quinta-feira, 19 de maio de 2016

O Movimento Armorial

 O MOVIMENTO ARMORIAL


À GUISA DE APRESENTAÇÃO

A valorização da cultura popular do Nordeste brasileiro, buscando-se fixar em os seus vastos campos - da literatura de cordel à música, da cerâmica à escultura, da gravura à tapeçaria, da pintura aos espetáculos de rua, entre outros aspectos - a sua valiosa contribuição como expressão do pensamento nacional, há de ser, sem dúvida, encargo das universidades regionais. Nessa tarefa tem-se que perquirir as origens de nossa cultura, respeitando sua forma pura e simples de apresentação, e procurando encontrar, como bem diz SUASSUNA, uma arte e uma literatura eruditas nacionais, com base em suas raízes populares.

Esse é o objetivo do Movimento Armorial, inspirado e dirigido por ARIANO SUASSUNA, contando com a valorosa contribuição e decidida cooperação de uma plêiade de artistas e escritores, lídimos expoentes de nossa cultura, e, sobretudo, de representantes de nossa elite estudantil.

Dramaturgo, poeta, ensaísta, escritor, professor, funcionário público e ativista cultural brasileiro.
Muito se tem dito sobre a obra de ARIANO SUASSUNA. Tem-se realçado o seu estilo de escritor e sua técnica de teatrólogo. Mas, de sua obra, confesso, não sei se maior expressão tem o seu AUTO DA COMPADECIDA, com seu personagem singular que é o JOÃO GRILO, ou a sua PEDRA DO REINO, ou tantas outras produções literárias e artísticas. Ainda me inclino a admitir que o Movimento Armorial é a expressão maior de sua atividade, porque nele se integram e se completam o homem e a obra.

Pode SUASSUNA afirmar, ou continuar a dizer, que sua PEDRA DO REINO merece sua indisfarçável preferência, ou a FARSA DA BOA PREGUIÇA é sua peça predileta, porque eu continuarei a crer que sua verdadeira preferência, como ação e como sentimento, é dada ao Movimento Armorial.

E um movimento como esse, por sua magnitude, transcende, por assim dizer, os campos da física, na concepção positivista do tempo como forma de existência da matéria, e se projeta, decisivamente, no processo do futuro, no tempo infinito, como aliás tem ocorrido com outros movimentos nordestinos.

Apresentação de 
Marinalva Vilar de Lima


O MOVIMENTO ARMORIAL

Pode-se dizer que a Arte Armorial precedeu o Movimento Armorial, ao contrário daquilo que normalmente acontece nesses casos. De fato, o trabalho criador da maioria dos artistas armoriais começou muito antes do lançamento oficial do Movimento. Por outro lado, este ainda está em plena atuação, de modo que, em algumas áreas artísticas ou literárias - como o cinema, o teatro ou a arquitetura, por exemplo - está apenas esboçado ou planejado, formulado teoricamente, à espera de uma realização efetiva. Todos os participantes do movimento armorial estão de acordo num ponto: em arte, a criação é mais importante do que a teoria. É por isso que, até agora, tratamos mais de criar um mínimo de base teórica, e é essa base teórica que apresentamos aqui agora, reunindo pela primeira vez, de maneira sistemática e organizada - se bem que resumida - definições e posições tomadas em ocasiões diversas.

Tratemos, pois, em primeiro lugar, de apresentar uma definição geral, que abranja o Movimento Armorial inteiro. Ela foi proposta no “jornal da Semana” do Recife, em 20 de maio de 1973, nos seguintes termos:
Exemplo da arte armorial. Gravura feita para ilustrar o romance de Ariano Suassuna, o Romance da Pedra do Reino (1971). 
O “folheto” da nossa Literatura de Cordel pode, realmente, servir-nos de bandeira, porque reúne três caminhos: um, para a Literatura, o Cinema e o Teatro, através da poesia narrativa de seus versos; outro, para as artes plásticas como a gravura, a Pintura, a escultura, a talha, a cerâmica ou a tapeçaria, através dos entalhes feitos em casca-de-cajá para as xilogravuras que ilustram as capas; e finalmente um terceiro caminho para a música, através das “solfas” e “ponteados” que acompanham ou constituem seus “cantares”, o canto de seus versos e estrofes.

