sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

A misteriosa ilha Brasil

Por séculos cartógrafos registraram em seus mapas uma misteriosa ilha situada a oeste da Irlanda, assim como, navegantes contam histórias de terem avistado essa ilha e até mesmo a visitado. Contam-se histórias que nessa ilha abundaria riquezas, e seu povo seria desenvolvido, sábio e pacífico. A ilha seria habitada por um povo misterioso, outros falavam que seriam elfos, e outros apontam seres mais estranhos ainda. A misteriosa ilha de acordo com alguns relatos, costumava desaparecer por sete anos, e passado esse tempo, ela retornava. Alguns falam que uma névoa a ocultava. 

Mas que lugar seria realmente esse que era conhecido como Ilha Brasil ou Hy Brasil? Lugar que para alguns estudiosos foi a origem do nome do país Brasil, situado na América do Sul. Pois apesar de que nas escolas brasileiras normalmente nos informa que o nome do país adveio da árvore pau-brasil. Porém, os indígenas não chamavam essa árvore de pau-brasil, mas por outros nomes. Quando os portugueses chegaram oficialmente em 1500, reconheceram tais árvores como sendo pau-brasil, isso sugeriria que eles já tivessem noção sobre tais árvores? Além do mais, de onde teria vindo o nome Brasil?

Nesse texto procurei contar um pouco da história por trás da lenda da Ilha Brasil, e como ela poderia ter influenciado a origem do nome do país Brasil. 

A vastidão desconhecida: 

Em vários cantos do mundo existem histórias sobre ilhas e continentes misteriosos, localizados em algum lugar dos oceanos. Atlântida no Oceano Atlântico, Lemúria no Oceano Índico, Mu no Oceano Pacífico, são alguns dos continentes ou grandes ilhas mais famosos, os quais fascinam o imaginário ao longo da História. Teriam sido locais reais, ou não passam de antigos mitos e lendas? Mas para além desses três exemplos, a literatura lendária abunda de histórias sobre centenas de ilhas que nunca foram achadas, ou que foram encontradas, mas consistindo em equívocos dos cartógrafos, navegadores e exploradores. No caso do Atlântico Norte existem várias histórias sobre ilhas perdidas no oceano, histórias essas que remontam desde a Antiguidade. 

É preciso pensar que o planeta Terra somente começou a ser mapeado globalmente a partir das Grandes Navegações iniciadas no século XV, mas os mapas-múndis somente se concluíram no século XIX, pois ainda naquele tempo, ocorriam a descoberta de ilhas, muitas desabitadas. Pois mesmo que naquele tempo já se soubesse que o mundo fosse esférico, o globo ainda não havia sido totalmente mapeado. Na prática apenas no final do século XX, com o uso de satélites, pôde-se mapear o mundo com mais precisão. 

Logo com a ausência de todo esse conhecimento e tecnologias, os povos de outrora não faziam a miníma ideia da extensão do mundo e quantas ilhas e continentes haveriam neste. Se ainda hoje novas espécies animais e vegetais continuam a ser descobertas anualmente, o que dizer daqueles tempos? Com isso, histórias sobre lugares fantásticos, distantes, exóticos etc., sempre abundaram o imaginário acerca do que haveria além do país onde eu vivo. O quão vasto seria o mundo e que mistérios ainda existiriam. 

William H. Babcock (1922, p. 1-2) comenta que os gregos antigos, possuíam vários relatos sobre ilhas misteriosas, embora muitas se supõe que seriam situadas no Mar Mediterrâneo, alguns estudiosos gregos posteriores e romanos, alegavam que poderiam ficar no Atlântico. Por exemplo, temos histórias de Héracles (Hércules na versão romana) cruzando o Estreito de Gibraltar, indo em direção a ilha do gigante Gerião, e posteriormente o herói busca o Jardim das Hésperides, que supostamente também estaria localizado numa ilha no ocidente; temos as desventuras de Odisseu e sua tripulação em tentar retornar a Ítaca. Nessas viagens Odisseu e seus homens acabaram chegando a uma ilha habitada por ciclopes, outra ilha habitada pela traiçoeira feiticeira Circe, outra ilha habitada pela ninfa Calipso etc. Também possuímos o relato do herói Perseu viajando até a ilha da Medusa, a fim de matar terrível criatura. 

Posteriormente, temos o famoso relatos de Platão (428-348 a.C) em Timeu e Critias, os quais abordam Atlântida, lar de prodigiosa civilização avançada, localizado no Mar de Sargaços, a qual teve um trágico fim, afundando em uma única noite. Os gregos antigos contam histórias de que os fenícios haviam tentando encontrar Atlântida e Meropes ou Merópida, uma terra aonde existiria uma fonte da juventude. Tais histórias são mencionadas por Teopompo de Chios, Aristóteles e Scylax de Karynda. Posteriormente encontramos a menção a outras ilhas, sendo essas relatadas por Estrabão, Plutarco, Sêneca e Pítias. (BARROSO, 1941, p. 25). 

A história dessas ilhas se manteriam pelos séculos seguintes. Mantendo uma tradição greco-romana de ilhas fantásticas e misteriosas, cujas histórias acabaram sendo alteradas ou reinventadas. Com isso, passamos para a próximo ponto, as lendas irlandesas sobre ilhas misteriosas. 

Lendas celto-irlandesas sobre ilhas misteriosas: 

A Irlanda era habitada desde a Pré-história, sendo que tribos celtas migraram para lá por volta do século V a.C, iniciando sua Idade do Ferro. Posteriormente os gregos e romanos tomariam conhecimento da existência dessa ilha, a qual aparecia com o nome de Ierne. (POWELL, 1974, p. 25). Os romanos acabaram não mostrando interesse em colonizar a Irlanda, além de terem problemas em tentar invadi-la, optando em permanecer na Bretanha, inclusive ignorando a Escócia, a qual consideraram terra bárbara e de difícil conquista. E acabaram erguendo duas muralhas para manterem os Pictos longe de seus domínios. 

Passados mais alguns séculos, a Bretanha começou a ser cristianizada, e a Irlanda tornou-se alvo de evangelizações pouco tempo depois. No século V, um monge bretão de nome Patrício (387-431) destacou-se na evangelização dos irlandeses. A atuação de Patrício lhe rendeu fama a qual gerou lendas sobre seus feitos, como ter travado lutas mágicas contra druidas e ter expulso todas as cobras da Irlanda. São Patrício tornou-se o santo padroeiro da Irlanda, e até hoje sua festa é bastante popular no país e nos Estados Unidos, devido a imigração irlandesa. 

Graça a iniciativa evangelizadora de São Patrício, parte da população irlandesa, havia se tornado cristã, décadas depois de sua morte, nasceria um outro importante santo para a Irlanda, seu nome era Brandão (c. 484 - c. 577). São Brandão empreendeu ao longo de sua vida, várias viagens por sua terra natal, promovendo a conversão de novos fiéis, ajudando na criação de abadias, mosteiros e igrejas. Viajou para a Escócia e a Bretanha. Porém, além de visitar estes lugares, Brandão teria visitado outras ilhas, pois teria sido um exímio e intrépido navegante. Em meio a essas viagens marítimas o santo teria encontrado ilhas misteriosas. 


São Brandão e seus discípulos, em um navio sobre um peixe-gigante (talvez uma baleia). Manuscrito alemão do século XV. 
São Brandão na Idade Média tornou-se um dos santos mais populares e famosos da Irlanda. Hoje são conhecidos três manuscritos que contam seus feitos e missões. Dois dos manuscritos são hagiografias, a Vitae primae Sancti Brendani, Vita secunda Brendani e o Navigatio Sanctii Brendani


“A Nauigatio é um texto independente das duas outras vidas latinas de São Brandão, conhecidas como Vitae primae Sancti Brendani e cujos manuscritos são datados entre os séculos XIV e XV, mas a composição e a língua atestando uma data mais antiga, entre meados dos séculos XI e XII. Temos, nestes textos, o tema da peregrinação terrestre do santo. A Vita secunda Brendani, cujos manuscritos são datados do século XVIII, trata também de peregrinação, mas, neste caso, de uma peregrinação marítima. A Betha Brenainn (“Vida de Brandão”) é um texto hagiográfico em irlandês medieval de composição do final do século XI, cujo manuscrito é datado do século XV, conhecido como o Book of Lismore. E o manuscrito de Lisboa da Navegação, em latim, parece ser uma recensão das diferentes aventuras do santo, comprovando o sucesso da tradição brendaniana em Portugal”. (DONNARD, 2009, p. 19). 

Apesar do manuscrito Navigatio Sanctii Brendani (São Brandão, o Navegador) ter se tornado popular ao longo de séculos, a obra somente foi escrita muito tempo depois da morte do santo. Estima-se que tenha sido redigida pelo menos cinco séculos após Brandão ter morrido. Além do fato de que o manuscrito que foi encontrado no século XV, no Livro de Lismore, provavelmente não seja a mesma versão do século X ou XI. Ainda assim, o Navigatio antecede as duas hagiografias do santo, o que mostra diferenças no estilo de escrita. (BABCOCK, 1922, p. 35).

Para William H. Babcock (1922, p. 36), Gustavo Barroso (1941, p. 65-66) e Ana Donnard (2009, p. 19-20) apontam que as histórias de São Brandão como navegador possam ter advindo de uma tradição literária irlandesa, de narrativas de viagens marítimas. 

“As narrativas célticas habitualmente comparadas à matéria brendaniana são: Imram Brain maic Febail (“Viagem de Bran filho de Febail”) Imram Curaig Maelduin (“Viagem do barco de Maeldui”), Imram Curaig hua Corra (“Viagem do barco de Hui Corra”), Imram Brendan (“Viagem de Brendan”), Imram Snedgusa ocus mac Riagla (“Viagem de Snedgus e Mac Riagla”). Para o quadro de uma análise comparativa da Navigatio Brendani, acrescenta-se também a Echtra Clereth Choluim Cille (“Aventuras dos clérigos de Columb Cille”), sendo esta última narrativa parte do estoque literário do cristianismo céltico, enquanto as anteriores se inserem na tradição pré-cristã. Essas narrativas foram coletadas e transcritas entre os séculos VII e XI e são, portanto, anteriores à tradição hagiográfica brendaniana”. (DONNARD, 2009, p. 19). 

Barroso (1941, p. 65) comenta que encontram-se registro de lendas gaélicas acerca de misteriosas ilhas situadas ao oeste, norte e sul do arquipélago bretão. Histórias que falavam de uma terra venturosa chamada Macmeld, a qual diziam que lá, as pessoas seriam imortais. Além disso, temos as histórias de heróis navegantes como Condlé, Maldwin e Bran, filho de Febal (ou Tebal). Neste caso, Babcock (1922, p. 36) sugeriu a hipótese de que as viagens de São Brandão poderiam ser uma reinterpretação das viagens do navegador Bran ou do navegador Brandão. Curiosamente ambos os nomes são iguais, e neste caso, Bran é apelido de Brandão. Aqui o autor sugere que a narrativa do santo teria sido uma adaptação cristã de lendas pagãs. De qualquer forma, independente da origem do relato, entre as supostas descobertas do santo, existiria uma ilhar em particular que foi batizada de Ilha de São Brandão

É difícil precisar uma versão apenas do Navigatio, já que devido a sua popularidade, várias cópias foram feitas. De acordo com Geraldo Cantarino (2004, p. 152), foram encontrados pelo menos 120 cópias manuscritas do Navigatio, a maioria redigida em latim, mas algumas escritas em inglês, francês, alemão, flamengo, italiano, provençal e nórdico. Posteriormente encontra-se cópias em língua portuguesa e espanhola, já que como veremos adiante, tal manuscrito se popularizou em Portugal e Espanha no tempo da Era dos Descobrimentos. 

Sendo assim, como estamos falando de manuscritos copiados para distintas línguas, numa época que não havia preocupações com direitos autorais, tradução etc., algumas dessas versões trazem variações na história, o que prejudica e dificulta o estudo de tais fontes. De qualquer forma, a lenda conta que São Brandão não teria de uma hora para outra decidido se aventurar ao mar, ele teria recebido a visita de um monge irlandês que lhe falou a respeito de uma paradisíaca terra situada a oeste da Irlanda. Maravilhado com o relato daquele monge, Brandão teria se disposto a ver pessoalmente aquela terra agraciada por Deus. Com isso ele mandou construir um navio e reuniu 17 monges, os quais lhe serviram de tripulação. 

O itinerário de sua viagem não é descrito no Navigatio, apenas se diz que foi uma longa viagem de sete anos, tendo Brandão e seus companheiros passado por várias aventuras e perigos. Eles teriam confundido um "grande peixe" com uma ilha, inclusive teria desembarcado nele, achando se tratar de terra firme; teriam visto a grande serpente marinha; uma torre de cristal, bolas de fogo caindo do céu, monstros marinhos etc. (CANTARINO, 2004, p. 153). 


