ARIANO SUASSUNA
O
MOVIMENTO ARMORIAL
À
GUISA DE APRESENTAÇÃO
A
valorização da cultura popular do Nordeste brasileiro, buscando-se fixar em os
seus vastos campos - da literatura
de cordel à música, da cerâmica à escultura,
da gravura à tapeçaria, da pintura aos espetáculos
de rua, entre outros aspectos - a sua valiosa contribuição como expressão do
pensamento nacional, há de ser, sem dúvida, encargo das universidades
regionais. Nessa tarefa tem-se que perquirir as origens de nossa cultura, respeitando sua forma pura e
simples de apresentação, e procurando encontrar, como bem diz SUASSUNA, uma
arte e uma literatura eruditas nacionais, com base em suas raízes populares.
Esse é o
objetivo do Movimento Armorial, inspirado e dirigido por ARIANO SUASSUNA, contando com a valorosa contribuição e decidida
cooperação de uma plêiade de artistas e escritores, lídimos expoentes de nossa
cultura, e, sobretudo, de representantes de nossa elite estudantil.
Dramaturgo, poeta, ensaísta, escritor, professor, funcionário público e ativista cultural brasileiro. |
Muito se
tem dito sobre a obra de ARIANO SUASSUNA. Tem-se realçado o seu estilo de
escritor e sua técnica de teatrólogo. Mas, de sua obra, confesso, não sei se
maior expressão tem o seu AUTO DA
COMPADECIDA, com seu personagem singular que é o JOÃO GRILO, ou a sua PEDRA
DO REINO, ou tantas outras produções literárias e artísticas. Ainda me
inclino a admitir que o Movimento Armorial é a expressão maior de sua
atividade, porque nele se integram e se completam o homem e a obra.
Pode
SUASSUNA afirmar, ou continuar a dizer, que sua PEDRA DO REINO merece sua
indisfarçável preferência, ou a FARSA DA
BOA PREGUIÇA é sua peça predileta, porque eu continuarei a crer que sua
verdadeira preferência, como ação e como sentimento, é dada ao Movimento
Armorial.
E um
movimento como esse, por sua magnitude, transcende, por assim dizer, os campos
da física, na concepção positivista do tempo como forma de existência da
matéria, e se projeta, decisivamente, no processo do futuro, no tempo infinito,
como aliás tem ocorrido com outros movimentos nordestinos.
Apresentação de
Marinalva Vilar de Lima
O
MOVIMENTO ARMORIAL
Pode-se
dizer que a Arte Armorial precedeu o Movimento Armorial, ao contrário daquilo
que normalmente acontece nesses casos. De fato, o trabalho criador da maioria
dos artistas armoriais começou muito antes do lançamento oficial do Movimento.
Por outro lado, este ainda está em plena atuação, de modo que, em algumas áreas
artísticas ou literárias - como o cinema, o teatro ou a arquitetura,
por exemplo - está apenas esboçado ou planejado, formulado teoricamente, à
espera de uma realização efetiva. Todos os participantes do movimento armorial estão de acordo num ponto: em arte, a criação é mais importante do
que a teoria. É por isso que, até agora, tratamos mais de criar um mínimo de
base teórica, e é essa base teórica que apresentamos aqui agora, reunindo pela
primeira vez, de maneira sistemática e organizada - se bem que resumida -
definições e posições tomadas em ocasiões diversas.
Tratemos,
pois, em primeiro lugar, de apresentar uma definição geral, que abranja o
Movimento Armorial inteiro. Ela foi proposta no “jornal da Semana” do Recife, em 20 de maio de 1973, nos seguintes termos:
“A arte
armorial brasileira é aquela que tem como traço comum principal a ligação com o
espírito mágico dos “folhetos” do Romanceiro popular do Nordeste (Literatura de
Cordel), com a música de viola, rabeca ou pífano que acompanha seus “cantares”,
e com a xilogravura que ilustra
suas capas, assim como com o espírito e a forma das artes e espetáculos
populares com esse mesmo Romanceiro relacionados”.
Exemplo da arte armorial. Gravura feita para ilustrar o romance de Ariano Suassuna, o Romance da Pedra do Reino (1971). |
O
“folheto” da nossa Literatura de Cordel pode, realmente, servir-nos de
bandeira, porque reúne três caminhos: um, para a Literatura, o Cinema e o
Teatro, através da poesia narrativa de seus versos; outro, para as artes plásticas
como a gravura, a Pintura, a escultura, a talha, a cerâmica
ou a tapeçaria, através dos
entalhes feitos em casca-de-cajá para as xilogravuras
que ilustram as capas; e finalmente um terceiro caminho para a música, através
das “solfas” e “ponteados” que acompanham ou constituem seus “cantares”, o canto
de seus versos e estrofes.
O
NOME “ARMORIAL”
Existindo,
já, a arte armorial, pode-se dizer, porém, que ela
só foi reunida de maneira deliberada e consciente depois que se tornou o
principal elemento dinamizador dos trabalhos do Departamento de Extensão Cultural da Universidade Federal de Pernambuco.
No dia 18 de outubro de 1970,
realizaram-se, na igreja de São Pedro
dos Clérigos, do Recife, um concerto e uma exposição de Artes plásticas,
para cujo programa escrevi as seguintes palavras:
“Em nosso
idioma, “armorial” é somente substantivo. Passei a empregá-lo também como
adjetivo. Primeiro, porque é um belo nome. Depois, porque é ligado aos esmaltes
da Heráldica, limpo, nítidos, pintado sobre metal ou, por outro lado,
esculpidos em pedra, com animais fabulosos, cercados por folhagens, sóis, luas
e estrelas.
Foi aí
que, meio sério, meio brincando, comecei a dizer que tal poema ou tal
estandarte de Cavalhada era “armorial”, isto é, brilhava em esmaltes puros,
festivos, nítidos, metálicos e coloridos, como uma bandeira, um brasão ou um
toque de clarim. Lembrei-me, aí, também, das pedras armoriais dos portões e
frontadas do Barroco brasileiro, e passei a estender o nome à escultura com a qual sonhava para o
Nordeste.
Descobri
que o nome “armorial” servia, ainda, para qualificar os “cantares” do
Romanceiro, os toques de viola e rabeca dos Cantadores - toques ásperos,
arcaicos, acerados como gumes de faca-de-ponta, lembrando o clavicórdio e a
viola-de-arco da nossa música barroca do século XVIII”.
O movimento
armorial pretende realizar uma Arte brasileira erudita a partir das raízes
populares da nossa cultura. Por
isso, algumas pessoas estranham, às vezes, que tenhamos adotado o nome
“armorial” para denominá-lo. Acontece que, sendo “armorial” o conjunto de insígnias,
brasões, estandartes e bandeiras de um povo, no Brasil a Heráldica é uma arte
muito mais popular do que qualquer outra coisa. Assim, o nome que adotamos
significava, muito bem, que nós desejávamos ligar-nos a essas heráldicas raízes
da cultura popular brasileira. E tanto assim era, que, convencendo as pessoas
que (?) de criar, dizíamos naquele mesmo programa de 1970:
“A unidade
nacional brasileira vem do povo, e a heráldica popular brasileira está
presente, nele, desde os ferros de marcar bois e os autos dos Guerreiros do
Sertão, até as bandeiras das Cavalhadas e as cores azuis e vermelhas dos
pastoris da Zona da Mata. Desde os estandartes de Maracatus e Cabocolinhos, até
as Escolas de Samba, as camisas e as bandeiras dos clubes de futebol do Recife
ou do Rio”.
A
PINTURA ARMORIAL
Nem sempre
as pessoas que participam das exposições de arte Armorial ou que trabalham para
o Departamento de Extensão Cultural da
UFPe são artistas oficialmente armoriais, integrantes efetivos do Movimento
Armorial. No entanto, foi refletindo sobre as características comuns do
trabalho de uma porção de gente que se formulou - se se pode falar assim - a
teoria da Pintura Armorial. Naquele mesmo programa-catálogo de 1970, falando
sobre a pintura de Francisco Brennand,
dizíamos algumas palavras que são fundamentais para o entendimento da pintura
armorial. Eram as seguintes:
“Nos
quadros do grande Francisco Brennand, certos frutos e folhagens aparecem como
selos ou brasões pintados no centro da tela, como se esta fosse um enorme
escudo de armas: o caju vermelho ou amarelo, é o fruto brasileiro por
excelência e é, portanto, a nossa insígnia vegetal brasileira, assim como a
Onça é o nosso animal heráldico mais característico”.
O Olho de Deus. Óleo sobre tela, 110 x 145 cm, Francisco Brennand, 1980? |
Miguel
dos Santos
participou da segunda exposição de arte armorial, realizada na Igreja do Rosário dos Pretos, em 26 de novembro de 1971. A seu respeito, escrevi, depois, as seguintes
palavras, publicadas no “jornal da Semana” de 14 de Janeiro de 1973:
“Às vezes
me perguntam se meu romance armorial brasileiro, “A PEDRA DO REINO”, tem
ligação com o “realismo mágico”, cuja teoria foi formulada pelos franceses. De
modo nenhum. Minha peça “UMA MULHER VESTIDA DE SOL” é de 1947; o “AUTO DE JOÃO
DA CRUZ” é de 1950; o “AUTO DA COMPADECIDA” é de 1955. Todas elas são, já, ligadas
ao Romanceiro Popular do Nordeste, e é à mesma fonte que se prendem as raízes
de criação de “A PEDRA DO REINO”, bem anteriores, portanto, ao “realismo
mágico” europeu. O mesmo acontece com Miguel dos Santos, que, aliás, me deu a
honra enorme de pintar um belo quadro, “A BESTA BRUZAÇÔ baseado em meu
romance.
O quadro
foi vendido para um museu do Canadá, e nele, como nos outros, está presente
esse espírito mágico - brasileiro, nordestino e de raiz popular, e não ligado,
como disse, ao “realismo mágico” ou ao “surrealismo” dos franceses. Veja-se bem
que existe uma diferença bastante acentuada entre os pintores surrealistas, ou
ligados aos precursores do surrealismo, e um pintor como Miguel dos Santos,
cuja “garra” popular e cuja força brasileira são as mesmas dos “folhetos” e xilogravuras do Romanceiro popular
nordestino.
É verdade
que sou um tanto suspeito para falar assim, porque é à mesma linhagem de Miguel
dos Santos ou de Gilvan Samico que eu pertenço, tanto em minha poesia, como em
meu teatro, ou no meu “ROMANCE D’A PEDRA DO REINO”. Mas só sei falar com entusiasmo daquilo que
realmente me toca - e a pintura de Miguel dos Santos é algo que me entusiasma,
principalmente quando ele povoa seus
quadros a óleo, ou suas cerâmicas, de bichos estranhos: dragões,
metamorfoses, cachorros endemoniados, santos,
mitos e personagens nordestinos,
anjos e demônios - uma obra tão ligada
ao Romanceiro e, por isso mesmo, tão expressiva da visão tragicamente
fatalista, cruelmente alegre e miticamente
verdadeira que o povo brasileiro tem do real”.