O NOME “ARMORIAL”

Existindo, já, a arte armorial, pode-se dizer, porém, que ela só foi reunida de maneira deliberada e consciente depois que se tornou o principal elemento dinamizador dos trabalhos do Departamento de Extensão Cultural da Universidade Federal de Pernambuco. No dia 18 de outubro de 1970, realizaram-se, na igreja de São Pedro dos Clérigos, do Recife, um concerto e uma exposição de Artes plásticas, para cujo programa escrevi as seguintes palavras:


O movimento armorial pretende realizar uma Arte brasileira erudita a partir das raízes populares da nossa cultura. Por isso, algumas pessoas estranham, às vezes, que tenhamos adotado o nome “armorial” para denominá-lo. Acontece que, sendo “armorial” o conjunto de insígnias, brasões, estandartes e bandeiras de um povo, no Brasil a Heráldica é uma arte muito mais popular do que qualquer outra coisa. Assim, o nome que adotamos significava, muito bem, que nós desejávamos ligar-nos a essas heráldicas raízes da cultura popular brasileira. E tanto assim era, que, convencendo as pessoas que (?) de criar, dizíamos naquele mesmo programa de 1970:


Nem sempre as pessoas que participam das exposições de arte Armorial ou que trabalham para o Departamento de Extensão Cultural da UFPe são artistas oficialmente armoriais, integrantes efetivos do Movimento Armorial. No entanto, foi refletindo sobre as características comuns do trabalho de uma porção de gente que se formulou - se se pode falar assim - a teoria da Pintura Armorial. Naquele mesmo programa-catálogo de 1970, falando sobre a pintura de Francisco Brennand, dizíamos algumas palavras que são fundamentais para o entendimento da pintura armorial. Eram as seguintes:

O Olho de Deus. Óleo sobre tela, 110 x 145 cm, Francisco Brennand, 1980?
Miguel dos Santos participou da segunda exposição de arte armorial, realizada na Igreja do Rosário dos Pretos, em 26 de novembro de 1971. A seu respeito, escrevi, depois, as seguintes palavras, publicadas no “jornal da Semana” de 14 de Janeiro de 1973:


De outra vez, escrevendo sobre um pintor armorial, Aluízio Braga, eu lembrava, a respeito desse ex-operário que, no Movimento Armorial,  quando falávamos em “ouro”,  “prata” ou  “pedras preciosas”, estávamos fazendo referência era aos vidrilhos, lantejoulas e metais baratos que o povo usa para enfeitar suas roupagens principescas, nos “autos guerreiros”,  por exemplo.

Eu dizia que esses metais populares, apesar de baratos, eram mais valiosos do que os “verdadeiros” usados pelos ricos, porque continham uma quantidade maior de sonho humano. E dizia que Aluízio Braga, ao pintar seus quadros minúsculos, bordados, esmaltados e cheios de joiarias que parecem reencontrar o espírito das “miniaturas” persas ou hindus, estava fazendo o mesmo que os atores de “autos de guerreiros” ou “caboclos de lança”: criando motivos de sonho e abrindo portas de grandeza para nosso povo.

Ainda a propósito de outra pintora integrante do Movimento, Lourdes Magalhães, escrevi as seguintes palavras, necessárias à compreensão da pintura armorial:

Mas como, ainda assim, reclamassem que, depois de tantas exposições, ninguém sabia ainda, por falta de uma definição, o que era um quadro armorial, escrevi, em 11 de dezembro de 1973, a propósito da primeira exposição de Geber Accioly, as seguintes palavras:


E se acrescentarmos que tudo isso aí reunido se encontra também nos quadros pintados sobre madeira do grande Gilvan Samico, teremos uma idéia bastante completa da pintura Armorial.

Três mulheres e a lua. Gilvan Samico, xilogravura, 26,5 x 27,3 cm. 1959.
A ESCULTURA ARMORIAL

Da escultura armorial, o melhor que podemos dizer é que ela origina, diretamente, dos entalhes das xilogravuras dos “folhetos”, da tradição da escultura em madeira dos “santeiros” e “imaginários”, e das esculturas em pedra do barroco “primitivizado” do Nordeste. O trabalho do escultor armorial Fernando Lopes da Paz parte de tudo isso. Tem um espírito apocalíptico, que lhe vem, ao mesmo tempo, da tradição da Literatura de Cordel, da leitura dos livros proféticos judaicos e do contacto com os escritores e poetas armoriais.

Fernando Lopes da Paz é um homem do povo e traz em suas veias essa forte seiva do sangue nacional brasileiro. Eu, há muito tempo não me conformava com o fato de a escultura, no Nordeste, vir sendo feita, quase que somente, em gesso e metal. Achava, como ainda acho, que os grandes momentos da escultura em todo o mundo coincidem com o emprego da madeira e da pedra, e foi nesse sentido que fiz um apelo a Fernando Lopes  da Paz para que voltasse a empregar esses materiais. Ainda não pudemos iniciar os trabalhos em pedra.

Mas já iniciamos o de madeira, em talhas enormes como “A luta da besta Bruzaçã com o anjo”, ou em gigantescas esculturas como o “Cristo Armorial”, esculpido num só bloco de jaqueira com cerca de 2 metros de altura.