Gravura espanhola retratando a confusão de São Brandão em pensar que o monstro Jasconius fosse uma ilha. Nessa gravura datada de 1621, a Ilha de São Brandão fica localizada ao norte das Ilhas Afortunadas e a noroeste da África. 
São Brandão não encontrou apenas uma ilha, mas várias. Os manuscritos relatam uma ilha que seria um rochedo com um castelo, outra habitada apenas por carneiros e ovelhas; depois desembarcaram na Ilha dos Pássaros, os quais os relatos informam que tais pássaros falavam, e outra versão diz que eram anjos que foram transformados por Deus naqueles animais. Em seguida passaram pela Ilha dos Frutos, onde abundavam pomares, mas a ilha era habitada por gigantes, os quais cultivavam aquela rica variedade de frutos. Depois eles chegaram a uma ilha onde se encontrava uma abadia perdida, onde as pessoas eram eternamente jovens, mas faziam um perpétuo voto de silêncio. A viagem de Brandão prossegue em se visitar outras exóticas ilhas, como encontrar Judas acorrentado num rochedo, sendo guardado pelo Leviatã, ou encontrar a suposta forja de Satanás. Posteriormente eles encontram uma pequena ilha habitada por um eremita centenário, chamado Paulo, o qual informa-nos que a "terra prometida" que eles buscavam, estava próxima. (BARROSO, 1941, p. 66-73).

São Brandão após sete anos de viagem pelo Oceano Atlântico finalmente chegou a terra descrita pelo monge irlandês. Posteriormente ele e seus homens foram guiados por um gigantesco peixe chamado Jasconius, o qual os levou de volta a Irlanda. O local ficaria conhecido como Ilha de São Brandão, a qual atrairia vários marinheiros e navegantes a sua procura. E essa busca não é algo fictício, até o século XVI havia gente que procurava a tal ilha paradisíaca visitada por São Brandão. A popularização dessa sua suposta aventura, contribuiu para a duração dessa lenda, tornando essa ilha por muito tempo uma das lendas irlandesas mais conhecidas sobre ilhas misteriosas. 

A Ilha de São Brandão supostamente aparece no Mapa de Hereford (c. 1275) situada a oeste das Ilhas Afortunadas. Desde os grego antigos, as Ilhas Afortunadas foram associadas ora com o Jardim das Hespérides, local por onde Héracles e Perseu passaram, mas também foi associado aos lar dos Bem-aventurados, local equivalente posteriormente aos Campos Elísios. Todavia, na Idade Média acreditava-se que tais ilhas fossem o atual Arquipélago das Canárias, situado na costa oeste da África. Logo, a suposta ilha de São Brandão ficaria próximo das Canárias. (BABCOCK, 1922, p. 39). 


Mapa de Hereford, datado de cerca de 1275. Esse é o primeiro mapa conhecido no qual consta uma representação da Ilha de São Brandão. A tal ilha é a primeira ilhaàa direita dos Pilares de Hércules, no mapa, representado pelo número sete. Neste caso, o autor do mapa de Hereford situava a Ilha de São Brandão na costa africana. 
Em mapas nos séculos seguintes até pelo menos o XVIII, a ilha de São Brandão continuou a ser situada próximo das Canárias ("Ilhas Afortunadas"). Embora que alguns estudiosos chegaram a cogitar que teria sido um erro de interpretação dos antigos cartógrafos, pois no Navigatio diz que Brandão teria seguido para oeste da Irlanda e não para o sul, daí alguns cogitarem se a suposta ilha não seria uma referência as Américas

Umberto Eco (2014, p. 151) comentou que por se tratar de uma ilha imaginária, sua geografia necessariamente não deveria corresponder a realidade. Daí encontrar-se mapas que situam a ilha na costa africana, estando ora próximo do Arquipélago das Canárias, mas também do Arquipélago da Madeira e dos Açores, até mesmo a situam no extremo ocidente, e a chamam de Ilha Perdida (Insula Perdita) uma referência ao fato de que nenhum outro navegante conseguiu reencontrá-la. Mas para além dessas localidades, as quais supostamente se situariam a Ilha de São Brandão, em determinado momento chegaram a cogitar que ela fosse a tal Ilha Brasil. 

A Ilha Brasil nos mapas:  

Apesar de a ilha de São Brandão ter seguido bastante popular até o século XVI, no século XIV, começou a aparecer em alguns mapas de origem italiana e espanhola uma ilha chamada Brasil. A origem dessa misteriosa ilha ainda é desconhecida, pois as lendas irlandesas falam de várias ilhas. Não obstante, o fato de essa ilha ter ganho destaque para constar em mapas já no século XIV, ainda é desconhecido. 

O mapa mais antigo a mencionar a Ilha Brasil, é um mapa de 1325 feito pelo genovês Angellinus Dalorto, o qual situou a ilha a sudoeste da Irlanda. A ilha aparece com uma forma circular, e de acordo com a escala do mapa, aparenta ter sido razoavelmente grande. Aqui se faz necessário mencionar que no século XIV, os italianos, especialmente os genoveses eram os principais cartógrafos da Europa. Muitos dos mapas que foram produzidos naquele século eram de origem italiana, o que revela a proeminência de Gênova quanto ao comércio Mediterrânico e até de longa distância, enviando mercadorias para a Alemanha, Holanda, Inglaterra, Constantinopla etc. 


Detalhe do mapa de Angellinus Dalorto (1325), mostrando a localização da Ilha Brasil. 
O segundo mapa a mostrar a mesma ilha foi feito por Angelino Dulcert, a quem hoje se acredita que possa se tratar também de Angellinus Dalorto, consistindo numa variação de seu nome. Este segundo mapa é bem parecido com o primeiro e foi datado de 1339. Mostrando a Ilha Brasil na mesma direção do que no mapa anterior.


Mapa de Angelino Dulcert (1339). Nesse antigo mapa o autor já situa a presença da Ilha Brasil. Ela consiste num ponto cinza, no lado esquerdo da Irlanda, no canto superior esquerdo do mapa. 
Todavia é curioso a indagação da ausência de mapas ingleses e irlandeses que mostrassem a Ilha Brasil. Possivelmente tais mapas possam ter existido, mas acabaram se perdendo ou não foram descobertos. Pois apesar de terem sido os italianos os primeiros a mencionarem em seus mapas a Ilha Brasil, tal lugar não foi inventado por eles, mas já era conhecido na Irlanda e Inglaterra há bastante tempo. 


“Diversos estudos e uma extensa bibliografia citam a existência de referências cartográficas, associadas principalmente a uma ilha, com nomes grafados segundo uma diversidade de formas, encontrando-se Brazil, Berzil, Bracie, Brasil, Bracir, Brasill, Brezill, e outras relacionadas às ilhas místicas do Mar Tenebroso. Desde o século XIV, assinaladas por cartógrafos tão famosos na época, quanto foram Abraham Ortelius e Gehard Mercator, de uma forma impressionante essas representações atravessam o tempo e perduram praticamente até o fim do século XVI e início do século XVII. Reminiscência dessas representações, ou não, hoje em dia, pode ser encontrada a sudoeste da Irlanda, onde alguns rochedos, de pequena extensão, são conhecidos como Brazil”. (MENEZES, 2011, p. 7 apud CORTESÃO, 1954; CORTESÃO, 1969a).

Todavia, a localização da Ilha Brasil nem sempre foi situada a oeste ou sudoeste da Irlanda, mapas ainda do século XIV, já apresentavam uma localização diferente. No Atlas Medici (1351), a Insula Braci ficava situada próximo a costa de Portugal, estando associada ao Arquipélago da Madeira. Porém, naquele tempo a Madeira ainda não era conhecida dos portugueses ou seria? Outro mapa posterior, o Planisfério de Soleris (1385), também situava a Insula Braci na mesma localidade. Provavelmente o autor se baseou no Atlas Medici. (BARROSO, 1941, p. 101-102). 

“A cartografia dos anos subsequentes possui um aspecto no mínimo curioso, apresentando a ilha Brasil em posições diferentes, muitas vezes até, simultaneamente, o que certamente causa uma grande confusão, em termos de se associá-la a uma provável posição real. Por exemplo, o mapa de Pizigano, de 1367, existente na Biblioteca de Parma, registra três ilhas Brasil, sob o topônimo Insula de Bracir, uma a nordeste dos Açores, uma a oeste e outra ao sul da Irlanda. Esta última, segundo leitura do cartógrafo francês Phillippe Buache, é identificada pela designação de Ysola de Mayotlas Seu de Bracir”. (MENEZES, 2011, p. 8). 

No século XV o importante mapa do italiano Andrea Bianco, datado de 1436, indicava que Y. do Brazil ficaria situada ao sul de Cabo Verde. Naquele tempo as navegações portuguesas já havia passado pelo Arquipélago de Cabo Verde na costa africana. Todavia, o fato de estranhamente Bianco situar a Ilha Brasil ainda mais para o sul, é desconhecido. Porém, como comentando por Menezes (2011), o Mapa de Pizigano (1367) registrava a existência de três ilhas Brasil. Seria a questão de que a palavra Brasil poderia ter sido um termo genérico para se referir a algum tipo de ilha?

No mapa de Fra Mauro, desenhado com a colaboração de Andrea Bianco, entre 1457 e 1459, a ilha Brasil voltou a ser situada a oeste da Irlanda, e era considerada uma das Ilhas Afortunadas. No Mapa de Gracioso Benicasa (1471), a Ilha Brasil compõe o arquipélago das Ilhas Afortunadas, ficando ao norte da Ilha de São Brandão. A imagem segundo sugere Menezes (2011, p. 11-12) teria sido uma tentativa do cartógrafo italiano de organizar a localização dos arquipélagos africanos das Canárias e Cabo Verde, pois ambas as ilhas fantásticas aparecem junto a outras das ditas Ilhas Afortunadas. 

No ano de 1493, o cosmógrafo, astrônomo e geógrafo alemão Martin Behaim (1459-1507) produziu um globo para retratar os continentes do mundo e algumas das suas mais importantes ilhas. O globo embora fosse um projeto bastante interessante para a geografia da época, não mostra a existência do continente americano, naquele tempo "descoberto" por Colombo, o qual havia retornado para a Espanha naquele ano. De qualquer forma, Behaim representou a Ilha de São Brandão e a Ilha Brasil, sendo essa dividida ao meio por um grande rio. Em seu mapa ele usou o nome Prazil ao invés de Brasil. Segundo Barroso (1941, p. 111), uma variação de pronúncia na língua alemã. Além disso, outros cartógrafos conservaram essa variação também. 


Mapa do hemisfério ocidental do Globo de Behaim (1493). A ilha de São Brandão está situada, no extremo ocidente, sendo bem grande. Já a Ilha Brasil (Prazil) fica localizada a oeste da Irlanda. 
Apesar de alguns mapas dos séculos XIV e XV mostrarem variações quanto a posição da Ilha Brasil, a partir do século XVI, a maioria dos mapas mantiveram a Ilha Brasil como estando situada a oeste da Irlanda. No mapa abaixo, este sendo de origem turca, o cartógrafo Piri Reis (c. 1465-1553), o qual com exímio talento procurou traçar o contorno das costas, situava a Ilha Brasil em seu local de costume, próximo a Irlanda. 

Mapa de Piri Reis (1513). Nesse belo mapa do século XVI, o proeminente cartógrafo e almirante turco fez menção a ilha Brasil estando a oeste da Irlanda. 
Todavia apesar de muitos autores no século XVI, ainda continuarem a mostrar a Ilha Brasil em seus mapas, apesar de que o Brasil já houvesse sido "descoberto" desde 1500, o que revela a primeira vista, nenhuma ligação entre ambos, embora possa ter havido alguma relação, algo que veremos mais adiante. No mapa-múndi de Gerardus Mercartor (1569), um das projeções geográficas mais conhecidas da Idade Moderna, ao ponto de ainda hoje influenciar nosso modelo de mapa-múndi, Mercartor trazia a ilha Brasil a oeste da Irlanda, e a oeste desta situava a ilha de São Brandão. Todavia, ele também traz o Brasil na América do Sul, reconhecendo se tratar de dois lugares diferentes, apesar de compartilharem o mesmo nome. 


Mapa de Gerardus Mercartor (1569). Em vermelho as ilhas Brasil e de São Brandão. Por sua vez a colônia portuguesa do Brasil possui parte de sua costa destacada numa América do Sul incompleta. 
O que se sabe sobre a ilha Brasil?

