da semiótica e seu uso, influência e recepção sociais e culturais, no que concerne no estudo da cultura de massa do século XX. 

Em si, o livro Apocalípticos e Integrados consiste num conjunto de ensaios sobre literatura, estética, semiótica, cultura de massa, etc., onde o autor analisa famosos romances, poemas, histórias em quadrinhos, etc. 

Devido a evidência do Superman no recente filme, no qual ele combate o icônico Cavaleiro das Trevas, o Batman; em cuja trama além desse confronto, também aborda-se questões de cunho político, moral, religioso, social, etc., em cujo contexto Superman surge como uma figura de recepção ambígua pela sociedade: uns o veem como um super-herói, outros como um deus, outros como uma letal ameaça alienígena. Tais características foram debatidas por Eco em seu artigo na década de 70, mas após esses 40 anos, seu texto ainda se revela bem presente. 

Não obstante, informo que a versão aqui publicada não é a integral, pois o capítulo é bem extenso, sendo dividido em tópicos, os quais nem todos contemplam a análise direta dos quadrinhos do Superman, indo abordar outros assuntos. Assim, optei em postar apenas os tópicos referentes a análise direta das histórias do Superman, embora que o autor também mencione personagens de livros e outros super-heróis como o Batman, Robin, Supergirl, Arqueiro Verde e o Flash. 

Tomei liberdade para grafar em negrito alguns nomes próprios, algo que costumo fazer nas postagens de blog. Além disso, informo que Eco utilizou termos em inglês e francês, os quais não foram traduzidos para edição brasileira, logo, mantive a palavra no original. Não obstante, as palavras ou frases em itálicas, foram feitas pelo próprio autor. Quanto as imagens, originalmente o capítulo não possui imagens, mas para motivo ilustrativo e devido ao amplo público de distintas proveniências que acessam este blog, optei em colocar imagens referentes apenas aos personagens dos quadrinhos. 

O mito do Superman

Uma imagem simbólica de particular interesse é a do Superman. O herói provido de poderes superiores aos do homem comum é uma constante da imaginação popular, de Hércules a Sigfrid, de Roldão a Pantagruel e até Peter Pan. Frequentemente, a virtude do herói se humaniza, e os seus poderes, mais que sobrenaturais, são a mais alta realização de um poder natural, a astúcia, a velocidade, a habilidade bélica, e mesmo a inteligência silogizante e o puro espírito de observação, como acontece em Sherlock Holmes.

Mas numa sociedade particularmente nivelada, em que as perturbações psicológicas, as frustrações, os complexos de inferioridade estão na ordem do dia; numa sociedade industrial, onde o homem se torna número no âmbito de uma organização que decide por ele, onde a força individual, se não exercida na atividade esportiva, permanece humilhada diante da força da máquina que age pelo homem e determina os movimentos mesmos do homem - numa sociedade; de tal tipo, o herói positivo deve encarnar, além de todo limite pensável, as exigências de poder que o cidadão comum nutre e não pode satisfazer.

Capa da Action Comics, n. 1, de junho de 1938. Nesta revista Superman aparece pela primeira vez em uma história na qual daria origem a sua série. O personagem foi concebido em 1933, pelos amigos Jerry Shiegel e Joe Shuster, no entanto, na época não teve boa recepção pelas editoras e pela crítica. Apenas cinco anos depois é que finalmente ganhou sua oportunidade de fazer nome. 
O Superman é o mito típico de tal gênero de leitores: o Superman não é um terráqueo, mas chegou a Terra, ainda menino, vindo do planeta Krípton. Krípton estava para ser destruído por uma catástrofe cósmica e o pai do Superman, hábil cientista, conseguira pôr o filho a salvo, confiando-o a um veículo espacial. Crescido na Terra, o Superman vê-se dotado de poderes sobre-humanos. Sua força é praticamente ilimitada, ele pode voar no espaço a uma velocidade igual à da luz, e quando ultrapassa essa velocidade atravessa a barreira do tempo, e pode transferir-se para outras épocas.

Com a simples pressão das mãos, pode submeter o carbono a tal temperatura que o transforma em diamante; em poucos segundos, a uma velocidade supersônica, pode derrubar uma floresta inteira, transformar árvores em toras e construir com elas uma aldeia ou um navio; pode perfurar montanhas, levantar transatlânticos, abater ou edificar diques; sua visão de raios X permitem-lhe ver através de qualquer corpo, a distâncias praticamente ilimitadas; fundir com a visão de calor, objetos de metal; sua super-audição coloca-o em condições vantajosíssimas, permitindo-lhe escutar discursos de qualquer ponto que provenham. Belo, humilde, bom e serviçal: sua vida é dedicada à luta contra as forças do mal e a polícia tem nele um colaborador incansável.

Todavia, a imagem do Superman não escapa totalmente às possibilidades de identificação por parte do leitor. De fato, o Superman vive entre os homens sob as falsas vestes do jornalista Clark Kent; e como tal, é um tipo aparentemente medroso, tímido, de medíocre inteligência, um pouco embaraçado, míope, e apaixonado da sua matriarcal e muito solícita colega Lois Lane, que, no entanto, o despreza, estando loucamente enamorada do Superman.

Clark Kent na capa da edição especial da famosa revista Time (1988), celebrando os 50 anos do lançamento do personagem. 
Narrativamente, a dupla identidade do Superman tem uma razão de ser, porque permite articular de modo bastante variado a narração das aventuras do nosso herói, os equívocos, os lances teatrais, certo suspense próprio de romance policial. Mas, do ponto de vista mitopoético, o achado chega mesmo a ser sapiente: de fato, Clark Kent personaliza, de modo bastante típico, o leitor mediano, torturado por complexos e desprezado pelos seus semelhantes; através de um óbvio processo de identificação, um accountant qualquer de uma cidade norte-americana qualquer, nutre secretamente a esperança de que um dia, das vestes da sua atual personalidade, possa florir um super-homem capaz de resgatar anos de mediocridade.

A estrutura do mito e a civilização do romance

Estabelecida, por conseguinte, a inegável conotação mitológica da personagem, cumprirá individuar as estruturas narrativas através das quais o mito é cotidianamente, ou semanalmente, oferecido ao seu público. Há, de fato, uma diferença fundamental entre uma figura como o Superman e figuras tradicionais, como os heróis da mitologia clássica, nórdica, ou as figuras das religiões reveladas.

