sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Os Doze Trabalhos de Héracles: uma análise do mito

Dentre os heróis gregos mais famosos se encontra Héracles (Hércules na versão romana), conhecido por ser o homem mais forte do mundo, mas além de detentor de grande força e poder, era um herói bravo e valente, o qual participou de guerras, enfrentou monstros e caçou animais fantásticos. Héracles realizou façanhas em três continentes e sua popularidade foi tamanha ao ponto de possuir templos e receber culto, pois no fim da vida, o herói recebeu a imortalidade, passando a viver ao lado dos deuses no Olimpo. 

Estátua de Héracles. Gilles-Lambert Godecharle, 1801. Museu Real de Belas Artes, Bélgica.

Entre as diversas narrativas mitológicas que se conhece das façanhas desse poderoso herói estão os Doze Trabalhos, alvo desse estudo. Optei em escolher os Doze Trabalhos por se considerar mais ou menos uma "narrativa fechada", pois um dos problemas de se estudar os mitos de Héracles com as fontes primárias é que não existe apenas um relato que nos traga toda a sua história. De fato hoje em dia encontra-se livros que façam isso, mas em termos de fontes primárias, ou seja, de escritos da Grécia Antiga o que dispomos são fragmentos de suas aventuras espalhados em poemas e narrativas de diferentes autores ao longo de séculos. Dessa forma, em alguns mitos apenas se conhece breves passagens, pois o restante do relato está perdido. 

Embora seja também importante lembrar que os mitos na sua maior parte das vezes eram transmitidos oralmente. Nem todos os mitos foram escritos. Logo não é improvável dizer que houve narrativas de Héracles que nunca conheceremos porque não foram escritas. De qualquer forma, o mito dos Doze Trabalhos graças ao extenuante trabalho de mitólogos e outros estudiosos ao longo dos séculos, conseguiu nos chegar mais ou menos intacto no que diz sua versão escrita. Será a partir dessa versão que o trabalho foi realizado. 

No que diz respeito a análise do mito decidi fazê-la seguindo duas perspectivas: uma histórica, na qual analisei o contexto histórico, social e cultural da Grécia Antiga, especialmente entre os séculos VI a.C ao I a.C época na qual este mito esteve bastante em evidência, embora sua origem seja desconhecida e anteceda esse período. A segunda perspectiva será mitológica, na qual tentei interpretar os mitos para compreender seus valores simbólicos e a relação destes com o pensamento grego antigo. Pois os mitos não são apenas meras narrativas fantásticas, eles expressam noções, percepções, ideias, conceitos, preconceitos etc. 

Introdução:

Antes de adentrarmos a descrição do mito e sua interpretação, é preciso fazer alguns comentários sobre a religião dos gregos antigos, sua mitologia, sua mentalidade e como eles enxergavam o mundo na época. Algumas pessoas podem se perguntar como os gregos acreditavam em deuses e mitos se eles foram os responsáveis por desenvolver a filosofia ocidental?


A religião grega antiga como várias outras religiões do mundo, era uma religião étnica, o que consistia na fé e crenças de um povo específico, neste caso, os povos falantes da língua grega. Os gregos herdaram parte de suas crenças de outros povos, em especial dos Micênicos e dos Cretenses, civilizações que já viviam seu esplendor no século XVI a.C. Para alguns historiadores os micênicos devam ser considerados gregos, correspondendo a um período histórico daquele povo. De qualquer forma, a religião micênica era mais próxima da antiga religião grega do que a religião cretense. O nome dos principais deuses gregos como Zeus, Poseidon, Hera, Hermes, Dionísio e Ares foram achados escritos no antigo alfabeto micênico, isso há mais de três mil anos, o que revela a antiguidade do culto dessas divindades. (SCARPI, 2000, p. 61).


Nesse ponto é preciso recordar que a ideia de Grécia que normalmente temos é as vezes equivocada. A Grécia Antiga era um aglomerado de cidades-estados espalhadas pelo sul da Península Balcânica e a Península do Peloponeso, além de incluir várias outras ilhas no Mar Egeu e algumas no Mar Adriático. Não obstante, os gregos também colonizaram outras terras, fazendo surgir a chamada Magna Grécia (nome dado ao território das cidades-estados gregas e suas colônias). Devido a esse território vasto, heterogêneo e ao mesmo tempo influenciado por outros povos e crenças, não é de se imaginar que a cultura grega não apenas influenciou, mas também foi influenciada. Os gregos absorveram tradições e crenças dos fenícios, dos egípcios, dos persas e de outros povos. 

O historiador italiano Angelo Brelich (1985, p. 39), estudioso da Grécia antiga apontou que a religião grega não possuía uma literatura sacerdotal, nem livros sagrados, nem dogmas e nem uma classe sacerdotal. Era uma religião politeísta a qual se cultuava várias divindades, havendo os grandes deuses e outras divindades diversas, inclusive de culto regional e local. Era uma religião fundamentada em ritos domésticos e ritos públicos, algo que ficou em evidência com o surgimento das póleis. Era uma religião relacionada com a ideia de destino, oráculos, mistérios, iniciação, sacrifícios de animais e até de humanos. Os deuses eram responsáveis por tudo no mundo e até mesmo pelo destino dos homens. 


Brelich (1985, p. 40) comentava que embora não houvesse uma literatura sacerdotal e nem livros sagrados, ainda assim encontrava-se na poesia expressões religiosas. Nesse ponto ele comenta que isso era algo problemático de ser definido, pois a ideia de literatura sagrada e profana parece não ter existido entre os gregos. Um poema de teor mitológico poderia ser considerado uma obra de cunho religioso, pois abordava os deuses e a criação divina. Lembrando que mito e religião não são iguais. O mito é uma narrativa fantástica que pode ter influência com o religioso ou não.


Na ausência de uma literatura sagrada, de dogmas, de normatizações litúrgicas e clericais, os gregos viam na sua mitologia, principalmente retratada através da poesia, na oralidade e até nas artes, uma forma de expressar suas crenças quanto aos deuses e suas noções de mundo, vida e existência. Nesse ponto, outro historiador italiano Paolo Scarpi (2000, p. 62), sublinhou que devido a essa flexibilidade na religião grega antiga, isso permitiu que diferentes formas de cultos, ritos e crenças coexistissem nos territórios habitados pelos gregos. 


Por sua vez, René Ménard (1991, p. 21) comentou que uma das características centrais da mitologia grega era sua complexa genealogia divina. Os gregos antigos davam uma importância bastante grande a genealogia de suas famílias e dinastias. Ménard assinala que não foi incomum muitas cidades-estados terem sido fundadas por deuses, por heróis e reis que descendiam dos deuses. Como assinalado por Brelich e Scarpi, no pensamento grego antigo, a racionalidade do mundo era algo que tinha começo e fim nas divindades, daí se considerar que espíritos naturais habitassem os rios, mares, montanhas, florestas, cavernas etc., que rios e montanhas fossem personificados em divindades etc.  


O historiador francês Jean-Pierre Vernant (1990, p. 430) observou que para além do culto aos deuses, os gregos antigos também cultuavam e reverenciavam os mortos (antepassados) e os heróis. Aqui se faz necessário apresentar o comentário de Vernant sobre o papel do herói grego.


“Resta o caso dos heróis. Eles formam, na época clássica, uma categoria religiosa muito bem definida, que se opõe tanto aos mortos quanto aos deuses. Ao contrario dos primeiros, o herói conserva no além o seu próprio nome, a sua figura singular; a sua individualidade emerge da massa anônima dos defuntos. Ao contrario dos segundos, ele se apresenta, no espirito dos gregos, como um homem que viveu outrora e que, consagrado pela morte, viu-se promovido a um status quase divino. Individuo “a parte”, excepcional, mais do que humano, o herói deve, no entanto, assumir a condição humana; ele conhece as suas vicissitudes, provações, limitações; deve enfrentar os sofrimentos e a morte”. (VERNANT, 1990, p. 431). 

“Os mitos, para nós, servem como importante fonte de conhecimento sobre o pensamento grego e as características de seu culto. Além disso, embora muitas das histórias dos heróis e suas aventuras sejam imaginárias, revelam aos historiadores, também, como os gregos se relacionavam com a natureza, suas ocupações, seus instrumentos, seus costumes e os lugares que visitaram e conheceram. Os mitos servem, também, para que possamos entender melhor a nós mesmos. Por quê? Por tratarem de sentimentos humanos, como o amor e o ódio, a inveja e admiração e, muitas vezes, traduzirem ou procurarem responder a indagações morais e existenciais que rondam a mente humana. Por isso, ainda hoje, essas histórias mitológicas gregas falam à nossa sensibilidade, milhares de anos depois. A maneira de tratar as questões e os sentimentos humanos mais profundos continua atual, suas narrativas ainda nos emocionam”. (FUNARI, 2002, p. 37). 

Mas uma questão surge: como os gregos que eram detentores da filosofia antiga poderiam crer nesses mitos? Primeiro, se faz necessário destacar algo muito importante, algo destacado por Jean-Pierre Vernant em seu livro Les origines de la pensée grecque (1962), apontava que a mentalidade e o pensamento dos gregos antigos não pode ser considerada como homogênea. Ao longo de milênios ela foi se moldando e variando. A ideia que temos da filosofia grega como sempre estando presente, é errônea. A filosofia começa a se desenvolver a partir do século VI a.C, no entanto, a história dos gregos remonta até antes do século XVI a.C, com o período micênico. Só aqui como observava Jean-Pierre Vernant, já possuímos uma lacuna de mil anos de história. Logo é impossível que em mil anos o pensamento, a mentalidade, o imaginário, as ideias, as crenças, as opiniões etc., não mudassem. 


Não irei adentrar essa questão do pensamento filosófico na Grécia antiga e sua relação com a religião e a mitologia, embora sublinhe que os filósofos não fossem ateus. Platão fez referências a religião e aos deuses. A concepção de universo de Aristóteles era pautada na concepção mitológica de seu tempo. 


“Com tantos mitos, como os gregos chegaram ao pensamento racional, aquele que explica o mundo pela faculdade que tem o ser humano de avaliar e julgar? Esta deve ser uma pergunta na cabeça do leitor. Afinal, estamos acostumados a separar ciência e religião, crença e experiência. Para nós, essas distinções talvez façam sentido, mas não para os gregos. Não há entre eles um rompimento radical entre o pensamento mitológico e o pensamento racional". (FUNARI, 2002, p. 39). 

Os Doze Trabalhos: prólogo

Os mitos não possuem uma cronologia propriamente falando. As diversas histórias das aventuras de Héracles ocorrem num espaço de tempo indefinido. Inclusive nem se sabe com quantos anos o herói faleceu. Normalmente achasse que ele teria falecido por volta dos 40 ou 50 anos, todavia, a história dos Doze Trabalhos ocorreu ainda na juventude, pois Héracles antes de realizar e concluir estes trabalhos ele ainda não era considerado um herói, nem possuía fama e nem glória. Foi através desses trabalhos que Héracles fez seu nome e tornou-se uma lenda viva. Sendo assim apresentarei um resumo do início desse ciclo mítico.