Até aqui vimos um pouco da história da ocorrência da Ilha Brasil em mapas entre os séculos XIV e XVI, apesar de mapas posteriores ainda fazerem menção a tal local pelo menos até o século XVII, quando ela deixa de ser um objeto de curiosidade cartográfica. Todavia se essa misteriosa ilha ao longo de séculos apareceu em dezenas de mapas, afinal o que é que se sabe de fato sobre ela? O que as lendas contavam a seu respeito que fosse significante ou maravilhoso de forma que constasse em importantes publicações cartográficas ao longo de três séculos?

Primeiro é preciso dizer que pouco se conhece acerca da Ilha Brasil, muito dos relatos e lendas que hoje se tem conhecimento, advém da tradição oral, a qual acabou por se perdendo. Dispomos apenas de breve menções em mapas, trabalhos cartográficos e descrições de viagens. Quando se ler esse pouco conteúdo, nota-se discrepâncias entre si, além de obter-se pouca informação da ilha. Em geral os relatos se limitam a dizer que determinada pessoa avistou a ilha e viu coisas estranhas e maravilhosas, mas se dizer o que propriamente se tratava.

Assim como outras lendas irlandesas sobre ilhas fantásticas, a Ilha Brasil, também conhecida como Hy-Brasil entre outros nomes, era descrita como sendo uma "terra abençoada", uma "terra prometida", em irlandês antigo era conhecida por talvez ser a Tír na nÓg ("terra da eterna juventude"). Em suma os relatos falam que a Ilha Brasil assim como as Ilhas Afortunadas que aparecem em mitos gregos e romanos, seriam verdadeiros paraísos terrenos. Lugares de paz, felicidade e prosperidade, aonde seus habitantes viveriam uma vida longeva e sempre jovens. (MITCHELL, 2006, p. 157).

Nessa terra maravilhosa, habitaria um povo antigo, sábio, próspero e justo. Os quais seriam governados por um monarca integro e preocupado com o bem estar de todos. Algumas variações das lendas falam que a ilha seria habitada por fadas ou elfos, algo bem comum da mitologia celta e do folclore irlandês, a presença destes seres em seus mitos e lendas. A própria Avalon das lendas do Rei Arthur seria habitada por fadas ou elfos. 


A Ilha Brasil em detalhe do mapa de Abraham Ortelius (1572). 
Apesar de hoje a Ilha Brasil ser vista integralmente como uma lenda, houve épocas que as pessoas tentaram encontrá-la. Um relato inglês datado de 1480, de autoria de Guilherme de Botoner, informa que naquele ano, um navio capitaneado por John Jay Jr partiu de Bristol, no dia 15 de julho, e após nove meses de viagem em busca da Ilha Brasil, nada foi encontrado. Anos depois o embaixador espanhol D. Pedro de Ayala, em visita a Inglaterra, relatou em uma de suas cartas que os ingleses estavam nos últimos sete anos tentando encontrar a misteriosa ilha. D. Pedro de Ayala redigiu essa carta em 5 de julho de 1498, o que significa que entre o relato de Botoner e o seu, temos um espaço de 18 anos de possíveis viagens inglesas em busca da Ilha Brasil. (BARROSO, 1941, p. 153).

Hoje sabemos que o insucesso de tais expedições deve-se ao fato de tal ilha nunca ter existido. Porém, naquela época surgiram explicações que alegavam que a ilha ficaria mais distante do que se supunha, que fosse envolta por uma névoa misteriosa e que até mesmo desaparecia do nada. Um relato datado do século XV ou XVI, informava que a ilha desaparecia a cada sete anos. 

Em agosto de 1668, o médico irlandês Morough Ley conta que foi sequestrado por dois estranhos, os quais o levaram até uma misteriosa ilha, a qual diziam ser Hy Brazil. Ley retornou para sua cidade dois dias depois, trazendo um livro de medicina chamado de o Livro de O'Lees. De fato tal livro realmente existe, tendo sido escrito em latim, e trazia informações médica da época. Ley alegava que a obra não foi escrita por ele ou comprada em alguma livraria do país, mas veio diretamente de Hy Brazil. Na prática o livro não apresenta nada de excepcional, inclusive corrobora muitas das pesquisas e métodos já conhecidos à época e em desenvolvimento. Ley alegava que a obra supostamente possuiria métodos de cura avançados para a época. (LYNCH, 2009, p. 9).


Duas páginas do Livro de O'Lees, o qual Morough Ley alegava ter trazido da Ilha Brasil em 1668. 
No ano de 1674, o capitão John Nisbet de Killybegs, alegou ter realizado uma viagem para oeste da Irlanda, tendo avistado uma estranha ilha envolta em névoa. O capitão com alguns marinheiros aportaram na ilha e avistaram animais de fazenda por ali e mais adiante um castelo. Eles bateram na porta e chamaram, mas não houve resposta, então retornaram para a praia onde acenderam o fogo e decidiram passar a noite. Porém, um grande barulho os assustou, e eles retornaram para o navio ainda de noite. No dia seguinte avistaram vários idosos na praia. Eles usavam roupas fora de moda, e as palavras que usavam também eram antigas, algumas até mesmo em desuso. Os velhos relataram que estavam presos naquele castelo por causa de um feiticeiro. O fogo que o capitão acendeu teria quebrado o feitiço que os aprisionava. O capitão intrigado com aquilo, perguntou que ilha era aquela, os velhos responderam que se tratava de O'Brazile. (LYNCH, 2009, p. 9).

A história do médico Morough Ley e do capitão John Nisbet são consideradas por alguns estudiosos como invenções pessoais de tais homens, em busca de popularidade, pois no século XVII, as tentativas de encontrar a Ilha Brasil já havia sido abandonadas, além do fato de que em alguns mapas, a ilha nem mas aparecia. 

Controvérsias sobre a origem do nome Brasil: 

Pelo menos desde o século XIX estudiosos vem debatendo qual seria o significado da palavra brasil. Por sua vez, historiadores brasileiros e portugueses debatem desde aquele tempo a indagação se o nome do país Brasil seria uma referência a árvore pau-brasil como comumente se alega, ou seria uma referência a Ilha Brasil, pois desde o século XIV, os portugueses já tinham contato com mapas genoveses e catalãs que mencionavam essa ilha, inclusive quando a lenda de São Brandão chegou a Portugal por essa época, chamavam sua ilha de Ilha do Brasil de Brandão. (MENEZES, 2011, p. 6). 

Apesar do historiador Gustavo Barroso na década de 1940 ter escrito um extenso trabalho sobre a lenda irlandesa da Ilha Brasil e até mesmo dedicou vários capítulos a debater a etimologia desse nome, chegando a defender que o nome do Brasil advinha da ilha e não da árvore, hoje se considera que para entender essa questão etimológica é preciso considerar que ambas as palavras tem origem e significados diferentes. Ou seja, a palavra brasil na tradição irlandesa possuía um determinado significado; por sua vez, a palavra brasil na tradição portuguesa, aqui em referência a árvore usada na tinturaria, possuía outra origem e sentido. Assim, preferi explanar o significado da palavra brasil nestes dois contextos. 

a) Brasil a partir do nome da ilha:

Em documentos irlandeses e ingleses, e posteriormente nos mapas a partir do século XIV, encontram-se várias variações quanto ao nome Brasil, Brazil, Bersil, Brazir, O'Brazil, Hy Brazil, O'Brassil, Breasail etc. As variações devem-se mais por uma questão de tradução e interpretação fonética de outras línguas, mas propriamente não alteraria seu sentido. 

William H. Babcock (1922, p. 50) comenta que uma das hipóteses para o nome Brasil adviria de um herói semideus chamado Breasail ou Bresal, o qual também teria sido um rei irlandês. Tal hipótese foi sugerida em 1820 por James Hardiman, o qual observou o fato de que em lendas irlandesas-bretãs sobre alguns heróis, estes quando morriam, eram enterrados em ilhas. O próprio rei Arthur segundo algumas versões de sua lenda, foi levado para a ilha de Avalon.

Gustavo Barroso (1941, p. 125) comenta com base em Alf Torp e Moltke Moe, que a palavra brasil viria de bress, que significava benção, prosperidade. Inclusive na língua inglesa, a palavra benção se escreve bless, a qual é bem parecida com a palavra irlandesa bressTal hipótese parece ser bem plausível, pois a ilha era considerada um lugar abençoado e paradisíaco. 

b) Brasil a partir do nome das árvores: 

O leitor deve ter estranhado o caso de eu ter usado o plural e não o singular, pois afinal não existe apenas o pau-brasil com este nome? Na verdade o termo "pau-brasil" consistia num nome genérico empregado para se referir a distintas árvores utilizadas na tinturaria, principalmente para se extrair pigmentos na cor vermelha. 


“Várias foram as designações para a madeira de cor avermelhada utilizada pelos europeus como tinta para tecidos e outras utilidades: verzino pelos venezianos, bois de pernanbouc pelos franceses, arboles de tinturería pelos espanhóis, araboutan pelo incrível cronista Jean de Léry, ibirapitanga pelos indígenas, Presilholtz (madeira do Brasil) pelos alemães em 1514, verniz pelos portugueses e brisilicum para designar o pau do Brasil por Duarte Pacheco em circa 1505. A confusão entre o termo celta e a designação do pau-Brasil teve inicio a partir de um planisfério conhecido como Kunstmann IV, que toma um termo pelo outro, anunciando que o nome brasil derivava da abundância de “tinta brasil” encontrada sobre seu solo”. (DONNARD, 2009, p. 14). 

Segundo Barroso (1941, p. 77), a palavra brasil já existia no vocabulário espanhol há bastante tempo, sendo usada como sinônimo de carmesim e vermelho. Tal palavra era usada principalmente para se referir aos ofícios de tinturaria, no fabrico do pigmento de cor vermelha. 

No livro Singularidade da França Antártica (1558), escrita pelo capuchinho francês André Thevet, após sua estada no Brasil, mais precisamente na colônia da França Antártica, situada na baía de Guanabara, atualmente na cidade do Rio de Janeiro, Thevet comentou que o pau-brasil era parecido com uma árvore asiática comumente chamada de sapang ou sappan. Ainda hoje tal árvore em língua inglesa é conhecida como sappanwood. Seu nome científico é Caesalpinia sappan, e entre os portugueses era conhecida como pau-brasil das Índias ou pau-roxo de Sumatra. (BARROSO, 1941, p. 77).


Sappan, pau-brasil da Índia, pau-roxo de Sumatra (Caesalpinia sappan). 
O uso da sapang é bastante antigo. Relatos chineses, indianos e árabes da Alta Idade Média (V-X) fazem menção a uma árvore usada na tinturaria, na qual fornecia pigmentos vermelhos. Ela era comumente chamada de sapang, nome que se acredita ser de origem malaia. Babcock (1922, p. 52) baseado em Humboltd, sugerira a hipótese que a palavra brasa, brasero, brazir, braise, braciere, brasile, brasilem etc., encontradas nos idiomas português, espanhol, francês e italiano tenha advindo da palavra árabe bakkam. Nesse ponto se faz necessário recordar que os árabes ocuparam a Península Ibérica por mais de setecentos anos, além de terem tentado invadir a França, assim como, ocuparam a ilha da Sicília por algum tempo. Centenas de palavras de origem árabe foram incluídas principalmente nas línguas portuguesa e espanhola devido ao contanto mais longevo com aquele povo. 

Não obstante, a palavra bakkam de acordo com Humboltd, seria usada para designar pigmentos vermelhos. Não obstante, os árabes até o século XIII pelo menos, ainda eram os principais comerciantes marítimos no Mar de Mediterrâneo, inclusive eram eles que forneciam as especiarias e outras mercadorias orientais aos venezianos e genoveses, os quais por sua vez revendiam para outros países. 

“Referências ao comércio do pau-brasil podem ser encontradas também em uma série de documentos, principalmente em antigas pautas alfandegárias e forais governamentais, remontando aos séculos XII, XIII e XIV. De 1151, encontra-se um documento escrito em latim bárbaro, uma ordem de pagamento do arcebispo de Gênova a Filippe de Lamberto Guezzi, mencionando que uma quarta parte do pagamento seria realizado in brasilem. De 1194 é conhecido um documento, também escrito em latim bárbaro, versando sobre um tratado de paz celebrado entre os governos de Ferrara e Bolonha, referindo-se ao pagamento por carga muar, “de todos os panos de algodão, pedra hume, de grã e de brasile”. Além desses, outro documento, datado de 1198, denomina a tinta vermelha de braxilis. Esses termos, brasilem, brasile e braxilis, são então formas de referências, bastante antigas, atribuídas ao pau brasil”.  (MENEZES, 2009, p. 13 apud CÂNDIDO, 1922).