A imagem religiosa tradicional era a de uma personagem, de origem divina ou humana, que, na imagem, permanecia fixada nas suas características eternas e no seu acontecimento irreversível. Não se excluía que, por trás da personagem, existisse, além de um conjunto de características, uma estória: mas a estória já se achava definida segundo um desenvolvimento determinado e passava a constituir, de modo definitivo, a fisionomia da personagem.

Em outros termos: uma estátua grega podia representar Hércules ou uma cena dos trabalhos de Hércules: em ambos os casos, no segundo mais que no primeiro, Hércules era visto como alguém que tivera uma estória e essa história caracterizava-lhe a fisionomia divina. De qualquer forma, a história ocorrera, e não podia mais ser negada. Hércules concretizara-se num desenrolar temporal de eventos, mas esse desenrolar encerrara-se, e a imagem simbolizava, com a personagem, a história do seu desenvolvimento - era o seu registro definitivo e o seu julgamento.

A imagem podia ter uma estrutura narrativa: pensemos na série de afrescos da Invenção da Santa Cruz, ou em narrativas de qualquer tipo cinematográfico, como a história do clérigo Teófilo, que vende a alma ao diabo e é salvo pela Virgem, representada no tímpano de Souillac. A imagem sacra não excluía a narração, mas era a narração de um trajeto irreversível, no qual a personagem sacra se fora definindo de modo agora irrecusável. A personagem das histórias em quadrinhos nasce, ao contrário, no âmbito de uma civilização do romance.

A narrativa preferida nas antigas civilizações era quase sempre a que referia alguma coisa já acontecida e já conhecida do público. Podia-se contar pela enésima vez a história do Paladino Roldão, mas o público já sabia o que havia sucedido ao seu herói. Pulci retoma o ciclo carolíngio e, no final, nos diz o que já sabíamos, isto é, que Roldão morre em Roncesvales. O público não pretendia ficar sabendo nada de absolutamente novo, mas simplesmente ouvir contar, de maneira agradável, um mito, repercorrendo o desenrolar conhecido, no qual se podia comprazer, todas às vezes, de modo mais intenso e mais rico. Não faltavam os vários acréscimos e os embelezamentos novelescos, mas esses não eram de molde a ofender a fixidez definitiva do mito narrado.

Era também assim que funcionavam as narrativas plásticas e pictóricas das catedrais góticas ou das igrejas renascentistas e contrarreformistas. Narrava-se, muitas vezes de modo dramático e conturbado, o já acontecido. A tradição romântica (e aqui não importa se as raízes dessa atitude se implantam bem antes do romantismo) oferece-nos, ao contrário, uma narrativa em que o interesse principal do leitor é deslocado para a imprevisibilidade do que acontecerá, e, portanto, para a invenção do enredo, que passa para primeiro plano. O acontecimento não ocorreu antes da narrativa: ocorre enquanto se narra, e, convencionalmente, o próprio autor não sabe o que sucederá.

Na época em que nasce o lance teatral de Édipo, que se descobre culpado após a revelação de Tirésias, "funciona" junto ao público não porque colha de surpresa os ouvintes ignorantes do mito, mas porque o mecanismo da fábula, segundo as regras aristotélicas, conseguiu, mais uma vez, tornar-nos o acontecimento compartilhável, por virtude da piedade e do terror, levando-nos a identificar-nos com a situação e com a personagem.

Quando, ao contrário, Julien Sorel atira na Senhora Rênal, quando o detetive De Poe descobre o culpado do dúplice delito da Rue de la Morgue, quando Javert paga sua dívida de gratidão a Jean Valjean, assistimos, ao contrário, a um lance teatral cuja imprevisibilidade faz parte da invenção e assume valor estético, no contexto de uma nova poética narrativa, independente da validade daquele elóquio (para usar o termo aristotélico), através do qual o fato é comunicado. Quanto mais popular for o romance, tanto mais importante se fará esse fenômeno, e o feuilleton para as massas - a aventura de Rocambole e de Arsène Lupin - não tem outro valor artesanal que não o da invenção engenhosa de fatos inesperados.

Essa nova dimensão da narrativa é contrabalançada por uma menor "mitizabilidade" da personagem. A personagem do mito encarna uma lei, uma exigência universal, e deve, numa certa medida, ser, portanto, previsível, não pode reservar-nos surpresas; a personagem do romance, pelo contrário, quer ser um homem como todos nós, e o que lhe poderá acontecer é tão imprevisível quanto o que nos poderia acontecer.

Capa de Superman, vol. 2, n. 75, janeiro de 1993. Arte de Dan Jurgens e Brett Breeding. No começo dos anos 90, foi lançado o arco A Morte do Superman, história que na época pegou todos os fãs e não fãs de surpresa, pois até então era inimaginável que o poderoso Homem de Aço pudesse ser morto. Mas nesta história ele quase foi morto pelo visão Apocalipse (Doomsday).
Assim, a personagem assumirá o que chamaremos de uma "personalidade estética", uma espécie de co-atuação, uma capacidade de tornar-se termo de referência para comportamentos e sentimentos que também pertencem a todos nós, mas não assume a universalidade própria do mito, não se torna o hieróglifo, o emblema de uma realidade sobrenatural, que é o resultado da universalização de um acontecimento particular. Tanto isso é verdade que a estética do romance deverá reverdecer, para essa personagem, uma velha categoria, de cuja existência nos damos conta justamente quando a arte abandona o território do mito: e é o "típico".

A personagem mitológica da história em quadrinhos encontra-se, pois, nesta singular situação: ela tem que ser um arquétipo, a soma de determinadas aspirações coletivas, e, portanto, deve necessariamente imobilizar-se numa fixidez emblemática que a torne facilmente reconhecível (e é o que acontece com a figura do Superman; mas, como é comerciada no âmbito de uma produção "romanesca" para um público que consome "romances", deve submeter-se àquele desenvolvimento característico, como vimos, da personagem do romance.

Para resolver uma situação como essa, temos compromissos de vários tipos, e um exame dos enredos das histórias em quadrinhos, desse ponto de vista, seria altamente instrutivo. Limitar-nos a examinar aqui a figura do Superman, porque com ela nos achamos exemplo limite, o caso em que o protagonista, de saída, e por definição, tem todas as característica do herói mítico, ao mesmo tempo, inserido numa situação romanceada de forma contemporânea.