A CERÂMICA E A TAPEÇARIA ARMORIAIS

No movimento armorial ainda não encontramos um artista que se queira dedicar à procura de uma cerâmica como a que sonhamos. Nem criamos as condições de trabalho para aquele que porventura apareça - pois seria artificial fazer um forno e esperar pelo artista - nem encontramos um jovem ceramista que, com preocupações semelhantes às nossas, passe a pesquisar e criar nesse campo. Ainda assim, o trabalho de Francisco Brennand e o de Miguel dos Santos já deixam ver, perfeitamente, a beleza e a importância do que se pode fazer nesse campo. Temos uma tradição popular muito forte, de ceramistas e louceiros. Murais como “A batalha dos Guararapes”, de Brennand, ou pratos e placas como a Besta Bruzaçã” de Miguel dos Santos, são obras de importância fundamental para a arte brasileira.

Trehco de A Batalha dos Guarapares. Francisco Brennand, 1960-61. O mural possui 2,30 x 32,5 m. Bairro de São José, Recife.
Ambos esses artistas, também, realizam santos ou animais modelados em barro, que vão ao forno como os santos feitos em Caruaru ou Tracunhaém pelos artesãos populares, e que, em alta temperatura, adquirem aquela cor metalizada e forte que dá a maior nobreza a essa bela arte que é a cerâmica.

Quanto à Tapeçaria, contamos, no Movimento Armorial, com o extraordinário trabalho de Maria da Conceição Brennand Guerra. Filha de Francisco Brennand - que também faz tapetes - segue, no entanto, uma linha personalíssima, original, diferente e forte. No Movimento Armorial, estamos perfeitamente conscientes da unidade cultural de toda a América Latina, e, mais, do parentesco cultural que nos une à arte hindu, à etíope etc.

Isso não significa que preguemos nenhuma uniformidade cultural monótona; pelo contrário: fazemos questão de preservar as peculiaridades nacionais e a independência individual de cada artista. Neste sentido podemos dizer que as onças, as cobras ou os animais alados e míticos de que Maria da Conceição Brennand Guerra povoa seus grandes tapetes, são ligados, ao mesmo tempo, a uma arte popular ainda viva e atuante no Nordeste - como as xilogravuras das capas dos folhetos - e, ao mesmo tempo, ao espírito e às formas da arte desses estranhos impérios latino-americanos que permanecem dentro de nosso sangue da mesma maneira como foram sepultados em nosso chão, para serem desencavados e ressuscitados a cada instante, não pelo trabalho frio dos arqueólogos, mas pela revisão criadora dos nossos escritores e artistas.

É como se toda essa enigmática cultura latino-Americana antiga fosse uma só: florescendo entre os Aztecas ou incas, teria decaído noutros lugares; mas têm, todas, ao que parece, uma origem única. No século XX, nós, brasileiros, mexicanos, uruguaios, colombianos, peruanos, paraguaios, bolivianos, etc., tivemos, de repente, a consciência de que esses Reinos estranhos estavam fundamente entranhados em nosso sangue, e as tapeçarias de Conceição Brennand Guerra, assim como as novelas latino-americanas, parecem sair desse chão, desse húmus, dessa poderosa terra, ao mesmo tempo familiar e estranha que é a nossa e à qual somo fiéis, talvez mesmo sem o pressentir direito.

A GRAVURA ARMORIAL

A gravura armorial identifica-se com esse grande artista que é Gilvan Samico. No Movimento Armorial não existem mestres nem discípulos: existem companheiros de trabalho que, descobrindo entre si preocupações semelhantes, passaram a se estimular mutuamente com seu trabalho criador. Certa vez, Dom Miguel de Unamuno declarou que ”não era discípulo deste ou daquele porque era discípulo de todos”. Glosando a meu modo a frase de Unamuno, escrevi, a propósito de Samico, umas palavras que, depois, estendi a todos nós, como um dos pontos fundamentais do nosso programa de trabalho: “Aluno de todo mundo e da vida, mas, por isso mesmo, único mestre de si mesmo e discípulo de ninguém”. Para dar uma idéia do que seja a gravura armorial de Gilvan Samico, transcrevo parte do artigo que escrevi sobre ele e que publiquei no “Diário de Pernambuco” de 1o de novembro de 1964:

Tais palavras são suficientes para se dar uma idéia também da pintura que Gilvan Samico vem fazendo a partir de 1971, tão grande e importante quanto sua extraordinária gravura e que, portanto, revela mais um aspecto do gênio desse artista, que é orgulho do Movimento Armorial.