Héracles era filho de Zeus e de Alcmena, todavia, como era comum entre alguns heróis gregos, eles não viviam ao lado de seus pais ou mães divinos, eram criados entre os mortais, como forma de reforçar o fato de serem semideuses. Assim Héracles foi criado por Alcmena e seu marido Anfitrião, o qual era rei de Tirinto. Pelo fato de sua mãe e seu padrasto pertencerem a nobreza, Héracles cresceu com todas as vantagens e luxos que essa condição podia proporcionar, o que o tornou um adolescente indisciplinado, mimado e teimoso. A realidade de sua vida começou a mudar por volta dos 18 anos. Segundo Xenofonte, nessa época Héracles teria conhecido a Virtude e a Moleza, cada uma lhes teria prometido algo para seu futuro. O jovem Héracles teria escolhido a virtude. (MÉNARD, 1991, p. 215). 


“Até a idade de dezoito anos, Hércules não teve outra ocupação senão guardar os rebanhos nos pastos, ou perseguir as feras nas florestas. Um dia, ao voltar da caçada, viu os enviados dos minieus de Orcomene, que vinham receber o tributo imposto pelo seu rei Ergino aos tebanos, e matou-os. Ergino voltou com um exército, mas foi vencido e morto por Hércules, que pôs os minieus em fuga, e os obrigou, por sua vez, a um tributo duas vezes superior ao que tinham tido a pretensão de receber. Anfitrião morreu no combate que conquistou para Hércules a mão de Megara, filha de Creonte. Essa expedição foi o início da celebridade de Hércules”. (MÉNARD, 1991, p. 218-219). 

Héracles conquistou sua primeira vitória e feito ao derrotar os minieus, embora que durante a batalha, seu padrasto acabou falecendo. Todavia, em recompensa a sua bravura em derrotar os rebeldes minieus, o rei Creonte de Tebas lhe cedeu em casamento sua filha Megara. Héracles e Megara casaram-se pouco tempo depois e assim permaneceram unidos por alguns anos. Do casamento tiveram três filhos, cinco, sete ou oito filhos de acordo com distintas versões. Mas em todas é dita que os filhos eram varões. (BRANDÃO, 1987b, p. 95). 

No entanto, a vida feliz do herói estava por ser abalada. Hera, esposa-irmã de Zeus, logo, a rainha dos deuses, sempre nutriu grande inveja desse filho bastardo de seu marido. Hera tentou matar Héracles ainda na infância, mas falhou nesse intento. Passados vários anos sua inveja se tornou em ódio, e vendo a alegria de Héracles, decidiu agir. Hera lançou um ataque de loucura em Héracles. Ensandecido ele assassinou os três filhos. Algumas versões do mito falam que Megara também foi morta, outras dizem que ela sobreviveu a fúria do marido. Ao despertar do ataque de loucura e fúria, Héracles ficou terrivelmente abalado com o crime que havia cometido. Suas mãos estavam encharcadas pelo sangue de seus próprios filhos. 

Héracles sem saber o que fazer abandonou o palácio e a cidade, fugindo para o meio da natureza. Após algum tempo ele decidiu buscar ajuda. A dor por ter perdido os filhos, e ainda mais em saber que foi o responsável por matá-los, o acometia profundamente. Héracles temia enlouquecer de vez. Com isso ele foi procurar o Oráculo de Delfos, a fim de pedir ajuda ao seu meio-irmão, o deus Apolo

Ruínas do Oráculo de Delfos. Por séculos Delfos foi um dos locais mais importantes da Grécia, devido ao seu famoso oráculo

No oráculo, a pitonisa (sacerdotisa) lhe transmitiu os misteriosos e metafóricos desígnios futuros. Héracles para se redimir de seu terrível crime deveria abandonar seu status de nobreza e aceitar a servidão. Foi recomendado que ele procurasse seu primo Euristeu, rei de Micenas. Euristeu era um pouco mais velho do que o primo, mas era um homem covarde, medroso, egoísta e invejoso. Ele sempre invejou a beleza, a força e a fama de seu primo. Euristeu vendo que o pobre Héracles se humilhava diante dele, decidiu lhe desafiar com Doze Trabalhos, considerados por ele como impossíveis de serem realizados. Euristeu esperava que assim o jovem herói viesse morrer. (BRANDÃO, 1987b, p. 95-96). 

“Os mitógrafos da época helenística montaram um catálogo dos Doze Trabalhos em duas séries de seis. Os seis primeiros tiveram por palco o Peloponeso e os seis outros se realizaram em partes diversas do mundo então conhecido, de Creta ao Hades. Advirta-se, porém, que há muitas variantes, não apenas em relação à ordem dos trabalhos, mas igualmente no que tange ao número dos mesmos. Apolodoro, por exemplo, só admitia dez. Exceto a clava, que o próprio herói cortou e preparou de um tronco de oliveira selvagem, todas as suas demais armas foram presentes divinos: Hermes lhe deu a espada; Apolo, o arco e as flechas; Hefesto, uma couraça de bronze; Atená um peplo e Posídon ofereceu-lhe os cavalos”. (BRANDÃO, 1987b, p. 98). 

Aqui temos o início da jornada do herói, tomando de empréstimo o conceito criado pelo mitólogo Joseph Campbell, o qual com base na mitologia comparada e na religião comparada procurou identificar características básicas que quase toda narrativa heroica dos tempos antigos possuía. Campbell considerava que tais características básicas formassem uma espécie de roteiro para se narrar a história de um herói. É evidente que nem todo herói se encaixa nesse modelo, mas ainda hoje, mesmo os heróis e super-heróis atualmente seguem esse modelo. 


“O percurso padrão da aventura mitológica do herói é uma magnificação da fórmula representada nos rituais de passagem: separação-iniciação-retorno — que podem ser considerados a unidade nuclear do monomito”. (CAMPBELL, 1995, p. 17).

“Um herói vindo do mundo cotidiano se aventura numa região de prodígios sobrenaturais; ali encontra fabulosas — forças e obtém uma vitória decisiva; o herói retorna de sua misteriosa aventura com o poder de trazer benefícios aos seus semelhantes”. (CAMPBELL, 1995, p. 18). 

No modelo de Campbell o herói normalmente tem um início trágico ou passa por alguma tragédia ou fator que o levará a "separação". Essa "separação" pode ser entendida a partir de várias perspectivas, mas essencialmente Campbell a considerava como sendo o motivo pelo qual o futuro herói procuraria ajuda. No caso de Héracles, a morte de seus filhos foi essa "separação", esse motivo. Por sua vez Héracles acabou fugindo (separando-se de seu lar, da sua cidade). 

Após a separação vem a iniciação. Aqui entende-se a parte na qual o herói inicia seu treinamento, estudos ou vai procurar por instrução e ajuda. No caso de Héracles ele já era um homem treinado e um guerreiro, não precisou passar por novo treinamento, mas foi procurar por ajuda, no caso, o Oráculo de Delfos. 

O herói depois de procurar por ajuda, ele decidiu agir, decidiu fazer algo para corrigir o mundo. Aqui no caso de Héracles ele foi buscar sua redenção ao se submeter aos caprichos de seu primo, o rei Euristeu. Nesse ponto inicia-se a jornada do herói. Por fim, o "retorno" que Campbell menciona diz respeito ao triunfo do herói em combater desafios, perigos e inimigos. No mito de Héracles isso ocorre quando o herói conclui seus Doze Trabalhos. 

A ordem dos trabalhos varia de autor para autor, nesse caso, escolhi a ordem apresentada pelo mitólogo Junito Brandão. 

1) Primeiro Trabalho: O Leão de Nemeia

O primeiro trabalho de Héracles consiste no primeiro desafio que transcorre no Peloponeso, lembrando como assinalado por Junito Brandão (1987b), dos doze trabalhos, seis se passam na península do Peloponeso, ou seja, em terras gregas propriamente falando. Os outros seis ocorrem em outras partes do mundo conhecido para os gregos à época. De qualquer forma, duas questões podemos tirar desse primeiro trabalho: primeiro, tratou-se de uma caçada; segundo, ele caçou um leão. Mas havia leões na Grécia antiga? 


Em azul a região da Argólida. Alguns dos Doze Trabalhos foram realizados nesse território. 

Vamos começar pela questão da caça. Dos Doze Trabalhos, seis são caçadas; neste caso, Héracles caçou monstros a fim de matá-los, ou caçou animais que não eram monstros propriamente falando, mas eram fantásticos. Nesse caso o que nos interessa comentar a respeito da caçada é que essa para os antigos gregos (como também para outros povos) ia além da ideia de sobrevivência. A caçada possuía seus aspectos sociais, culturais e ritualísticos. O esporte dos nobres em diferentes culturas era caçar. No caso do mito devemos nos lembrar que Héracles era um caçador, algo que aprendeu na adolescência, como também era um nobre. 

Por mais que os gregos antigos fossem uma sociedade sedentária baseada na agricultura e na pecuária, a caça, a coleta e a pesca sempre foram atividades que se mantiveram em sua vidas diariamente. A produção de alimentos na Grécia Antiga nunca foi suficiente para manter todas as cidades, vilas, comunidades e fazendas fora do perigo da fome. Em algumas partes da península, o solo não é fértil ou de difícil cultivo, daí requerer-se a atividades complementares como a caça, a coleta, a pesca e até o comércio de importação de alimentos. Não obstante, a principal riqueza de um homem e sua família eram suas terras, por mais que parte da população vivesse nas cidades, a maioria dos gregos habitava o campo. (MOSSÉ, 1995, p. 36). 


Aqui lembremos que no mito Héracles para criar um pouco de disciplina, foi enviado por seu padrasto para o campo, a fim de pastorear as cabras e caçar. Percebe-se que mesmo tratando-se de atividades rurais de caráter subserviente, ainda assim Héracles embora fosse um príncipe naquela época, as realizava não apenas como forma de punição, mas como forma de adquirir através do trabalho, responsabilidade, conhecimento e experiência. Embora seja preciso destacar que esse pensamento acerca de um nobre realizar tarefas servis mudou com o tempo. No Período Clássico (VI-IV a.C) da história grega, um nobre ou um aristocrata exercer essas atividades era algo vergonhoso, desonroso e indigno de seu status social. (MOSSÉ, 1995, p. 35). 

Não obstante, caçar animais além do fator de sobrevivência e de esporte, também possuía um fator simbólico: representava a supremacia do homem sobre o animal, a força do humano sobre a natureza. O fato do homem ao usar seu intelecto para confeccionar armas e estratégias lhe permitiu chegar ao topo da cadeia predatória. Essa mentalidade se manteve ao longo dos milênios entre distintos povos, ainda é comum através da caça, o homem provar seu valor perante sua comunidade. Aqui a caça possui uma característica ritualística, em alguns casos fazendo parte de um rito propriamente falando ou apenas atuando no campo do simbólico, como no caso do mito de Héracles.


O primeiro trabalho proposto por Euristeu ao seu primo, era matar um terrível leão que estava assassinado pessoas e animais nos bosques de Nemeia, na região da Argólida, no nordeste do Peloponeso. O leão era descrito como um animal maior do que o comum, terrivelmente feroz, mas acima de tudo sua principal diferença se devia ao fato de que sua pele era mais dura que o ferro. Nenhuma arma feita por mãos humanas conseguia ferir a criatura. 


Localização da região de Nemeia, local onde Héracles realizou seu primeiro trabalho. 

Neste caso se faz necessário dizer que o Leão de Nemeia não era um leão comum, mas sim um monstro. Ele era filho do titã Tifão e da Equidna. Outras versões dizem que ele fosse filho de Ortro e da Equidna. De qualquer forma, esse terrível leão estava causando problemas para o rei Euristeu, o qual governava a região. Entretanto, retomemos a pergunta que fiz anteriormente: havia leões na Grécia? Ou isso é apenas um mito?