Pau-brasil (Caesalpinia echinata). 
Desde o século XIV pelo menos, os portugueses e espanhóis tinham conhecimento da árvore sappan e seu pigmento chamado brasil, apesar de muitos nunca terem visto essa árvore. No caso dos italianos o contato era mais antigo, inclusive em Veneza aparece o termo verzino para se referir a tal pigmento vermelho, em alguns documentos do século XII. Não obstante, de acordo com Pedro Mártir d'Anghiera, esse comentou que Cristóvão Colombo ao retornar de sua segunda viagem ao Novo Mundo, em 1495, relatou ter encontrado "pau-de-tinta", com o qual os nativos extraíam brasil. Fernando Colombo, filho de Cristóvão, comenta em uma carta que o local de onde os espanhóis iam coletar aquele "pau-de-tinta" na ilha de Hispaniola (Haiti), ficou conhecido como Porto Brasil. (BARROSO, 1941, p. 78). 

Nota-se por essa explanação que o nome brasil pelo qual os portugueses, espanhóis, franceses e italianos estavam mais familiarizados, estava relacionado a cor vermelha proveniente da árvore sappan do sudeste asiático. Logo, quando os espanhóis encontraram árvores similares nas Américas, não seria de estranhar que os portugueses quando tomaram posse de suas terras em 1500, também encontraram árvores que produzissem brasil. De fato o pau-brasil (Caesalpinia echinata), pertence a mesma família do sappan ou pau-brasil das Índias. Não obstante, a família Caesalpina possui várias espécies espalhadas pela Ásia e Américas. Logo, os portugueses e espanhóis se depararam com várias espécies de plantas dessa família e as chamavam genericamente de pau-brasil. 

A ilha Brasil e os portugueses: 

Por fim resta a comentar a questão de se o nome do país Brasil adveio de fato das árvores e seu pigmento, como normalmente foi dito nos livros desde o século XVI, ou adviria da ilha Brasil? Como visto, os portugueses já possuíam conhecimento do pigmento brasil desde o final da Idade Média. No ano de 1470 uma carta régia enviada ao rei D. Afonso V, na qual relatava uma lista de drogas do Oriente (termo da época para se referir a especiarias) fazia menção a brasil. 

Logo, os portugueses décadas antes de "descobrirem" o Brasil, já possuíam conhecimento do emprego dessa palavra para se referir ao pigmento vermelho extraído de algumas árvores. Planta essa comercializada pelos árabes, os quais a traziam das Índias para o Mediterrâneo. Logo, quando o Brasil começou a ser mapeado entre 1500 e 1503, não tardou para a Coroa Portuguesa conceder a Fernando de Loronha, monopólio na exploração de pau-brasil, pois as expedições anteriores atestaram a abundância dessas árvores naquelas terras. 

Não obstante, os portugueses também já tinham conhecimento das lendas da ilha do Brasil de São Brandão. Já que desde o século XIV essa ilha já aparecia em mapas. Inclusive reis portugueses solicitaram a cartógrafos italianos como Andrea Bianco, lhe fazerem mapas, e como visto, no mapa de Bianco encontra-se menção a ilha Brasil. 

Nesse ponto se faz necessário mencionar que houve expedições e quem dissesse que haveria avistado a Ilha Brasil. Entre os anos de 1499 e 1500, os navegantes portugueses João Fernandes Lavrador, Pedro de Barcelos e os irmãos Gaspar e Miguel Corte Real, chegaram a costa leste do atual Canadá, região já visitada pelos vikings cinco séculos antes. De qualquer forma, estes navegantes lusos retornaram a Portugal avisando acerca da sua descoberta, e nos anos seguintes novas viagens para a "ilha de Lavrador" foram autorizadas pela Coroa. 

Apesar dos seus "descobridores" não associarem tais terras com a ilha Brasil, algumas pessoas que tomaram conhecimento de tal lugar, cogitaram se aquela terra não seria a ilha Brasil ou a ilha de São Brandão, pois ficavam a oeste da Irlanda. Babcock (1922, p. 59) comenta que navegantes ingleses no século XVI, continuaram a viajar a Labrador e Terra Nova a procura da Ilha Brasil, pois havia quem disse-se que os portugueses teriam a avistado pelo Golfo de São Lourenço


O Golfo de São Lourenço, Canadá. No século XVI expedições inglesas percorriam essa região em busca da Ilha Brasil. 
Mas além de supostamente a Ilha Brasil ter sido vista pelos portugueses na costa do atual Canadá, havia quem disse que ela na verdade ficaria nos Açores. O arquipélago dos Açores é formado por nove ilhas, sendo a terceira delas nomeada de Ilha Terceira. Conta-se o relato que no sul dessa ilha, na Angra do Heroísmo, um monto local era conhecido pelo nome de Monte Brasil. Tal nome teria sido dado por um comerciante chamado Pero Luís de Sousa, o qual segundo o padre Manuel de Azevedo da Cunha, teria feito riqueza no Brasil, então se mudou para a ilha Terceira. O problema é que isso tudo ocorreu antes da chegada de Portugal ao Brasil. Como Pero Luís poderia ter feito fortuna numa época que a colônia lusitana do Novo Mundo nem se quer havia sido visitada? 

Para Geraldo Cantarino (2004, p. 182) isso se trataria de um equívoco terminológico e geográfico. Terminológico porque a palavra brasil já era comumente usada para se referir ao pigmento vermelho usado na tinturaria. O tal Pero Luís de Sousa de fato poderia ser negociante de brasil, mas não significasse que ele tivesse morado na colônia portuguesa do Brasil, já que ela nem se quer existia entre os anos de 1480 e 1490. Não obstante o autor comenta que em alguns mapas como o Atlas Medici (1351), o mapa de Pizigano (1367) e o Planisfério de Soleris (1385), situavam a Ilha Brasil na região dos Açores. Possivelmente motivado por tais mapas, os navegantes portugueses ao chegarem aos Açores no começo do século XV, possam ter tomado a Ilha Terceira como sendo a suposta Ilha Brasil. 


Mapa do Arquipélago dos Açores, 1999. No século XIV, alguns mapas italianos indicavam que a ilha Brasil ficariam nessa região. Posteriormente atribuiu-se supostamente a Ilha Terceira ser a Ysla Braçir que aparecia nos mapas antigos. 
Assim chegamos a questão final deste texto, o terceiro lugar no qual os portugueses supostamente teria encontrado a ilha Brasil, neste caso o próprio Brasil. Apesar de Pedro Álvares Cabral não ter sido o primeiro a liderar uma expedição a América Portuguesa, pois antes dele, navegantes espanhóis e até mesmo o próprio português Duarte Pacheco tenham passado pela futura costa brasileira, foi apenas com Cabral e sua armada de 12 navios e mais de mil tripulantes, que oficialmente em 22 de abril de 1500 o Brasil teve a posso decretada. 

Inicialmente Cabral e outros pilotos acharam que se tratava de uma ilha! Os leitores devem estar se perguntando se isso seria um indicativo de que Cabral tivesse achado que havia chegado a Ilha Brasil? Da mesma forma que supostamente Colombo acreditava ter chegado as Índias? Antes de tudo é preciso explicar determinadas condições para se evitar equívocos. No final do século XV, a existência de outros continentes para além da Europa, África e Ásia era considerada uma hipótese, mesmos os cartógrafos da época possuíam dúvidas se as terras descobertas por Colombo seriam parte de um continente desconhecido ou ilhas a meio caminho da Ásia. Logo, quando Cabral chegou a América do Sul, para ele aquelas terras seriam naturalmente uma ilha, pois de acordo com o pensamento da época, não se tinha certeza que haveria outros continentes.

Não obstante, ele chamou aquela terra de Ilha de Vera Cruz. Ora, se Cabral tivesse pensado que havia chegado a ilha Brasil, por que ele haveria dado-lhe um novo nome? Alguns poderão alegar que era costume dos europeus batizar as terras descobertas com nomes cristãos. De fato isso era verdade. A suposta ilha deixou de ser uma ilha, tornando-se Terra de Santa Cruz

Pero Vaz de Caminha, escrivão responsável por relatar a descoberta daquela terra para o rei D. Manuel de Portugal, a chamava de ilha, mas nada mencionou da ilha Brasil, nem se quer menciona a existência do pau-brasil ali. Algo que somente foi notificado nas expedições posteriores. A armada de Pedro Álvares Cabral a qual seguia com destino também a Calicut na Índia, era formada por pilotos, marinheiros e navegadores experientes, provavelmente muitos deles já tivessem ouvido falar da Ilha Brasil ou a visto em mapas da época. Se nenhum deles fez menção que a Ilha de Vera Cruz pudesse ser a ilha Brasil, é indicativo que eles soubessem que não se tratava do mesmo lugar, pois como dito, a partir de 1500, os mapas passaram a situar a ilha Brasil sempre a oeste da Irlanda. Apesar de Vera Cruz ficar no ocidente, aquelas terras ficavam a oeste da África e não da Europa. 


Planisfério de Cantino (1502). Nesse mapa, partes das Américas já estavam representadas, o que incluía a costa de Vera Cruz. Todavia, a ilha Brasil não aparece nesse mapa, e tão pouco a Ilha Terceira nos Açores é confundida com o Brasil. 
Considerações finais: 

Quanto a dúvida se o Brasil teria recebido o seu nome da ilha ou do pigmento vermelho, tal pergunta desde o século XVI apontava para a segunda indicativa, mas em termos historiográficos, desde o século XIX, historiadores como Capistrano de Abreu já afirmava que o nome Brasil se deveu ao comércio do pau-brasil e sua grande necessidade na indústria tintureira portuguesa. Por mais que os portugueses tivessem conhecimento da lenda da ilha Brasil, em momento algum e em nenhum documento ou mapa do século XVI, encontra-se a colônia do Brasil sendo confundida com a ilha das lendas irlandesas.

Isso por si só já seria um argumento convincente. Não obstante, alguns chegaram a alegar que o significado da palavra Breasil em irlandês antigo faria sentido também para o caso do Brasil, pois este foi considerado um país de abundância, prosperidade, uma terra verde e paradisíaca. Isso é correto, mas o problema é que tais adjetivos por si só não garantiriam o fato do Brasil receber seu nome proveniente da lenda irlandesa, pois como mencionado ao longo do texto, desde a Antiguidade existem vários mitos e lendas sobre ilhas fantásticas e paraísos terrestres. Se tomarmos tal argumentação baseada nos adjetivos que qualificavam a ilha, logo, teríamos dezenas ou centenas de lugares no Novo mundo que poderiam receber o mesmo nome.

Em suma, o nome Brasil como consta nos mapas desde o século XVI, possui dois significados. Tem o sentido irlandês para a ilha Brasil e o sentido português para a colônia Brasil. Sendo que a colônia lusa de fato recebeu seu nome por quase da árvore pau-brasil, a qual os portugueses consideravam ser bem parecida com a árvore sappan dos asiáticos. E de fato pertencem a mesma família. 

Quanto a ilha Brasil, ainda hoje não se sabe quando se originou ou porque somente a partir do século XIV começou a aparecer nos mapas europeus. Não obstante, os vikings entre os séculos VIII e XI navegaram em torno da Irlanda, pois chegaram a colonizá-la, mas não se conhece nenhuma lenda ou relato viking falando sobre a ilha Brasil ou outras ilhas próximas da Irlanda. Isso é um tanto curioso, pois os vikings foram exímios navegantes. O motivo para essa ausência são vários, mas não cabe comentá-los aqui nesse momento, ainda assim, a ilha Brasil se comparada a outras lendas irlandesas, seguia a mesmas características como sendo descrita como um lugar paradisíaco. 


“Entre mitologia degradada em folclore e a pura especulação fantasiosa pouco se pode dizer de substancial sobre o nome Brasil. Mas, pela frequência com que aparece na cartografia medieval e pela configuração com que ela se institucionalizou no folclore moderno, só se pode concluir que a ilha Brasil tenha sido um elemento importante de uma mitologia antiga e, como tantos outros mitemas do mundo céltico, tenha ficado perdida num passado impossível de ser reconstituído em toda sua completude. Restam-nos, infelizmente, apenas os fragmentos de uma mitologia que aponta claramente para sua identificação através de um conjunto de narrativas de viagem ao Outro Mundo da literatura gaélica medieval: os immrama. (DONNARD, 2009, p. 22). 

Referências Bibliográficas:

BABCOCK, William H. Legendary Islands of the Atlantic: a study in medieval geography. New York, American  Geographical Society, 1922. 
BARROSO, Gustavo. O Brasil na lenda e na cartografia antiga. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1941. (Brasiliana, série 5, vol. 199). 
CÂNDIDO, Z. Brazil. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1922.
CANTARINO, Geraldo. Uma ilha chamada Brasil: o paraíso irlandês no passado brasileiro. Rio de Janeiro, Muad, 2004. 
CORTESÃO, A. The Nautical Chart of 1424, and the early discovery and cartographical representation of America; a study on the history of early navigation and cartography. With a foreword by Maximino Correia. Coimbra, University of Coimbra, 1954.