O TEATRO, O CINEMA E A DANÇA ARMORIAIS

Para ser exato, devo dizer que, dessas três artes, foi somente quanto ao teatro, e um pouco quanto ao cinema, que o movimento armorial apresentou alguma coisa, até agora. Mas pode-se dizer, também, que as idéias gerais e os trabalhos já apresentados no campo do teatro e do cinema valem também, devidamente adaptados, para a dança armorial com a qual sonhamos e que ainda viremos a realizar um dia, se tivermos condições para isso.

Nosso teatro armorial tem seus pontos de vista formados e próprios: Não digo que sejam os únicos certos, os único válidos. Mas, discordando, nisso, mesmo de alguns amigos e velhos companheiros de trabalho, não conhecia - nem as aceito, agora que as conheço - as formulações teóricas do teatro sectário de Bertolt Brecht e de seus seguidores latino-americanos de segunda-mão. A fórmula brechtiana começou investindo conta o “ilusionismo teatral” e está destruindo “a ilusão e a encantação do teatro”, coisas fundamentais para essa arte.

Sem elas, o teatro não vive, fenecendo e afastando-se do humano, pelo intelectualismo cerebral, frio, discutidor, exclusivamente crítico e ideológico. Meus fundamentos de criação eram e continuam a ser muito diferentes das estreitas fórmulas brechtianas. Não aceito o “distanciamento” brechtiano (aliás originado de Claudel e Yeats ), fórmula crítica, política, estreitamente sectária e ideológica. Não aceito a fragmentação exagerada da ação, pois nisso, como no uso do poético e do maravilhoso, dos tipos, dos cantos, das danças, das máscaras, sou herdeiro é do teatro antigo, assim como, principalmente, dos espetáculos nordestinos. Mantenho a distinção entre Epopéia e teatro.

Por outro lado, não me interessam nem o Drama psicológico e burguês, nem o Drama politizado do teatro sectário. Sempre preferi a tragédia e a Comédia, formas mais preferidas pelo povo, mais próximas do espírito do nosso romanceiro. Pode-se dizer, portanto, que, assim como a gravura armorial parte das xilogravuras populares dos folhetos, o teatro armorial parte dos romances, das histórias trágicas ou picarescas da Literatura de Cordel, assim como dos espetáculos populares do nordeste, e tem, no campo da arte erudita, um espírito muito semelhante ao deles.


Como se vê era o desejo de um espetáculo total brasileiro, no qual se usassem as máscaras, o canto, a música, a dança, as roupagens imaginosas dos espetáculos populares nordestinos. Eu queria que o teatro, o cinema e a dança brasileira se identificassem com o espírito e a forma desses espetáculos, do mesmo modo pelo qual, no Japão, o cinema bebia nas fontes de seu teatro nacional... O “nô” e o “kabuki”. É claro que não pretendia que imitássemos o cinema e o teatro japoneses. O que eu queria era que nós fizéssemos, em relação a nosso cinema, nosso teatro o mesmo que os cineastas japoneses tinham feito em relação ao filme de “Samurai”, aproximando o cinema de sua pátria das duas formas principais de seu teatro nacional e popular.

E tanto eram essas minhas preocupações, que, em 4 de agosto daquele mesmo ano de 1963, no mesmo “jornal do Comércio” do Recife, eu publicava outro artigo, este mais especialmente sobre cinema, do qual assinalo as seguintes palavras:
Já se entende, então, que não era apenas uma frase ou uma simples brincadeira a afirmativa que eu faria depois, quando da estréia do filme “A compadecida”, dizendo que, na minha opinião, um filme para ser bom tinha que ter quatro elementos fundamentais - além de outros, acessórios: mulher, punhal, cavalo e bandeira. Era uma maneira de fazer o público comum entender que, para mim, trágico ou cômico, um filme tinha que ser marcado pelo elemento épico, festivo e espetacular do teatro popular nordestino - do “Auto de Guerreiros” ao “Fandango”, do “Mamulengo” ao “Bumba- meu-boi”.

Quanto à dança, em 1959, tentei, juntamente com Ana Regina - uma das professoras de balé do Recife naquele ano - realizar uma dança erudita nordestina baseada em raízes populares. Escrevi uma história intitulada “os medalhões” para uma música de Guerra Peixe, e o espetáculo foi encenado no teatro Santa Isabel, pelas alunas da referida professora, nos dias 6, 7 e 8 de novembro daquele ano com Eliane Isis Vieira, Elvira Amorim e Sílvia Suassuna nos papéis principais.

Mas, para que se atingisse o que realmente era necessário, faltava muita coisa a ele: de modo que a Dança armorial, por enquanto, é apenas uma aspiração nossa, sonhada nas mesmas linhas mestras acima apontadas para o teatro e o cinema, à espera de coreógrafos e dançarinos com preocupações semelhantes às nossas e com suficiente espírito criador para “esquecer” o que aprenderam errado, ver o que o nosso povo faz em matéria de dança e recriar tudo num sentido mais alto e mais profundo.