A resposta é: sim, havia leões na Grécia Antiga. Hoje a já extinta espécie do leão europeu (Panthera leo europea), foi ao longo de milhares de anos um animal comum nas terras europeias mediterrânicas. Tal espécie ou subespécie de leão habitava um vasto território que ia de Portugal à Rússia. O leão europeu foi caçado até a extinção. Os romanos foram um dos responsáveis por acelerar essa extinção, pois devido a popularização das lutas de gladiadores durante o final da República, e ao longo do Império até o século IV d.C, milhares de leões e leoas foram caçados ao longo dos anos. Quando tais animais se tornaram escassos, os romanos passaram a recorrer aos leões africanos e asiáticos para abastecer suas arenas. Assim, o fato de Héracles caçar um leão em plena Grécia não teria sido algo fantasioso ou impossível, pois tal animal fazia parte da fauna local. 


Ilustração representando o Primeiro Trabalho: a caça ao Leão de Nemeia.

O mito possui variações quanto ao tempo que Héracles levou para conseguir caçar o animal. Uma das versões diz que ele levou 30 dias, ou seja, um mês para concluir sua primeira tarefa. De qualquer forma, Héracles somente conseguiu derrotar o temível leão usando a força bruta, pois sua espada, lança, flechas e clava não conseguiam feri-lo. Assim, numa luta corpo a corpo, Héracles estrangulou o leão até a morte. Depois usou as garras dele para rasgar o próprio couro. 

A história de um herói caçando um leão é bem recorrente. Temos na Suméria Gilgamesh caçando leões; temos em Israel, Sansão lutando contra um leão. Temos relatos persas, árabes, babilônios, indianos etc., de heróis e reis combatendo leões, fosse com armas ou com o uso das próprias mãos desnudas. Mas o fato do herói grego ter como primeiro dever caçar um leão filho de monstros, também possui seu lado simbólico. Tratava-se do combate entre homem e fera, entre homem e monstro. A vitória da força humana sobre a natureza. 


“Poderoso e soberano, símbolo solar e extremamente luminoso, o rei dos animais possui em alto grau as qualidades e os defeitos inerentes à sua espécie. Encarnação do Poder, da Sabedoria e da Justiça, deixa-se arrastar, em contrapartida, pelo excesso de orgulho e segurança, que lhe conferem uma imagem de Pai, Senhor, Soberano. Ofuscado por seu próprio poder, cego pela própria luz, torna-se um tirano, acreditando-se um protetor. Pode ser maravilhoso, tanto quanto insuportável: nessa polaridade oscilam suas múltiplas acepções simbólicas”. (BRANDÃO, 1986, p. 256).

“Krishna é o leão entre os animais; Buda é o leão dos Shakya; Cristo é o leão de Judá; Ali, genro de Maomé, exaltado pelos Xiitas, é o leão de Alá. O Pseudo-Dionísio Aeropagita procura explicar por que a teologia atribui a certos anjos o aspecto leonino: a forma de leão traduz a autoridade e a força invencível das santas inteligências; o esforço soberano, veemente e indomável para imitar a majestade divina e a capacidade celeste, que é confiada aos anjos, de disfarçar o mistério de Deus numa augusta obscuridade, escondendo de olhos indiscretos os sinais de seu relacionamento com a divindade, como o leão, que, segundo se conta, apaga os vestígios de seus passos, quando perseguido pelo caçador”. (BRANDÃO, 1986, p. 256).

A partir dessas simbologias associadas ao leão, nota-se que o fato de Héracles derrotá-lo conotava sua supremacia sobre o rei dos animais, a vitória sobre o soberano, o poder e a força da natureza. De fato o herói passou a usar a pele do leão como troféu. Inclusive o mito narra que quando ele retornou a Micenas, para mostrar que havia concluído o primeiro trabalho. A visão do imponente herói trajando a pele de leão, espantou o medroso Euristeu, o qual enxergava diante dele quase um deus em pessoa. 

A pele do Leão de Nemeia não era apenas um troféu de caça ou o prêmio pela vitória de um duro combate, ela também tinha todo um valor a mais: como símbolo, representava a imponência, bravura, força e glória de seu portador, no caso Héracles. Por outro lado, a pele que era invulnerável a qualquer arma humana, garantia uma proteção ao herói. Após a morte do leão, Zeus o transformou na Constelação de Leão

2) Segundo Trabalho: A Hidra de Lerna

O segundo trabalho imposto por Euristeu a Héracles, era combater a terrível serpente (ou dragão) de várias cabeças, chamada Hidra. Cuja terrível criatura habitava a região pantanosa de Lerna. A Hidra era irmão do Leão de Nemeia, também sendo filho de Tifão e Equidna, os quais eram conhecidos como os "Pais de monstros". 


“A Hidra de Lerna é um monstro gerado pela deusa Hera, para "provar" o grande Héracles. Criada sobre um plátano, junto da fonte Amimone, perto do pântano de Lerna, na Argólida, a Hidra é figurada como uma serpente descomunal, de muitas cabeças, variando estas, segundo os autores, de cinco ou seis, até cem, e cujo hálito pestilento a tudo destruía: homens, colheitas e rebanhos. Para conseguir exterminar mais esse monstro, o herói contou com a ajuda preciosa de seu sobrinho Iolau, porque, à medida que Héracles ia cortando as cabeças da Hidra, onde houvera uma, renasciam duas. Iolau pôs fogo a uma floresta vizinha, e com grandes tições ia cauterizando as feridas, impedindo, assim, o renascimento das cabeças cortadas. A cabeça do meio era imortal, mas o filho de Alcmena a cortou assim mesmo: enterrou-a e colocou-lhe por cima um enorme rochedo. Antes de partir, Héracles embebeu suas flechas no veneno ou, segundo outros, no sangue da Hidra, envenenando-as”. (BRANDÃO, 1986, p. 243-244). 

Gravura em um vaso grego, retratando Héracles e Iolau lutando contra a Hidra. Além deles, vê-se à esquerda a deusa Hera enviando um caranguejo para atacar Héracles. 

Durante o combate com a Hidra, Hera enviou um grande caranguejo para atrapalhar Héracles e Iolau, no entanto, o poderoso herói matou o caranguejo, o esmagando com uma pisada. Hera transformou o caranguejo na Constelação de Câncer. De qualquer forma, a vitória de Héracles e Iolau sobre a terrível serpente (ou dragão), consistiu no primeiro trabalho no qual o herói enfrentou propriamente um monstro, além de ter sido também o primeiro dever em que recebeu ajuda, algo que ocorreu na realização de outros dos Doze Trabalhos. 

O combate de Héracles e Iolau contra a Hidra de Lerna é um tema comum em várias mitologias do mundo: a luta entre um herói ou deus contra uma serpente ou dragão. Na mitologia grega Apolo enfrentou a serpente gigante Píton. Na mitologia nórdica Thor combate a gigantesca serpente Jörmungadr. Na mitologia babilônica o deus Marduk combate o dragão Tiamat. No hinduísmo o deus Indra enfrenta uma grande serpente marinha. Na mitologia japonesa o deus Susanoo enfrenta o terrível dragão de oito cabeças Yamata no Orochi. Na mitologia egípcia, todas as noitesviaja pelo mundos dos mortos, sendo perseguido pela serpente Apep

Embora esses mitos tenham em comum a luta de um herói ou deus contra um monstro ofídico, as semelhanças se encerram por aí. Cada mito possui seu próprio contexto. Os motivos os quais levam os heróis ou deuses a combater tais monstros são diferentes. No entanto se faz necessário dizer que em termos simbólicos a serpente necessariamente não é uma criatura sempre de caráter negativo. 


Dependendo da cultura, do povo e da época, o simbolismo da serpente variou, estando associado a elementos positivos (vida, fecundidade, fertilidade, virilidade, proteção, natureza), e elementos negativos (morte, dor, perigo, destruição, maldade). (CHEVALIER; GHEERBANT, 1986, p. 925-927). 


No caso grego, a serpente expressava tanto elementos positivos, quanto negativos, mas no caso da Hidra, ela personificava a morte, o perigo, a destruição. A vitória de Héracles e Iolau sobre terrível fera, representa novamente a conquista do humano sobre os perigos da natureza, embora haja outras interpretações também. 


“A interpretação evemerista do mito é de que se trata de um rito aquático. A hidra, com as cabeças, que renasciam, seria, na realidade, o pântano de Lerna, drenado pelo herói. As cabeças seriam as nascentes, que, enquanto não fossem estancadas, tornariam inútil qualquer drenagem. A monstruosa serpente aquática, dotada de muitas cabeças, é freqüentemente comparada com os deltas dos rios, com seus inúmeros braços, cheias e baixas”. (BRANDÃO, 1986, p. 244).

“Consoante Paul Diel, a Hidra simboliza os vícios múltiplos, ‘tanto sob forma de aspiração imaginativamente exaltada, como de ambição banalmente ativa. Vivendo no pântano, a Hidra é mais especificamente caracterizada como símbolo dos vícios banais. Enquanto o monstro vive, enquanto a vaidade não é dominada, as cabeças, configuração dos vícios, renascem, mesmo que, por uma vitória passageira, se consiga cortar uma ou outra’. O sangue da Hidra é um veneno e nele o herói mergulhou suas flechas. Quando a peçonha se mistura às águas dos rios, os peixes não podem ser consumidos, o que confirma a interpretação simbólica: tudo quanto tem contato com os vícios, ou deles procede, se corrompe e corrompe. (BRANDÃO, 1986, p. 244).

3) Terceiro Trabalho: O Javali de Erimanto 

A próxima tarefa de Héracles era caçar o imponente e feroz javali de Erimanto, um javali maior do que o comum, o qual habitava as florestas sombrias da Montanha Erimanto, situada na Arcádia, no nordeste do Peloponeso. O temível javali estava causando problemas para as populações da região, pois matava caçadores, invadia fazendas e era bastante agressivo. Vários caçadores haviam tentado matar a fera, mas falharam nisso. Euristeu incumbiu Héracles de não apenas caçar o grande javali, mas de capturá-lo vivo. Um fator de dificuldade a mais dado ao herói. Sem precisar da ajuda de Iolau ou de outra pessoa, Héracles viajou sozinho para Erimanto. 

Localização da Montanha Erimanto, no Peloponeso. Segundo a mitologia foi naquelas terras que Héracles realizou um de seus trabalhos. 

Após dias de cansativa caçada, pois não foi fácil encontrar o animal, um dado interessante, pois em todos os trabalhos nos quais o herói teve que caçar, ele sempre levou bastante tempo, fato este que reforça a condição de que tais trabalhos não poderiam ser realizados por simples homens, eram tarefas excepcionais e bastante difíceis e perigosas. Após algumas semanas de caçada, Héracles conseguiu encurralar o javali em sua caverna e o capturou, levando-o até Micenas, a fim de mostrar a criatura como solicitado pelo rei. Segundo o relato, Euristeu ficou com medo do grande javali, então se escondeu dentro de um vaso de bronze. 

Pintura no vaso grego, representando Héracles carregando o Javali de Erimanto, enquanto mostra a criatura para o covarde rei Euristeu, o qual se escondeu dentro de um vaso. Século VI a.C. 

De acordo com Chevalier e Gheerbrant (1986, p. 598-599) o simbolismo do javali está associado com a natureza e o espiritual. O javali seria um símbolo também associado a força, a bravura, ao selvagem, a virilidade, elementos que encontram respaldo no herói Héracles, pois novamente ele vence o animal, a natureza, ao conseguir caçar e capturar essa fera que ninguém antes conseguiu obter êxito. No âmbito espiritual, Chevalier e Gheerbrant entendiam que a caça ao Javali de Erimanto possuía um simbolismo associado a ideia de um rito de iniciação. Ao conseguir caçar o javali, novamente Héracles estava provando seu valor perante o rei e seu povo. De fato, entre algumas épocas na Europa, a caça do javali estava associada a ritos sociais. 