CORTESÃO, A. History of Portuguese Cartography, Vol I. Agrupamento de Estudos de Cartografia Antiga. Coimbra, Junta de Investigações do Ultramar, 1969a.
DONNARD, Ana. O Outro Mundo dos celtas atlânticos e a mítica Brasil, ilha dos afortunados: primeiras abordagens. Nuntius Antiquus, Belo Horizonte, n. 3, 2009, p. 14-28. 
ECO, Umberto. Historia de las tierras y los lugares legendarios. Barcelona, Lumen, 2014. 
LYNCH, Sean. A preliminary sketch for the reappearance of HyBrazil. Utopian Studies, vol. 21, n. 1, 2010, p. 5-15. 
MANGUEL, Alberto; GUADALUPI, Gianni. The Dictionary of Imaginary Places. New York, Harcourt Brace & Company, 2000. 
MENEZES, Paulo Márcio Leal de. O Brasil na cartografia pré-lusitana. Anais do 1 Simpósio Brasileiro de Cartografia Histórica: Passado-Presente nos velhos mapas: conhecimento e poder, Paraty, 10 a 13 de maio de 2011. p. 1-18. 
MITCHELL, Angus. Hy-Brassil: Irish origins of Brazil. Irish Migration Studies in Latin America, vol. 4, n. 3, 2006, p. 157-165. 
POWELL, T. G. E. Os celtas. São Paulo, Editora Verbo, 1974. 


sábado, 11 de fevereiro de 2017

As primeiras investigações de Marie Curie sobre elementos radioativos

AS PRIMEIRAS INVESTIGAÇÕES DE MARIE CURIE SOBRE ELEMENTOS RADIOATIVOS


Dr. Roberto de Andrade Martins


Obs: As imagens presentes nesse texto foram escolhidas por mim, para ilustrar a obra do autor. 

Introdução

Usualmente considera-se que a radioatividade foi descoberta por Henri Becquerel, em 1896, e que a principal contribuição de Marie Curie foi a descoberta de novos elementos radioativos (tório, polônio e rádio) em 1898. Essa contribuição é apresentada como uma conseqüência do trabalho de Becquerel, uma vez que depois da descoberta da radiação do urânio seria “natural” procurar se outros elementos também emitiam radiações do mesmo tipo. Este artigo apresentará, no entanto, uma nova interpretação do trabalho realizado por Marie Curie no início de 1898.

Marie Curie
Com a utilização de um método elétrico para obtenção de medidas quantitativas da radiação, ela foi inicialmente capaz de diferenciar os fenômenos que atualmente chamamos de ‘radioatividade’ de uma série de outros fenômenos espúrios. Por outro lado, guiada por duas conjeturas a respeito da natureza atômica do próprio fenômeno de emissão de radiação, conseguiu orientar de forma bem sucedida uma busca de novos elementos radioativos.

Para permitir uma compreensão adequada do trabalho de Marie Curie, será feita uma breve descrição do período anterior (1895 a 1897), desde a descoberta dos raios X até o final das pesquisas de Becquerel1.

A descoberta dos raios X

No final de 1895, Wilhelm Conrad Röntgen descobriu a existência de um novo tipo de “raios” (coisas que se propagam em linha reta, como a luz), a que deu o nome utilizado para as incógnitas da álgebra, por desconhecer sua natureza (RÖNTGEN, 1895; NITSKE, The life of Wilhelm Conrad Röntgen; JAUNCEY, 1945; MARTINS, 1998a, 1998b). Tratava-se de uma radiação penetrante, capaz de atravessar materiais opacos à luz e às outras radiações conhecidas (raios catódicos, raios ultravioletas e infravermelhos). Era emitida por tubos de alto vácuo, quando os mesmos eram percorridos por uma descarga elétrica de alta voltagem.

A radiação foi estudada por Röntgen que, em poucas semanas, determinou muitas de suas principais propriedades. Ela produzia luminescência em certos materiais fluorescentes (esse foi o fenômeno que levou à sua descoberta), sensibilizava chapas fotográficas, era invisível ao olho humano, não parecia sofrer refração, nem reflexão, nem polarização. Não se tratava de luz (por ser invisível e atravessar grandes espessuras de madeira ou papel), não era igual aos raios catódicos (não sofria desvio com ímãs e tinha poder de penetração muito superior), nem raios ultravioletas ou infravermelhos (pelo seu poder de penetração).

Wilhelm Conrad Röntgen, descobridor do raio X. 
A divulgação da descoberta dos raios X, no início de 1896, teve uma enorme repercussão na comunidade científica (MARTINS, 1997a). No mesmo ano, foram publicados cerca de 1.000 artigos sobre a nova radiação – principalmente sobre suas aplicações médicas. Muitos investigadores se voltaram imediatamente para a pesquisa de novas propriedades dos raios X e o campo se desenvolveu muito rapidamente.

Por se tratar de um fenômeno que não havia sido previsto teoricamente nem era compreendido com base nas teorias da época, a descoberta de que existia uma radiação estranha, que devia estar presente nos laboratórios de física há muitos anos mas que não havia sido notada antes levou à procura de outras radiações desconhecidas (que poderiam igualmente estar presentes sem terem sido percebidas) e de outros processos de emissão de raios X.

Essa busca foi guiada, em grande parte, por uma hipótese apresentada por Henri Poincaré em 20 de janeiro de 1896 (POINCARÉ, 1896). De acordo com o primeiro trabalho de Röntgen sobre os raios X, a radiação saía do ponto da parede de vidro do tubo de descarga que era atingido pelos raios catódicos, e essa parte do vidro se tornava luminosa. Poincaré conjeturou que poderia haver alguma relação entre a própria luminescência e a emissão dos raios X, sugerindo que talvez todos os materiais luminescentes emitissem esse tipo de radiação.

A conjetura de Poincaré foi imediatamente testada por diversos pesquisadores, que descreveram experimentos que pareciam confirmá-la. Charles Henry e Gaston Niewenglowski disseram ter detectado a emissão de radiações penetrantes, semelhantes aos raios X, por substâncias fosforescentes comuns (sulfeto de cálcio e sulfeto de zinco). Algum tempo depois, foi descrita a emissão de radiações penetrantes por vaga-lumes e por bactérias luminescentes. Por fim, como até mesmo algumas substâncias comuns são fracamente fosforescentes, foram testadas muitas outras substâncias, e descrita a emissão de radiações penetrantes por papel, madeira, açúcar, giz, diversos metais e outras substâncias. O mundo parecia estar repleto de corpos que emitiam radiações invisíveis, capazes de atravessar papel opaco à luz e de sensibilizar chapas fotográficas (STEWART, 1898; MARTINS, 1990).

A hiperfosforescência

Foi em meio a esses trabalhos que Henri Becquerel descreveu que uma certa substância fosforescente (sulfato duplo de uranila e potássio) emitia radiações penetrantes semelhantes a raios X (BECQUEREL, 1896a, 1896b). Tratava-se aparentemente de uma nova confirmação da conjetura de Poincaré, embora possua hoje um outro significado para nós, pelos desenvolvimentos ocorridos posteriormente. Independentemente de Becquerel, o físico inglês Silvanus Thompson descreveu um fenômeno semelhante, para o nitrato de urânio (THOMPSON, 1896a, 1896b).

Antonie Henri Becquerel. Seu trabalho permitiu que a radioatividade fosse descoberta pouco tempo depois pelos Curie. 
Tanto Becquerel quanto Thompson acreditaram que os compostos de urânio estudados emitiam algo semelhante à radiação ultravioleta (ondas eletromagnéticas com pequeno comprimento de onda). Uma das hipóteses sobre os raios X era que se tratava de radiação semelhante à ultravioleta, porém com maior poder de penetração. As observações pareciam indicar que a emissão de radiação pelo urânio se tornava mais forte após colocar seus compostos ao Sol (ou seja, parecia um tipo de fosforescência).

No entanto, nos fenômenos luminescentes comuns, a radiação emitida tem um comprimento de onda maior do que o da radiação absorvida (“lei de Stokes”) e os raios luminosos não deveriam, por isso, produzir a emissão de radiação ultravioleta. Tanto Becquerel quanto Thompson acreditaram por isso tratar-se de um caso de violação da lei de Stokes. Na época, isso não parecia de modo nenhum absurdo, pois haviam sido relatados casos em que a lei de Stokes não era obedecida. Becquerel dispunha até mesmo de uma hipótese teórica que lhe permitia antecipar que tal tipo de violação deveria ocorrer particularmente no caso dos compostos do urânio. (MARTINS, 1997b).

Aquilo que atualmente chamamos de “radioatividade” é um fenômeno no qual certos tipos de núcleos atômicos se desintegram espontaneamente, emitindo radiações penetrantes (alfa, beta e gama), de alta energia, e se transformando em núcleos diferentes. Não foi isso, no entanto, que Becquerel descobriu em 1896, ao perceber que certos compostos do urânio emitiam radiações penetrantes. No final do século XIX, ninguém pensava que os átomos tinham um núcleo. Becquerel não imaginou que estava diante de algum tipo de fenômeno de transformação atômica, nem percebeu que havia diferentes tipos de radiações. No período estudado no presente artigo, não se conhecia a natureza das radiações emitidas pelo urânio, nem se sabia da existência de diferentes tipos de radiação (a, b e g), que só foram identificadas nos anos seguintes.

Becquerel afirmou ter confirmado experimentalmente que a radiação do urânio era de natureza eletromagnética, semelhante à luz (refração, reflexão, polarização) e que a emissão diminuía lentamente no escuro, como uma fosforescência invisível de longa duração (BECQUEREL, 1896c, 1896d, 1896e, 1896f)2. Thompson aceitou os resultados de Becquerel e propôs para o fenômeno o nome de “hiperfosforescência”, que se popularizou rapidamente3. Becquerel, por sua vez, chamava essa radiação de “raios do urânio”, pois pensava que se tratava de um fenômeno específico dos compostos desse elemento. O nome “radioatividade” foi proposto pelos Curie, em meados de 1898(4).

Um ano após a descoberta dos raios X ainda não havia certeza sobre sua natureza, mas a opinião mais aceita era a de que se tratava de ondas eletromagnéticas transversais de altíssima freqüência, ou seja, radiação ultravioleta de pequeno comprimento de onda. Não havia sido observada reflexão, refração, difração nem polarização dos raios X, mas isso poderia ser devido ao comprimento de onda excessivamente pequeno. Por outro lado, como Becquerel aparentemente havia mostrado que a radiação do urânio era de natureza eletromagnética e podia ser refletida, refratada e polarizada, podia-se supor que se tratava de radiação intermediária entre os raios X e a radiação ultravioleta comum:

“É impossível discutir aqui o que os raios de Röntgen são realmente, mas talvez seja permissível dizer que um grande número de físicos está agora inclinado a adotar a opinião de que, afinal, estamos tratando com vibrações transversais do éter muito distantes e além do ultravioleta com o qual já estamos familiarizados há muito tempo. Se assim for, não existe razão para assumir que há uma lacuna entre o ultravioleta e os raios X; e realmente Becquerel recentemente nos deu prova da existência de raios emanados do urânio e de seus sais que sugere a possibilidade de que alguns deles já tenham sido descobertos”. (MACINTYRE, 1897, p. 282).

Após um ano de estudos, a investigação da radiação do urânio não proporcionava mais nenhum resultado interessante. Pouquíssimas pessoas se interessaram pelo assunto – um deles sendo o jovem físico Georges Sagnac, que terá um papel curioso descrito posteriormente (SAGNAC, 1896). O próprio Becquerel foi se desinteressando pelo assunto e nunca chegou a fazer uma busca sistemática de outros materiais que tivessem propriedades semelhantes aos compostos do urânio. Em 1897, ele começou a se dedicar a um novo tema de pesquisa que estava em moda na época – o “efeito Zeeman” (ROMER, 1970).

A própria atitude de Becquerel mostra que não era “natural” procurar outros elementos que emitissem radiações como as do urânio. Procurar ou não procurar outros elementos dependia das expectativas que o pesquisador tivesse – e, para Becquerel, que acreditava que o urânio era um elemento sui generis, essa busca não tinha sentido (MARTINS, 1997b).

Os efeitos elétricos da radiação

Logo após a descoberta dos raios X, diversos pesquisadores, independentemente uns dos outros, notaram que a nova radiação era capaz de descarregar eletroscópios e que isso ocorria porque o ar atingido pelos raios X se tornava condutor de eletricidade (CHILD, 1897). O primeiro a divulgar tal descoberta foi o físico inglês Joseph John Thomson, em trabalho apresentado no dia 27 de janeiro de 1896 à Cambridge Philosophical Society (THOMSON, 1896a, 1896b).