Fotografia do espetáculo Abô, do Grupo Grial de Dança, de vertente do movimento armorial, em apresentação no Recife, no ano de 2015. 
Não esquecer que o Brasil é hoje, talvez, no mundo, o único país capaz de mobilizar, num espetáculo só - o carnaval popular - milhares de figurantes, numa dança que não foi encarada até agora com a importância que merece, pois parece que só teve coisa parecida no mundo mediterrâneo, com os jogos e espetáculos gregos antigos.

A ARQUITETURA ARMORIAL

Em 26 de agosto de 1961, na Faculdade de Filosofia do Recife, li um ensaio que escrevera sobre a Arte brasileira, numa espécie de conferência, depois repetida na Faculdade de Arquitetura. Nesse ensaio, manifestava minha insatisfação com a Arquitetura brasileira atual, nos seguintes termos:


Bem, esses eram meus sonhos em 1961. E, ainda hoje, o Movimento armorial espera, em vão, que apareça o jovem arquiteto que, a seu modo, reinvente o que está aí, balbuciado em termos literários, por alguém que é apenas escritor e que, portanto, está perfeitamente disposto a abandonar seus sonhos por outro qualquer, mais eficaz, mais forte e mais formulado nos termos da própria arte que os despertou - a arquitetura.

A LITERATURA ARMORIAL

No Movimento Armorial há poetas que são armoriais mais por serem “emblemáticos” como é o caso de Deborah Brennand, e outros que se ligam mais diretamente ao espírito e à forma do Romanceiro popular Nordestino. A poesia de Ângelo Monteiro seria uma espécie de ponte de ligação entre a poesia aristocrática e emblemática de Deborah Brennand e a de Janice Japiassu e Marcus Accioly (o de “Nordestinados”), estas últimas mais diretamente ligadas à literatura de cordel. No “poema do sertão”, de Deborah Brennand, o espírito armorial é visível em bandeiras e estandartes, imagens emblemáticas e heráldico-populares, recriadas num espírito meio épico que poderíamos comparar a essa Arquitetura violenta, recortada e cheia de cores quentes de que acabamos de falar. É o seguinte:

Recordo, mais uma vez, que os “brasões” e “medalhas” de que se fala aqui são evocativos dos vidrilhos e lantejoulas populares. E, explicado isso, passo a dizer que Ângelo Monteiro, em seu livro “Armorial de um caçador de Nuvens”. Usa, numa “linha aristocrática e refinada, a sextilha” característica de Cantadores e autores de folhetos do Nordeste. É o caso do poema que transcrevo aqui, uma das ”Cantigas de fingimento” incluídas naquele livro:


Mas Ângelo Monteiro usa - como, aliás, também eu e Marcus Accioly - outras formas poéticas ligadas ao Romanceiro, como, por exemplo, o “galope-à-beira-mar”.

Janice Japiassu, às vezes emprega o romance monorrimado, que herdamos da Península Ibérica, mas que hoje, apesar de não muito freqüentemente, ainda se usa no Sertão. Outras vezes, usa também a mesma “sextilha” dos cantadores, como neste seu romance intitulado “Cirino”:



Marcus Accioly emprega, além da “sextilha”, do “quadrão”, do “martelo” e de várias outros ritmos dos cantadores nordestinos, certos processos enumerativos, presentes, por exemplo, na famosa “peleja de João Martins de Athayde com Leandro Gomes de Barros”, composta pelo primeiro. É o caso desta estrofe de seu poema “Quadrão”:

Aliás, Janice Japiassu já usara o mesmo processo enumerativo num poema publicado em 1970, nos “Sete cadernos de amor e de guerra”:

E para concluir esta pequena antologia da Literatura Armorial, esclareço que contamos, no Movimento, com romancistas, contistas e novelistas como Raimundo Carrero, por exemplo. Carrero, ainda jovem, é autor de uma forte novela intitulada: “A História de Bernada Soledade, A Tigre do Sertão”. De sua autoria é também o conto que se segue, “O Bordado, a Pantera Negra”.