De outra
vez, escrevendo sobre um pintor armorial, Aluízio
Braga, eu lembrava, a respeito desse ex-operário que, no Movimento
Armorial, quando falávamos em
“ouro”, “prata” ou “pedras preciosas”, estávamos fazendo
referência era aos vidrilhos, lantejoulas e metais baratos que o povo usa para
enfeitar suas roupagens principescas, nos “autos guerreiros”, por exemplo.
Eu dizia
que esses metais populares, apesar de baratos, eram mais valiosos do que os
“verdadeiros” usados pelos ricos, porque continham uma quantidade maior de
sonho humano. E dizia que Aluízio Braga, ao pintar seus quadros minúsculos,
bordados, esmaltados e cheios de joiarias que parecem reencontrar o espírito
das “miniaturas” persas ou hindus, estava fazendo o mesmo que os atores de
“autos de guerreiros” ou “caboclos de lança”: criando motivos de sonho e
abrindo portas de grandeza para nosso povo.
Ainda a
propósito de outra pintora integrante do Movimento, Lourdes Magalhães, escrevi as seguintes palavras, necessárias à
compreensão da pintura armorial:
“Ela
(Lourdes Magalhães), como os homens do povo, sempre teve atração pelos
vidrilhos e lantejoulas, tendo sido daí que se originaram as ornamentações de
seus quadros, de suas figuras, de seus “tatuados”, das suas “homenagens a
Pernambuco” através de signos e insígnias. Lourdes Magalhães sempre foi atraída
por essa grandeza do povo nordestino, esse povo que, dentro de sua pobreza, organiza
cortejos e espetáculos em que estandartes e chapéus de Príncipes populares
parecem verdadeiros templos asiáticos - coisa que já vi várias vezes na
Paraíba, em Pernambuco, em Alagoas”.
Mas como,
ainda assim, reclamassem que, depois de tantas exposições, ninguém sabia ainda,
por falta de uma definição, o que era um quadro armorial, escrevi, em 11 de dezembro de 1973, a propósito da primeira exposição de Geber
Accioly, as seguintes palavras:
“Diferentemente
da acusação que nos fazem, somos perfeitamente capazes de definir as
características da Pintura armorial. São as seguintes: parentesco com o
espírito mágico e poético do Romanceiro e das Xilogravuras populares do
Nordeste; ausência de perspectiva, de profundidade ou relevo, ou então,
perspectiva, profundidade e relevo apenas indicados; uso predominante de cores
puras, distribuídas em zonas achatadas; desenho tosco e forte, quase sempre
contornado, como herança da Pintura popular; semelhança com os brasões,
bandeiras e estandartes dos espetáculos populares nordestinos; parentesco com o
espírito da Cerâmica e da Tapeçaria”.
E se
acrescentarmos que tudo isso aí reunido se encontra também nos quadros pintados
sobre madeira do grande Gilvan Samico,
teremos uma idéia bastante completa da pintura Armorial.
Três mulheres e a lua. Gilvan Samico, xilogravura, 26,5 x 27,3 cm. 1959. |
A
ESCULTURA ARMORIAL
Da
escultura armorial, o melhor que podemos dizer é que ela origina, diretamente,
dos entalhes das xilogravuras dos “folhetos”, da tradição da escultura em madeira dos “santeiros” e
“imaginários”, e das esculturas
em pedra do barroco “primitivizado” do Nordeste. O trabalho do escultor armorial Fernando Lopes da Paz parte de
tudo isso. Tem um espírito apocalíptico, que lhe vem, ao mesmo tempo, da
tradição da Literatura de Cordel, da leitura dos livros proféticos judaicos e
do contacto com os escritores e poetas armoriais.
Fernando
Lopes da Paz
é um homem do povo e traz em suas veias essa forte seiva do sangue nacional
brasileiro. Eu, há muito tempo não me conformava com o fato de a escultura, no Nordeste, vir sendo
feita, quase que somente, em gesso e metal. Achava, como ainda acho, que os
grandes momentos da escultura em
todo o mundo coincidem com o emprego da madeira e da pedra, e foi nesse sentido
que fiz um apelo a Fernando Lopes da Paz
para que voltasse a empregar esses materiais. Ainda não pudemos iniciar os
trabalhos em pedra.
Mas já
iniciamos o de madeira, em talhas enormes como “A luta da besta Bruzaçã com o anjo”, ou em gigantescas esculturas
como o “Cristo Armorial”, esculpido num só bloco de jaqueira com cerca de 2 metros de altura.
A
CERÂMICA E A TAPEÇARIA ARMORIAIS
No movimento armorial ainda não encontramos um artista que se queira
dedicar à procura de uma cerâmica como a que sonhamos. Nem criamos as condições
de trabalho para aquele que porventura apareça - pois seria artificial fazer um
forno e esperar pelo artista - nem encontramos um jovem ceramista que, com
preocupações semelhantes às nossas, passe a pesquisar e criar nesse campo.
Ainda assim, o trabalho de Francisco
Brennand e o de Miguel dos Santos
já deixam ver, perfeitamente, a beleza e a importância do que se pode fazer
nesse campo. Temos uma tradição popular muito forte, de ceramistas e louceiros.
Murais como “A batalha dos Guararapes”,
de Brennand, ou pratos e placas como “a Besta Bruzaçã” de Miguel dos
Santos, são obras de importância fundamental para a arte brasileira.
Trehco de A Batalha dos Guarapares. Francisco Brennand, 1960-61. O mural possui 2,30 x 32,5 m. Bairro de São José, Recife. |
Ambos
esses artistas, também, realizam santos ou animais modelados em barro, que vão
ao forno como os santos feitos em Caruaru ou Tracunhaém pelos artesãos
populares, e que, em alta temperatura, adquirem aquela cor metalizada e forte
que dá a maior nobreza a essa bela arte
que é a cerâmica.
Quanto à
Tapeçaria, contamos, no Movimento Armorial, com o extraordinário trabalho de Maria da Conceição Brennand Guerra.
Filha de Francisco Brennand - que também faz tapetes - segue, no entanto, uma
linha personalíssima, original, diferente e forte. No Movimento Armorial,
estamos perfeitamente conscientes da unidade cultural de toda a América Latina,
e, mais, do parentesco cultural que nos une à arte hindu, à etíope etc.
Isso não
significa que preguemos nenhuma uniformidade cultural monótona; pelo contrário:
fazemos questão de preservar as peculiaridades nacionais e a independência
individual de cada artista. Neste sentido podemos dizer que as onças, as cobras
ou os animais alados e míticos de que Maria da Conceição Brennand Guerra povoa
seus grandes tapetes, são ligados, ao mesmo tempo, a uma arte popular
ainda viva e atuante no Nordeste - como as xilogravuras
das capas dos folhetos - e, ao mesmo tempo, ao espírito e às formas da arte
desses estranhos impérios latino-americanos que permanecem dentro de nosso
sangue da mesma maneira como foram sepultados em nosso chão, para serem
desencavados e ressuscitados a cada instante, não pelo trabalho frio dos
arqueólogos, mas pela revisão criadora dos nossos escritores e artistas.
É como se
toda essa enigmática cultura latino-Americana antiga fosse uma só:
florescendo entre os Aztecas ou incas,
teria decaído noutros lugares; mas têm, todas, ao que parece, uma origem única.
No século XX, nós, brasileiros, mexicanos, uruguaios, colombianos, peruanos,
paraguaios, bolivianos, etc., tivemos, de repente, a consciência de que esses
Reinos estranhos estavam fundamente entranhados em nosso sangue, e as
tapeçarias de Conceição Brennand Guerra, assim como as novelas
latino-americanas, parecem sair desse chão, desse húmus, dessa poderosa terra,
ao mesmo tempo familiar e estranha que é a nossa e à qual somo fiéis, talvez
mesmo sem o pressentir direito.
A
GRAVURA ARMORIAL
A gravura
armorial identifica-se com esse grande artista que é Gilvan Samico. No Movimento Armorial não existem mestres nem
discípulos: existem companheiros de trabalho que, descobrindo entre si
preocupações semelhantes, passaram a se estimular mutuamente com seu trabalho
criador. Certa vez, Dom Miguel de Unamuno declarou que ”não era discípulo deste
ou daquele porque era discípulo de todos”. Glosando a meu modo a frase de
Unamuno, escrevi, a propósito de Samico, umas palavras que, depois, estendi a
todos nós, como um dos pontos fundamentais do nosso programa de trabalho:
“Aluno de todo mundo e da vida, mas, por isso mesmo, único mestre de si mesmo e
discípulo de ninguém”. Para dar uma idéia do que seja a gravura armorial
de Gilvan Samico, transcrevo parte do artigo que escrevi sobre ele e que
publiquei no “Diário de Pernambuco” de 1o de novembro de
1964:
O campo da
gravura e do Romanceiro nordestinos é, para mim, um Reino maravilhoso, povoado
de coisas, seres humanos, ações e encantamentos, um reino imaginoso, dotado de
estranha beleza...É desse mundo estranho o belo do Romanceiro e das capas de
“folhetos” nordestinos que brota a gravura de Gilvan Samico. É nesse mundo que
ele mergulha, procurando um reencontro com as raízes de seu sangue, e de onde
regressa com seus “pássaros de fogo”, seus “dragões” que, por entre folhagens e
cachorros, relembram os grifos dos púlpitos da Igreja de São Francisco, da
Paraíba; será talvez por isso, então, que Francisco (de Assis), essa “fera de
Deus”, aqui está, ao lado de seu lobo, assim como Daniel, imune e profético,
olha tranqüilamente para seu leão.
Criação - o sol, a lua e as estrelas. Gilvan Samico, xilogravura 92,5 x 53 cm. 2011. |
Só julgará
que esses temas não nos pertencem, quem não sabe que o deserto da Judéia é, também,
o Brasil; ou que Samico, incluindo Santos e profetas em seu mundo, está apenas,
mais uma vez, sendo fiel à mais verdadeira linhagem da arte brasileira desde
seus começos; e, sobretudo, quem não sabe que o Sertão é o Mundo... Sim, porque
o mundo de Samico, como o mundo da gravura popular nordestina, - do qual ele é,
ao mesmo tempo, o herdeiro e o Rei - é povoado de pavões, a ave-insígnia da
beleza, a qual mereceu esse título por ser incrustada de pedras preciosas, por
ter a cabeça-de-serpente do mal, e os pés-de-ladrão, maldosos e grosseiros, do
feio mundo; de bois encantados e de cavalos misteriosos; de “guerreiros do ar”
e de virgens que saem de palmas como quem sai de um incêndio ou do fogo da
Sarça Ardente; de “traições”, de estandartes e demônios... Que aspecto têm
essas gravuras?