Joseph John Thomson, descobridor do elétron. 
Na reunião da Academia de Ciências de Paris de 3 de fevereiro, Benoist e Hurmuzescu informaram uma descoberta equivalente (BENOIST & HURMUZESCU, 1896), e em 9 de março Röntgen publicou um trabalho em que descrevia o mesmo fenômeno (RÖNTGEN, 1897; MARTINS, 1997a). Foram J. J. Thomson e seus colaboradores de Cambridge (especialmente J. A. McClelland e Ernest Rutherford) que fizeram um cuidadoso estudo quantitativo do fenômeno, propondo alguns meses depois a explicação que aceitamos ainda hoje: os raios X rompem as moléculas neutras do ar e produzem íons positivos e negativos, capazes de conduzir a eletricidade (THOMSON & RUTHERFORD, 1896; FEATHER 1958).

No entanto, esses íons de sinais opostos se atraem e tendem a se recombinar, por isso o ar volta a se comportar como um isolante pouco tempo depois que cessa a ação dos raios X sobre ele. O modelo desenvolvido por Thomson permitia prever e explicar muitas características do fenômeno, como a relação entre pressão do gás e sua condutividade, relação entre a corrente elétrica produzida e a distância entre duas placas paralelas, a existência de uma corrente elétrica de saturação, etc.

Guiado pela semelhança entre os raios X e os raios emitidos pelo urânio, Becquerel também investigou se seus raios tornavam o ar condutor, e confirmou essa nova semelhança (BECQUEREL, 1896d). O estudo da condutividade do ar sob efeito dos raios do urânio foi desenvolvido, em seguida, por Lord Kelvin e colaboradores (Lord KELVIN et al., 1897a, 1897b), e em 1898 foi aprofundado por Ernest Rutherford, utilizando a mesma teoria empregada para descrever a ionização produzida pelos raios X.

Logo se tornou claro que os efeitos elétricos da radiação eram muito mais úteis do que o uso da fotografia na investigação científica das radiações, pois o estudo da ionização do ar permitia medir a radiação, sendo por isso superior ao uso de chapas fotográficas. O método fotográfico, utilizado por Becquerel nos seus principais estudos, não permitia medidas, sendo puramente qualitativo.

A intensidade das manchas fotográficas dependia evidentemente do próprio material fotográfico utilizado (e as chapas variavam muito de sensibilidade), assim como do processo de revelação, sendo impossível fazer uma comparação adequada entre duas fotografias obtidas em épocas diferentes. Além disso, o processo fotográfico é influenciado pela temperatura, umidade, pressão e por muitas substâncias químicas, por isso o surgimento de uma mancha em uma placa fotográfica podia ocorrer tanto por influência de radiações penetrantes como por outros motivos.

Pode-se atribuir exatamente a efeitos desses tipos as “descobertas” acima referidas de tantas substâncias que pareciam emitir radiações penetrantes. Enquanto as chapas fotográficas eram o processo principal de detecção de radiação, ficava impossível distinguir as radiações do urânio de todos os outros efeitos espúrios. Dois dos investigadores franceses que se dedicaram ao estudo de descargas elétricas produzidas pelos raios X foram Jean Perrin e Georges Sagnac. Quando os raios X atravessam o ar entre duas placas metálicas que formam um capacitor, esse ar se torna condutor de eletricidade, como já foi dito. Se os raios X atingirem as próprias placas metálicas, o efeito se torna maior do que se ele passar apenas pelo ar. Perrin estudou esse fenômeno e imaginou que os raios X agiam diretamente sobre o metal, produzindo algo semelhante ao efeito fotoelétrico (PERRIN, 1897).

Georges Sagnac, pelo contrário, estudando os metais atingidos pelos raios X notou a emissão de raios secundários, que possuíam a característica de serem mais fortemente absorvidos do que os raios X incidentes (SAGNAC, 1898a)5. Esses raios secundários (ou raios S)6 produziam forte ionização do ar. Uma espessura de poucos milímetros de ar já produzia uma absorção significativa desses raios secundários, enquanto os raios X podiam atravessar espessuras de vários metros de ar. Em metais, a absorção desses raios secundários era cerca de 100 vezes maior do que a dos raios X incidentes. Não se tratava de um mero espalhamento da radiação e sim de um fenômeno semelhante à fluorescência. Perrin logo aceitou os resultados de Sagnac (PERRIN, 1898).

Prosseguindo seus estudos, Sagnac logo notou que uma fina placa metálica atingida por raios X emitia raios secundários para os dois lados (SAGNAC, 1898b). Indicou que embora a placa só absorvesse uma fração muito pequena dos raios X, transformando-os em raios secundários, esses raios secundários produziam fortes efeitos em chapas fotográficas, painéis fluorescentes e eletroscópios.

Essa transformação de raios X em raios S dependeria do material utilizado (SAGNAC, 1898d). Comparando o ar, a água, o alumínio, o cobre, o zinco e o chumbo, Sagnac notou que os raios secundários eram cada vez menos penetrantes, ou seja, havia uma maior transformação dos raios X. Os raios secundários produzidos pelo zinco e pelo chumbo, em particular, eram menos penetrantes do que os raios X emitidos por qualquer tubo existente na época.

Como veremos mais adiante, esse trabalho de Sagnac teve forte influência sobre os Curie.

A contribuição de Gerhard Schmidt

Em janeiro de 1898, Gerhard Carl Nathaniel Schmidt (1865-1949) deu uma grande contribuição para o estudo daquilo que denominamos ‘radioatividade’ (SCHMIDT, 1898; BADASH, 1966). Ele utilizou o método elétrico para estudar diversas supostas radiações e percebeu que os materiais fosforescentes comuns não ionizavam o ar – portanto, não emitiam raios X nem nada parecido. Da mesma forma, os vaga-lumes e outras substâncias que supostamente emitiam radiações penetrantes não produziam nenhum efeito sobre a condutividade do ar.

O urânio ionizava o ar, e o fósforo também tinha uma propriedade semelhante, que já havia sido descoberta alguns anos antes, mas no caso do urânio todos os seus compostos, qualquer que fosse o estado físico ou químico em que se encontrasse, emitiam essas radiações, enquanto no caso do fósforo o efeito dependia das condições químicas, existindo o efeito apenas para o elemento puro e não ocorrendo para os seus compostos. Não se tratava, portanto, de um fenômeno associado a um determinado elemento químico, como no caso do urânio.

Schmidt procurou outras substâncias que tivessem efeitos semelhantes ao do urânio e encontrou que o tório também emitia radiações penetrantes, capazes de ionizar o ar e de penetrar através de papel opaco, sensibilizando placas fotográficas. Pode-se dizer que, pelo método elétrico, Schmidt conseguiu diferenciar as radiações do urânio de efeitos espúrios e descobriu a emissão de radiação pelo tório. No entanto, o trabalho de Schmidt não trouxe outras contribuições importantes – de fato, seu nome está associado, na história da radioatividade, apenas a esse passo (STUEWER, 1970). O método elétrico foi útil, mas ele sozinho não levou à descoberta do polônio e do rádio.

O início das pesquisas de Marie Curie

Independentemente de Schmidt, Marie Sklodowska Curie (1867-1934) também descobriu a emissão de radiações penetrantes pelo tório, logo no início de suas pesquisas (CURIE, 1898). Com 30 anos de idade, Marie Curie era, nessa época, uma pessoa diplomada em física e matemática7, com uma curta experiência de pesquisa de caráter tecnológico – o estudo da magnetização de diversos tipos de aços industriais8. Estava casada desde 1895 com Pierre Curie (1859-1906), um físico mais experiente e 8 anos mais velho do que ela. No final de 1897, época do nascimento de sua primeira filha (Irène), Marie decidiu iniciar uma pesquisa para obtenção do título de doutoramento em física. Nessa época, o título era obtido pela defesa direta de tese, já que não existiam cursos de pós-graduação.

O casal Curie, Pierre e Marie. 
O tema escolhido para a tese foi o estudo das radiações do urânio, através do método elétrico. O que motivou essa escolha, numa época em que ninguém dava atenção a esse fenômeno? Não o sabemos, mas há alguns elementos que ajudam a compreender isso. Um dos motivos parece ter sido prático: o estudo da condutividade do ar produzida pelos raios do urânio poderia ser feito com uma aparelhagem muito simples, desenvolvida por Pierre Curie e seu irmão Jacques, empregando um eletrômetro e um cristal piezoelétrico9. Por outro lado, é possível que Jean Perrin e Georges Sagnac – amigos do casal Curie – tivessem alguma influência na escolha, já que ambos haviam pesquisado a condutividade do ar produzida pelos raios X, e Sagnac havia escrito a respeito da radiação do urânio10.

Nessa época, o estudo da radiação de Becquerel era um assunto pouco explorado (havia menos de 20 artigos sobre esses raios), não muito importante, porém curioso – um tema adequado para uma tese de uma pesquisadora principiante. Não havia a expectativa de fazer nada de excepcional. A pesquisa planejada inicialmente era um estudo padrão, de reproduzir para os raios do urânio o mesmo tipo de estudo que já fora feito para os raios X. A justificativa apresentada pela própria Marie Curie para o uso da técnica elétrica era que ela permitia obter resultados mais rápidos do que o método fotográfico e fornecia medidas numéricas, comparáveis entre si:

“Em geral, utilizou-se nesses estudos o método elétrico, quer dizer, o método que consiste em medir a condutibilidade do ar sob a influência dos raios que se estuda. Esse método possui, de fato, a vantagem de ser rápido e de fornecer números que podem ser comparados entre si”. (CURIE, 1899, p. 41).

Marie Curie não pertencia a nenhuma instituição científica, na época. Seu marido, Pierre, era professor de uma escola de engenharia, a École Municipale de Physique et de Chimie Industrielles, de Paris. O diretor da escola, Charles Schützenberger, autorizou Marie a utilizar um canto de uma sala que servia de casa de máquinas e depósito. Era uma sala úmida e fria11, mas foi o único local disponível para seu trabalho. Costuma-se descrever a pesquisa inicial de Marie Curie como uma busca sistemática por outros elementos, além do urânio, que fossem capazes de emitir radiações semelhantes (ver, por exemplo, WEILL 1970, p. 498).

A própria Marie escreveu, em 1899:

“Após os trabalhos do Sr. Becquerel, era natural perguntar-se se o urânio é o único metal que desfruta de propriedades tão particulares. O Sr. Schmidt estudou sob esse ponto de vista um grande número de elementos e de seus compostos; ele encontrou que os compostos do tório são os únicos dotados de uma propriedade semelhante. Fiz um estudo do mesmo tipo, examinando compostos de quase todos os corpos simples atualmente conhecidos [...]; cheguei ao mesmo resultado que o Sr. Schmidt”. (CURIE 1899, pp. 41-2).

Essa versão, que se apoia também no texto do primeiro artigo publicado por Marie, não parece corresponder à realidade histórica. De um modo geral, é preciso analisar cum grano salis as versões apresentadas pelos próprios cientistas em seus trabalhos publicados, e nesse caso em particular dispomos de documentos que nos permitem desvendar o caminho seguido por Marie Curie no início de suas pesquisas.

Foram conservados os três cadernos de laboratório dos Curie em que são descritos os experimentos realizados a partir de 1897 a 1900(12). A partir desses cadernos, é possível verificar que Marie Curie iniciou seus experimentos com radiações no dia 16 de dezembro de 1897. Suas primeiras atividades consistiram em testes preliminares e familiarização com o aparelho – certamente sob a orientação de Pierre Curie. A manipulação do aparelho não era muito simples – exigia uma certa prática para regular manualmente a força exercida sobre o cristal piezoelétrico.

Os primeiros experimentos mediram a condutividade do ar sob ação tanto de raios X quanto do urânio metálico13. A seguir, vamos descrever uma reconstrução historiográfica do trabalho de Marie Curie, alertando os leitores que, em muitos pontos, os documentos disponíveis não permitem afirmar com certeza o que Marie pensava sobre o que estava fazendo e observando.

Dezembro-Janeiro de 1898

Durante os dois primeiros meses de trabalho, a maior parte das medidas era simplesmente uma reprodução de experimentos já realizados a respeito da condução do ar produzida por raios X: mudava-se a distância entre as placas, o sinal das cargas, a tensão aplicada, colocava-se placas metálicas finas sobre o urânio, etc., construindo-se curvas com os dados experimentais14. No entanto, em meio a esse trabalho de rotina, Marie registrou alguns resultados importantes:
  • aquecimento não aumenta a intensidade da radiação do urânio (1° de janeiro).
  • iluminação e irradiação com raios X não aumentam a radiação do urânio15 (5 de janeiro).