4) Quarto Trabalho: A Corça Cerinia

Novamente outro dos trabalhos impostos por Euristeu ao seu primo, dizia respeito a caçar um animal. No caso a corça cerinia, um animal que possuía cascos de bronze e chifres de ouro, considerado sagrado pelos deuses. Segundo o relato de Calímaco no Hino a Ártemis, havia cinco corças dessa espécie, sendo que quatro delas a deusa Ártemis capturou e as pôs para puxar sua carruagem. A quinta foi deixada livre, e passou habitar o Monte Cerínia, também na Arcádia. A diferença dessa tarefa para a anterior é que enquanto o javali era uma fera bravia, a corça era um animal dócil que não causava perigo ou dano aos humanos, no entanto, era descrita sendo veloz como o vento, e nenhum caçador humano seria capaz de capturá-la. 

Pintura retratando Héracles capturando a Corça Cerinia.

De fato, das caçadas empreendias por Héracles, essa talvez tenha sido a mais difícil, embora não a mais perigosa. Devido a velocidade e destreza da corça, Héracles levou um ano para conseguir capturá-la. E em todo esse tempo ele teve o cuidado de evitar de matar o animal sagrado aos os olhos dos deuses, inclusive quando obteve êxito e capturar a corça de chifres de ouro e cascos de bronze, Ártemis e Apolo tentaram recuperar o animal antes que o herói o apresentasse a Euristeu. Por um triz sua vitória não foi perdida. 

A diferença dessa caçada para as duas anteriores é que enquanto no caso do leão, Héracles matou a fera, e no caso do javali ele o capturou vivo, mas em ambos os casos o herói empregou força bruta para isso. Por sua vez caçar a corça requereu não força bruta, mas paciência, muita paciência. Héracles passou um ano inteiro tentando capturar aquele furtivo animal, até exaurir sua paciência. Lembrando que se ele desistisse isso seria algo vergonhoso para ele. A final, ele tinha completado três trabalhos bastante difíceis, o que incluiu matar dois monstros. Render-se diante de uma caçada a uma corça, seria considerado um ato vergonhoso, pois se o poderoso Héracles conseguiu matar monstros, como não conseguia capturar uma corça divina?

“Paul Diel vai um pouco mais longe na hermenêutica da corça dos pés de bronze: "A corça, como o cordeiro, simboliza uma qualidade do espírito, que se contrapõe à agressividade dominadora. Os pés de bronze, quando aplicados à sublimidade, configuram a força da alma. A imagem traduz a paciência e o esforço na consecução da delicadeza e da sensibilidade sublime, especificando, igualmente, que essa mesma sensibilidade representada pela corça, embora se oponha à violência, possui um vigor capaz de preservá-la de toda e qualquer fraqueza espiritual" que está bem configurada nos pés de bronze”. (BRANDÃO, 1987b, 101). 

5) Quinto Trabalho: As Aves de Estínfalo

Outra vez de volta a Arcádia, agora se dirigindo para o Lago Estínfalo ou Estínfale, Héracles foi incumbido de exterminar um mal que ali habitava. Um bando de grandes aves com bicos e garras de ferro, as quais suas penas eram afiadas como lâminas, e elas tinham a capacidade de atirar suas penas como dardos. As aves matavam os animais e as pessoas que por ali passavam. 

Tais temíveis aves habitavam a densa floresta que circundava o lago, e quando alçavam voo em bando, elas cobriam os raios solares, lançando uma grande sombra sobre o mundo. Héracles para conseguir atrair terríveis aves, contou com a ajuda dos deuses. Hefesto fabricou címbalos de bronze, os quais foram entregues a Héracles por Atena. O herói usou os címbalos para gerar estridente barulho, fazendo as aves alçarem voo sobre o lago. Em meio a escuridão causada pelo voo de incontáveis aves, Héracles começou a extermina-las com suas flechas. 

Pintura em um vaso grego, representando Héracles matando as aves do lago Estínfalo. Século VI a.C

As aves de Estínfalo representavam elementos bem negativos. São animais que causam danos aos homens e aos animais domésticos, pois impediam que estes tivessem acesso ao lago. Por sua vez, aqueles que se se aventurassem pela floresta que cercava o lago, também corriam risco de serem feridos ou mortos. Tais aves também supostamente comeriam carne humana, segundo algumas versões. Tal condição consiste num elemento a mais para torná-las abomináveis. Por fim, o fato de que estes animais quando voavam em bando conseguiam cobrir a luz do sol, nos apresenta o elemento da escuridão. 

O ato de Héracles combater temíveis aves e vencê-las, representava a vitória sobre a ganância (as aves controlavam o lago), a vitória sobre as trevas (a sombra projetada pelo bando), a vitória sobre o perigo (os animais matavam aqueles que se aproximassem de seus domínios). Não obstante, entre os gregos antigos, as aves e pássaros estavam associadas a presságios, fossem bons ou ruins. Nesse sentido, um bando de aves feias que jogavam sombra sobre o mundo, era encarado como um mau presságio. Assim, Héracles ao derrotar tais aves, ele punha fim a um mau agouro. 

6) Sexto Trabalho: Os estábulos do rei Augias

Augias era filho do titã Hélios, sendo rei de Élis, capital da Élida. Ele era conhecido por possuir o maior rebanho de gado bovino da região (talvez de toda a Grécia). As versões do mito não informam a quantidade de vacas e bois que Augias possuía, mas dizem se tratar de um imenso rebanho, pois os estábulos eram vários. Mas a questão aqui é que por motivos não ditos, os estábulos estavam há anos sem serem limpos. O fedor era tão grande que poderia matar alguém sufocado. Além disso, a retensão do estrume nos estábulos, impedia que as terras fossem adubadas, o que prejudicou as colheitas nestes anos. 

Héracles em conversa a Augias propôs em limpar os estábulos, mas com uma condição. Em troca de realizar aquela degradante tarefa, ele queria como pagamento 1/10 do total do rebanho de Augias. O rei não gostou nada daquilo, porém mudou de ideia quando Héracles concluiu os termos do acordo. O herói disse que se comprometia em apenas um único dia limpar todos os estábulos. Augias achou que aquilo fosse uma piada ou que o herói estivesse louco. Ele nunca conseguiria limpar tudo aquilo em um só dia. 


Para poder limpar todos os estábulos Héracles decidiu usar água. Mas não usar baldes d'água, pás e esfregões, mas desviar um rio para fazer isso. Segundo algumas versões ele construiu um canal que coletou as águas de um rio das redondezas para varrer a imundice dos estábulos. Outras versões dizem que ele fez dois canais, indo pegar água dos rios Alfeu e Peneu. Já outras versões apontam que ele não apenas construiu canais, mas chegou a desviar o curso dos rios propriamente. (BRANDÃO, 1987b, p. 102). 


Gravura representando Héracles cavando o canal pelo qual conduziria as águas que limparam os estábulos do rei Augias. 

Embora tenha trabalhado sozinho, o poderoso herói conseguiu escavar os canais e limpar em um só dia os imundos estábulos. Augias espantando com tal proeza não admitiu cumprir com sua parte do acordo. Seu filho Fileu se pôs em defesa de Héracles, exigindo que o pai cumprisse o acordo e pagasse ao herói 1/10 do rebanho. Augias não voltou atrás e continuou se negando. Héracles enfurecido foi embora, no entanto, decidiu se vingar, declarando guerra a Augias. Resumindo o conflito, Héracles matou Augias por ser um rei canalha e sem palavra, saqueou a Élida e reconheceu Fileu como novo governante. (BRANDÃO, 1987b, p. 102-103).

Desse trabalho temos duas coisas a comentar: primeiro, o tipo de trabalho em si; segundo, a guerra que se sucedeu. 


Dos trabalhos que Héracles havia feito até o momento, esse foi o mais diferente e humilhante. Embora eu tenha dito que o herói durante a adolescência pastoreasse as cabras e caçasse, essas não eram atividades indignas a ele. O próprio poeta Hesíodo (VII a.C) em seu livro Os Trabalhos e os Dias, vangloria o ato de trabalhar e condena a ociosidade. A ideia de que os nobres deveriam ser ociosos entre os gregos nem sempre foi bem vista (FUNARI, 2002, p. 26). Em determinadas épocas era criticada. Um nobre deveria participar da política, da guerra e da administração de suas propriedades. 


No entanto, tarefas insalubres como limpar e coletar o estrume de vacas eram trabalhos degradantes, sendo atribuídos aos pobres e aos escravos. Héracles era um herói em formação. Mas antes de tudo, ele era um nobre, um príncipe. Logo, Euristeu tinha em mente que com esse trabalho servil, seu primo fracassasse e caísse na vergonha. O famoso Héracles exercendo uma atividade própria de escravos? Que vergonhoso. Mas como vimos, o herói não teve que ter contato com as fezes e a imundície do local, ele desviou as águas de rios, e essas fizeram o restante do trabalho. 


Gravura representando Héracles desviando as águas de um dos rios, pelo canal que construiu, em direção aos estábulos do rei Augias. 

Dessa forma Héracles evitou cair na vergonha em não cumprir mais um desafio proposto por Euristeu, também não foi humilhado como Euristeu e Augias esperavam. No entanto entramos na segunda questão que levantei: a guerra. Vimos que Héracles solicitou pagamento, algo interessante, pois nos trabalhos anteriores, ele os realizou de bom grado, embora que tenha colhido seus espólios em alguns casos: ele ficou com a pele do leão e envenenou suas flechas no sangue (ou veneno) da Hidra. Mas nos outros três trabalhos ele não retirou recompensa nenhuma. 

Nesse sexto ele se comprometeu em fazer a limpeza, desde que recebesse um pagamento. Como foi dito, tratava-se de uma atividade servil, própria a escravos. Héracles não era um escravizado, ele não faria por menos. Aqui entra outra questão: o orgulho do herói. Héracles como outros heróis gregos eram não apenas conhecidos por sua força, coragem e determinação, mas também por suas paixões, ambições, teimosia, arrogância, prepotência e até ódio. Dessa forma, o herói se sentiu ofendido pela falta de palavra de Augias, então decidiu se vingar. 


Aqui entra um aspecto social da época do Período Arcaico (800-500 a.C), época na qual alguns dos poemas gregos mais antigos e famosos como a Ilíada, Odisseia, Teogonia, O Trabalho e os Dias foram escritos. Embora esse poemas se refiram a histórias bem mais antigas, a percepção delas era embasada na sociedade e cultura do momento que foram escritos. É preciso lembrar que os mitos vão mudando ao longo do tempo, e mesmo sendo escritos, possuíam distintas versões. 


“Na Grécia do período arcaico, a economia baseava-se na agricultura e na criação; terras e rebanhos pertenciam a grandes proprietários, os chefes dos clãs que diziam descender dos heróis lendários. Esses "nobres", conseguindo reduzir o papel do rei, tornaram-se de fato os dirigentes das cidades. Formavam um conselho soberano e administravam a justiça em nome de um direito tradicional pautado por regras mantidas em segredo. Somente eles eram suficientemente ricos para obter cavalos, servos e equipamentos de guerra. De suas incursões guerreiras dependia a sorte da cidade em um tempo em que as batalhas se davam em uma série de combates singulares. Proprietários do solo, detentores dos poderes político e judiciário, defensores da região, os nobres eram os verdadeiros "donos" das cidades — num regime aristocrático, ou oligárquico”. (FUNARI, 2002, p. 17).