O enredo e o consumo da personagem

Afirma Aristóteles, que existe uma trama trágica quando ocorre à personagem uma série de acontecimentos, peripécias e reconhecimento pessoal, casos lamentáveis e terríficos, culminando numa catástrofe; tem-se um enredo romanesco, acrescentarem s, quando esses nós dramáticos se desenvolvem numa série contínua e articulada que, no romance popular, tornando-se fim em si mesmo, deve, o mais possível, proliferar ad infinitum. Os Três Mosqueteiros, cujas aventuras continuam em Vinte Anos Depois, e concluem, por cansaço, no Visconde de Bragelorone (mas eis que intervêm narradores parasitas, que continuam narrando às aventuras dos filhos dos mosqueteiros, o choque entre d'Artagnan e Cyrano de Bergerac, e assim por diante), são um exemplo de enredo narrativo que se multiplica monstruosamente, e aparece com tanto maior vitalidade quanto mais souber sustentar-se através de urna série indefinida de contrastes, oposições, crises e soluções.

Já o Superman, que por definição é a personagem incontrastável, achasse na inquietante situação narrativa de ser um herói sem adversário e, portanto, sem possibilidade de desenvolvimento. Acrescente-se a isso que, por precisas razões comerciais (também elas explicáveis através de uma investigação de psicologia social), suas aventuras são vendidas a um público preguiçoso, que acolheria com espanto um desenvolvimento indefinido dos fatos que o levasse a empenhar a memória semanas a fio; e cada história se conclui no fim em poucas páginas, ou melhor, cada álbum semanal compõe-se de duas ou três histórias completas, cada uma das quais apresenta, desenvolve e resolve um particular nó narrativo sem deixar escórias.

Estética e comercialmente privado das ocasiões basilares para um desenvolvimento narrativo, o Superman suscita sérios problemas aos seus roteiristas. Pouco a pouco se vão projetando várias fórmulas para provocar e justificar um contraste: o Superman, por exemplo, tem um ponto fraco, isto é, torna-se praticamente inerte ante as radiações da Kriptonita, um metal de origem meteórica, que, naturalmente, seus adversários buscam com afã, para neutralizarem o seu carrasco.

Capa da Actions Comics n. 310, de março de 1964. Nesta história Superman conta ao seu amigo Jimmy Olsen, acerca dos distintos tipos de kriptonita. Inicialmente o mineral extraterrestre foi mencionado a primeira vez num programa de rádio The Adventures of Superman, em 1943. A partir de 1949, o mineral foi inserido nas histórias em quadrinhos. Desde então existem vários tipos e cores de kriptonita, embora a original e mais comum, seja de cor verde. 
Mas uma criatura dotada de tais superpoderes, e de superpoderes intelectuais além de físicos, encontra facilmente o meio de livrar-se de tais impasses, e é o que o Superman faz, saindo vitorioso de semelhantes ocorrências. Ademais, considere-se que, como tema narrativo, o atentado aos seus poderes através da kriptonita não oferece uma gama tão vasta de soluções, e só pode ser usado com parcimônia.

Não resta mais, portanto, que colocar o Superman em confronto com uma série de obstáculos, curiosos pela sua imprevisibilidade, mas, inquestionavelmente, superáveis por parte do herói. Em tal caso, obtêm-se dois efeitos: antes de tudo, atinge-se o leitor com a estranheza do obstáculo, excogitando invenções diabólicas, aparições de seres espaciais curiosamente dotados, máquinas capazes de fazer viajar no tempo, êxitos teratológicos de novos experimentos, astúcias de cientistas perversos para ferirem o Superman com a kriptonita, lutas do Superman com criaturas dotadas de poderes iguais ou equivalentes aos seus, como o gnomo Mxyzptlk, que vem da quinta dimensão e que só pode ser expulso de volta para ela se o Superman conseguir fazê-lo pronunciar o próprio nome às avessas (Kltpzyxm), e assim por diante; em segundo lugar, graças à indubitável superioridade do herói, a crise é rapidamente superada, e a narrativa pode manter-se dentro do limite da short story.

Capa de Superma n. 30, setembro de 1944. O Sr. Mxyztplk, conhecido também como o "Duende da Quinta Dimensão", é um dos vilões mais antigos, estranhos e superpoderosos das histórias do Superman. Na prática, o alcance de suas habilidades é desconhecido. Para ser derrotado, ele deve dizer seu nome ao contrário. O personagem foi criado por Jerry Siegel e Joe Shuster, e apareceu a primeira vez em Superman n. 30,
Mas isso nada resolve. De fato, vencido o obstáculo, e vencido dentro de um termo prefixado pelas exigências comerciai, o Superman sempre acaba realizando alguma coisa; por conseguinte, a personagem praticou um gesto que e inscreve no seu passado e pesa sobre o seu futuro; em outras palavras, deu um passo para a morte, envelheceu, embora de uma hora apenas, aumentou de modo irreversível o armazém das próprias experiências. Agir, portanto, para o Superman, como para qualquer outra personagem (e para cada um de nós), significa consumir-se.

Ora, o Superman não pode consumir-se, porque um mito é inconsumível. A personagem do mito clássico, já vimos, tornava-se inconsumível justamente porque era constituído pela própria essência da parábola mitológica o fato de ter-se já consumido em alguma ação exemplar; ou então lhe era igualmente essencial à possibilidade de um renascimento contínuo, no caso de simbolizar algum ciclo vegetativo, ou mesmo certa circularidade dos eventos e da própria vida.

Mas o Superman só é mito com a condição de ser criatura inserida na vida cotidiana, no presente, aparentemente ligado às nossas mesmas condições de vida e de morte, ainda que dotado de faculdades superiores. Um Superman imortal não seria mais homem, mas deus, e a identificação do público com a sua dupla personalidade (identificação para a qual se pensou a dupla identidade) cairia no vazio.

Cena de Batman vs Superman: A Origem da Justiça (2016). Nessa cena, ao resgatar alguns náufragos, Superman (Henry Cavill) aparece sobrevoando eles, e a posição da imagem com o Sol ao fundo, concede aquela aure mística e divina. De fato, no filme Luthor refere-se a ele como um deus, ou quase isso.
O Superman de e, portanto, permanecer inconsumível, e, todavia consumir-se segundo os modos da existência cotidiana. Possui as características do mito intemporal, mas só é aceito porque sua ação se desenvolve no mundo cotidiano e humano da temporalidade. O paradoxo narrativo, que os roteiristas do Superman têm, de algum modo, que resolver, mesmo sem estarem disso conscientes, exige uma solução paradoxal dentro de uma ordem temporal.