O que estava guiando esses primeiros experimentos? As anotações do caderno de laboratório não indicam o que Marie Curie estava pensando, mas sim o que ela estava fazendo. Aparentemente, os primeiros experimentos se destinavam a testar se a emissão de radiação pelos urânio era um tipo de fosforescência invisível, como Becquerel e Thompson acreditavam. A intensidade da luz emitida por materiais fosforescentes é fortemente influenciada pelo aquecimento e também aumenta quando o material é colocado sob luz forte, diminuindo lentamente depois, no escuro. Mesmo submetendo o urânio a raios X, isso não influenciava a emissão de radiação, por isso provavelmente não se tratava de um fenômeno semelhante à fosforescência16. Os primeiros resultados levavam, por isso, a questionar o conceito de hiperfosforescência.

Outro resultado obtido nesse período foi que a absorção dos raios do urânio pelo alumínio era mais forte do que a dos raios X. Nem todos os raios X possuem igual poder de penetração: sabia-se que suas propriedades dependiam do tubo empregado e da voltagem das descargas que estimulavam a emissão. Os raios X mais penetrantes eram chamados de “raios X duros” e os menos penetrantes eram os “raios X moles”. A radiação do urânio se comportava como raios X moles. Marie Curie associou essa forte absorção aos raios secundários que haviam sido estudados por Sagnac:

O fraco poder penetrante dos raios urânicos e tóricos conduziu a compará-los aos raios secundários que são produzidos pelos raios Röntgen, e cujo estudo foi feito pelo Sr. Sagnac, em vez de aos próprios raios Röntgen (CURIE, Marie, Recherches sur les substances radioactives, p. 8).

Fevereiro de 1898

O segundo grupo de resultados obtidos por Marie Curie, em fevereiro, referia-se ao estudo de diferentes substâncias, comparando-as com o urânio. A partir de 10 de fevereiro, ela examinou um grande grupo de metais (cobre, zinco, chumbo, estanho, platina, ferro, ouro, paládio, cádmio, antimônio, molibdênio, tungstênio) e observou que nenhum deles produzia condutividade no ar. Depois (17 de fevereiro) examinou um mineral de urânio (pechblenda17 ou uraninita), que produziu efeitos semelhantes ao urânio puro, como se previa. No entanto, notou um fato estranho: a corrente elétrica observada com a pechblenda era maior do que no caso do urânio metálico puro.

Ora, Becquerel havia observado que a radiação do urânio metálico era mais intensa do que de qualquer de seus compostos, e esperava-se portanto que a pechblenda mostrasse uma atividade18 inferior à do urânio metálico. A primeira reação de Marie Curie foi a de que poderia ter ocorrido um erro experimental. O caderno de laboratório mostra que ela examinou a aparelhagem, fez testes, refez as medidas – e confirmou os resultados iniciais.

Havia algo de estranho. Teria Becquerel se enganado? O caderno de laboratório mostra que Marie Curie fez logo depois medidas utilizando vários compostos de urânio (óxido de urânio, uranato de amônio) e notou que todos eles tinham radiação menos intensa do que urânio metálico, enquanto a pechblenda, repetidamente testada, teimava em se mostrar mais ativa (18 e 19 de fevereiro).

Este foi um ponto decisivo da pesquisa de Marie Curie. Ela poderia simplesmente não ter dado atenção a essa anomalia da pechblenda e ter continuado sua pesquisa de rotina, para terminar rapidamente sua tese. Mas sua atenção foi capturada pelo fenômeno imprevisto e isso redirecionou toda sua pesquisa. Provavelmente a partir dessa época ela começou a suspeitar que a pechblenda, além do urânio, continha alguma outra substância que também emitia radiações ionizantes e que não havia sido ainda detectada.

Fevereiro-março de 1898

Logo depois Marie Curie examinou muitas substâncias diferentes (aparentemente ao acaso), disponíveis na Escola de Física e Química Industriais, e nenhuma delas emitia radiações ionizantes. Esses testes devem ter convencido Marie de que, se havia algum outro elemento que emitia radiações como as do urânio, tratava-se de um elemento raro.

A pechblenda contém, além de óxido de urânio, várias outras substâncias em pequena quantidade – incluindo tório. Talvez por causa disso Marie tenha examinado em seguida um mineral de tório e nióbio, que não contém urânio (24 de fevereiro), e logo notou que ele emitia radiação ionizante. Examinou então minerais que continham nióbio e notou que não mostravam atividade. Testando separadamente os elementos presentes nesse mineral, observou que apenas o tório emitia radiações (26 de fevereiro).

Exemplar de pechblenda em estado mineral. 
Analisando em seguida diversos minerais de urânio e de tório, notou que todos eles emitiam radiação ionizante, e testando várias outras substâncias, não encontrou nenhuma outra ativa (2 de março).

Estava, assim, estabelecida a existência de um segundo elemento – o tório – com propriedades semelhantes às do urânio. O que Marie Curie não sabia é que Schmidt já havia feito e publicado a mesma descoberta, algumas semanas antes.

Uma propriedade atômica?

Nesse momento, a pesquisa de Marie Curie variava entre o estudo de minerais naturais e de compostos químicos puros. Examinando alguns compostos de laboratório do tório e do urânio, Marie notou que a emissão de radiação parecia ser aproximadamente proporcional à quantidade do metal presente, não dependendo da presença de outras substâncias inativas, que atuavam apenas absorvendo a radiação.

Nesta época, provavelmente, Marie Curie adotou a hipótese de que a emissão de radiação penetrante é uma propriedade atômica, no seguinte sentido:
  • depende da presença de alguns elementos químicos particulares
  • a intensidade da radiação é proporcional à porcentagem desses elementos químicos nos compostos estudados (descontando-se a absorção produzida por elementos inertes)
  • não depende de propriedades moleculares (outros elementos químicos inativos não alteram a emissão de radiação)

Note-se que não havia sido feita ainda nenhuma suposição de que estivesse ocorrendo alguma transformação dos átomos (eles eram considerados imutáveis).

A hipótese da propriedade atômica explicava muitos fatos, mas conflitava com as observações sobre alguns minerais, já que a radiação de alguns minerais, como a pechblenda e a calcolita, era mais forte do que dos seus componentes. Marie Curie fez repetidas comparações desses minerais com o urânio metálico (21-28 de março), o que parece mostrar que essa anomalia incomodava muito a pesquisadora. Era importante verificar se a hipótese estava correta ou não, e explicar essa discrepância.

A calcolita é um mineral que contém principalmente fosfato duplo de urânio e de cobre. A amostra examinada por Marie Curie tinha uma atividade muito superior à do urânio ou do tório puros. Seria possível que a associação do urânio com outros elementos pudesse, pela combinação química, alterar suas propriedades e aumentar a radiação? Ou haveria alguma impureza no mineral que era responsável pela anomalia?

Para tentar esclarecer esse ponto, Marie Curie sintetizou o fosfato duplo de urânio e de cobre, a partir de substâncias químicas puras. A calcolita artificial assim produzida era menos ativa do que o urânio metálico puro, ou seja, comportava-se do modo “normal”, como os outros compostos de urânio (31 de março). Esse resultado confirmava a hipótese de propriedade atômica e sugeria que havia na calcolita natural algum outro elemento desconhecido, mais ativo do que o urânio.

A partir desse instante, a hipótese da propriedade atômica conduziu as pesquisas do casal Curie, levando pouco depois à descoberta do polônio e do rádio. O papel das pesquisas de Marie Curie tem sido interpretado a partir de uma visão bastante diferente, como se os passos decisivos tivessem sido devidos apenas ao uso de um novo tipo de aparelhagem, à obtenção de dados quantitativos (ver WYART 1970, p. 507) e ao exame sistemático dos elementos (ver BADASH 1965, p. 134).

Em vez dessa versão com sabor positivista, um artigo mais recente enfatizou a existência de aspectos teóricos no trabalho de Marie Curie (DAVIS 1995, p. 329) mas não indicou nenhuma influência das suas hipóteses como orientadoras do trabalho de pesquisa. De acordo com a interpretação aqui aventada, pode-se dizer que os elementos básicos que contribuíram para o sucesso da pesquisa dos Curie foram:
  • uso do método elétrico, que era rápido, além de proporcionar resultados quantitativos, e permitiu eliminar efeitos espúrios;
  • papel do acaso, que permitiu encontrar minerais mais ativos do que urânio puro;
  • a atitude de dar atenção às anomalias (os Curie poderiam não ter se preocupado com o caso da pechblenda);
  • imaginar, testar e utilizar a hipótese de que a emissão de radiações ionizantes era uma propriedade atômica.

Este último ponto é aquilo que distingue os Curie dos demais investigadores da época. Para nós, que fomos educados dentro de uma determinada visão da radioatividade, essa hipótese pode ter aparência de algo que deveria surgir naturalmente, mas não parece ter ocorrido de forma clara no trabalho de outros pesquisadores da época. De onde ela pode ter saído?

Essa hipótese não foi, certamente, uma generalização tirada a partir dos experimentos. Afinal de contas, ela conflitava com alguns resultados, como os obtidos pelo estudo dos minerais. A seguir, será proposta uma nova interpretação: a de que, apesar de conflitar com alguns resultados, essa hipótese era considerada como plausível e merecedora de investigação pelos Curie porque era reforçada por outra hipótese, baseada em semelhanças entre radiações do urânio (e do tório) e raios X secundários.

Hipótese da emissão secundária

Como já foi descrito, quando um material é atingido por raios X, ele emite outros raios menos penetrantes (raios secundários) que foram estudados por Sagnac. Esses raios secundários são absorvidos mais facilmente pela matéria (são menos penetrantes) mas produzem efeitos fotográfico e de ionização mais fortes do que os primários (sendo, por isso, mais fáceis de detectar)19. Os estudos de Sagnac haviam indicado que a produção desses raios secundários é mais forte quando os raios X atingem substâncias contendo os elementos de maior peso atômico, como o chumbo.

Ora, o urânio era o elemento de maior peso atômico conhecido e o tório era o elemento seguinte, na escala decrescente de pesos atômicos; além disso, a radiação do urânio era semelhante aos raios X moles. Não haveria alguma relação entre todos esses fatos? Analogia com os raios secundários dos raios de Röntgen – As propriedades dos raios emitidos pelo urânio e pelo tório são muito análogas [très analogues] às dos raios secundários dos raios de Röntgen, estudados recentemente pelo Sr. Sagnac. Constatei além disso que, sob a ação dos raios de Röntgen, o urânio, a pechblenda e o óxido de tório emitem raios secundários que, do ponto de vista da descarga dos corpos eletrizados, produzem geralmente mais efeito do que os raios secundários do chumbo. Entre os metais estudados pelo Sr. Sagnac, o urânio e o tório estariam colocados ao lado e além do chumbo (CURIE, 1898, p. 1103).

Para explicar a emissão de radiações pelo urânio e pelo tório, Marie Curie formulou uma nova hipótese. Poderia existir em todo o espaço uma radiação desconhecida, difícil de ser detectada, semelhante aos raios X duros (porém muito mais penetrantes). Essa radiação poderia passar por chapas fotográficas e por outros materiais praticamente sem ser absorvida e, por isso, sem ser notada. No entanto, ela seria absorvida e transformada em radiação secundária menos penetrante ao atingir os elementos de maior peso atômico. A emissão de radiação pelo urânio, pelo tório e seus compostos poderia ser um fenômeno desse tipo, semelhante à fluorescência.

Para interpretar a radiação espontânea do urânio e do tório poder-se-ia imaginar que todo o espaço está constantemente atravessado por raios análogos aos raios de Röntgen porém muito mais penetrantes e que só poderiam ser absorvidos por certos elementos de grande peso atômico, tais como o urânio e o tório (CURIE, 1898, p. 1103).

Essa hipótese da emissão secundária tinha pequena fundamentação, não havendo qualquer evidência de que existisse tal tipo de radiação “cósmica” 20. No entanto, ela conduzia naturalmente à idéia de que apenas alguns elementos (de alto peso atômico) seriam ativos como o urânio, apoiando, portanto a hipótese da propriedade atômica.

Essas duas hipóteses, embora sem fundamentação experimental, reforçavam-se mutuamente, e conduziram o pensamento de Marie Curie, sendo responsáveis em grande parte pelo sucesso de suas investigações iniciais. Posteriormente, no entanto, a hipótese da emissão secundária tornou-se um obstáculo, pois cessou de levar a novas descobertas e impediu os Curie de desvendarem a natureza da radioatividade.