Escolhi esse conto para figurar aqui por três motivos: primeiro, ele dá, muito bem, uma idéia de Carrero como escritor; depois, sendo, muito seu, é criado, de certa forma, dentro das mesmas raízes que caracterizam toda a Literatura Armorial; e finalmente o terceiro motivo é que, exatamente para mostrar essas características armoriais da literatura de Carrero, eu escrevi, baseado nele e propositadamente reaproximando o conto do espírito da Literatura de Cordel, um “folheto”, intitulado “Romance do Bordado e da Pantera”, que transcrevo depois do conto. Ao fazê-lo, além de homenagear Carrero, eu estava apenas seguindo um processo muito comum no nosso Romanceiro: um poeta toma uma história em prosa de autor e “versa-a”, isto é, conta-a de novo em verso. E vamos ao conto:

O BORDADO, A PANTERA NEGRA

RAIMUNDO CARRERO

O punhal alumiando. Os olhos faiscando no fundo da moita. A noite - pantera negra - esconde o mato. Simão Bugre, cartucheiras cobrindo o dorso nu, arrasta-se, abrindo caminho. Sente os espinhos enfincando-se no peito. Rasga a pele com a unha fina: o sangue corre. Enfurecido pela dor: esmaga um cacto. Parece uma fera acuada. Recebe a pancada do vento no rosto como se fosse um coice. Agora, a moita está às costas. Não vê a mata se perdendo nos confins, mas tem na mente todos os caminhos e estradas. Perdido entre o silêncio e as trevas está o mundo Santo dos Umãs.

Capa de uma edição do Romance do Bordado e da Pantera Negra, obra escrita por Raimundo Carrero com a colaboração de Ariano Suassuna, nos anos 70. 
O punhal alumiado parece um espelho. A fera pisa com rigidez, sacode a brutalidade dos seus músculos. O tempo caminha em passos apressados para a madrugada. Antes, o trovão geme atrás das nuvens, depois a chuva despenca, saciando a sede da terra.

Simão Bugre apalpa a arma. Os cabelos de fios ásperos descem, molhados, pelos ombros. Os pés de animal esmagam as pedras. O primeiro trovão confunde-se com o relinchar de um cavalo e com o estrondar do vento. É preciso apressar o passo para chegar logo à serra.

Conceição controla o bordado. De pé, fecha a janela, afasta o frio. Sente o sono dominando seus movimentos. Contempla o dragão que está bordando no pano branco. É um dragão com língua de fogo, com os olhos de prata, com o corpo verde. Pensa:

- Ele chegará ainda agora, para apanhar o capacho. Precisa se tocar para Santo Antônio do Salgueiro.

Simão Bugre, o da cara de pedra, ouve o tropel maluco de cavalos fantasmas, selvagens, correndo em busca de túmulos. As crinas balançam-se, enxotam o vento. São cavalos de guerreiros mortos em emboscadas. Sabe-se que “Visageiro”, o cavalo ruço, batalhador de primeira, desembesta-se nas terras Santas dos Umãs, toda a meia-noite. Simão Bugre tem conhecimento disso. Deixa o sorriso se abrir na cara.

O cavaleiro proprietário do ruço “Visageiro”, vaquejador de nome conhecido por Elesbão, caiu macio na ponta do punhal de Simão Bugre, por ordem e por destino marcado. Por isso, seu sorriso é agora tão largo, tão aberto. E esquece - num instante - a presa que o esperava. Senta-se gargalhando, os olhos feitos faíscas. Vê, na mente, como se fosse naquele dia:

“Esperou por toda uma noite, o corpo estirado na pedra, um olho dormindo, outro acordado. Tinha muitas estrelas pastando nuvens. O olho dormido via passar carruagens de fogo, conduzindo Cavaleiros Sagrados, na busca da conquista de terras. Meia-noite. O tropel surdo esmagou os matos. Rápido, felino, rolou no chão. Escondeu-se na touceira de folhas. Pensou:

- A vida é mansa na hora da morte.

No zás do pulo, caiu nas costas de Elesbão. O punhal penetrou no toitiço. Diversas foram as punhaladas. O sangue se derramou pelos ombros. O corpo frouxo arriou sobre o animal. “Visageiro” soltou um relincho agonioso. Desembaiou doido, como se pudesse salvar a vida”.
Conceição ouviu os matos gemendo. Dobrou os joelhos aos pés do Santuário. Ave-Maria, cheia de graça, o Senhor... Os dedos macios enxugaram as lágrimas.

- Ele deve estar chegando! - pensou.

O vento brinca com a chama do candeeiro. Os lábios trêmulos despejam rezas. Conceição, a dos movimentos quase ensaiados, abre com lentidão o Santuário: afaga a imagem da Nossa Senhora de Fátima, beija-a. Encosta-a no peito. E sente que, apesar do frio, o suor está molhando sua testa.

O bordado descansa na cadeira. O dragão dos olhos de fogo parece se contorcer. A madrugada de muitos gritos anuncia o homem que chega. Devolve a santa ao seu lugar e esfrega o terço entre os dedos. Chove mais forte, Nosso Senhor Deus? Por que chove mais forte?