Tomando essa explanação de Pedro Paulo Funari, podemos fazer um paralelo com o mito. Héracles como sendo um nobre detinha essas funções que Funari comentou. E isso é visível no mito, pois sentindo-se ofendido, ele reúne aliados para formar um exército e declarar guerra a Augias. Neste caso a guerra foi algo comum entre os gregos ao longo de sua história antiga. 

No entanto, não se pode afirmar que os gregos fossem uma sociedade marcial (exceto Esparta), muitos dos homens necessariamente não iam para a guerra, e muitas cidades nem possuíam exércitos fixos. Além disso, decretos de guerra eram feitos a partir de determinadas circunstâncias; um rei, um nobre, um general não poderiam declarar guerra a torto e a direita, isso era um comportamento de bárbaro, e os gregos condenavam a barbárie. (GARLAN, 1995, p. 68-69). No caso do mito a guerra declarada por Héracles foi motivada por desavenças pessoais entre ele e Augias, mas os aliados que se uniram ao herói, possuíam outros interesses, dentre os quais pilhar a Élida. 

7) Sétimo Trabalho: O Touro de Creta


Após concluir sua guerra contra Augias, Euristeu designou novo trabalho para Héracles, dessa vez dando início a jornada do herói para fora da Grécia continental. Seu destino era a ilha de Creta. 


Localização da Ilha de Creta. 

Creta é a maior das ilhas gregas, tendo sido o berço da Civilização Minoica, civilização própria que se desenvolveu séculos antes dos gregos. Todavia, na época que os mitos de Héracles foram narrados e escritos, Creta já estava sob domínio grego. De qualquer forma, no caso do mito, a ilha era governada pelo rei Minos, o mesmo que ficaria conhecido pela história do labirinto e do Minotauro. Neste caso, ambos ainda não existiam. Minos havia prometido a Poseidon que sacrificaria ao deus tudo que do mar saísse de valor e fosse digno do deus. Poseidon para testar a palavra e honra do rei cretense, criou um formoso e grande touro.

Minos encantado pelo animal, o levou ao seu estábulo, mas não querendo se desfazer do touro, sacrificou outro no lugar para Poseidon, descumprindo com sua promessa. O deus dos mares indignado com a afronta e a mentira do rei cretense, fez o touro torna-se furioso. O animal fugiu dos estábulos reais e começou a causar danos na ilha, ferindo e matando pessoas, como também espalhando o medo e a desordem. Euristeu ficou sabendo do ocorrido e demonstrou interesse no animal criado pelo deus dos mares, assim ele enviou Héracles para que capturasse o touro do mar. 


Pintura representando Héracles lutando contra o touro de Creta. 

Após domar o animal furioso, Héracles o levou até Micenas, entregando-o a Euristeu, o qual ofereceu sacrificar o animal a Hera, mas a deusa sabendo que foi Héracles o responsável por capturar o bicho, recusou em aceitar o sacrifício e libertou o touro. Ele fugiu para o norte, indo se abrigar em Maratona e posteriormente Teseu o matou, e o sacrificou para Apolo

“Na tradição grega os touros indomáveis e ferozes, como os que Jasão atrelou, simbolizam o ímpeto desenfreado da violência. Trata-se de animais consagrados a Posídon, deus dos Oceanos e das tempestades, a Dioniso, deus da virilidade fecunda e inesgotável”. (BRANDÃO, 1987a, p. 31). 

A vitória de Héracles sobre o touro cretense simbolizava o triunfo sobre o indomável e o feroz. Novamente o herói conseguia aplacar uma fera, ao mesmo tempo em que o touro também era um animal sagrado, pois havia sido criado por Poseidon para ser sacrificado. Nesse sentido nota-se também a função de Héracles ir buscar uma oferenda e entregá-la ao rei. O simbolismo do touro é bem mais amplo, mas para esse estudo optei em abordar apenas tais características, caso contrário demandaria um texto bem mais extenso para analisar especificamente esse trabalho. 

8) Oitavo Trabalho: As Éguas de Diomedes


O oitavo trabalho proposto por Euristeu a Héracles, o levou a ir a Trácia. A Trácia é uma região antiga que ao longo dos séculos teve suas fronteiras alteradas. A região ficava situada no sudeste dos Bálcãs, ocupando o que hoje são territórios da Grécia, Bulgária e Turquia. Os trácios eram considerados pelos gregos antigos como um povo bárbaro, inclusive essa barbárie é visível neste mito. 

Em azul a antiga região da Trácia. 

“Diomedes, filho de Ares e Pirene, o cruel rei da Trácia, possuía quatro éguas, Podargo, Lâmpon, Xanto e Dino, que eram alimentadas com as carnes dos estrangeiros que as tempestades lançavam às costas da Trácia. Euristeu ordenou a Héracles de pôr termo a essa prática selvagem e trazer as éguas para Argos. O herói foi obrigado a lutar com Diomedes, que, vencido, foi lançado às suas próprias bestas antropófagas. Após devorarem o rei, as éguas estranhamente se acalmaram e foram, sem dificuldade alguma, conduzidas a Micenas. Euristeu as deixou em liberdade e as mesmas acabaram sendo devoradas pelas feras do monte Olimpo”. (BRANDÃO, 1987b, p. 104). 

De acordo com outra versão do mito, Diomedes testou o herói, desafiando a tentar domar as quatro éguas carnívoras. Se conseguisse fazer isso, ele cederia os animais de bom grado. Héracles levou várias semanas para conseguir domar aqueles animais arredios. Diomedes vendo que o herói obteve êxito, negou-se a entregar os animais. Héracles com raiva atirou Diomedes as próprias éguas, as quais o mataram. Independente da versão, em todas Diomedes é morto por seus próprios animais. 
Ilustração representando o rei Diomedes sendo devorado por suas éguas. Ilustração feita para uma propaganda de alimentos da Liebig Cards, 1928. Na época a empresa lançou doze cartões comemorativos, cada um retratando um dos Doze Trabalhos de Héracles. 

A grande questão que podemos tirar desse mito diz respeito a visão que os gregos possuíam sobre barbárie. Cavalos como se sabe são animais herbívoros, embora alguns mais agressivos possam morder, eles não comem carne, e mesmo que eventualmente isso ocorresse, eles não não poderiam sobreviver apenas comendo carne. No mito as éguas de Diomedes sobrevivem apenas comendo carne, mas a questão não é essa que nos interessa, mas sim o fato de que o rei as alimentava com carne, no caso, carne humana. 

Comer carne humana para os gregos era algo hediondo (embora para outros povos também). Os ciclopes comiam carne humana, embora fossem racionais, eram considerados monstros e bárbaros por causa disso. Na Odisseia, Odisseu e seus companheiros ficaram aterrorizados pelo fato de Polifemo comer carne humana. O mesmo ocorreu com Héracles quando ele soube que Diomedes alimentava suas éguas com carne humana. 


Nesse sentido, alimentar animais herbívoros com carne significava perverter, corromper e depravar a natureza deles. Segundo, alimentar com carne humana significava um ato hediondo e bárbaro. Diomedes no mito é dito ser rei da Trácia, mas a Trácia era uma região diversa, possuindo várias comunidades e até mesmo governantes independentes, mas para a visão grega da época, tudo aquilo era uma coisa só, e além disso um local de barbárie. 


A Macedônia, Trácia, Cítia, Pérsia, Líbia, Egito, Babilônia etc., eram terras consideradas habitadas por povos bárbaros, embora os gregos tivessem suas ressalvas com os egípcios. No pensamento grego, eles eram a sociedade civilizada, os demais eram semicivilizados, bárbaros ou até mesmo selvagens. Diomedes encarna essa visão preconceituosa dos gregos antigos em remeter ao distante, ao diferente, ao estranho, um elemento de inferiorização, corrupção e degradação. Héracles ao conseguir domar as éguas carnívoras e punir Diomedes, representava a supremacia do civilizado sob o bárbaro, a vitória da moral sobre a depravação, do correto sobre o errado. 

9) Nono Trabalho: O cinturão de Hipólita


“Foi a pedido de Admeta, filha de Euristeu e sacerdotisa de Hera argiva, que Héracles, acompanhado por alguns voluntários, inclusive Teseu, seguiu para o fabuloso país das Amazonas, a fim de trazer para Admeta o famoso Cinturão de Hipólita, rainha dessas guerreiras indomáveis. Tal Cinturão havia sido dado a Hipólita pelo deus Ares, como símbolo do poder temporal que a Amazona exercia sobre seu povo. A viagem do herói teve um incidente mais ou menos sério. Tendo feito escala na ilha de Paros, dois de seus companheiros foram assassinados pelos filhos de Minos. É que Nefálion, um dos filhos do rei cretense com a ninfa Pária, havia se estabelecido na ilha supracitada com seus irmãos Eurimedonte, Crises e Filolau e com dois sobrinhos, Alceu e Estênelo. Pois bem, foram esses filhos de Minos que, com seu gesto impensado, provocaram a ira de Héracles, que, após matar os quatro irmãos, ameaçou exterminar com todos os habitantes de Paros. Estes mandaram-lhe uma embaixada, implorando-lhe que escolhesse dois cidadãos quaisquer da ilha em substituição aos dois companheiros mortos. O herói aceitou e, tendo tomado consigo Alceu e Estênelo, prosseguiu viagem, chegando ao porto de Temiscira, pátria das Amazonas. Hipólita concordou em entregar-lhe o Cinturão, mas Hera, disfarçada numa Amazona, suscitou grave querela entre os companheiros do herói e as habitantes de Temiscira. Pensando ter sido traído pela rainha, Héracles a matou. Uma variante relata que as hostilidades se iniciaram, quando da chegada de Alcides. Tendo sido feita prisioneira uma das amigas ou irmã de Hipólita, Melanipe, a rainha das Amazonas concluiu tréguas com o filho de Alcmena e concordou em entregar-lhe o Cinturão em troca da liberdade de Melanipe”. (BRANDÃO, 1987b, p. 105).

Pintura de um vaso grego representando Héracles matando uma amazona. 

Independente da versão do mito no qual Hipólita morre ou não, é fato que houve um conflito entre os gregos e as amazonas, que no final, após uma sangrenta luta, Héracles e seus companheiros obtiveram não apenas o Cinturão de Ares, mas também saquearam a cidade e até tomaram algumas das amazonas como escravas. 

Temíscera era uma cidade mítica situada no norte do que hoje é a Turquia. A região era habitada por vários povos, mas no caso, os gregos consideravam que as Amazonas eram descendentes dos Citas. Um povo das estepes centrais da Ásia, os quais se espalharam em torno do Mar Negro. As amazonas representavam uma sociedade bárbara aos olhos dos gregos, algo que encontra paralelo com a viagem de Héracles a Trácia. Novamente o herói se encontrava em terras hostis e parcialmente conhecida dos gregos, pois na época que estes mitos se tornaram populares, os gregos já possuíam colônias na Trácia e no Mar Negro. Ainda assim, o contato deles com outros povos nem sempre era amistoso, e mesmo que o fosse devido ao comércio, ainda era pautado no estranhamento. 