Um enredo sem consumo

Se, dentro da variedade das enfatizações, nessa concepção do tempo se baseiam as discussões contemporâneas que arrastam o homem a uma meditação sobre seu destino e sua condição, decididamente a essa concepção do tempo se subtrai a estrutura narrativa do Superman para salvar a situação já por nós configurada. No Superman, entra em crise, portanto, uma concepção do tempo, fragmenta-se a própria estrutura do tempo: e isso não acontece no âmbito do tempo sobre o qual se narra, mas do tempo no qual se narra. Vale dizer que, se até nas estórias da nossa personagem se fala em fantásticas viagens no tempo, e o Superman entra em contato com gente de diversas épocas; viajando no futuro e no passado, isso, contudo, não impede que a personagem se veja envolvida naquele acontecimento de desenvolvimento e consumo que indicamos como letal para sua natureza mítica.

Embora se aceitem paradoxos cosmológicos como o de Langevin, para quem um astronauta, depois de ter viajado alguns anos pelo espaço à velocidade da luz, ao voltar à Terra, encontra (tendo ele envelhecido apenas os anos de sua viagem) todos os seus contemporâneos estando mortos de longa data, pois sobre a Terra transcorreram centenas de anos desde o dia de sua partida. Mas essa distorção das habituais leis temporais não subtrai o astronauta ao consumo: pelo menos não subtraiu ao consumo a relação entre o astronauta e seu ambiente de outrora.

Nas histórias do Superman, ao contrário, o tempo posto em crise é o tempo de narrativa, o que vale dizer a noção de tempo que liga uma narrativa à outra. No âmbito de uma história, o Superman pratica uma dada ação (desbarata, por exemplo, uma quadrilha de gangsteres); nesse ponto, termina a história. No mesmo quadrinho, ou na semana seguinte, inicia-se uma nova história. Se ela retomasse o Superman no ponto em que o havia deixado, o Superman teria dado um passo para a morte.

Por outro lado, iniciar uma história sem mostrar que fora precedida por outra, conseguiria, de certo modo, subtrair o Superman à lei do consumo, mas, com o passar do tempo (o Superman existe desde 1938), o público perceberia o fato e atentaria para a comicidade da situação - como aconteceu com a personagem da pequena órfã Annie, que prolonga sua meninice onerada de infortúnios por dezenas de anos, tornando-se alvo de observações satíricas, como as que aparecem, ainda atualmente, nos periódicos humorísticos como Mad.

Os roteiristas do Superman; ao contrário, excogitaram uma solução muito mais sensata e indubitavelmente original. Essas histórias desenvolvem-se, assim, numa espécie de clima onírico - inteiramente inadvertido pelo leitor - em que aparece de maneira extremamente confusa o que acontecera antes e o que acontecera depois, e quem narra retoma continuamente o fio da estória como se se tivesse se esquecido de dizer alguma coisa e quisesse acrescentar alguns pormenores ao que já dissera.

Acontece, a seguir, que ao lado das histórias do Superman passem a narrar-se as histórias do Superboy, isto é, do Superman ainda garoto, ou do Superbaby, isto é, do Superman nenê. E num certo ponto, surge em cena, também, a Supergirl, prima do Superman, igualmente salva da destruição de Crípton. Em decorrência, todas as histórias concernentes ao Superman são, de certo modo, "recontadas" a fim de incluir também a presença dessa nova personagem (que não fora até então mencionada, ao que se diz, por viver incógnita num colégio feminino, esperando a puberdade para poder ser apresentada ao mundo; mas volta-se atrás para contar em quais e quantos casos ela, de quem nada se dissera, teria participado das muitas aventuras, onde só havíamos identificado à presença do Superman).

Superman como Superboy, em sua primeira aparição ocorrida na revista More Fun Comics, n. 101, de janeiro-fevereiro de 1945. O personagem foi concebido por Jerry Siegel e Joe Shuster. Originalmente Superboy era outro nome para Clark Kent, quando esse era adolescente. Todavia, nas décadas seguintes surgiram várias histórias sobre o personagem, inclusive Superboy tornou-se a identidade secreta de outros heróis
Imagina-se, através da solução de viagens no tempo, que a Supergirl, contemporânea de Superman, possa encontrar-se no passado com o Superboy, e brincar com ele; e até que o Superboy, superada por puro incidente a barreira do tempo, se encontre com o Superman, e, portanto com o seu próprio eu de muitos anos depois. Mas já que também um fato desse tipo poderia comprometer a personagem numa série de desenvolvimentos capazes de influenciar suas ações sucessivas, eis que, terminada a estória, insinua-se a suspeita de que o Superboy tenha sonhado, e suspende-se o assentimento a tudo quanto fora dito.

Supergirl na animação Superman Unbold (2013). Originalmente a personagem apareceu em Superman, n. 123, agosto de 1958, tendo sido criada por Otto Binder, Al Plastino e Curt Swan. A personagem cujo nome verdadeiro é Kara Zor-El, é a prima mais velha de Kal-El, o Clark Kent. Assim como seu primo, ela foi enviada para a Terra, mas acabou ficando presa no espaço e não envelheceu da mesma forma que seu primo, daí ter a aparência mais jovem. Supergirl é também o nome de outras heroínas que adotaram essa identidade. 
Dentro dessa linha, a solução mais original é, indubitavelmente, a dos imaginary tales: acontece, de fato, que muitas vezes o público, pelo correio, peça aos roteiristas desenvolvimentos narrativos saborosos: por exemplo, por que o Superman não se casa com a jornalista Lois Lane que o ama há tanto tempo? Mas, se o Superman se casasse com Lois Lane, daria como já dissemos, outro passo em direção à morte, estabeleceria uma premissa irreversível; e, todavia é preciso encontrar sempre novos estímulos narrativos e satisfazer s exigências "romanescas" do público. Conta-se, assim, "o que teria acontecido se o Superman tivesse desposado Lois". Tal premissa é desenvolvida em todas as suas implicações dramáticas e, ao final adverte-se: atenção: essa é uma história "imaginária" que na verdade nunca aconteceu.