Como
sucede com toda verdadeira obra de arte, dão a impressão de soberana
simplicidade... Seu segredo consistiu apenas em o gravador voltar a certos
processos que os novidadeiros julgavam esgotados; em voltar ao uso do material
mais puro, nobre e primitivo da gravura - a madeira; em regressar às suas
raízes, recriando, com grande liberdade e Imaginação, o espírito e as formas da
xilogravura do seu povo; em contornar as figuras de um limpo traço negro, que
se destaca nos puros espaços brancos, por entre massas negras e tramas delicadamente
interpostas, e toques de vermelho, verde, azul ou amarelo, que a gravura popular não usa mas que ele fez muito bem em introduzir para
recriá-la”.
À primeira
vista, parece fácil, mas quem fizesse essa apreciação superficial demonstraria
apenas que é incapaz de invenção, que nunca experimentou, por dentro, o que é a
áspera e complexa escalada em direção à beleza, que, depois dela, aparece com
sua face radiosa, simples e domada... Mas essa gente, exatamente por não ter a raça
dos verdadeiros criadores, ainda não se apercebeu de que, a despeito de tudo, o
Brasil já está no limiar do seu grande destino; por isso, inclinam-se diante de
qualquer coisa, de qualquer pessoa, de qualquer idéia que venha de fora...
Samico teve a sabedoria de ver e a coragem de realizar.
Teve
tenacidade para se manter firme numa atitude que muitos julgavam anacrônica,
esquecidos - como os demônios da esterilidade e da confusão que os poetas e
gravadores do Nordeste evocam em seus “folhetos”- de que o verdadeiro artista sempre foi apenas
um artesão mais dotado na tradição de um artesanato coletivo. O artista
peculiar e soberano era o caso excepcional: surgia naturalmente, por si
mesmo, não forçando as portas da
originalidade, mas encontrando-a naturalmente,
para tornar sua obra como que a coroa da arte de seu povo.
É por
isso, por ter encontrado seu caminho pessoal dentro da maravilhosa tradição
popular, que o mundo de Samico aparece com tanta novidade, com todas as
contradições e purezas da violência, dentro do mundo da gravura brasileira,
cinzento e monótono, onde quase que só se exercitavam os maneirismos de uma arte
européia de segunda-mão e onde hoje, graças a ele, os pássaros de fogo do sol
nordestino fulgem como estrelas ou dragões incendiados nas torres e bandeiras
do Reino do Sertão do Brasil.
Tais
palavras são suficientes para se dar uma idéia também da pintura que Gilvan Samico vem fazendo a
partir de 1971, tão grande e importante quanto sua extraordinária gravura e que, portanto, revela mais um
aspecto do gênio desse artista, que é orgulho do Movimento Armorial.
O
TEATRO, O CINEMA E A DANÇA ARMORIAIS
Para ser
exato, devo dizer que, dessas três artes, foi somente quanto ao teatro, e um pouco quanto ao cinema, que o movimento armorial
apresentou alguma coisa, até agora. Mas pode-se dizer, também, que as idéias
gerais e os trabalhos já apresentados no campo do teatro e do cinema
valem também, devidamente adaptados, para a dança
armorial com a qual sonhamos e
que ainda viremos a realizar um dia, se tivermos condições para isso.
Nosso teatro armorial tem seus pontos de vista formados e próprios: Não
digo que sejam os únicos certos, os único válidos. Mas, discordando, nisso,
mesmo de alguns amigos e velhos companheiros de trabalho, não conhecia - nem as
aceito, agora que as conheço - as formulações teóricas do teatro sectário de Bertolt Brecht e de seus seguidores
latino-americanos de segunda-mão. A fórmula brechtiana começou investindo conta
o “ilusionismo teatral” e está destruindo “a ilusão e a encantação do teatro”, coisas fundamentais para essa arte.
Sem elas,
o teatro não vive, fenecendo e
afastando-se do humano, pelo intelectualismo cerebral, frio, discutidor,
exclusivamente crítico e ideológico. Meus fundamentos de criação eram e continuam
a ser muito diferentes das estreitas fórmulas brechtianas. Não aceito o
“distanciamento” brechtiano (aliás originado de Claudel e Yeats ), fórmula
crítica, política, estreitamente sectária e ideológica. Não aceito a
fragmentação exagerada da ação, pois nisso, como no uso do poético e do
maravilhoso, dos tipos, dos cantos, das danças, das máscaras, sou herdeiro é do
teatro antigo, assim como, principalmente, dos espetáculos
nordestinos. Mantenho a distinção entre Epopéia e teatro.
Por outro
lado, não me interessam nem o Drama psicológico e burguês, nem o Drama
politizado do teatro sectário.
Sempre preferi a tragédia e a
Comédia, formas mais preferidas pelo povo, mais próximas do espírito do nosso
romanceiro. Pode-se dizer, portanto, que, assim como a gravura armorial
parte das xilogravuras populares
dos folhetos, o teatro armorial parte dos romances, das
histórias trágicas ou picarescas da Literatura de Cordel, assim como dos
espetáculos populares do nordeste, e tem, no campo da arte erudita, um espírito
muito semelhante ao deles.
Cena da peça O Auto da Compadecida. Embora tenha sido escrita e lançada em 1955 por Ariano Vilar Suassuna, a peça se tornou uma das referências no teatro armorial. |
Quanto ao Teatro, lembro que empreendemos, primeiro, uma dramaturgia de caráter nordestino e ligada à Literatura de Cordel e aos espetáculos populares nordestinos. Depois, procuramos também sugerir a Encenadores, Figurinistas, Cenógrafos e Atores, um modo brasileiro de se vestir, de representar e atuar no palco. Para dar um exemplo do que digo, escolho, de propósito, uma entrevista que dei ao “jornal do Comércio”, do Recife, em 29 de junho de 1963.
Essa entrevista esclarece muita coisa do que penso sobre o teatro e sobre um possível Cinema Armorial, porque foi dada por ocasião da primeira tentativa mais séria que se fez, aqui, de fazer um filme baseado em minha peça, “Auto da Compadecida”. Dessa entrevista, destaco os seguintes trechos:
“Na adaptação do “Auto da Compadecida” para o Cinema, resolvi por em prática algumas idéias que tenho há muito tempo sobre o espetáculo brasileiro de um texto brasileiro. Não creio que a meus textos de teatro se adapte um espetáculo convencionalmente realista, europeu, e ocidental... Creio que o “Auto da Compadecida” - como todo o meu teatro_ exigiria uma montagem criadora e livre, que, como o texto, se baseasse na invenção dionisíaca e espetacular do Bumba-meu-boi, do Mamulengo, da Nau Catarineta, do Pastoril... Gostaria, por isso, de ver encenadores e atores de minhas peças, entregues a um trabalho de recriação e de amor ao espetáculo popular nordestino.
Baseados em meus textos, deveriam partir deles para um espetáculo mágico, festivo, com músicas, danças, máscaras, bichos e demônios. A música deveria ser sertaneja: os tambores, os pífanos, as violas, as rabecas; a dança das facas, o xaxá, a orquestrinha do Bumba-meu-boi. A beleza dos trajes do espetáculo nordestino: o gibão dos vaqueiros, cheios de bordaduras, verdadeiras armaduras de couro vermelho; as moedas e estrelas de prata dos arreios e chapéus de couro; as esporas; as roupas de Almirante da Nau Catarineta; os Reis do bumba-meu-boi, todos vestidos de espelhos, com as cabeças ornamentadas com chapéus que parecem templos do Sião ou Mitras episcopais; os trajes litúrgicos da Igreja e dos militares; a roupa solene e cômica do doutor, os bichos fabulosos - a onça, a jumenta, o jaraguá... O espetáculo com que sonho, o teatro com que na verdade sempre sonhei, é este.
Se eu fosse montar o teatro o “Auto da compadecida” fa-lo-ia assim: com músicas e danças; João Grilo seria o “Mateus”; Chico o “Bastião”; Cristo, o “Rei”; o demônio (encourado), o “vaqueiro”; Nossa Senhora seria a “Rainha” ou a “Diana”, que eu introduziria arbitrariamente no espetáculo, seguindo, aliás, a liberdade arbitrária e inventiva da Arte popular; o padeiro seria o “doutor”; a mulher do padeiro, a “Catarina”; e, com esses personagens ao lado de outros que já seriam “tipos” - o Padre, o Bispo, o Fazendeiro, os Cangaceiros, - faria um espetáculo brasileiro de um texto brasileiro.
Na adaptação da peça para o filme, procurei introduzir esses elementos. Não exatamente como está aí, pois se trata de uma outra arte. Mas, de qualquer forma, as vestimentas e os tipos do Bumba-meu-boi foram usados, para, com a cor, acentuar a supra-realidade da cena do julgamento dos personagens: O cordão azul, com o estandarte da estrela - cavalgada de Nossa Senhora - e o cordão encarnado, com o estandarte do tridente - cavalgada do encourado, do demônio; a “dança das facas”, para dar uma idéia da oposição entre a mulher e a serpente; os cangaceiros; e, em todo o filme, sugeri que a música fosse a do sertão: zabumbas - isto é, pífanos, tambores e pratos - para o Encourado; violas e rabecas para a Compadecida - Nossa Senhora”.
Os atores Selton Mello como Chicó e Matheus Nachtergaele como João Grilo, protagonistas do filme O Auto da Compadecida (2000). |
Como se vê
era o desejo de um espetáculo total brasileiro, no qual se usassem as máscaras,
o canto, a música, a dança, as roupagens imaginosas dos espetáculos populares
nordestinos. Eu queria que o teatro, o cinema e a dança brasileira se
identificassem com o espírito e a forma desses espetáculos, do mesmo modo pelo
qual, no Japão, o cinema bebia nas fontes de seu teatro nacional... O “nô” e o
“kabuki”. É claro que não pretendia que imitássemos o cinema e o teatro
japoneses. O que eu queria era que nós fizéssemos, em relação a nosso cinema,
nosso teatro o mesmo que os cineastas japoneses tinham feito em relação ao
filme de “Samurai”, aproximando o cinema de sua pátria das duas formas
principais de seu teatro nacional e popular.
E tanto
eram essas minhas preocupações, que, em 4
de agosto daquele mesmo ano de 1963, no mesmo “jornal do Comércio” do Recife, eu publicava outro artigo, este
mais especialmente sobre cinema, do qual assinalo as seguintes palavras:
“O mal que
tem causado à arte contemporânea o esteticismo e o excesso de teoria é
incalculável. No caso particular do cinema, por exemplo, creio que, se quando
Chaplin começou a fazer filmes, houvesse tantos teóricos como hoje, ele teria
seu trabalho bastante perturbado pela crítica.
Na
verdade, quase todas as cenas de seus filmes podem se passar entre quatro
paredes, num palco, são cenas de pura pantomima: e, se os teóricos tivessem
tido oportunidade de falar, talvez ele tivesse sido acusado de fazer, não
“Cinema puro”, mas sim “mímica filmada”... Um outro cinema de primeira
qualidade e baseado numa tradição teatral é, a meu ver, o japonês.
O filme de
“Samurai”, com suas ações guerreiras, sua esgrima que é quase uma dança - às
vezes com um leve matiz cômico - suas armaduras, suas espadas que cintilam ao
sol, seu tom épico, seus diálogos
espirituais, a beleza das vestimentas - tudo isso herdado do teatro japonês -
constitui, a meu ver, muito mais do que
o “western” americano - que, junto dele, não passa de uma brincadeira de
adolescentes - o herdeiro moderno do “épico” antigo””.