De qualquer forma, esse trabalho nos revela dados interessantes: primeiro, que sugere ir pegar ou roubar o cinturão, não foi o rei Euristeu, mas sua filha, a qual desejava ter aquele cinturão. Devido ao capricho da princesa, Héracles se submeteu a tal missão. No entanto, o mito conta que a princesa Admeta era sacerdotisa de Hera, logo, acredita-se que o fato dela pedir para ter o cinturão, tivesse sido sugerido pela própria deusa como forma de lançar seu desafeto em novo perigo. As amazonas eram conhecidas por serem bárbaras e exímias guerreiras, inclusive até mesmo temida por alguns. Mesmo assim, Héracles, Teseu e outros guerreiros decidiram se aventurar até lá. 

A vitória de Héracles e seus companheiros sobre as Amazonas, novamente representa a vitória da civilidade grega quanto a barbárie estrangeira. Mas neste caso entra em cena o fato daquele povo ser predominante composto por mulheres. Não irei adentrar mais detalhadamente nesse tema, pois já o estudei em outro trabalho, o qual pode ser conferido no link, no final deste texto. De qualquer forma, o combate entre gregos e amazonas representa também a luta entre o masculino e o feminino, sobre um ideal de feminilidade que se encontra totalmente oposto entre as amazonas. Para os gregos, a mulher amazona era o oposto da mulher grega, devido ao seu comportamento independente, rebelde, exaltado, agressivo e bárbaro. 

Gravura representando Héracles submetendo Hipólita, após derrotá-la para obter o seu cinturão. 

Derrotar as amazonas era uma forma de punir aquele desvirtuamento comportamental, embora como nos revela o mito, Hipólita a qual ficou apaixonada por Héracles, decidiu de bom grado entregar o cinturão, mas Hera vendo que isso poria abaixo seu plano, decidiu agir. Aqui se encontra outra interpretação: as amazonas não seriam tão bárbaras como se supunha, pois se não tivesse sido a intervenção da deusa Hera, o conflito não teria ocorrido. 

Outra interpretação que advém desse mito diz respeito ao cinturão. Sobre isso Junito Brandão escreveu o seguinte: 


“O cinturão ou simplesmente o cinto, atado em torno dos rins, por ocasião do nascimento, religa o um ao todo, ao mesmo tempo que liga o indivíduo. Toda a ambivalência de sua simbólica está resumida nestes dois verbos, ligar e religar. Religando, o cinto dá maior segurança e tranqüilidade, reanima, transmite força e poder; ligando, acarreta, ao revés, a submissão, a dependência e, por conseguinte, a restrição, escolhida ou imposta, da liberdade. Materialização de um engajamento, de um juramento, de um voto feito, o cinto assume um valor iniciático, sacralizante e, materialmente falando, torna-se uma insígnia visível, as mais das vezes honrosa, que traduz a força e o poder de que está investido seu portador. Para não multiplicar os exemplos, é bastante observar as "faixas" dos judocas, de cores variadas e significativas, os cinturões, em que se penduram as armas e os inumeráveis cintos votivos, iniciáticos e de aparato, mencionados pelas tradições e ritos de todas as culturas”. (BRANDÃO, 1987b, p. 107).

“Símbolo de ligar e religar, símbolo de humildade e submissão, símbolo do poder e da justiça, mas igualmente do "poder castrador", símbolo da continência, o Cinturão de Hipólita passou do "poder castrador", para o poder de continência: deixou de ser visado por uma Amazona, para guarnecer os rins de Admeta, sacerdotisa de Hera”. (BRANDÃO, 1987b, p. 108). 

A obtenção do Cinturão de Hipólita nesse sentido seria visto como uma forma de dignificar os feitos de Héracles, de reconhecer seu serviço e sua dedicação em cumprir com os trabalhos propostos pelo rei Euristeu. Embora o herói não tenha usado o cinturão, ainda assim, os simbolismos de ligar e religar estão a ele associados.


10) Décimo Trabalho: Os bois de Gerião

Após conquistar vitória na terra das amazonas, Héracles retornou para Micenas, entregando o precioso cinturão para a princesa Admeta, então se pôs a aguardar as ordens para o próximo trabalho. Algum tempo depois, Euristeu apresentou sua ordem. A missão de Héracles era roubar os bois vermelhos que pertenciam a Gerião, o qual era neto da Medusa


Segundo o mito, Gerião vivia na ilha de Eritria, local mítico que ficava situado em algum lugar do Oceano Atlântico. Para alguns estudiosos Eritria não seria uma ilha mítica, mas algum local situado na Espanha, Portugal ou no Marrocos. Talvez até mesmo nas Canárias e em Cabo Verde. A geografia dos gregos antigos a respeito do ocidente da Europa e da África era bastante imprecisa, daí eles considerem haver várias ilhas naquela região. 


Para chegar a Eritria, Héracles foi procurar a ajuda do titã Hélios, o Sol. Viajando pelo deserto líbio, na África, a procura de Hélios, Héracles vendo que o titã não desceria do céu para ajudá-lo, ameaçou de atirar suas flechas venenosas nele. Hélios apavorado com aquilo, indagou o que o herói queria. Héracles respondeu que queria saber o caminho para Eritria. Hélios lhe entregou a Taça do Sol, a qual lhe mostraria o caminho. Outra versão diz que ele apenas apontou a direção. 


Héracles pegou um navio e zarpou para o oceano, chegando a ilha de Eritria, ele avistou o rebanho de bois vermelhos de Gerião, mas este não estava presente. No lugar, encontrava-se o pastor Eurition e um cão de duas cabeças, chamado Ortro (irmão de Cérbero). Eurition e Ortro enfrentaram Héracles, mas foram mortos. Enquanto isso, outro pastor de nome Menetes foi avisar o gigante que o seu gado estava sendo roubado por um forasteiro. 


Aos gritos de fúria Gerião surgiu no campo. Era um gigante de três cabeças e três corpos, ligados pela cintura. A criatura possuía seis braços, mas duas pernas. Portava espadas, lanças e escudos. Após ferrenha batalha, Héracles matou o gigante de três cabeças. Com isso ele reuniu todo os seu gado (não é mencionado quantos animais havia no rebanho) e iniciou a longa viagem de volta. Pelo fato de não possuir um navio que pudesse acomodar a todos, Héracles teve que conduzir o rebanho por terra. 


Ilustração digital representando Héracles lutando contra o gigante Gerião. 

A jornada de Héracles de volta a Grécia levou meses. Nesse tempo o herói passou por vários locais da Espanha, Líbia, sul da França e Itália, até finalmente retornar a Grécia e entregar os raros bois vermelhos para Euristeu. Nesse entretempo existem várias narrativas envolvendo essa jornada do herói por tais terras. No entanto, para não alongar o estudo, preferi não adentrar a estas narrativas. 

Quando finalmente conseguiu desembarcar o gado na Grécia, Hera irritada pelo fato de que o herói em breve completaria mais um trabalho, enviou um enxame de moscas, as quais fizeram o rebanho se espalhar. Alguns dos animais correram até a Trácia. Héracles teve nova dificuldade para reuni-los, mas conseguiu reunir apenas uma parte do rebanho, e entregou este a Euristeu, o qual sacrificou os bois a Hera. Que por sua vez zombou de Héracles. 


Percebe-se que diferente dos outros trabalhos, Héracles nesse teve que deliberadamente roubar os bois. Embora que alguns mitólogos indaguem se o intuito dele conseguir o cinturão de Hipólita, também não seria um roubo, pelo menos de acordo com algumas versões daquele mito? 

Nesse décimo trabalho, o herói realizou uma longa jornada até chegar a Eritria, mas uma jornada ainda mais extensa e demorada para levar o gado a Grécia. Para alguns mitólogos, os vários locais que Héracles teve que passar na jornada de volta, possam ser reflexo da popularização de seu mito e da identidade genealógica que os gregos possuíam com o passado. Entre os séculos VII a.C e I a.C, os gregos fundaram colônias pelo Mediterrâneo e o Mar Negro. Colônias foram fundadas na Itália, França e Espanha, locais onde Héracles visitou durante a jornada de volta, na qual levava o rebanho de Gerião. Possivelmente a passagem do herói por tais locais possa ser uma referência a colonização grega daquelas terras, assim como, uma forma de encontrar respaldo no passado, no intuito de justificar que aquelas terras não lhes eram desconhecidas, pois seu grande herói já havia as visitado. 


Não obstante, o roubo dos bois é algo bastante interessante. Brandão (1987b) citando Brelich, comenta que era hábito entre os gregos a pilhagem como forma de adquirir riqueza. Em algumas guerras históricas e míticas, a pilhagem de rebanhos era comum, pois a pecuária era uma das bases da riqueza entre os gregos. Inclusive tal fato é tão importante que mesmo monstros e os deuses possuíam rebanhos. Como vimos, Gerião possuía o rebanho de um gado bovino vermelho; os ciclopes que Odisseu encontrou em sua viagem, criavam ovelhas e carneiros. Hélios, Hades e Apolo eram alguns dos deuses que possuíam rebanhos de bovinos ou equinos. 


O fato de Héracles roubar um rebanho era reflexo dessa cultura grega antiga, embora seja importante dizer que o roubo de gado era considerado crime. Normalmente quando isso ocorria, era devido a algum conflito ou batalha, pois as leis da guerra dos antigos gregos, permitiam a pilhagem e a escravização de inimigos. Troia é um grande exemplo disso. Os gregos não apenas saquearam a cidade, mas como escravizaram seu povo, além de incendiarem a cidade. 


11) Décimo Segundo Trabalho: A captura de Cérbero

Euristeu vendo que suas chances de se livrar de seu primo ou de humilhá-lo plenamente estavam chegando ao fim, decidiu arriscar tudo, lhe dando uma das mais difíceis tarefas que um herói poderia realizar: descer ao mundo dos mortos e retornar. Na verdade Euristeu desejava que Héracles não retornasse de Hades, e assim se livraria dele para sempre. Todavia, mesmo para os heróis descer ao Hades não era tarefa simples e fácil. 


Héracles foi buscar a ajuda de seu pai Zeus, para orientá-lo sobre o que fazer. O rei do Olimpo enviou Hermes e Atena para auxiliar o filho mortal nessa difícil empresa. A forma como o herói desceu ao Hades foi através de uma caverna, mas onde essa caverna ficava, muda de versão para versão. De qualquer forma, guiado por Hermes e Atena, Héracles conseguiu permissão de Caronte para embarcar em seu barco da morte e seguir até os Portões do Inferno.


Adentrando o Reino de Hades, Héracles se deparou com as sombras dos mortos (eidolon). Os relatos variam acerca do nome de quem ele encontrou, mas alguns falam que o herói conheceu Meleagro, a quem fez a promessa de se casar com sua irmã Dejanira (a qual se tornou a segunda esposa de Héracles); ele também encontrou os heróis Piritoo, Teseu e Escáfalo, os quais motivados por motivos mesquinhos, acabaram se encrencando ao tentarem adentrar o Hades, mas foram aprisionados. Héracles os ajuda a escapar, após completar esse trabalho. 


Após percorrer o submundo ele finalmente foi se encontrar com seu tio Hades e sua esposa Perséfone, em seu palácio. Héracles contou o motivo de sua visita, Hades e Perséfone concordaram, desde que o herói não machucasse o cão, pois embora fosse um monstro, os Senhores do Submundo tinham grande apresso por ele, pois consideravam seu animal de estimação. Héracles deveria subjugar e acorrentar Cérbero sem derramar seu sangue e evitar de machucá-lo. 


Assim Héracles decidiu usar a força bruta para domar a criatura de três cabeças, rabo de serpente, e cobras nas costas, para que assim pudesse colocar-lhe coleiras. 