Desde que surgiu em 1938, a jornalista Lois Lane é o eterno par romântico do Superman/Clark Kent. Curiosamente, os personagens já se casaram algumas vezes nos quadrinhos em distintos arcos. 
Os imaginary tales são frequentes, como também os untold tales, isto é, os relatos que concernem a acontecimentos já narrados, mas em que "se esquecera de dizer alguma coisa", os quais são recontados sob outro ponto de vista, descobrindo-lhes aspectos laterais. Em meio a esse bombardeio maciço de acontecimentos já não mais ligados por nenhum fio lógico, nem mutuamente dominados por nenhuma necessidade, o leitor, naturalmente sem s dar conta disso, perde a noção da ordem temporal. E passa a viver num universo imaginativo em que, diversamente do que ocorre no nosso, as cadeias causais não estão abertas (A provoca B, B provoca C, C provoca D e assim até o infinito), mas fechadas (A provoca B, B provoca C, C provoca D e D provoca A), e não tem mais sentido, portanto, falar daquela ordem do tempo em que nos baseamos ao descrever habitualmente os sucessos dos macrocosmos.

Poder-se-ia observar que - afora as necessidades mitopoéticas, e também comerciais, que impelem a tal situação - semelhante coordenação estrutural das histórias do Superman reflete, ainda que em baixo nível, toda uma variedade de convicções difusas em nossa cultura, sobre a crise de conceitos de causalidade, a temporalidade e irreversibilidade dos acontecimentos; e de fato, grande parte da arte contemporânea, de Joyce a Robbe Grillet, até filmes, como O Ano Passado em Marlenbad, refletem situações temporais paradoxais, cujos modelos, todavia, existem nas discussões epistemológicas dos nossos tempos.

Mas o fato é que, em obras como o Finnegans Wake ou Dans le Labyrinthe, a ruptura das relações temporais habituais ocorre de um modo consciente, seja por parte de quem escreve seja por parte de quem deverá fluir esteticamente de tal operação: e, portanto, a crise da temporalidade tem uma função de pesquisa e ao mesmo tempo de denúncia, e tende a fornecer ao leitor modelos imaginativos capazes de fazê-lo aceitar situações da nova ciência e conciliar, assim, a atividade de uma imaginação habituada a velhos esquemas com a atividade de uma inteligência que se aventura a propor ou a descrever universos irredutíveis a imagem ou a esquema.

E, por conseguinte essas obras (mas aqui se abre outro discurso) desenvolvem sua função mitopoética, oferecendo ao habitante do mundo contemporâneo uma espécie de sugestão simbólica ou de diagrama alegórico daquele absoluto, que a ciência resolveu, não numa modalidade metafísica do mundo, mas num possível modo de estabelecer nossa relação com o mundo, e, portanto num possível modo de descrever os mundos.

As aventuras do Superman, ao contrário, não têm, de modo algum, essa intenção crítica, e o paradoxo temporal que as sustém deve escapar ao leitor (como provavelmente escapa aos autores), porque uma noção confusa do tempo é a única condição de credibilidade da narrativa. O Superman só se sustenta como mito se o leitor perder o controle das relações temporais e renunciar a raciocinar com base nelas, abandonando-se, assim, ao fluxo incontrolável das histórias que lhe são contadas e mantendo-se na ilusão de um contínuo presente.

O símbolo do Superman, simboliza a esperança. E embora possa se usar diferentes símbolos para se representar a esperança, seu sentido sempre será o mesmo. 
Uma vez que o mito não é isolado exemplarmente numa dimensão de eternidade, mas, para ser compartilhável, tem que estar inserido no fluxo da história em ação; essa história em ação é negada como fluxo e vista como presente imóvel. Ao habitar-se a esse exercício de presentificação contínua do que acontece, o leitor perde, ao contrário, consciência do fato que o que acontece deve desenvolver-se segundo as coordenadas das três estases temporais. Perdendo consciência delas, esquece os problemas que nelas se baseiam: isto é, a existência de uma liberdade, da liberdade de fazer projetos, do dever de fazê-los, da dor que esse projetar comporta, da responsabilidade que dele provém, e enfim da existência de toda uma comunidade humana cuja progressividade se baseia sobre o meu projetar.

O Superman como modelo de heterodireção

A análise proposta seria um tanto ou quanto abstrata, e ser considerada apocalíptica (pareceria, em suma, uma espécie de variação retórica, em alto nível problemático, de um fato de dimensões bem mais reduzidas), se o homem que lê o Superman e para o qual a Superman é produzido, não fosse o mesmo de quem nos têm falado várias pesquisas sociológicas, e que foi definido como homem "heterodirigido". Um homem heterodirigido é um homem que vive numa comunidade de alto nível tecnológico e particular estrutura social e econômica (nesse caso baseada numa economia de consumo), e a quem constantemente se sugere (através da publicidade, das transmissões de TV, das campanhas de persuasão que agem em todos os aspectos da vida cotidiana) o que deve desejar e como obtê-lo segundo certos canais pré-fabricados que o isentam de projetar perigosamente e responsavelmente. Numa sociedade desse tipo a própria opção ideológica é "imposta" através de uma cautelosa administração das possibilidades emotivas do eleitor, e não promovida através de um estímulo à reflexão e à avaliação racional.

Pôster do filme Batman vs Superman (2016). Neste pôster estão frases criticando as ações do Superman e sua pessoa, algo que se percebe no filme. Neste caso, uma das propostas da trama, foi abordar essa ideia de influência social e cultura de massa. Como seria se o Superman realmente existisse?
Um mote como I like like revela, no fundo, todo um modo de proceder de fato, com ele não se diz ao eleitor "você deve votar em tal pessoa pelos seguintes motivos que submetemos à sua reflexão" (aliás, o manifesto colorido, com o cossaco dando de beber ao cavalo na pia de água benta de São Pedro, ou o gordo capitalista de braços com um padre, comendo nas costas do obreiro, também representam, no fundo, ainda que em limite extremo, um exemplo de propaganda política de estrutura argumentativa, que leva o eleitor a refletir sobre uma possibilidade negativa que obteria com a vitória de certo partido); mas diz-se: "você deve ter vontade disto".

Isto é, não o convidam a um projeto, mas sugerem-lhe que deseje algo que outros já projetaram. Na publicidade, como na propaganda, e nas relações de human relations, a ausência da dimensão "projeto" é, no fundo, essencial para o estabelecimento de uma pedagogia paternalista, a qual requer, justamente, a secreta convicção de que o sujeito não seja responsável pelo próprio passado, nem dono do próprio futuro, nem, enfim, sujeito às leis da projetação segundo as três estases da temporalidade; porque tudo isso implicaria cansaço e dor, ao passo que a sociedade está em situação de oferecer ao homem heterodirigido os resultados de projetos já feitos, de maneira a responder aos seus desejos, desejos esses, que, ademais, lhe foram incutidos de modo a fazê-lo reconhecer, no que lhe é oferecido, o que ele teria projetado.