Já se
entende, então, que não era apenas uma frase ou uma simples brincadeira a
afirmativa que eu faria depois, quando da estréia do filme “A compadecida”,
dizendo que, na minha opinião, um filme para ser bom tinha que ter quatro
elementos fundamentais - além de outros, acessórios: mulher, punhal, cavalo e
bandeira. Era uma maneira de fazer o público comum entender que, para mim,
trágico ou cômico, um filme tinha que ser marcado pelo elemento épico, festivo
e espetacular do teatro popular nordestino - do “Auto de Guerreiros” ao “Fandango”,
do “Mamulengo” ao “Bumba- meu-boi”.
Quanto à
dança, em 1959, tentei, juntamente
com Ana Regina - uma das professoras
de balé do Recife naquele ano - realizar uma dança erudita nordestina baseada
em raízes populares. Escrevi uma história intitulada “os medalhões” para uma música de Guerra Peixe, e o espetáculo foi encenado no teatro Santa Isabel,
pelas alunas da referida professora, nos dias 6, 7 e 8 de novembro daquele ano
com Eliane Isis Vieira, Elvira Amorim e Sílvia Suassuna nos papéis principais.
Mas, para
que se atingisse o que realmente era necessário, faltava muita coisa a ele: de
modo que a Dança armorial, por enquanto, é apenas uma aspiração nossa, sonhada
nas mesmas linhas mestras acima apontadas para o teatro e o cinema, à espera de
coreógrafos e dançarinos com preocupações semelhantes às nossas e com
suficiente espírito criador para “esquecer” o que aprenderam errado, ver o que
o nosso povo faz em matéria de dança e recriar tudo num sentido mais alto e
mais profundo.
Fotografia do espetáculo Abô, do Grupo Grial de Dança, de vertente do movimento armorial, em apresentação no Recife, no ano de 2015. |
Não
esquecer que o Brasil é hoje, talvez, no mundo, o único país capaz de
mobilizar, num espetáculo só - o carnaval popular - milhares de figurantes,
numa dança que não foi encarada até agora com a importância que merece, pois
parece que só teve coisa parecida no mundo mediterrâneo, com os jogos e
espetáculos gregos antigos.
A
ARQUITETURA ARMORIAL
Em 26 de agosto de 1961, na Faculdade de Filosofia do Recife, li um
ensaio que escrevera sobre a Arte brasileira, numa espécie de conferência,
depois repetida na Faculdade de Arquitetura. Nesse ensaio, manifestava minha
insatisfação com a Arquitetura brasileira atual, nos seguintes termos:
A
arquitetura brasileira contemporânea, nem é arquitetura - pois é feia, fria e
desagradável - nem é brasileira - pois é copiada de Le Corbusier, internacionalista, cosmopolita, requentada, brancosa,
cartesiana, de paredes nuas, brancas, retas, e tendo, ainda por cima,
desterrado de dentro de si a Pintura, a cerâmica
e a escultura. Certa vez, Le
Corbusier indignou um grupo de jovens arquitetos brasileiros que o visitavam,
dizendo que toda a arquitetura
brasileira moderna originava-se da dele.
Le
Corbusier tinha razão, e ainda foi delicado, porque não acrescentou que ele
próprio faz, às vezes, por acaso, coisas boas, e nossos arquitetos só têm feito
é copiar o que ele tem de pior, de mais
brancoso, cartesiano e calvinista, repetindo fórmulas e o feio jargão de
“gabaritos” “soluções”, e outras coisas “funcionais”. Tudo isso não tem nada de
brasileiro.
Nossa
arquitetura teria de ser imaginosa, meio demente, colorida, violenta,
irregular, ardente e forte em certos casos, e, noutros casos, tranqüila e
acolhedora; isto é, Arquitetura pública, no primeiro caso, e particular no
segundo, ambas ligadas ao espírito popular brasileiro. Assim como o povo,
dionisíaco, nos espetáculos populares públicos, se veste de Reis, e cria a
“festa”, a dança, a sagração, assim deveriam ser criados nossos prédios
públicos; e assim como também nosso povo é tranqüilo e acolhedor em suas
moradas, assim deveria ser nossa arquitetura particular, que perdeu o segredo
dos velhos mestres-de-obras, os quais tanto sabiam fazer os acolhedores
casarões aristocráticos como as simples e agradáveis casas populares.
Os atuais
“caixões” de paredes despidas e duras, semelhantes a postos de gasolina, não
nos servem, não correspondem ao Brasil. Mas onde está nosso arquiteto jovem,
bastante corajoso para empreender a revolta?
Quem lhe encomendaria e pagaria os projetos, com o mau-gosto de
hoje? Não acredito, como os
regionalistas, que se deva “voltar ao colonial”.
Exemplo de arquitetura e escultura armoriais no terreno da Oficina Ricardo Brennand, Recife. |
Temos é
que criar, em relação a nosso tempo, uma arquitetura brasileira que a ele
corresponda. Sonho com uma arquitetura civil e religiosa brasileira, a qual,
partindo do bom-senso meio mouro e chão da arquitetura das casas, desse o salto
maior para o divino, com florestas de pedra, colunas de arenito retorcidas em
forma de troncos vegetais, dividindo fachadas e espaços revestidos de azulejos
e cerâmicas, com linhas curvas, cariátides de pedra, algo que se lançasse
tortuosa e triunfalmente para o alto através do maciço, do pesado e do
irregular, exatamente como faz a alma humana que “compensa a rotina com a
poesia e a exatidão com a loucura”.
A
arquitetura precisa da pintura e da escultura
e estas decaíram quando abandonaram aquela.
No seu caso - mais talvez do que em qualquer outro - é preciso voltar a
encarar as artes dentro do fecundo caos original, numa fraternidade semelhante
à de nossos sangues, reunidos na América Latina numa posição diametralmente
oposta à uniformidade monótona sonhada pelos racistas. É por isso que nossas
artes sentem necessidade de se aplicar, de se arejar, de partir para os grandes
espaços, para o épico e o grandioso.
Em suma, deveríamos
fazer o contrário de tudo isso que anda por aí com o nome de “moderno” ou de
“funcional” e que resulta, simplesmente, da falta de imaginação criadora, e da
mania de imitação do que vem de fora, da falta de coragem para lutar contra as
idéias estabelecidas. Dizem que o “funcional” é uma imposição de caráter
econômico, assim como dos materiais modernos, fabricados em série. Tal afirmação
quando não é hipócrita é apenas uma saída para desculpar rotinas e acomodações.
Eu só
acreditaria que a arquitetura brancosa e esterilizada que se faz atualmente no
Brasil seria decorrente do preço mais barato dos materiais se não tivesse
visto, já, inúmeras vezes, os burgueses e arquitetos se juntarem para derrubar
partes de um casarão belo e sóbrio para revesti-lo com as aparências
falsificadas do pretensiosamente chamado “estilo funcional”.
Quanto aos
materiais, lembro o caso daquele que talvez tenha sido o único arquiteto de gênio
do século XX, o grande catalão Antônio Gaudi, o qual reinventava e recriava
cada material que ia empregar, que não tinha medo das formas imaginosas nem das
cores fortes e cuja arquitetura pode servir de exemplo e ponto de partida para
a nossa. É claro que não iríamos imitar Gaudi; iríamos tentar, em relação ao
Brasil e à América Latina, o que ele fez em relação à Espanha.
Na cor
dessa arquitetura que sonho, ora vejo o azul e o verde marinhos e da zona da
mata, ora o vermelho, o ocre, o castanho e o amarelo do Sertão, com a presença
de frutos e animais, em quadros, em cerâmicas e esculturas em pedra ou madeira,
não “apostas” artificialmente ao resto, mas sim integradas harmoniosamente no
conjunto. Uma catedral de uma (?) como uma jóia enorme e incendiada que Deus
pudesse avistar com alegria.
Bem, esses
eram meus sonhos em 1961. E, ainda hoje, o Movimento armorial espera, em vão, que apareça o jovem arquiteto que, a
seu modo, reinvente o que está aí, balbuciado em termos literários, por alguém
que é apenas escritor e que, portanto, está perfeitamente disposto a abandonar
seus sonhos por outro qualquer, mais eficaz, mais forte e mais formulado nos
termos da própria arte que os despertou - a arquitetura.
A
LITERATURA ARMORIAL
No
Movimento Armorial há poetas que são armoriais mais por serem “emblemáticos”
como é o caso de Deborah Brennand, e
outros que se ligam mais diretamente ao espírito e à forma do Romanceiro
popular Nordestino. A poesia de Ângelo
Monteiro seria uma espécie de ponte de ligação entre a poesia aristocrática
e emblemática de Deborah Brennand e
a de Janice Japiassu e Marcus Accioly (o de “Nordestinados”),
estas últimas mais diretamente ligadas à literatura
de cordel. No “poema do sertão”, de Deborah Brennand,
o espírito armorial é visível em
bandeiras e estandartes, imagens emblemáticas e heráldico-populares, recriadas
num espírito meio épico que poderíamos comparar a essa Arquitetura violenta,
recortada e cheia de cores quentes de que acabamos de falar. É o seguinte:
Quando a
serpente de ouro agonizar nas pedras
e o cardo
do tempo agreste, longe, muito longe,
florir
para ninguém seu único coração,
guarda o
punhal e deixa no escuro a cruz de estrelas
santificar
os brutos carrascos da noite.
Escuta o
silêncio bicado por uma garça selvagem
ou o vento
que arranha nos espinhos do sonho.
Escuta
tudo, até o sino ordenar um sangrento levante
e a
profecia cigana ler o destino do verão.
Então, não
lamentes o amanhã. Ajaeza teu cavalo e segue,
entre o
cheiro das juremas, nos ramos da terra clara.
Nos rios
mortos, apanha o teu brasão, as três medalhas.
O gavião
da luz devora um vôo de sombras frágeis.
Segue e rasga
o lenço vermelho: está acesa a batalha!
Recordo,
mais uma vez, que os “brasões” e “medalhas” de que se fala aqui são evocativos
dos vidrilhos e lantejoulas populares. E, explicado isso, passo a dizer que Ângelo Monteiro, em seu livro “Armorial
de um caçador de Nuvens”. Usa, numa “linha aristocrática e refinada, a
sextilha” característica de Cantadores e autores de folhetos do Nordeste. É o
caso do poema que transcrevo aqui, uma das ”Cantigas
de fingimento” incluídas naquele livro:
Dormem
panteras no corpo
como
nuvens, como águas.
Mais
serenas do que o sopro
de um
campo feito de mágoas.
Nuvens de
calma, só rendas:
como um
desenho nas águas.
Dormem
panteras no corpo
guardadas
por mil desvelos.
Nem mesmo
para domá-las
ninguém
desperte os seus pelos:
elas
mancharão as salas
com malhas
de pesadelos.