Estátua de Héracles capturando Cérbero. Ryan Willets.

Após conseguir capturar o terrível cão de guarda do Hades, Héracles soltou os heróis presos, então os quatro em companhia de Hermes e Atenas deixaram o submundo. Héracles conduziu o cão infernal até Micenas. Euristeu ao ver terrível criatura se escondeu dentro de seu vaso de bronze, tremendamente apavorado. Novamente seu primo havia realizado mais um trabalho. Havia conseguido retornar do mundo dos mortos, e para completar, retornará trazendo o seu guarda. 

“O Cão do Hades representa o terror da morte; simboliza os próprios Infernos e o inferno interior de cada um. É de se observar que Héracles o levou de vencida, usando tão-somente a força de seus braços e que Orfeu, "por uma ação espiritual", com os sons irresistíveis de sua lira mágica o adormeceu por instantes. Estes dois índices militam em favor da interpretação dos neo-platônicos que viam em Cérbero o próprio gênio do demônio interior, o espírito do mal. O monstruoso guardião do Hades só pode ser dominado sobre a terra, quer dizer, por uma violenta mudança de nível e pelas forças pessoais de natureza espiritual. Para vencê-lo, cada um só pode contar consigo mesmo”. (BRANDÃO, 1986, p. 243). 

A descida de Héracles ao Hades para capturar Cérbero, depois seu retorno para devolver o cão, representa em termos simbólicos um rito iniciático conhecido entre os gregos como catábase, ou seja, a morte simbólica. Em diferentes culturas existem ritos parecidos, nos quais a pessoa passava por um processo pelo qual simbolicamente ele morria para este mundo, mas renascia em seguida. Tratava-se de ritos com caráter espiritual e/ou religioso. Héracles na sua busca pela redenção, havia passado pela catábase, ou seja, ele nascia novamente para o mundo, no sentido de ganhar uma segunda chance, de expiar sua culpa e poder levar uma nova vida. No entanto, ainda restava um último trabalho a ser resolvido. 


12) Décimo Primeiro Trabalho: O Jardim das Hespérides

As Hespérides era o nome dado as deusas do entardecer Eglia, Eritia e Hesperaretusa, mas também ao local onde se localizava um belo jardim criado pela deusa Gaia, e dado de presente de casamento para Hera. Diziam que este encantador e divino jardim ficava situado no desconhecido Ocidente. Lá havia macieiras as quais geravam maçãs de ouro. No entanto, as preciosas macieiras além de serem cuidas pelas três deusas e sete ninfas, seu principal guardião era um dragão imortal com cem cabeças. 


Pintura retratando as deusas Hespérides e os pomos dourados. 

Euristeu acreditava que Héracles não conseguiria encontrar esse divino jardim, e tão pouco passar pelo dragão de cem cabeças. O rei havia incumbido seu primo de conseguir alguns dos preciosos pomos de ouro. Héracles dessa vez não contou com a ajuda de seu pai e irmãos, então decidiu procurar por conta própria. Ele viajou para o Norte, e na Macedônia foi desafiado por um salteador de estrada chamado Cicno, o qual era filho de Ares e Pelopia. Durante o conflito, o herói assassinou seu sobrinho, aquilo irou Ares o qual veio a terra desafiar o irmão. Os dois começaram a lutar, mas Atenas zelando por Héracles, fez o ataque de Ares errar, e nisso Héracles feriu o deus da guerra em uma das coxas. Revoltado o deus da guerra se retirou do campo de batalha, poupando seu meio-irmão. 

Depois disso Héracles seguiu para o norte da Itália, até o rio Erídano (talvez o atual rio Pó). Lá ele encontrou algumas ninfas que viviam no rio. As ninfas compadecidas pelo herói lhe contaram que o velho ancião do mar, o deus Nereu sabia como chegar ao Jardim das Hespérides. Héracles desceu até o mar a procura de Nereu. Diferentes versões do mito narram a dificuldade do herói de capturar o travesso Nereu, o qual gostava de mudar de forma para enganar as pessoas. Após derrotá-lo em seu jogo, o velho deus indicou o caminho. 


Héracles desceu para a Líbia, na África. Enquanto viajava por lá, foi atacado pelo gigante Anteu. Após matá-lo, um povo de anões, chamados Pigmeus decidiram vingar o gigante e atacaram Héracles. O herói os derrotou facilmente e levou (ou teria enviado) alguns para Euristeu. Depois disso ele viajou ao Egito, onde foi emboscado por homens a serviço do tirânico Busiris, o qual segundo o mito era o rei do Egito. Após derrotar o tirano, Héracles viajou para à Ásia indo chegar ao Cáucaso, onde conheceu o titã Prometeu. Lá o herói libertou o titã acorrentado. Este em agradecimento aconselhou Héracles a pedir ajuda de seu irmão Atlas, para que esse conseguisse os pomos, pois Héracles não teria chance de enfrentar o dragão imortal de cem cabeças que guardava o jardim. 

Pintura retratando o encontro de Héracles e Prometeu. 

Héracles então viajou para o Ocidente, até onde se localizava Atlas, o qual foi sentenciado a segurar o céu nas costas pela eternidade. O titã vivia próximo do Jardim das Hespérides. Os mitos não dizem onde seria o local do jardim. Alguns mitólogos tentaram situá-lo nas Canárias, em Cabo Verde, no Marrocos, em Portugal, Espanha, Inglaterra etc. A questão é que não há um local exato. No entanto, na África existe as Montanhas Atlas, uma extensa cordilheira que percorre o Marrocos, Argélia e a Tunísia. Para alguns estudiosos, o mítico jardim ficaria localizado em algum local dessa cordilheira. 

Independente de onde se situava esse mítico jardim, Héracles conseguiu encontrá-lo, então conversando com Atlas, lhe contou sua tragédia e jornada. Atlas aceitou a proposta do herói. Se ele segurasse o céu em seu lugar, ele iria buscar os pomos de ouro. Atlas cujas filhas moravam no jardim, não teve dificuldade de ir lá e pegar alguns frutos. Todavia, ao retornar até onde Héracles estava segurando o céu, o titã ameaçou de ir embora e deixar o herói ali. Héracles sagazmente decidiu dar o troco no titã traiçoeiro. Segundo uma versão ele ameaçou deixar o céu cair, o que fez Atlas agarrá-lo. Outra versão diz que ele pediu ajuda a Atlas para poder mudar para uma posição mais confortável. De qualquer forma Atlas acabou segurando o céu, então Héracles pegou o saco com as maçãs e foi embora. 

Desenho representando Héracles e Atlas. 

Retornando a Micenas ele entregou as maçãs douradas a Euristeu o qual ficou surpreso com aquilo. Não imaginava que o primo encontraria o jardim dos deuses. Sem saber mais o que fazer, além do fato de ter sido desmoralizado em fracassar no intuito de se livrar de seu primo ou humilhá-lo. Euristeu libertou Héracles de servi-lo e lhe deu as maçãs. O herói as ofertou a Atena, a qual devolveu os frutos divinos ao jardim. Héracles havia completado seus Doze Trabalhos. 

O mito do trabalho de viajar ao Jardim das Hespérides, parece como o mito dos bois de Gerião, uma reunião de vários mitos numa narrativa principal. De fato ao longo da realização dos Doze Trabalhos, Héracles teve outras aventuras, muitas não foram comentadas aqui, pois preferi focar apenas nos trabalhos. De qualquer forma nestes dois trabalhos em particular, o herói viajou por várias terras. Neste último ele percorreu terras de três continentes, representando em parte as terras conhecidas pelos antigos gregos. 


Não obstante, a ideia de procurar por um jardim dos deuses ou um "paraíso terreno" é tema de vários povos ao longo dos séculos. O herói sumério Gilgamesh passou por um formoso jardim, onde as frutas eram joias. Aladim entra numa caverna na China, dentro da qual se encontrava um belo jardim e tesouros. Segundo algumas lendas, Alexandre, o Grande teria procurado um jardim destes na Índia. Marco Polo no século XIV, em seu livro, relatou lendas sobre viajantes que falavam de um jardim fabuloso controlado pelo Velho da Montanha, em algum local da Pérsia. No século XVI, o navegador espanhol Ponce de León foi associado a lenda da Fonte da Juventude. Na Idade Média europeia havia histórias que falavam de locais fantásticos onde as pessoas sempre eram jovens, onde havia prosperidade, paz e alegria. Histórias que falavam da Ilha de São Brandão, da ilha de Hybrazil, da ilha de Avalon ou do País da Coconha


Nota-se que nestes exemplos percebe-se a ideia comum que permeava diferentes povos ao longo da História, de que no mundo haveria locais fantásticos. O Jardim das Hespérides pera os gregos antigos era um destes locais. Neste caso, analisar esse mito apenas por esse referencial demandaria um estudo específico, embora alguns estudiosos já tenham escrito livros obre isso. 


Não obstante, ainda analisando esse mito, nota-se que nas atividades paralelas que Héracles realizou durante a viagem até o jardim, podemos encontrar outros elementos interessantes. O herói na Macedônia enfrenta o ladrão Cicno e o mata. Isso leva seu pai Ares a desafiar o herói. Aqui temos dois elementos a perceber: um é a realização da justiça, na qual Héracles põe fim a um criminoso; mas, sobretudo, o fato do herói lutar contra um deus. Na mitologia grega há várias histórias de homens e mulheres que desafiaram os deuses e sofreram consequências gravíssimas. No entanto no caso desse mito, Héracles não apena lutou contra o temível deus da guerra, mas o derrotou (mesmo que através da intervenção de Atena), ainda assim, era tido como um grande feito. 


Neste ponto, se o leitor prestou atenção nos trabalhos e nas missões secundárias, deve ter notado que consistiam em maneiras de enaltecer a pessoa de Héracles. De lhe conceder fama e glória. Isso de fato é proposital na narrativa, pois essa é uma história de redenção, renovação, superação. O herói foi desmoralizado pelo crime que cometeu, então decidiu servir os outros para se retratar. A ideia de que os heróis devem sempre lutar pelo bem e salvar pessoas é um conceito que surgiu tempos depois. Entre os gregos antigos, a maioria dos heróis não faziam necessariamente isso. Héracles é uma das exceções.


Prosseguindo o relato, vimos que ele matou outro criminoso, o gigante Anteu, e depois o tirânico rei Busiris. Novamente vemos o herói fazendo justiça (mesmo que fosse com as próprias mãos). No caso de Anteu, o gigante toda vez que caia na terra, era reerguido por essa, pois Gaia era a sua mãe. O fato de Anteu toda vez que caia na terra e era refortalecido, possui distintas interpretações, as quais estão relacionadas com a ideia de que o contato com o solo não apenas dissipa energias, mas também lhe fornece energia. Além disso, algumas interpretações veem nisso um simbolismo para a renovação da natureza.


Héracles lutando contra Anteu. Vaso grego, século VI a.C. 

No caso de Busiris, o rei ordenava a captura de estrangeiros e os oferecia em sacrifício. O tema do sacrifício humano era problemático entre os gregos. Há histórias de pessoas que foram sacrificadas e até mesmo mitos sobre isso, mas os estudiosos sobre o assunto acreditam que não fosse uma prática comum realizar sacrifícios humanos. Por sua vez no mito, não podemos nos esquecer que Busiris é um rei estrangeiro, logo, bárbaro. Tal condição era um fator para respaldar o porque da sua vilania e crueldade.