A análise das estruturas temporais no Superman ofereceu-nos a imagem de um modo de contar que pareceria fundamentalmente ligado aos princípios pedagógicos que governam uma sociedade do gênero. Será possível estabelecer conexões entre os dois fenômenos afirmando que o Superman não é mais que um dos instrumentos pedagógicos dessa sociedade e que a destruição do tempo que ele objetiva faz parte de um projeto de desabituação à ideia de projeto de auto-responsabilidade?

Interrogados a propósito, os roteiristas do Superman responderiam negativamente, e provavelmente seriam sinceros. Mas, da mesma maneira, qualquer população primitiva, interrogada sobre certo hábito ritual ou certo tabu, seria incapaz de reconhecer a conexão que liga o solitário gesto tradicional ao corpus geral das crenças que a comunidade professa, ao núcleo central do mito pelo qual a sociedade se rege. 

Interrogado sobre a razão que o levava a observar, ao esculpir um portal da catedral, certas proporções canônicas, um mestre medieval teria aduzido várias razões estéticas e técnicas, mas nunca teria sabido dizer que, respeitando essa norma e difundindo um gosto proporcional, ele se aliava a uma temática da Ordem, que regia a estrutura das Summae e dos códigos jurídicos, a hierarquia do Império e da Igreja, e que tudo isso se estabelecia como uma reafirmação contínua, às vezes teorizada, muitas outras inconsciente, de uma convicção radical, isto é, da ideia de que o mundo fosse criatura divina, de que Deus tivesse agido segundo certa ordem, e de que essa ordem deveria ser reproduzida e confirmada em todas as obras do homem.

Assim, sem saber, o artesão que esculpia em caneluras simétricas a barba de um profeta, dava, inconscientemente, o seu assentimento ao "mito" da criação. Hoje vemos no seu gesto a manifestação de um modelo de cultura unitário, capaz de reiterar-se em cada um de seus mínimos aspectos. Depois de meditarmos sobre esses conhecimentos da moderna historiografia, poderemos, portanto, aventar uma hipótese de antropologia cultural que nos permita ler as estórias em quadrinhos do Superman como reflexo de uma situação social, reafirmação periférica de um modelo geral.

Consciência cívica e consciência política

As histórias do Superman possuem uma característica em comum com uma série de outras aventuras de heróis dotados de superpoderes. Superman que os vários elementos são baseados em um conjunto mais homogêneo, justifica o fato de que temos dedicado atenção especial. E não é por acaso que o Superman está no fim de contas entre os heróis dessa conversa, o mais populares: não é só o grupo mais antigo (datado de 1938), mas é também o mais claramente delineado, que tem uma personalidade mais reconhecível. Se, no entanto, pelas razões dadas, e outros menciona, que não pode ser definido como um tipo, está entre seus congêneres que mais razão poderia aspirar a esse título.

Também não passa despercebido o fato de que há sempre histórias um pouco de ironia, uma indulgência complacente de autores que, ao projetar o personagem e suas vicissitudes, não consciente de equitação uma "comédia" e não um "drama" ou um "romance de aventura". Este conhecimento é na dosagem dos efeitos romanesca, este vê o personagem com um mínimo de auto-ironia, o que salva, em parte, Superman, vulgaridade low-comercial, e torna-se um "caso". Não atingem os seus pares ambos são fantasmas que se movem em bullet, então fungível, é totalmente impossível simpatizar com eles, muito menos amá-los.

Porém, procedemos com ordem. Entre os muitos super-heróis, podemos distinguir entre aqueles que são dotados dos poderes ultra-humanos, e aqueles dotados de recursos terrestres normais, mas potencializado no seu grau máximo. Entre os primeiros, que incluem Superman e o Caçador de Marte (Martian Manhunter). No primeiro, já sabe, e quanto ao segundo, é um marciano que, acidentalmente, sendo encontrado na Terra, faz um tipo de atividade missionária policial, sob a personalidade falsa do detetive John Jones

O Caçador de Marte na série de TV, Liga da Justiça (2001-2004). Criado por Jack Miller e Joe Certa, em cuja primeira aparição ocorreu na revista Detective Comics, n. 255, novembro de 1955. Originalmente o personagem possuía uma história diferente, e não estava diretamente associado aos heróis da Terra ou a Liga da Justiça, mas estava mais preocupado com seu próprio povo. 
O Caçador de Marte (cujo nome verdadeiro é J'onn J'onzz) é capaz de assumir com máxima facilidade a aparência de qualquer pessoa; e pode se desmaterializar, o que o permite atravessar corpos sólidos. Seu mais terrível inimigo é o fogo (que desempenha o mesmo papel que a kryptonita para o Superman). O seu animal de estimação é Zuk, um animal de origem espacial, também dotado de superpoderes, o que representa uma analogia a Kripto, o cachorro do Superman.

Superman e Krypto. Criado por Otto Binder e Curt Swan, o Supercão, como ficou conhecido, apareceu a primeira vez na revista Adventure Comics, n. 210, de março de 1955. Krypto aparece em outras histórias do Superman ou da Supergirl, inclusive possui suas séries solo, o que inclui desenhos animados. 
Entre os heróis dotados de características humanas, pode-se citar, em primeiro lugar, a dupla Batman e Robin. Também neste caso, temos dois indivíduos que escondem a sua personalidade sob o aspecto de outra (o tema da personalidade dividida, por razões tal como alegado, é substancial e nunca omitido), e são convocados pela polícia (que os alerta, projetando um enorme morcego no céu, graças a um refletor), ele [Batman] vai para a cena do crime com uma roupa que se assemelha a um morcego.

Batman e Robin, uma das duplas de super-heróis mais famosas dos quadrinhos. Desenho de Jim Lee. Batman foi criado por Bob Kane e Bill Finger, aparecendo a primeira vez na Detective Comics, n. 27, de maio de 1939. Robin foi criado por Bob Kane, Bill Finger e Jerry Robinson, tendo aparecido pela primeira vez na revista Detective Comics, n. 38, abril de 1940. Desde sua primeira aparição, vários homens adotaram a identidade do Robin, inclusive até algumas mulheres também. Robin se tornou tão popular, que possui sua própria série, além de fazer parte de outras equipes. 
Como no caso de Superman e do Caçador de Marte é sempre essencial que o traje seja uma malha elástica, ligada ao corpo: o que corrobora a hipótese de aqueles que, como o já mencionado Giammanco, ver esses heróis, e as suas condições sexo masculino, certos elementos homossexuais. Uma das especialidades do Batman e do Robin e se lançarem de um prédio para outro, usando um conjunto de longos cabos e descer de seu veículo aéreo pessoal (também em forma de morcego, assim como seu carro e seu barco, e, na verdade, cada um desses veículos é designado com o prefixo bat-).