Mas Ângelo
Monteiro usa - como, aliás, também eu e Marcus
Accioly - outras formas poéticas ligadas ao Romanceiro, como, por exemplo, o “galope-à-beira-mar”.
Janice
Japiassu,
às vezes emprega o romance monorrimado, que herdamos da Península Ibérica, mas
que hoje, apesar de não muito freqüentemente, ainda se usa no Sertão. Outras
vezes, usa também a mesma “sextilha” dos cantadores, como neste seu romance
intitulado “Cirino”:
Às sete
horas da noite
Se estava
o prazo findando
um cabra
bateu à porta
Cirino foi
levantando
a lua
brilhou na espora
sete
estrelas clareando.
Vestiu o
manto de couro
lustrou a
faca com as mãos
sete
moedas de cobre
Derramaram-se
no chão
o
candeeiro finou-se
com o
sopro da maldição.
Às sete e
meia da noite
o cavalo
foi armado
um rastro
de mau presságio
luziu no
olho do gado
A sorte,
sela de bronze,
Cirino
nela montado.
A terra
gemeu com trote
secaram-se
os olhos d’água
cantou a
rasga-mortalha
grito de
coruja amarga
o cavalo
rompe o tempo
atrás da
hora aprazada.
Às oito
horas da noite
a hora encontra o local
dois dragões silenciosos
regem a
dança do punhal
e o ferro
encontrou o sangue
que
esperava - principal.
A aurora
estendeu os corpos
lavou-os
com os dedos frios
molhou-os
com olhar de relva
guardou o
eco de seu brio
-
diamantes da madrugada
que não
hei de repeti-los.
Marcus
Accioly
emprega, além da “sextilha”, do “quadrão”, do “martelo” e de várias outros
ritmos dos cantadores nordestinos, certos processos enumerativos, presentes,
por exemplo, na famosa “peleja de João
Martins de Athayde com Leandro Gomes de Barros”, composta pelo primeiro. É
o caso desta estrofe de seu poema “Quadrão”:
Um
revólver-parabelo
dois
rifles papo-amarelo
três
jagunços no duelo
quatro
disparos do cão
cinco
soldados no chão
seis
punhais desembainhados
sete
pescoços sangrados
oito
mortes no quadrão.
Aliás, Janice Japiassu já usara o mesmo
processo enumerativo num poema publicado em 1970, nos “Sete cadernos de amor e de guerra”:
Um lençol
de renda branca
dois
castiçais encarnados
quatro
cavalos na estrada
um poço
malassombrado...
E para
concluir esta pequena antologia da Literatura Armorial, esclareço que contamos,
no Movimento, com romancistas, contistas e novelistas como Raimundo Carrero, por exemplo. Carrero, ainda jovem, é autor de uma
forte novela intitulada: “A História de
Bernada Soledade, A Tigre do Sertão”. De sua autoria é também o conto que se
segue, “O Bordado, a Pantera Negra”.
Escolhi
esse conto para figurar aqui por três motivos: primeiro, ele dá, muito bem, uma
idéia de Carrero como escritor; depois, sendo, muito seu, é criado, de certa
forma, dentro das mesmas raízes que caracterizam toda a Literatura Armorial; e
finalmente o terceiro motivo é que, exatamente para mostrar essas
características armoriais da literatura de Carrero, eu escrevi,
baseado nele e propositadamente reaproximando o conto do espírito da Literatura
de Cordel, um “folheto”, intitulado “Romance
do Bordado e da Pantera”, que transcrevo depois do conto. Ao fazê-lo, além
de homenagear Carrero, eu estava apenas seguindo um processo muito comum no
nosso Romanceiro: um poeta toma uma história em prosa de autor e “versa-a”, isto
é, conta-a de novo em verso.
E vamos ao conto:
O
BORDADO, A PANTERA NEGRA
RAIMUNDO
CARRERO
O punhal
alumiando. Os olhos faiscando no fundo da moita. A noite - pantera negra -
esconde o mato. Simão Bugre, cartucheiras cobrindo o dorso nu, arrasta-se,
abrindo caminho. Sente os espinhos enfincando-se no peito. Rasga a pele com a
unha fina: o sangue corre. Enfurecido pela dor: esmaga um cacto. Parece uma fera
acuada. Recebe a pancada do vento no rosto como se fosse um coice. Agora, a
moita está às costas. Não vê a mata se perdendo nos confins, mas tem na mente
todos os caminhos e estradas. Perdido entre o silêncio e as trevas está o mundo
Santo dos Umãs.
Capa de uma edição do Romance do Bordado e da Pantera Negra, obra escrita por Raimundo Carrero com a colaboração de Ariano Suassuna, nos anos 70. |
O punhal
alumiado parece um espelho. A fera pisa com rigidez, sacode a brutalidade dos
seus músculos. O tempo caminha em passos apressados para a madrugada. Antes, o
trovão geme atrás das nuvens, depois a chuva despenca, saciando a sede da
terra.
Simão Bugre
apalpa a arma. Os cabelos de fios ásperos descem, molhados, pelos ombros. Os
pés de animal esmagam as pedras. O primeiro trovão confunde-se com o relinchar
de um cavalo e com o estrondar do vento. É preciso apressar o passo para chegar
logo à serra.
Conceição
controla o bordado. De pé, fecha a janela, afasta o frio. Sente o sono
dominando seus movimentos. Contempla o dragão que está bordando no pano branco.
É um dragão com língua de fogo, com os olhos de prata, com o corpo verde.
Pensa:
- Ele
chegará ainda agora, para apanhar o capacho. Precisa se tocar para Santo
Antônio do Salgueiro.
Simão
Bugre, o da cara de pedra, ouve o tropel maluco de cavalos fantasmas,
selvagens, correndo em busca de túmulos. As crinas balançam-se, enxotam o
vento. São cavalos de guerreiros mortos em emboscadas. Sabe-se
que “Visageiro”, o cavalo ruço, batalhador de primeira, desembesta-se nas
terras Santas dos Umãs, toda a meia-noite. Simão Bugre tem conhecimento disso.
Deixa o sorriso se abrir na cara.
O
cavaleiro proprietário do ruço “Visageiro”, vaquejador de nome conhecido por
Elesbão, caiu macio na ponta do punhal de Simão Bugre, por ordem e por destino
marcado. Por isso, seu sorriso é agora tão largo, tão aberto. E esquece - num
instante - a presa que o esperava. Senta-se gargalhando, os olhos feitos
faíscas. Vê, na mente, como se fosse naquele dia:
“Esperou
por toda uma noite, o corpo estirado na pedra, um olho dormindo, outro
acordado. Tinha muitas estrelas pastando nuvens. O olho dormido via passar
carruagens de fogo, conduzindo Cavaleiros Sagrados, na busca da conquista de
terras. Meia-noite. O tropel surdo esmagou os matos. Rápido, felino, rolou no
chão. Escondeu-se na touceira de folhas. Pensou:
- A vida é
mansa na hora da morte.
No zás do
pulo, caiu nas costas de Elesbão. O punhal penetrou no toitiço. Diversas foram
as punhaladas. O sangue se derramou pelos ombros. O corpo frouxo arriou sobre o
animal. “Visageiro” soltou um relincho agonioso. Desembaiou doido, como se
pudesse salvar a vida”.
Conceição
ouviu os matos gemendo. Dobrou os joelhos aos pés do Santuário. Ave-Maria,
cheia de graça, o Senhor... Os dedos macios enxugaram as lágrimas.
- Ele deve
estar chegando! - pensou.
O vento
brinca com a chama do candeeiro. Os lábios trêmulos despejam rezas. Conceição,
a dos movimentos quase ensaiados, abre com lentidão o Santuário: afaga a imagem
da Nossa Senhora de Fátima, beija-a. Encosta-a no peito. E sente que, apesar do
frio, o suor está molhando sua testa.
O bordado
descansa na cadeira. O dragão dos olhos de fogo parece se contorcer. A
madrugada de muitos gritos anuncia o homem que chega. Devolve a santa ao seu
lugar e esfrega o terço entre os dedos. Chove mais forte, Nosso Senhor Deus?
Por que chove mais forte?
A luz do
candeeiro quebra-se. As sombras crescem, encolhem-se. As nuvens pesadas engolem
a luz. No mato, só a terra bebendo água, as folhas das árvores gemendo.
Conceição
sabe:
- Ele,
agora, desce do cavalo. Antes de entrar em casa, dará uma olhada no curral.
Ainda hoje viajará para Santo Antônio do Salgueiro.
Borda o
rabo do dragão. Brinca. Torce, retorce. Espera pacientemente pelos urros da
noite. Seus olhos encontram o santuário, pousam no rosto calmo de Nossa Senhora
de Fátima.
- São os
passos dele, sim. Deve estar se dirigindo ao curral.
O corpo
alto, magro, de Conceição, passeia pela casa. Pára em frente ao espelho e as
suas mãos finas, ósseas, longas, tomam o pente que desliza entre seus longos
cabelos negros. Gosta da cor preta e, por isso, seus olhos- fundos, brilhantes
- e seu vestido, são pretos. Depois, irá preparar a mesa. Ele chegará faminto e
cansado. Necessitará recobrar as forças para empreender a viagem.
Simão
Bugre espreme os cabelos ensopados. A água escorre. O corpo forte, de touro,
não acolhe o frio. Expulsa-o. Ainda rasteja. A chuva continua derramando-se,
agitando as árvores, banhando as pedras. A madrugada avança. Volta o trotar
angustioso de “Visageiro”. O mato geme. Existe também a presença das almas
penadas, das incendiárias do inferno e do Cão-Coxo, dos dentes de lâmina,
bebendo sangue dos carneiros mansos.
Simão
Bugre - dizem as bocas matracas - saiu de uma garrafa. Conceição, esposa de
Elesbão, não sabia do mistério do açude. Com a roupa na mão, enxaguada,
descobriu a garrafa no miolo da pedra. Tomou-a entre os dedos finos, ósseos,
brancos. Em suas mãos, ela cabia na medida exata, A cortiça retirada. Um
estampido, um grito, um baque. Simão Bugre saltou pesado, o corpo como um
tronco, as unhas de garras, a galhada rompante. A esposa de Elesbão torceu o
corpo, caiu num baque de assustar as aves.
Nu,
pelado, Simão Bugre dava pulos, fantasiando os gestos. O cheiro de enxofre
substituiu o cheiro brando das árvores. As orelhas sacudiam-se agitadas, os
olhos eram duas brasas chamejantes. Mesurando em frente à mulher, dizia seus
agradecimentos.
- Foi a
velha mãe do Demônio, malvada! Diga-me: a senhora tem algum desejo, algum forte
desejo insaciado?
Não havia
voz para Conceição. O medo, como punhal rasgante, atravessava-se em sua
garganta. Os olhos explodindo no rosto recusavam ver . Insistia Simão Bugre:
- Diga-me:
a senhora tem algum desejo, algum forte desejo insaciado?
Ninguém
ouviu o trotar lento do cavalo de Elesbão aproximando-se. Ele, no entanto, chegava.