A luz do candeeiro quebra-se. As sombras crescem, encolhem-se. As nuvens pesadas engolem a luz. No mato, só a terra bebendo água, as folhas das árvores gemendo.

Conceição sabe:
- Ele, agora, desce do cavalo. Antes de entrar em casa, dará uma olhada no curral. Ainda hoje viajará para Santo Antônio do Salgueiro.
Borda o rabo do dragão. Brinca. Torce, retorce. Espera pacientemente pelos urros da noite. Seus olhos encontram o santuário, pousam no rosto calmo de Nossa Senhora de Fátima.

- São os passos dele, sim. Deve estar se dirigindo ao curral.

O corpo alto, magro, de Conceição, passeia pela casa. Pára em frente ao espelho e as suas mãos finas, ósseas, longas, tomam o pente que desliza entre seus longos cabelos negros. Gosta da cor preta e, por isso, seus olhos- fundos, brilhantes - e seu vestido, são pretos. Depois, irá preparar a mesa. Ele chegará faminto e cansado. Necessitará recobrar as forças para empreender a viagem.

Simão Bugre espreme os cabelos ensopados. A água escorre. O corpo forte, de touro, não acolhe o frio. Expulsa-o. Ainda rasteja. A chuva continua derramando-se, agitando as árvores, banhando as pedras. A madrugada avança. Volta o trotar angustioso de “Visageiro”. O mato geme. Existe também a presença das almas penadas, das incendiárias do inferno e do Cão-Coxo, dos dentes de lâmina, bebendo sangue dos carneiros mansos.

Simão Bugre - dizem as bocas matracas - saiu de uma garrafa. Conceição, esposa de Elesbão, não sabia do mistério do açude. Com a roupa na mão, enxaguada, descobriu a garrafa no miolo da pedra. Tomou-a entre os dedos finos, ósseos, brancos. Em suas mãos, ela cabia na medida exata, A cortiça retirada. Um estampido, um grito, um baque. Simão Bugre saltou pesado, o corpo como um tronco, as unhas de garras, a galhada rompante. A esposa de Elesbão torceu o corpo, caiu num baque de assustar as aves.

Nu, pelado, Simão Bugre dava pulos, fantasiando os gestos. O cheiro de enxofre substituiu o cheiro brando das árvores. As orelhas sacudiam-se agitadas, os olhos eram duas brasas chamejantes. Mesurando em frente à mulher, dizia seus agradecimentos.

- Foi a velha mãe do Demônio, malvada! Diga-me: a senhora tem algum desejo, algum forte desejo insaciado?

Não havia voz para Conceição. O medo, como punhal rasgante, atravessava-se em sua garganta. Os olhos explodindo no rosto recusavam ver . Insistia Simão Bugre:

- Diga-me: a senhora tem algum desejo, algum forte desejo insaciado?
Ninguém ouviu o trotar lento do cavalo de Elesbão aproximando-se. Ele, no entanto, chegava. Com ódio, viu a mulher conversando com o estranho. Valente, saltou do cavalo, arrastou a mulher pelos cabelos. Simão Bugre embrenhou-se nos matos.

Quando descobriu a verdade, prostou-se no arrependimento:

- Conceição, a vida da gente é assim: um dia o diabo morre, outro corre. Está me ouvindo?

Simão Bugre engole, a noite, os pés pretos rompem as pedras, as mãos duras rasgam o mato, os ouvidos rejeitam o pio da cobras. O corpo molhado brilha. Por um instante, as nuvens soltam a lua. Os campos mostram-se despidos. Dali, ele vê as coxas, os seios, o ventre da terra. Estão estendidos, voluptuosos. Levanta a testa como um tronco. Brinca com o punhal.

Conceição sai de junto do espelho e pensa:

- Acho que ele não vai mais viajar, demora-se demais no curral. A janta, faz horas, está na mesa.

Nosso Senhor Deus fecha os ouvidos para não ouvir o berro. A porta está no chão, partida, Conceição, que se aproximava do bordado, escangalha os olhos. Simão Bugre, o da cara de ferro, astuto guerreiro demoníaco, punhal em punho, rasga seu ventre. As vísceras saltam, uma baba de sangue preto escorre pelos lábios. O dragão bordado esturra forte, luta como se saísse das entranhas da mulher. Um filho não parido. Estende a língua de fogo, lambe a cabeça de Simão Bugre, os cabelos caem, tostados. Fogo. Fumaça saindo das ventas do animal bordado. Lutam. Um com o punhal, outro com os mistérios do pano. E um relinchar estronda, “Visageiro” - o cavalo fantasma, antiga propriedade de Elesbão - salta, coiceando o ar. Tem os olhinhos apertados, o corpo suado. O cavalo mostra os dentes: parece sorrir. Ergue as patas, elegante, bonito. O pelo negro derrama água, suor. O dragão retorce o corpo. Conceição está morta, ensangüentada, a mão sobre o ventre rasgado. Os animais esturram, a casa treme. A chuva volta mais forte, o frio rasgando.