Personagens próximos do Batman e Robin são o Arqueiro Verde e o Speedy. Com malha ligada ao corpo, e usando um par de botas e outro de luvas, suas vestes recordam a figura do Robin Hood. Embora sejam de carne e osso, os dois heróis estão atrasados tecnologicamente a dupla anterior [Batman e Robin], porque eles basicamente agem apenas com o uso de flechas. Estas flechas são projetadas nas formas mais extraordinariamente elaboradas, e elas oferecem várias possibilidades de uso: flechas-ventosa, flechas-ganchos, flechas-de-escalada, flechas-explosivas, flechas-luva-de-boxe, flechas-redes, flechas-boleadeiras, flechas-luminosa.

O Arqueiro Verde e Speedy. O Arqueiro Verde, alter-ego de Oliver Queen, foi criado por Mort Weisinger e George Papp, aparecendo a primeira vez em More Fun Comics, n. 73, de novembro de 1941. Já o personagem do Speedy, alter-ego de Roy Harper, apareceu também na edição 73 da More Fun Comics
A ponta que normalmente numa flecha encontra-se sua lâmina, neste caso encontra-se dispositivos de alta precisão que em contato com o alvo em movimento, imediatamente se ativam, tais como exemplo a flecha-luminosa, a flecha-rede, a flecha-explosiva ou a flecha-luva-de-boxe. O surpreendente uso de tais dispositivos tecnológicos portáteis faz que os poderes dos dois heróis sejam eficazes, como se fossem a agilidade acrobática do Batman e Robin, e em certos casos, como os superpoderes do Superman ou de J’onn J’onzz.

A estes se unem o Flash. As características fundamentais deste são as mesmas: apresentação elegante, capacidade de transformação rápida, dupla identidade (na vida comum é um policial forense, sua namorada é jornalista; como Flash deve aparecer que mostra ao público não ser insensível aos encantos das mulheres; embora às vezes as beije). No caso do Flash, ele usa um anel, no qual guarda seu traje de super-herói, e este surge rapidamente. Seus superpoderes são: capacidade de correr a velocidade da luz e, portanto, consegue dar uma volta na Terra em poucos segundos; capacidade de atravessar corpos sólidos, graças à habilidade de vibrar seu corpo em nível subatômico.

Flash na animação Liga da Justiça: Ponto de Ignição (2013). Distintos personagens adotaram a identidade e habilidades do Flash, sendo o primeiro a fazer isso, Jay Garrick, personagem criado por Gardner Fox e Harry Lampert, para a revista Flash Comics, n. 1, de janeiro de 1940. Na imagem em questão, temos o segundo Flash, Barry Allen, o qual é o mais conhecido do grande público. 
A relação poderia continuar, mas como citado, abordamos os personagens mais característicos. Esses personagens foram todos construídos de acordo com um esquema comum, parece óbvio. Mas se estudá-los mais de perto, veremos que o que os une e unifica-los, como uma mensagem pedagógica unitária, é um fator muito menos aparente.

Cada um deles está dotado de poderes, com os quais poderiam praticamente apoderar-se de governos, destruir um exército, alterar o equilíbrio planetário. Podem-se propor dúvidas se o Batman e o Arqueiro Verde teriam capacidade para isso, mas no que dizem respeito aos outros três, eles possuem potencial de sobra para fazer isso. Por outro lado, é claro que cada um desses personagens é profundamente bom, integro, subordinado a leis naturais e civis, por isso é legítimo (e belo) que empreguem seus poderes por motivos benéficos. Neste sentido, a mensagem pedagógica dessas histórias seria, pelo menos ao nível da literatura infantil, altamente aceitáveis, e mesmo os episódios com violência, os quais aparecem várias vezes, teriam uma finalidade de reprovar os malvados e exaltar o triunfo dos bons.

Superman recebe a gratidão de uma senhora que acabou de salvar. Imagem da revista Superman, vol. 1, n. 352, de outubro de 1980. 
A ambiguidade do ensino, no entanto, aparece no momento em que nos perguntamos o que é o bem. Neste ponto, simplesmente reexame aprofundado do caso Superman, que resume em si todos os outros, pelo menos nas suas coordenadas fundamentais. Superman é praticamente onipotente. Sua capacidade operativa se estende a uma escala cósmica. Assim, um ser dotado de tal capacidade, e dedicado ao bem-estar da humanidade (por colocar o problema com máximo candor, mas também com a maior responsabilidade, aceitando tudo como crível, ele teria ante si, um imenso campo de ação).

De um homem que pode produzir trabalho e riqueza em dimensões astronômicas em poucos segundos, você pode esperar a mais incrível alteração na ordem política, econômica, tecnológica do mundo. Desde a solução da fome, até a limpeza de todas as áreas atualmente inabitadas do planeta ou a destruição de procedimentos desumanos (leia Superman o “Espírito de Dallas”: por que não vai liberar seiscentos milhões de chineses do governo de Mao?), Superman poderia exercer o bem a nível cósmico, galáctico, e proporcionamos uma definição de si mesmo, que através de amplificação fantástica, esclarecer ao próprio tempo sua linha ética.

Em vez disso, Superman opera ao nível da pequena comunidade em que vive (Smallville em sua juventude, Metrópoles já adulto) e - como foi o que aconteceu com o morador medieval, que poderia chegar a conhecer a Terra Santa, mas não a cidade, trancada em si mesma e separada de tudo o mais, que distava cinquenta quilômetros de sua residência – se bem que empreende com a maior naturalidade viagens a outras galáxias, ignora, não digamos a dimensão do “mundo”, mas a dimensão dos “Estados Unidos”.

Placa da cidade de Smallville para o seriado Smallville (2001-2011). O seriado foi uma das séries mais longevas sobre super-heróis, inclusive foi a responsável por popularizar tal estilo no século XXI, abrindo caminho para séries do Arqueiro Verde, Flash, Supergirl, Demolidor, Jessica Jones, etc. 
No âmbito de sua little town, o único mal para combater, é definido sob a espécie de indivíduos pertencentes ao submundo, o submundo da má vida, preferentemente ocupado não pelo tráfico de drogas, ou por políticos e funcionários administrativos corruptos, mas em assaltos a bancos e carros-cofre. Em outras palavras, a única forma visível assumiu o mal é o ataque à propriedade privada. O mal extraterrestre é meramente um pigmento acessório é casual, e sempre assume formas imprevistas e temporárias: o underworld é, no entanto, um mal endêmico, como uma espécie de filão maldito que invade o curso da história humana, claramente zoneada por uma incontroversa maniqueísta, segundo a qual toda a autoridade é fundamentalmente boa e não corrompida, e todo o mal está nas raízes, sem esperança de redenção.