Com ódio, viu a mulher conversando com o estranho. Valente, saltou do cavalo,
arrastou a mulher pelos cabelos. Simão Bugre embrenhou-se nos matos.
Quando
descobriu a verdade, prostou-se no arrependimento:
-
Conceição, a vida da gente é assim: um dia o diabo morre, outro corre. Está me
ouvindo?
Simão
Bugre engole, a noite, os pés pretos rompem as pedras, as mãos duras rasgam o
mato, os ouvidos rejeitam o pio da cobras. O corpo molhado brilha. Por um
instante, as nuvens soltam a lua. Os campos mostram-se despidos. Dali, ele vê
as coxas, os seios, o ventre da terra. Estão estendidos, voluptuosos. Levanta a
testa como um tronco. Brinca com o punhal.
Conceição
sai de junto do espelho e pensa:
- Acho que
ele não vai mais viajar, demora-se demais no curral. A janta, faz horas, está
na mesa.
Nosso
Senhor Deus fecha os ouvidos para não ouvir o berro. A porta está no chão,
partida, Conceição, que se aproximava do bordado, escangalha os olhos. Simão
Bugre, o da cara de ferro, astuto guerreiro demoníaco, punhal em punho, rasga
seu ventre. As vísceras saltam, uma baba de sangue preto escorre pelos lábios.
O dragão bordado esturra forte, luta como se saísse das entranhas da mulher. Um
filho não parido. Estende a língua de fogo, lambe a cabeça de Simão Bugre, os
cabelos caem, tostados. Fogo. Fumaça saindo das ventas do animal bordado.
Lutam. Um com o punhal, outro com os mistérios do pano. E um relinchar
estronda, “Visageiro” - o cavalo fantasma, antiga propriedade de Elesbão -
salta, coiceando o ar. Tem os olhinhos apertados, o corpo suado. O cavalo
mostra os dentes: parece sorrir. Ergue as patas, elegante, bonito. O pelo negro
derrama água, suor. O dragão retorce o corpo. Conceição está morta,
ensangüentada, a mão sobre o ventre rasgado. Os animais esturram, a casa treme.
A chuva volta mais forte, o frio rasgando.
A noite
esconde esses mistérios no seu ventre escuro - a pantera negra.
ROMANCE
DO BORDADO E DA PANTERA
Folheto
inspirado num conto de Raimundo Carrero, escrito por Ariano Suassuna e dedicado
àquele, em sinal de estima e admiração.
Desça,
musa allumiosa
do sertão
da minha espera!
Me dê seu
fogo de sangue,
sua faísca
de fera,
para que
eu cante o Romance
do Bordado
e da Pantera!
Meu
folheto foi versado
por um
caso verdadeiro,
contado
por gente ilustre
- que é
Dom Raimundo Carrero -
passado na
sua terra,
Santo
Antônio do Salgueiro.
Morava lá
em Salgueiro,
terra
braba do sertão,
um homem
vaquejador
que se
chamava Elesbão,
casado com
uma mulher
por nome
de Conceição.
Ali, pelas
redondezas,
ele era o
maior vaqueiro.
Seu
cavalo, ruço forte,
era o
maior dos campeiros,
respondendo
pelo nome
valente de
“Visageiro”.
Ele
vaquejava gado,
ela seus
panos bordava.
Ele
campeava o Mato,
ela pr’os
santos rezava.
Se Elesbão
era valente,
Conceição alumiava!
Num certo
dia esquisito,
Conceição
foi ao açude:
ninguém
decifra esse caso
mesmo que
lute e que estude,
pois,
quando a sina decreta,
a sina não
há quem mude!
Ali, ela
lavou roupa,
bateu bem
e enxaguou.
De
repente, numa pedra
muito
estranha reparou.
Chegou
para perto da pedra,
na pedra a
mão descansou!
Houve um
grito, um tiro, um baque,
pois a
pedra se fendeu.
O fogo
voou no mundo,
a terra
toda tremeu,
e um ente,
Simão Bugre,
nu, da
Pedra apareceu!
- “Foi a
velha mãe do diabo!” -
grita a
mulher assustada.
- “Foi a
velha mãe do diabo,
foi ela,
aquela malvada!
Tenha,
aqui, às suas ordens,
minha sina
extraviada!”
Me diga,
minha senhora
que é dona
do descampado,
se é que a
senhora precisa
deste
Bugre, seu criado:
a senhora
tem algum
forte
desejo insaciado? “
Conceição,
apavorada,
olhava sem
querer ver.
Foi nesse
instante do diabo
que
Elesbão sem saber,
montado em
seu “Visageiro”
entendeu
de aparecer.
Vendo a
mulher conversando
com o
homem do esquisito,
partiu
logo para os dois:
ia enfrentar
o maldito.
Este
embrenhou-se nos matos,
dando fumo
e um grande grito!
Ele
arrastou a mulher
pelos
cabelos, puxando.
Mas ela,
toda ferida,
pelas
pedras se arrastando,
contou-lhe
toda a história,
verdadeira
se mostrando.
Ele viu
que fora injusto
com sua
bela mulher.
Disse a
ela, arrependido:
- “Seja
como Deus quiser,
venha a
sina como venha,
venha o
diabo que vier!”
“Assim é a
nossa vida
quando o
mistério se ocorre.
Um dia, o
Demônio para,
um dia, o
Demônio corre,
um dia, o
Demônio vive,
um dia, o Demônio
morre!”
Então,
dali, Elesbão
partiu
para uma viagem,
montado no
“Visageiro”
- cavalo
forte e visagem -
enfrentando
o mundo doido,
sem lhe
faltar a coragem.
Conceição
a seu marido
ficou em
casa esperando.
Então,
enquanto esperava,
ficou um
pano bordando.
Borda tudo
o que já viu
e o que
vai imaginando.
Ela
controla o Bordado
onde um
Dragão vai bordando.
Ele tem o
corpo verde
na prata
do pano branco:
na prata
dos olhos doidos,
língua de
fogo passando!
Mas, na
Serra dos Umãs,
está Simão
Bugre, o cru,
o punhal
alumiando
seu veneno
de Urutu
e as
cartucheiras cruzadas
em cima do
dorso nu.
Rasga a
pele, o próprio peito,
com sua
unha afiada.
Pisa as
coroas-de-frade,
é uma fera
acuada!
Dá um
coice no destino,
leva do
vento a pancada!
O mato velho
se esconde
na noite,
a negra pantera.
O punhal é
um espelho
e Simão
Bugre é a fera.
Vai
emboscar Elesbão,
vai matar
onça de espera!
O Bugre, o
cara-de-pedra,
ouve o
tropel de cavalos.
São
cavaleiros perdidos,
são
cavalos assombrados,
correndo
em busca das tumbas
de onde
estão extraviados.
Ele espera
toda a noite,
naquele
mato entrançado.
Estrelas
pastavam nuvens
no céu
todo alumiado.
Um olho
dele dormia,
o outro
estava acordado!
Esse olho
que dormia
fazia
estranhas visagens
via passar
cavaleiros
em
procuras e viagens,
e via,
pegando fogo,
esquisitas
carruagens!
Quando
bateu meia-noite,
apareceu
Elesbão,
montado no
“Visageiro”,
com sete
rosas na mão.
Simão
Bugre, em cima dele,
saltou,
surgido do chão!
O punhal
por muitas vezes
corta o
corpo corajoso:
o sangue
salta, brilhando,
e ele
volta, ferrujoso.
Do
“Visageiro” se ouvia
o relincho
agonioso!
E
Conceição, inocente,
já quase o
marido vendo!
O dragão,
em seu bordado,
já está se
contorcendo.
- “Que
estrondo é esse, no mundo?
Parece que
está chovendo? “
Já, na
serra, Simão Bugre
mais
acende a vista acesa.
Como
cobra, sobre espinhos,
o torso em
pedra rasteja.
Geme o
mato e ele caminha
em busca
da outra presa!
O mato
queima e estremece,
fogo nas
pedras se cansa.
O trotar
do “Visageiro”
volta e
nunca mais descansa.
O Bugre
enxuga os cabelos
na
madrugada que avança!
Desce, com
ele, a presença
das muitas
almas penadas
do inferno
e do Cão Coxo:
são as
almas condenadas,
dessas de
dentes de lâmina
e bocas
incendiadas!
São
elas que, nos currais,
num
trabalho sem descanso,
cegam
meninos que nascem,
voam no
fogo do avanço,
sangrando
e bebendo o sangue
dos
brancos carneiros mansos
Lá vai o
Bugre, na noite,
na trilha
do desacato,
pés pretos
rompendo as pedras,
no corpo o
suor de gato,
no ouvido,
o piar das cobras,
mãos duras
rasgando o mato!
Conceição
estava em casa,
rezando
junto a um espelho.
De
repente, a porta cai,
o mundo
fica vermelho.
E Deus
tapou os ouvidos
pra não
ver “O Sem Conselho”!
Já se vê
diante dela
o Bugre, o
cara-de-ferro!
O punhal
rasga seu ventre,
o grito,
num grito fero,
o sangue,
no sangue preto,
o ferro no
fero ferro!
E esturra,
forte e queimoso,
o dragão,
lá do bordado!
É filho
não parido,
mas fiado
e recriado!
Estende a
língua de fogo
e salta do
seu reinado!
Lambe a
cabeça do Bugre:
seu cabelo
cai, tostado!
O corpo
verde alumia
mais que o
punhal do danado!
É força na
doida força,
é fogo em
fogo queimado!
Fumaça lhe
sai das ventas
e
pegam-se, os dois, lutando.
Um se vale
do punhal,
com ele se
ensanguentando!
O dragão,
de que se vale,
é dos
mistérios do pano!
E aparece
o “Visageiro”,
no seu
relinchar irado.
Salta,
coiceando o ar,
olhos em
brasa, apertados,
as ventas
soltando fogo,
o corpo em
fogo e suado!
Arreganhando
seus beiços,
mostra os
dentes ao dragão.
O dragão
retorce o corpo
e o corpo
de Conceição,
este com o
ventre rasgado
sustido
por sua mão!
Esturram
os animais,
o mato
estremece e geme!
Em rinchos
e urros danados,
grita quem
teme e não teme!
Treme o
bordado ao perigo,
treme a
terra, a casa treme!
A chuva,
agora, cai forte
na pele da
terra, a fera!
A noite
esconde tudo isso
no ventre
escuro da espera!
A noite, a
tigre malhada,
A noite, a
negra Pantera!
A
MÚSICA ARMORIAL
A respeito
desse assunto, tendo já tratado dele várias vezes, limito-me a transcrever,
aqui, trechos dos artigos que publiquei nos números de 29 de abril a 27 de maio de 1973 do “Jornal da Semana”, do Recife. Neles, reportando-me a vários outros
escritos anteriores, dizia eu o seguinte:
“Já
escrevi uma vez - e repito agora - a respeito do “Quinteto Armorial”, que ele é
a cristalização de idéias que defendemos desde 1946, quando apresentei, no
Teatro Santa Isabel, a “poética” dos cantadores sertanejos, e a viola tocada
por eles, instrumento cujo som, em artigo publicado naquele ano, eu considerava
(sic) “semelhante ao do clavicórdio” e que desejava recuperar para a música de
classe, sonho que só agora vem se tornando possível.