Posteriormente o herói encontrou Prometeu e o libertou. Aqui vemos um ato de bondade, pois embora o titã estivesse preso há muito tempo, devido a ter roubado o fogo dos deuses e o dado a humanidade, Héracles se compadeceu do titã aprisionado, então recorrendo a Zeus, solicitou que pudesse libertar o prisioneiro. Depois o herói foi de encontro a Atlas, titã castigado a ter que segurar o céu pela eternidade. Aqui nota-se o simbolismo do pilar do mundo. Simbolismo esse associado com a sustentação, o equilíbrio, a ligação entre a terra e o céu, entre o mundano e o divino. 


Quando Héracles assume o lugar de Atlas, enquanto esse foi buscar as maçãs, por um tempo o herói tornou-se esse "pilar do mundo", esse sustentáculo. E isso é interessante no mito se lembrarmos que ele era um semideus, ou seja, nem humano e nem deus, mas um ser híbrido, um ser intermediário. Por tal ponto de vista, Héracles na condição de semideus, estava entre o mundano e o divino, e esse simbolismo do "pilar do mundo", claramente expressa esse sentido. Pois o pilar está entre o que se encontra embaixo e o que se encontra em cima. 


Por fim, quanto ao simbolismo das maçãs, Brandão (1987b, p. 116-117) comenta que em muitos casos a maçã é um símbolo associado a obtenção de conhecimento e sabedoria, embora tal conhecimento possa ser usado para o bem ou para mal. Além disso, a fruta também está relacionada em alguns casos com a vida, a fecundidade e a imortalidade. Uma lenda indiana diz que haveria maçãs que concederiam a imortalidade. Na mitologia nórdica os deuses comem maçãs que prolongam a sua vida. A maçã também seria entendido como um símbolo de liberdade, no sentido que ao saber das coisas, a mente estaria livre de mentiras e ignorâncias. Neste caso Héracles ao conseguiu as maçãs completava o último grau de sua jornada de redenção: a libertação de sua culpa e o conhecimento sobre a realidade da vida. 


Considerações finais: 

“Parece assim que os gregos exprimiram, sob a forma do “heroico”, problemas ligados a ação humana e a sua inserção na ordem do mundo. De fato, quando a tragédia nasce na Grécia e durante o curto período em que floresce antes de desaparecer, ela utiliza as lendas de heróis para apresentar certos aspectos do homem em situação de agir, na encruzilhada da decisão, as voltas com as consequências dos seus atos. Porém, no mesmo momento em que se alimenta da tradição heroica, a tragédia se situa em um outro plano que o do culto e mitos de heróis; ela os transforma em função da sua própria indagação desse exame com que o homem grego, em um certo momento da sua historia, põe em questão o próprio homem: a sua posição diante do destino, a sua responsabilidade com relação a atos cuja origem e fim o ultrapassam, a ambiguidade de todos os valores propostos a sua escolha, a necessidade, entretanto, de uma decisão”. (VERNANT, 1990, p. 432). 

“Ele não realiza o impossível pelo fato de ser um herói; ele e um herói pelo fato de realizar o impossível. A proeza não e emprego de uma virtude pessoal, mas o signo de uma graça divina, a manifestação de uma assistência sobrenatural. A lenda heroica não fala do homem como de um agente responsável, no centro dos seus atos, que assume o seu destino. Ela define tipos de proezas, modelos de provas, em que sobrevive a lembrança de antigas iniciações, e que estilizam, sob a forma de atos humanos exemplares, as condições que permitem adquirir qualificações religiosas, prerrogativas sociais excepcionais”. (VERNANT, 1990, p. 434).

“O tema que os mitos dos heróis ilustram e a possibilidade, em certas condições, de estabelecer uma passagem entre o mundo dos homens e o dos deuses, de revelar em uma prova a presença do divino em si”. (VERNANT, 1990, p. 434).

A partir desses comentários feitos por Jean-Pierre Vernant, apresento minhas considerações. Como apontado por Joseph Campbell acerca da jornada do herói, este ao concluir sua jornada iniciática, retorna triunfante e apto a salvar as pessoas, solucionar problemas, combater perigos etc. Mas para isso o herói teve que passar por uma série de dificuldades que não apenas lhe proporcionaram experiência, mas testaram sua força, confiança, coragem, honra, lealdade, determinação, inteligência etc. Assim podemos fazer um rápido apanhado de cada um dos Doze Trabalhos, apontando aspectos centrais.
  1. Leão de Nemeia: reconhecimento da virtude
  2. Hidra de Lerna: derrota do mal
  3. Javali de Erimanto: vitória sobre o selvagem
  4. Corça Cerinia: teste de paciência
  5. Aves de Estínfalo: derrota das trevas
  6. Estábulos do rei Augias: purificação 
  7. Touro de Creta: vitória sobre a força bruta
  8. Éguas de Diomedes: derrota da crueldade
  9. Cinturão de Hipólita: vitória sobre os bárbaros, dignificação
  10. Bois de Gerião: provações, determinação
  11. Cérbero: morte simbólica, renascimento
  12. Jardim das Hespérides: autoconhecimento, inspiração, liberdade
Embora seja simplista essa lista acima, mas como comentado ao longo do texto, há várias interpretações e conceitos que podemos extrair de cada um dos trabalhos. Optei em fazer essa lista final seguindo a ideia de Campbell e da sua jornada do herói. Assim, cada trabalho realizado teria um um valor específico o qual testaria Héracles em sua caminhada pela redenção, mas também para ganhar fama e glória. Pois com o término dos Doze Trabalhos, mesmo que o herói tenha realizado outras façanhas posteriores, os Doze Trabalhos foram o ápice de seus feitos. 

Não obstante, para além do campo simbólico e até psicológico aqui comentando, vimos que os mitos também possuíam um respaldo religioso, social e cultural, refletindo práticas, concepções, hábitos, condições e ideias da época. Embora o mito tenha sofrido variações ao longo dos séculos, conseguimos até certo ponto delinear certas influências de alguns períodos. 

De fato os mitos tinham como função relacionar, narrar e explicar o mundo. As pessoas ouviam aquelas histórias sobre Héracles e se encantavam, comoviam-se e se inspiravam na sua tragédia, jornada e vitórias. Os heróis tinham um papel de inspiração para a sociedade (algo que ainda hoje ocorre). Sendo assim, mesmo que ninguém saísse atrás de monstros, animais fantásticos, fosse para guerras ou conseguisse viajar por várias terras, ainda assim, as pessoas se inspiravam na coragem, devoção, honra, determinação e força dos seus heróis, a fim de motivá-las contra os problemas do dia a dia, pois a tragédia para os antigos gregos era algo bem próximo, tanto que praticamente todas as histórias de heróis e outras pessoas, há momentos trágicos. 

Além disso, os heróis gregos necessariamente não possuíam superpoderes, Héracles é uma das exceções. A maioria dos heróis se destacavam por sua coragem, determinação e ambição, em superar os limites humanos e continuar a lutar após suas tragédias. Essencialmente o herói grego era um homem como qualquer outro, passível dos desaforos, desafetos, problemas, desilusões, decepções da vida. Essa proximidade aumentava a empatia com estes personagens.


E isso é algo tão forte que Alexandre Magno dizia ser grande admirador de Héracles. O imperador romano Cômodo chegou a se vestir como o herói, usando uma pele de leão e portando uma clava. Luís XIV chegou a se fantasiar de Alexandre, de Apolo e até de Héracles. Os gregos e romanos antigos ergueram templos para o herói e lhe prestavam culto. Séculos depois as artes adaptaram as histórias de Héracles, resgatando ao mundo contemporâneo seu heroísmo. Mesmo passados mais de dois mil anos, as histórias de Héracles ainda fascinam. 

NOTA: Após os Doze Trabalhos, Héracles casou-se com Dejanira, cumprindo a promessa que havia feito ao irmão dela. Posteriormente ele se aliou a Jasão e um grupo de heróis que ficaram conhecidos como os Argonautas. Todavia, a participação na missão dos Argonautas foi breve, pois o herói a fim de ajudar um amigo que havia desaparecido durante a viagem, abandou a expedição. 

NOTA 2: No fim da vida Héracles provou seu valor e Zeus lhe concedeu a imortalidade. O herói que se tornou um deus, casou-se com sua meia-irmã Hebe, a deusa da juventude. 
NOTA 3: Poseidon para punir o rei Minos pela afronta de não sacrificar o touro que lhe envio, fez que sua esposa, a rainha Pasifae acasalasse com um touro. A rainha deu a luz a uma criatura monstruosa, o Minotauro. Envergonhado com isso, Minos pediu que seu arquiteto-chefe e inventor Dédalo, construísse um labirinto para abrigar horrível monstro. 
NOTA 4: Tentar datar a época que Héracles viveu é algo problemático, pois dificilmente se consegue datar um mito, no entanto, há algumas pistas para isso. Alguns estudiosos gregos antigos tentaram datar a época da Guerra de Troia, apontando que essa teria ocorrido entre os séculos XIII e XII a.C. Héracles viveu antes da guerra, como nos atestam alguns mitos. No entanto, outro mito diz que o herói teria fundado os Jogos Olímpicos, e a data normalmente aceita para o início das Olimpíadas é 776 a.C. 
NOTA 5: Os Doze Trabalhos de Hércules (The Labours of Hercules) é um livro de Agatha Christie publicado em 1947 e traz doze contos de investigações realizadas pelo detetive Hercule Poirot, que decidi pegar casos que apresentassem referências simbólicas aos trabalhos de Hércules. 
NOTA 6: O escritor brasileiro Monteiro Lobato publicou Os Doze Trabalhos de Hércules (1944) em doze contos, recontando tais narrativas a partir do ponto de vista de personagens do Sítio do Pica-pau Amarelo.

Referências Bibliográficas:
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BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega, vol. 2. Petrópolis, Vozes, 1987a. 3v 
BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega, vol. 3. Petrópolis, Vozes, 1987b. 3v 
BRELICH, Angelo. I greci e gli dèi. Napoli, Liguori Editore, 1985. 
CAMPBELL, Joseph. O herói das mil faces. São Paulo, Cultrix, 1995.
CHEVALIER, Jean; GHEERBANT, Alain. Diccionario de los símbolos. Barcelona, Editorial Herder, 1986. 
FUNARI, Pedro Paulo. Grécia e Roma. São Paulo, Editora Contexto, 2002.
GARLAN, Yvon. El militar. In: VERNANT, Jean-Pierre (ed.). El hombre griego. Madrid, Alianza Editorial, 1995.
MÉNARD, René. Mitologia greco-romana, vol. 3. 2a ed. Tradução de Aldo Della Nina. São Paulo, Opus Editora, 1991. 3v
MOSSÉ, Claude. El hombre e la economia. In: VERNANT, Jean-Pierre (ed.). El hombre griego. Madrid, Alianza Editorial, 1995. 
SCARPI, Paolo. Capítulo V: El Grecia. In: FILORAMO, Giovanni; MASSENZIO, Marcello, RAVERI, Massimo; SCARPI, Paolo. Historia de las Religiones. Traducción María Pons. Barcelona, Crítica Barcelona, 2000. (Série Mayor). 
VERNANT, Jean-Pierre. Mito e pensamento entre os gregos. 2a ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990. 
VERNANT, Jean-Pierre. Los origines del pensamiento griego. Barcelona, Paidós, 1992. 

Links relacionados: 
O mito grego das amazonas
Os heróis gregos

Um comentário:

  1. Excelente artigo! Uma tentativa brilhante de correlacionar os 12 trabalhos de Hércules aos desafios mais difíceis que o homem precisa realizar para se tornar pleno e redimido.

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