Naturalmente, passamos por grandes áreas temáticas, intercaladas com pequenos episódios (embora sempre de sabor deamicisiano: o menino que se ofende pela fraqueza; o imprevisto arrependimento de um "mau" endêmico como Luthor, inimigo de diabólica inteligência, verdadeiro sacerdote do mal, inimigo jurado do Superman, por razões que remontam a sua infância: de fato, o jovem Superboy havia sido responsável, ou pelo menos o que achava Luthor (pela sua calvície), mas um fácil estudo estatístico, em nível temático, poderia sem dificuldade verificar a hipótese dessa causa. Como outros já disseram, temos no Superman um exemplo perfeito de consciência cívica completamente separada da consciência política. O civismo do Superman é perfeito, mas exercido e inserido no contexto de uma pequena comunidade fechada.

Lex Luthor, desenhado por Pete Woods, para a revista Action Comics, vol. 1, n. 890, de agosto de 2010. Luthor é um dos mais conhecidos e principais inimigos do Superman, ele foi criado por Jerry Siegel e Joe Shuster, aparecendo na revista Action Comics, n. 23, de abril de 1940. 
É curioso observar como, entregando-se ao bem, Superman dedicou uma enorme energia para organizar espetáculos benéficos, onde os fundos são levantados para órfãos e desamparados. A implantação paradoxal (da mesma energia poderia ser empregada em produzir diretamente riqueza ou em modificar radicalmente situações mais variadas) situações, nunca deixa de surpreender o leitor que vê Superman perenemente dedicado a montagem de espetáculos de caridade. Se o mal assume o único aspecto do ataque à propriedade privada, o bem se configura unicamente como caridade.

Esta simples equivalência bastaria para caracterizar o mundo moral do Superman. Porém, na realidade, nos damos conta de que o Superman se vê obrigado a manter suas atividades dentro do âmbito das mínimas e infinitesimais modificações de sua atuação, pelos mesmos motivos mencionados a propósito da elasticidade de sua trama: qualquer modificação geral empurraria ao mundo, e ao próprio Superman, sua consumação.

Por outro lado, seria inexato afirmar que a judiciosa e doseada virtude do Superman depende, unicamente, da estrutura da trama, e com ela a exigência de não fazer derivar dela excessivos e irrecuperáveis desenvolvimentos. O contrário é também certo: que a metafísica imóvel contida nesta concepção de trama é direta, e não indesejada; consequência de um mecanismo estrutural complexo, o qual nos aparece como o único ideal para comunicar, através de uma temática individualizada, um ensino particular.  

A trama deve ser estática e aludir a qualquer classe de desenvolvimento, porque Superman deve fazer consistir a virtude em vários aspectos parciais, nunca em um plano de consciência total. A virtude, por sua parte, deve estar caracterizada pelo complemento dos atos unicamente parciais, para que a trama resulte estática. Uma vez mais, o relato depende não da vontade dos autores, senão de sua possibilidade de adaptar-se a um conceito de “ordem” que insinua o modelo cultural em que vivem, e do qual fabricam, em escala reduzida, maquetes “análogas”, com funções de representação.

Conclusões

Por fim, o episódio do Superman nos confirma a convicção de que não se pode existir uma enunciação ideológica eficaz que não resolva o material temático em um modo de formar. As histórias do Superman constituem um exemplo mínimo para o exato da fusão entre vários níveis, homogeneizados de um sistema de relações em que cada nível reproduz, em diferente escala, limites e contradições dos outros. Se a ideologia ética do Superman representa, um sistema coerente, a estrutura das várias histórias, outro sistema.

A “saga” do Superman nos aparece com um calibradíssimo sistema de sistemas, do que não seria inútil examinar também a natureza do desenho, as cadencias de linguagem, a caracterização dos diversos personagens. Uma breve inspeção da psicologia de Lois Lane, ou do tipo de laços que unem a Família Kent e a Família Lang em Smallville, nos levaria facilmente a individualizar, a nível de caracteres, uma posição dos vários problemas e uma formulação de soluções pedagógicas similares – estruturalmente – a quanto se verifica em outros níveis.

Christopher Reeves (1954-2002) como Superman, papel que o consagrou no cinema. Cena do promocional de Superman - o filme (1978). 
No ensaio seguinte, veremos nos quadrinhos de Charles M. Schulz a mesma estrutura iterativa do relato não impede, mas favorece a delineação de personagens concretos e “históricos”. Porém não falamos em um campo em que o elemento iterativo se faz evidente desejado, que quer ser apreciado como tal, se converte numa cadência fascinante, senão em um ritmo estético, e através dele se estabelecem as relações entre os personagens e o mundo histórico, com claridade de permanência, com exatidão de referência.

Os personagens de Peanuts não são fungíveis. Ao contrário, os personagens do Superman em si; e o Superman, são fungíveis, em grande parte, como outros super-heróis de outras sagas. É, pois, um topos genérico, de tal modo desassociado do contexto em que atua, que sua redução ao denominador mínimo comum aceitável, a sua recusa à possibilidade de que, de fato, tem (e para conferir verossimilhança), aparecem tão macroscópicos e perturbadores que impedem o leitor realizar um ato de fé, uma “suspensão of disbelief” no sentido mais vulgar da expressão; uma decisão de aceitar o Superman pelo que é, um personagem de fábula, o qual desfruta de contínuas mudanças de tema.

E como em qualquer fábula, na saga do Superman possibilidades intrigantes que são ignorados, são acionadas, punição para a passagem da fábula ilusória para chamada problemática.

Rodovalho, rodovalhinho, que príncipe é
Se fosse comigo, eu não pediria,
Porém a bruxa de minha mulher,
Porém a bruxa de minha mulher, assim o quer.

Assim invoca o pescador o peixe encantado. E todo aquele que pede a mulher, lhe é concedido, porque assim são as leis da fábula. Porém, quando a mulher pede a Deus, o peixe fica irritado, e tudo volta a miserável situação em que o pescador e sua esposa estavam antes. Pode uma fábula alterar a ordem do universo?

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