Depois,
nos primeiros momentos da música armorial, isto é, já em 1970, tentei
convencer os músicos que começavam a trabalhar comigo no movimento, a
aproveitar a viola, a rabeca, o pífano e o marimbau... Pessoalmente, eu achava,
como ainda acho, que se poderia tirar excelente partido da aspereza do som da
rabeca ou do pífano, senão em todas, pelo menos em algumas músicas que
tocássemos ou compuséssemos para o movimento
armorial.
Jarbas
Maciel (compositor que, com Guerra Peixe, foi indispensável para o surgimento
da Música Armorial), muito permeável ao gosto da música asiática, apoiava-me
apenas em parte e em certos casos: mas, como músico, achava que, com os
instrumentos populares corria-se o risco da desafinação. Eu, porém, talvez por
não ser músico, era e sou mais atrevido e julgava que as músicas tocadas por
pífano e rabeca - em vez de flauta e violino - adquiriam um caráter primitivo,
áspero e forte, muito mais brasileiro.
Essas
preocupações eram, aliás, antigas, em meu espírito. Em 1950, a pedido de Hermilo
Borba Filho, escrevi para o livro “É de Tororó”, publicado em 1951, um artigo
sobre Capiba. Nesse artigo, eu já fazia uma distinção entre a Música urbana e
afro-brasileira do Nordeste - preocupação fundamental de Villa-Lobos
(modernista) e dos regionalistas - e a música sertaneja, que eu ligava à música indígena, (meio
asiática), a música ibérico-árabe (ou “ibérico-mourisca”, como eu dizia no
artigo), e a gregoriana, tudo contribuindo para ligar a Música sertaneja ao
espírito primitivo e classicizante, “pré-clássico”, digamos assim, dos
“motetos” medievais ou da Música renascentista menos cortesã.
Creio que
esse artigo de 1950 é uma antevisão de toda a Música armorial, na medida em que ela podia ser concebida por uma
pessoa que não é músico, como eu. Por isso, vou transcrever, aqui, o trecho
que, nele, considero importante para o entendimento daquilo que estou
explicando. Explico, ainda, que a terminologia nele usada não é a musical,
motivo pelo qual quando, ali, se fala em “classicismo” não é como referência ao
período chamado “clássico” da Música, mas sim num sentido muito mais geral,
muito mais ligado ao espírito de austeridade, simplicidade, áspera beleza e rigidez
do “temperamento” clássico primitivo.
Capa de um dos discos da Orquestra Armorial. |
Dizia eu,
em 1950: “Nos centros mais populosos do litoral, é difícil observar os
resquícios da Música primitiva. É importante este fato, porque essa Música
primitiva será o futuro ponto de partida para uma Música erudita nordestina,
como se observou atrás. No sertão é fácil, porém, estudá-la, pois ali a
tradição é mais severamente conservada. A Música sertaneja se desenvolve em
torno dos ritmos que a tradição guardou. Não é ela penetrada de influências
externas posteriores ao “período do pastoreio”, continuando como uma
sobrevivência arcaica coletiva que o povo mantém heroicamente.
A música
daquela região é resultado da fusão da Música ibérica com as melodias
primitivas dos indígenas, cujos descendentes mamelucos constituem a quase
totalidade da população sertaneja. A essas duas influências junta-se a do canto
gregoriano, introduzido pelos missionários durante a colonização e que se pode
notar aos primeiros acordes das melodias mais trágicas do sertão - as “excelências”
dos mortos e alguns dos “baiões” que servem ao canto.
As três
influências referidas predispuseram a Música sertaneja para o classicismo; e,
como o homem do sertão é, dentro dos limites de toda esquematização,
interiorizado e severo, o resultado foi a beleza clássica dos “romances”, a
pureza da forma e a profundeza das criações depuradas pela tradição”.
Foi em
1969 que começamos, propriamente e, o trabalho de composição da Música
Armorial... realizado para um Quinteto que fundei e cuja estrutura era baseada
na do “terno” de Mestre Ovídio, composto
de dois pífanos e duas rabecas. O primitivo Quinteto armorial, fundado por mim em 1969, era, portanto, composto de
duas flautas - por causa dos dois pífanos do “terno” - um violino e uma viola-de-arco - por causa
das duas rabecas - e percussão, por causa da “zabumba”.
Nesse
primeiro Quinteto, algumas coisas não me deixavam inteiramente satisfeito. Uma,
era, como já disse, a adoção exclusiva,
nele, de instrumento refinados, com exclusão dos rústicos. Outra, era o uso da
bateria em vez da “zabumba”, para a percussão. E a outra era a ausência da
viola sertaneja, que eu considerava fundamental para a Música com a qual
sonhava desde 1946. Para me consolar desta última falha, Jarbas Maciel e Cussy
de Almeida convocaram, de vez em quando, um violinista. Henrique Annes, que
procurava suprir assim, com o violão, as frustrações que eu sentia pela falta da viola dos cantadores, no
conjunto camerístico.
Outra
coisa que é necessário explicar é que esse fato de partir de temas arcaicos do
povo tinha apenas um caráter “didático” inicial. Era um modo de, digamos assim,
“reeducar” os nossos músicos, encaminhando-os a um despojamento, a uma pureza e
a uma estrutura musical brasileira que os afastassem dos padrões convencionais
europeus.
Mas eu
achava, como ainda acho, que a música
armorial não pode ficar, apenas, nesses desenvolvimentos de temas anônimos do
Povo: e é por isso que eu digo e repito que foi fundamental, para ela, o
aparecimento desse extraordinário jovem músico que é Antônio José Madureira, de
quem voltarei a falar melhor depois. assim, a
princípio, a Música Armorial era composta para um Quinteto... Depois da
fundação da Orquestra (Armorial de Câmara), o trabalho ficou dividido: a Orquestra,
que absorvera inclusive os membros do Quinteto que eu tinha fundado, passou a
se encarregar da execução das músicas.
As
encomendas de partituras continuaram a meu cargo, sendo que eu, inclusive,
continuei a fazer sobre os músicos um trabalho de supervisão, escolhendo o que
achava bom e rejeitando o que me parecia, não digo mau, mas não de acordo com o
que eu sonhava para a Música Armorial... Agora, como eu achava, e ainda acho,
que um Quinteto é fundamental para a música armorial - não só pela pureza da
música camerística - fundei, depois, outro Quinteto, que batizei de Quinteto armorial; é que, entre outubro de 1970
- data do concerto de estréia da Música armorial
- e 26 de novembro de 1971, acontecera um fato que foi da maior importância
para o nosso movimento: eu travara conhecimento com Antônio José Madureira,
jovem músico que iria abrir novas perspectivas para a música armorial...
Vi, logo, que estava tratando com uma pessoa de talento fora do comum.
E, logo
ali, comecei a conversar com ele a respeito dos meus desejos de fundar um novo
Quinteto para a Música armorial.
Em pouco tempo, estávamos tratando da organização do grupo. Agora, porém, com
uma vantagem: Antônio José Madureira dispunha-se a aprender a técnica da viola
sertaneja, para incluirmos esse belo instrumento no Quinteto. Mandamos buscar,
no interior, dois cantadores... Os
dois, juntos, tocaram viola para Antônio José Madureira ouvir... Em poucos dias, Madureira já
conseguia, na viola, o mesmo rendimento que conseguira no violão e, o que era
melhor, estava entusiasmado com o instrumento.
A esse
tempo, ele já era meu aluno de Estética na Escola de Artes. Convocou outro
aluno meu, Edilson Eulálio, estudante de violão, e mais outro aluno do curso
de Música, este de violino, Antônio Carlos Nóbrega de Almeida, e assim, (?) o novo Quinteto Armorial: Antônio José
Madureira na viola sertaneja; Edilson Eulálio no violão; Antônio Carlos Nóbrega
de Almeida no violino; e dois remanescentes do Quinteto primitivo: Jarbas
Maciel, na viola-de-arco, e José Tavares de Amorim na flauta.
Para esse
grupo, Antônio José Madureira começou a compor músicas suas e a adaptar outras,
de maneira a iniciarmos o trabalho. Note-se bem que digo “iniciarmos”: é que eu
estava bem consciente de que estávamos ainda tateando, em busca do caminho
novo, como, aliás, declarei no programa do concerto de estréia, ao afirmar:
“Estamos, ainda , na fase experimental”... A programação do concerto de estréia (que foi dedicado a Capiba, integrante, com
muita honra para nós, do movimento
armorial) constava de três
partes: a primeira, constituída de Música barroca européia; a segunda, de
música barroca nordestina; e a terceira , de música
armorial.
A esse
respeito, preciso, aliás, esclarecer um ponto que me parece fundamental. Quando
eu falo na importância, para a arte armorial, da arte barroca, é pensando,
principalmente no barroco ibérico, muito mais aproximado do espírito medieval e
pré-renascentista do que, por exemplo, da arte do século XVIII europeu,
cronologicamente, um dramaturgo como Gil Vicente pertence ao barroco, mas, de
fato, seu teatro é muito mais ligado ao teatro medieval popular.
Da mesma
forma , na Música, os “cantares” do romanceiro ibérico, e as músicas que os acompanham, são muito mais
ligadas ao espírito dos “motetos” medievais, isto apesar de, cronologicamente,
grande parte dos “romances” pertencer, já ao período barroco. Assim, quando falo
na importância para a música armorial, dos “cantares” que nos vieram
para cá nos séculos XVI, XVII e XVIII, é pensando em algo muito mais áspero e
primitivo do que a música de Mozart... Na exposição, organizada na galeria hoje
existente no corredor lateral da Igreja do Rosário dos Pretos, mostravam-se
trabalhos de pintura, escultura em madeira, cerâmica, desenho e tapeçaria.
Dela
faziam parte Francisco Brennand, Gilvan Samico, Aluízio Braga, Maria da
Conceição Brennand Guerra, Daniel, Fernando Lopes da Paz, Miguel dos Santos e
Lourdes Magalhães. No programa-catálogo, eu escrevia, a respeito daquela arte e
da música: “Ë a preocupação com uma arte armorial brasileira de raízes
populares, mas procurando atingir, pelo nacional, a grande categoria que
universaliza a arte e a literatura”. Imediatamente após a
estréia, porém, recomeçamos o trabalho, procurando ampliar e aprofundar suas
repercussões.
Como já
disse, eu considerava da maior importância para o movimento armorial
o uso de instrumentos rústicos do povo o que, na minha opinião, influiria de
maneira essencial em nossa composição. A viola-sertaneja já estava introduzida,
acompanhada pela guitarra-ibérica, como “baixo”. O pífano e a rabeca estavam
mais ou menos presentes, através da flauta e do violino.