A noite esconde esses mistérios no seu ventre escuro - a pantera negra.

ROMANCE DO BORDADO E DA PANTERA

Folheto inspirado num conto de Raimundo Carrero, escrito por Ariano Suassuna e dedicado àquele, em sinal de estima e admiração.

A MÚSICA ARMORIAL

A respeito desse assunto, tendo já tratado dele várias vezes, limito-me a transcrever, aqui, trechos dos artigos que publiquei nos números de 29 de abril a 27 de maio de 1973 do “Jornal da Semana”, do Recife. Neles, reportando-me a vários outros escritos anteriores, dizia eu o seguinte:
CONCLUSÃO

De modo que, da maneira como me foi possível exprimir, aí está um resumo de nossos sonhos, de nossas realizações, de nossas frustrações, de nossos fracassos, às vezes de nossas pretensões. Por um lado, estamos conscientes de que a arte armorial, partindo das raízes populares da nossa cultura, não pode nem deve se limitar a repeti-las; tem de recriá-las e transformá-las de acordo com o temperamento e o universo particular de cada um de nós.

Por outro lado, temos consciência de que, se conseguirmos expressar o que é nosso com a qualidade artística necessária, estaremos seguindo o único caminho capaz de levar à verdadeira arte universal, - aquela que, partindo do nacional, se universaliza pela boa qualidade. No movimento armorial, como não podia deixar de ser, existem artistas que, por suas próprias qualidades, realizam isso melhor; outros, menos dotados, têm, entretanto, seu papel assegurado dentro do Movimento, pois, em arte, não existe lugar, apenas, para o artista superior, que é caso raro. Estamos conscientes ainda de que, sendo fiéis ao Nordeste e ao Brasil, estamos sendo fiéis, também, à América Latina inteira, assim como à Etiópia ou à Índia, tão semelhantes à nós.

É por isso que, em todo o nosso trabalho, tanto insistimos nessas raízes e nesse parentesco. Fazemos isso não porque reneguemos o que o Brasil tem de europeu, ou, mais precisamente, de mediterrâneo e ibérico: mas sim porque estamos convencidos de que somente fortalecendo aquele tronco cultural acima referido é que qualquer coisa que nos venha de fora passa a ser, em vez de uma influência que nos esmaga ou nos maçônica num cosmopolitismo achatador e monótono, uma incorporação que nos enriquece.

O Movimento Armorial passará, um dia, como é da natureza de qualquer movimento. Isso demorará, porém, porque, como ficou demonstrado por estas palavras, estamos, ainda, em plena atuação e com muitas áreas de realização a preencher. Mas, mesmo quando ele se extinguir como Movimento, ficarão as obras armoriais que tiverem qualidade para resistir ao tempo e ficará sua influência, seu rastro na cultura brasileira.

A Escola do Recife durou dos fins do século XIX até os começos do século XX, somente. Mas “Os sertões” de Euclydes da Cunha e a “História da Literatura Brasileira” de Sylvio Romero perduraram, assim como permanece ainda hoje a influência da Escola, da qual, direta ou indiretamente, brotaram essas duas obras: prova disso é o próprio Movimento Armorial que se considera, entre outras coisas, uma continuação da Escola do Recife, ou, mais precisamente, dessa grande Escola Nordestina que, há tanto tempo, vem se preocupando com a criação de uma arte, de uma Literatura, de um pensamento brasileiro, que nos sirva, ao mesmo tempo, de meio de expressão às nossas características e de ligação e identificação com o mundo em geral e com a América Latina em particular.

As correntes mais “estrangeiras” e “cosmopolitas” querem obrigar os brasileiros a se envergonharem de suas peculiaridades, de suas singularidades. Só o povo é que mantém, até os dias de hoje, essas características brasileiras, que nós, atualmente, procuramos defender e recriar, contra a corrente “europeizante e cosmopolita”, o que fazemos procurando ligar nosso trabalho de escritores e artistas criadores à Arte, à Literatura e aos Espetáculos populares.

Nenhum de nós pretende ser “primitivo”: o que procuramos é mergulhar nessa fonte inesgotável, em busca das raízes, para unir nosso trabalho aos anseios e ao espírito do nosso povo, fazendo nosso sangue pulsar em consonância com o dele e revigorando nosso pulso ao contacto com aquilo que tais artes e espetáculos têm de festa - entendida no sentido Latino-americano de celebração e sagração dionisíaca do Mundo.

Recife, 22 de março de 1974
Ariano Suassuna




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