Mas, eu,
há muito tempo desejava introduzir , no conjunto camerístico, um instrumento
usado pelo povo nordestino, o “berimbau-de-lata”, assim chamado para se
distinguir do “berimbau bahiano”. Consiste o “berimbau-de-lata” num arame,
pregado a uma tábua e esticado por cima de duas latas, que servem, ao mesmo
tempo, de cavalete para o arame, e de caixa de ressonância. Andei lendo os
livros brasileiros do século XIX, e descobri que o nome original do instrumento
era “marimbau”, sendo “berimbau”, talvez, corruptela desse nome mais antigo.
Adotei,
então, o nome original, para distinguir nosso “marimbau nordestino” do
“berimbau bahiano”: e, com ele, entrou para o conjunto, agora restabelecido em
sua forma primitiva de Quinteto, Fernando Torres Barbosa, meu antigo aluno de
estética e pessoa por intermédio de quem eu conhecera Antônio José Madureira.
Na sua composição nova, o Quinteto Armorial estreou “intra-muros”, no instituto
de Filosofia e Ciências Humanas (da UFPe)
em junho de 1972... Eu escrevia no programa: “Quando, há dois anos,
começamos o movimento da música armorial, quem falava em música brasileira, era
apedrejado, e quem falava em música nordestina era crucificado.
Agora,
graças ao trabalho da Orquestra armorial
de câmera e do Quinteto armorial
- ambos seguindo o programa de trabalho traçado na Universidade Federal de
Pernambuco - o ambiente mudo inteiramente. Inspirado na estrutura do nosso
Quinteto armorial, fundou-se, por
exemplo o Quinteto violado, que, no campo da música popular comercial está
fazendo sucesso, e de qualquer forma, ajudando o nosso trabalho de valorizar a
música brasileira e nordestina.
Outras
adesões estão vindo, às vezes de gente que era inteiramente contrária às nossas
posições, o que muito nos honra, pois mostra a força de que está, aos poucos,
se tornando consciente a cultura brasileira”.
Como se vê, havia , aí, uma alusão direta aos “cabeludos” da guitarra
elétrica que, naquele tempo, estavam em moda. Diziam eles que “o Brasil era um país
subdesenvolvido” e que, portanto, “sua arte era, também, necessariamente
subdesenvolvida”.
Só havia
um caminho para sairmos desse “subdesenvolvimento cultural”: era o de
“adotarmos o progresso e a técnica das artes dos países desenvolvidos”,
aderindo às formas eletrônicas da música “de vanguarda”. Contrariamente a esse
ponto de vista, eu sustentava, e ainda sustento: primeiro, que a arte não
depende de subdesenvolvimentos ou desenvolvimentismos; um país pode ser rico e
poderoso, como os Estados Unidos, e ter uma cultura inferior à da Índia, país
pobre. Depois, a noção de “progresso”, vale para a tecnologia, mas não para a arte e a literatura.
E mostrava
um caos recente: o da música hindu, influenciando toda aquela música inglesa
que, baseada na música americana popular e na música indiana de Ravi-Shankar,
estava causando tanto barulho no mundo. Inclusive entre os cabeludos
brasileiros da “guitarra elétrica”, que chamavam a música inglesa assim surgida
de “universal” e queriam que nós a imitássemos aqui.
Finalmente
eu dizia a esse pessoal: “Notem que a Europa está tão esgotada, que os jovens
músicos ingleses tiveram que imitar a música “exótica” de um país asiático para
tentar algo novo”... É por isso que, no programa do concerto realizado pelo
Quinteto a 29 de novembro de 1972, eu escrevia: “A grande vantagem do Quinteto armorial é que, enquanto os demais
grupos, em sua maioria, têm que se valer das músicas alheias - músicas às vezes
interessantes, como “Asa Branca”, mas que já faziam sucesso na década de 50 e
que, às vezes, são meio falsificadas na linha comercial - nós contamos com
compositores que já estão dando o que falar no campo da Música brasileira
erudita de raízes nacionais e populares.
É gente
como Antônio José Madureira, Antônio Carlos Nóbrega de Almeida e Jarbas Maciel,
isto é, gente que não se limita a repetir, mas leva adiante, aprofundando-as, e
numa linha diferente, as experiências de Nepomuceno, Villa-Lobos, Camargo
Guarnieri e outros. Foram os compositores armoriais que revalorizaram a flauta,
a viola sertaneja, a rabeca, o violão e o marimbau-nordestino, estranho e belo instrumento, de som áspero e monocórdio,
lembrando os instrumentos hindus ou árabes, estes últimos de presença tão
marcante no Nordeste, por causa da nossa herança ibérica.
Nós, do
Quinteto Armorial, podíamos ter partido na busca do fácil sucesso popular, tocando,
à nossa maneira, “baiões” comerciais e músicas já conhecidas do grande público.
Não o quisemos. Preferimos fazer duas coisas ao mesmo tempo: primeiro, criar
ambiente para a Música popular nordestina, que estava tão escarnecida e que,
agora, tem tantos entusiastas.
Mas, para
nós mesmos, reservamos a tarefa mais dura, mais ingrata e mais séria: a procura
de uma composição nordestina, de uma música erudita brasileira de raízes
populares, de um “som” brasileiro, num conjunto de câmera apto a tocar a música
européia (principalmente a mais antiga, tão importante para nós, brasileiros),
mas também a expressar o que a Cultura
brasileira tem de extra-europeu”. Mas tudo o que venho dizendo até aqui foi
escrito apenas para anunciar o fato mais importante de todos: é que o Quinteto armorial inicia, somente agora, a sua
fase realmente mais livre, mais criadora e mais fecunda.
José
Tavares de Amorim teve que sair dele, por causa de suas inúmeras obrigações de
músico profissional. Em seu lugar, entrou para o Quinteto um estudante
alagoano, que pretende ser engenheiro, mas que é coisa muito mais importante:
sabe tocar pífano como ninguém! Isso possibilitou a Antônio José Madureira, a
Antônio Carlos Nóbrega de Almeida - assim como a Capiba e a Jarbas Maciel - uma
criação mais brasileira na música, principalmente porque conseguimos, também para o grupo uma autêntica rabeca, que
Antônio Carlos Nóbrega de Almeida ajeitou e que está alternando com o violino:
assim como o alagoano, cujo nome é Egildo Vieira, alterna a flauta com o
pífano, que é usado ou não, de acordo com o espírito da música a tocar.
Para
concluir: quando comecei o Movimento Armorial, eu tinha, como teórico, uma
porção de coisas a ensinar aos músicos. Hoje, o Quinteto Armorial está
completamente liberto, inclusive de minhas sugestões tateantes e puramente
intuitivas: e, com Antônio José Madureira à frente, o Quinteto parte agora para
realizar aquilo que, a meu ver, é o trabalho mais importante da Música
brasileira em todos os tempos”.
CONCLUSÃO
De modo
que, da maneira como me foi possível exprimir, aí está um resumo de nossos
sonhos, de nossas realizações, de nossas frustrações, de nossos fracassos, às
vezes de nossas pretensões. Por um lado, estamos conscientes de que a arte armorial,
partindo das raízes populares da nossa cultura, não pode nem deve se limitar a
repeti-las; tem de recriá-las e transformá-las de acordo com o temperamento e o
universo particular de cada um de nós.
Por outro
lado, temos consciência de que, se conseguirmos expressar o que é nosso com a
qualidade artística necessária, estaremos seguindo o único caminho capaz de
levar à verdadeira arte universal, - aquela que, partindo do nacional, se
universaliza pela boa qualidade. No movimento
armorial, como não podia deixar
de ser, existem artistas que, por suas próprias qualidades, realizam isso
melhor; outros, menos dotados, têm, entretanto, seu papel assegurado dentro do
Movimento, pois, em arte, não existe lugar, apenas, para o artista superior,
que é caso raro. Estamos conscientes ainda de que, sendo fiéis ao Nordeste e ao
Brasil, estamos sendo fiéis, também, à América Latina inteira, assim como à
Etiópia ou à Índia, tão semelhantes à nós.
É por isso
que, em todo o nosso trabalho, tanto insistimos nessas raízes e nesse parentesco.
Fazemos isso não porque reneguemos o que o Brasil tem de europeu, ou, mais
precisamente, de mediterrâneo e ibérico: mas sim porque estamos convencidos de
que somente fortalecendo aquele tronco cultural acima referido é que qualquer
coisa que nos venha de fora passa a ser, em vez de uma influência que nos
esmaga ou nos maçônica num cosmopolitismo achatador e monótono, uma
incorporação que nos enriquece.
O
Movimento Armorial passará, um dia, como é da natureza de qualquer movimento.
Isso demorará, porém, porque, como ficou demonstrado por estas palavras,
estamos, ainda, em plena atuação e com muitas áreas de realização a preencher.
Mas, mesmo quando ele se extinguir como Movimento, ficarão as obras armoriais que tiverem qualidade para
resistir ao tempo e ficará sua influência, seu rastro na cultura brasileira.
A Escola
do Recife durou dos fins do século XIX até os começos do século XX,
somente. Mas “Os sertões” de Euclydes da Cunha e a “História da Literatura Brasileira” de
Sylvio Romero perduraram, assim como permanece ainda hoje a influência da
Escola, da qual, direta ou indiretamente, brotaram essas duas obras: prova
disso é o próprio Movimento Armorial que se considera, entre outras coisas, uma
continuação da Escola do Recife, ou, mais precisamente, dessa grande Escola
Nordestina que, há tanto tempo, vem se preocupando com a criação de uma arte, de uma Literatura, de um
pensamento brasileiro, que nos sirva, ao mesmo tempo, de meio de expressão às
nossas características e de ligação e identificação com o mundo em geral e com
a América Latina em particular.
As
correntes mais “estrangeiras” e “cosmopolitas” querem obrigar os brasileiros a
se envergonharem de suas peculiaridades, de suas singularidades. Só o povo é
que mantém, até os dias de hoje, essas características brasileiras, que nós,
atualmente, procuramos defender e recriar, contra a corrente “europeizante e
cosmopolita”, o que fazemos procurando ligar nosso trabalho de escritores e
artistas criadores à Arte, à Literatura e aos Espetáculos populares.
Nenhum de
nós pretende ser “primitivo”: o que procuramos é mergulhar nessa fonte
inesgotável, em busca das raízes, para unir nosso trabalho aos anseios e ao
espírito do nosso povo, fazendo nosso sangue pulsar em consonância com o dele e
revigorando nosso pulso ao contacto com aquilo que tais artes e espetáculos têm
de festa - entendida no sentido Latino-americano de celebração e sagração
dionisíaca do Mundo.
Recife, 22
de março de 1974
Ariano
Suassuna
LINKS:
Obras de Gilvan Samico
Oficina Brennand
Instituto Ricardo Brennand
Orquestra Armorial Chamada - 1975
Quinteto Armorial - Do Romance ao Galope Nordestino (1974) - Completo
Obras de Gilvan Samico
Oficina Brennand
Instituto Ricardo Brennand
Orquestra Armorial Chamada - 1975
Quinteto Armorial - Do Romance ao Galope Nordestino (1974) - Completo