Aparentemente essa hipótese estava dirigindo o trabalho de Marie Curie logo após o teste da calcolita artificial, pois no dia seguinte (1° de abril) ela realizou testes para verificar se o urânio e o tório (ou seus compostos) emitiam uma radiação mais intensa enquanto estavam sendo irradiados com raios X, procurando detectar uma radiação secundária. A descrição desses experimentos não é muito precisa, mas de qualquer modo confirma que a hipótese da emissão secundária estava guiando essa investigação.

Logo em seguida, Marie Curie se sentiu suficientemente segura para escrever seu primeiro artigo sobre o assunto. Essa comunicação (um trabalho curto, com apenas 3 páginas) foi lido diante da Academia de Ciências de Paris por Gabriel Lippmann21. O trabalho continha, essencialmente, os resultados obtidos durante esses primeiros meses de pesquisa, dando maior ênfase à descoberta da radioatividade do tório. Esse artigo e os que o sucederam (descoberta do polônio e do rádio) não serão descritos aqui. Eles serão objeto de análise detalhada em um outro estudo, a ser publicado futuramente.

Conclusão

Quando se analisa o desenvolvimento do trabalho inicial de Marie Curie, a partir de seus cadernos de laboratório e levando em conta o contexto da época, verifica-se que seu trabalho experimental não foi guiado por uma mera busca empírica de novos elementos radioativos, mas sim por uma série de hipóteses, e uma forte influência pelos estudos de Sagnac sobre a radiação secundária emitida por metais atingidos pelos raios X.

Já no seu primeiro artigo, publicado após poucos meses de investigação, Marie Curie apresenta a hipótese da natureza atômica da radiação, que guiou suas pesquisas posteriores. Em grande parte, o sucesso do trabalho dos Curie foi devido a essa hipótese que não tinha fundamentação experimental, mas que era reforçada por uma outra conjetura (a hipótese de emissão secundária) que também não era fundamentada.

Agradecimentos
O autor agradece o apoio recebido da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) e do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), sem o qual teria sido impossível a realização desta pesquisa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BADASH, Lawrence. Radioactivity before the Curies. American Journal of Physics, v. 33, p. 128-35, 1965.
BADASH, Lawrence. The discovery of thorium’s radioactivity. Journal of Chemical Education, v. 43, p. 219-20, 1966.
BECQUEREL, Henri. Sur les radiations émises par phosphorescence. Comptes Rendus de l’Académie des Sciences de Paris, v. 122, p. 420-1, 1896 (a).
BECQUEREL, Henri. Sur les radiations invisibles émises par les corps phosphorescents. Comptes Rendus de l’Académie des Sciences de Paris, v. 122, p. 501-3, 1896 (b).
BECQUEREL, Henri. Sur quelques propriétés nouvelles des radiations invisibles émises par divers corps phosphorescents. Comptes Rendus de l’Académie des Sciences de Paris, v. 122, p. 559-64, 1896 (c).
BECQUEREL, Henri. Sur les radiations invisibles émises par les sels d’uranium. Comptes Rendus de l’Académie des Sciences de Paris, v. 122, p. 689-94, 1896 (c).
BECQUEREL, Henri. Sur les propriétés différentes des radiations invisibles émises par les sels d’uranium, et du rayonnement de la paroi anticathodique d’un tube de Crookes. Comptes Rendus de l’Académie des Sciences de Paris, v. 122, p. 762-7, 1896 (d).
BECQUEREL, Henri. Émission de radiations nouvelles par l’uranium métallique. Comptes Rendus de l’Académie des Sciences de Paris, v. 122, p. 1086-8, 1896 (e).
BECQUEREL, Henri. Sur diverses propriétés des rayons uraniques. Comptes Rendus de l’Académie des Sciences de Paris, v. 123, p. 855-8, 1896 (f).
BECQUEREL, Henri. Sur la loi de décharge dans l’air de l’uranium électrisé. Comptes Rendus de l’Académie des Sciences de Paris, v. 124, p. 800-3, 1897.
BENOIST, L. & HURMUZESCU, D. Nouvelles propriétés des rayons X. Comptes Rendus Hebdomadaires des Séances de l’Académie des Sciences de Paris, v. 122, p. 235-6, 1896.
CHILD, Clement D. The discharge of electrified bodies by the X-rays. Physical Review, v. 5, p. 193-212, 285-93, 1897.
CURIE, Eve. Madame Curie. Paris: Gallimard, 1939.
CURIE, Marie Sklodowska. Rayons émis par les composés de l’uranium et du thorium. Comptes Rendus de l’Académie des Sciences de Paris, v. 126, p. 1101-3, 1898.
CURIE, Marie Sklodowska. Les rayons de Becquerel et le polonium. Revue Générale des Sciences, v. 10, p. 41-50, 1899.
CURIE, Marie Sklodowska. Les nouvelles substances radioactives. Revue Scientifique, [série 4] v. 14, 1900. Reproduzido em pp. 95-105, in: JOLIOT-CURIE, Oeuvres de Marie Sklodowska Curie.
CURIE, Marie Sklodowska. Recherches sur les substances radioactives. Paris: Gauthier-Villars, 1903.22
CURIE, Pierre & CURIE, Marie Sklodowska. Sur une substance nouvelle radioactive, contenue dans la pechblende. Comptes Rendus de l’Académie des Sciences de Paris, v. 127, p. 175-8, 1898.
DAVIS, J. L. The research school of Marie Curie in the Paris Faculty, 1907-14. Annals of Science, v. 52, p. 321-55, 1995.
DWELSHAUVERS-DERY, François-Vincent. La réflexion des rayons X. Bulletin de l’Académie Royale des Sciences, des Lettres et des Beaux -Arts de Belgique, [série 3] v. 31, p. 482-7, 1896.
DWELSHAUVERS-DERY, François-Vincent. Note sur l’actinochrose de rayons X. Bulletin de l’Académie Royale des Sciences, des Lettres et des Beaux -Arts de Belgique, [série 3] v. 31, p. 688-95, 1896.
ELSTER, Johann Philipp Ludwig Julius & GEITEL, Hans Friedrich Karl. Ueber die Entladung negativ electrischer KÓrper durch das Sonnen- und Tageslicht. Annalen dr Physik und Chemie, v. 38, p. 497-514, 1889.
FEATHER, N. Historical introduction. Pp. 1-27 in: FEATHER, N. (ed.). X-rays and the electric conductivity of gases. Comprising papers by W. C. Röntgen, J. J. Thomson and E. Rutherford. Edinburgh: Alembic Club / E. & S. Livingstone, 1958.
JAUNCEY, G. E. M. The birth and early infancy of X-rays. American Journal of Physics, v. 13, p. 362-79, 1945.
JAUNCEY, G. E. M. The early years of radioactivity. American Journal of Physics, v. 14, p. 226-41, 1946.
JOLIOT-CURIE, Irène. Les carnets de laboratoire de la découverte du polonium et du radium. Pp. 103-24, in: CURIE, Marie Sklodowska. Pierre Curie. Paris: Gallimard, 1940.
JOLIOT-CURIE, Irène (ed.). Oeuvres de Marie Sklodowska Curie / Prace Marii Sklodowskiej-Curie. Varsovie / Warsawa: Pastwowe Wydawnictwo Naukowe, 1954.
KELVIN, Lord, BEATTIE, John Carruthers Beattie & DE SMOLAN, Maryan Smoluchowski. Experiments on the electrical phenomena produced in gases by Röntgen rays, by ultraviolet light, and by uranium. Proceedings of the Royal Society of Edinburgh, v. 21, p. 393-428, 1897 (a).
KELVIN, Lord, BEATTIE, John Carruthers Beattie & DE SMOLAN, Maryan Smoluchowski. On electric equilibrium between uranium and an insulated metal in its neighbourhood. Philosophical Magazine, [série 5], v. 45, p. 277-9, 1898; v. 46, p. 82, 1897; Proceedings of the Royal Society of Edinburgh, v. 22, p. 131-4, 1898;
Nature, v. 55, p. 447-8, 1897 (b).
MACINTYRE, John. A demonstration of the X rays. Proceedings of the Philosophical Society of Glasgow, v. 28, p. 267-83, 1897.
MARTINS, Roberto de Andrade. Como Becquerel não descobriu a radioatividade. Caderno Catarinense de Ensino de Física, v. 7, p. 27-45, 1990.
MARTINS, Roberto de Andrade. Investigando o invisível: as pesquisas sobre raios X logo após a sua descoberta por Röntgen. Revista da Sociedade Brasileira de História da Ciência, n. 17, p. 81-102, 1997 (a).
MARTINS, Roberto de Andrade. Becquerel and the choice of uranium compounds. Archive for History of Exact Sciences, v. 51, p. 67-81, 1997 (b).
MARTINS, Roberto de Andrade. A descoberta dos raios X: o primeiro comunicado de Röntgen. Revista Brasileira de Ensino de Física, v. 20, p. 373-91, 1998 (a).
MARTINS, Roberto de Andrade. Jevons e o papel da analogia na arte da descoberta
experimental: o caso da descoberta dos raios X e sua investigação pré-teórica. Episteme. Filosofia e História das Ciências em Revista, v. 3, n. 6, p. 222-49, 1998 (b).
NITSKE, W. R. The life of Wilhelm Conrad Röntgen, discoverer of the X-rays. Tucson: University of Arizona Press, 1971.
PERRIN, Jean. Rayons cathodiques et rayons de Röntgen. Étude expérimentale. Annales de Chimie et de Physique, [série 7], v. 11, p. 496-554, 1897.23
PERRIN, Jean. Décharge par les rayons de Röntgen. Effet secondaire. Comptes Rendus Hebdomadaires des Séances de l’Académie des Sciences de Paris , v. 126, p. 243-4, 1898.
POINCARÉ, Henri. Les rayons cathodiques et les rayons Roentgen. Revue Générale des Sciences Pures et Appliquées, v. 7, p. 52-9, 1896.
REID, Robert. Marie Curie. London: Collins, 1974; New York: Saturday Review, 1974.
ROMER, Alfred. Becquerel, [Antoine-] Henri. Vol. 2, pp. 558-61, in: GILLIESPIE, Charles Coulston (ed.). Dictionary of Scientific Biography. 16 vols. New York: Charles Scribner’s Sons, 19 70.
RÖNTGEN, Wilhelm Conrad. Über eine neue Art von Strahlen (Vorläufige Mittheilung). Sitzunsberichte der physikalisch-medicinischen Gesellschaft zu Würzburg, v. 9, p. 132-41, 1895.24
RÖNTGEN, Wilhelm Conrad. Über eine neue Art von Strahlen (II Mittheilung). Sitzunsberichte der physikalisch-medicinischen Gesellschaft zu Würzburg, v. 1, p. 11-6; v. 2, p. 17-9, 1896.25
RUTHERFORD, Ernest. Uranium radiation and the electrical condution produced by it. London, Edinburgh and Dublin Philosophical Magazine and Journal of Science, [série 5], v. 47, p. 109-63, 1899.
SAGNAC, Georges. Les expériences de M. H. Becquerel sur les radiations invisibles émises par les corps phosphorescents et par les sels d’uranium. Journal de Physique Théorique et Appliquée, [série 3], v. 5, p. 193-202, 1896.
SAGNAC, Georges. Sur le mécanisme de la décharge des conducteurs frappés par les rayons X. Comptes Rendus Hebdomadaires des Séances de l’Académie des Sciences de Paris, v. 126, p. 36-40, 1898 (a).
SAGNAC, Georges. Transformation des rayons X par transmission. Comptes Rendus Hebdomadaires des Séances de l’Académie des Sciences de Paris , v. 126, p. 467- 70, 1898 (b).
SAGNAC, Georges. Émission de rayons secondaires par l’air sous l’influence des rayons X. Comptes Rendus Hebdomadaires des Séances de l’Académie des Sciences de Paris, v. 126, p. 521-3, 1898 (c).
SAGNAC, Georges. Caractères de la transformation des rayons X par la matière. Comptes Rendus Hebdomadaires des Séances de l’Académie des Sciences de Paris , v. 126, p. 887-90, 1898 (d).
SAGNAC, Georges. Mécanisme de la décharge par les rayons X. Comptes Rendus Hebdomadaires des Séances de l’Académie des Sciences de Paris , v. 127, p. 46-9, 1898 (e).
SCHMIDT, Gerhard C. Ueber die von den Thorverbindungen und einigen anderen Substanzen ausgehende Strahlung. Annalen der Physik und Chemie, [série 2], v. 65, p. 141-51, 1898; Verhandlungen der physikalische Gesellschaft nach Berlin, v. 17, p. 14-16, 1898.
STEWART, Oscar M. A résumé of the experiments dealing with the properties of Becquerel rays. Physical Review, v. 6, p. 239-51, 1898.
STUWER, Roger H. Schmidt, Gerhard Carl Nathaniel. Vol. 12, pp. 191-2, in: GILLIESPIE, Charles Coulston (ed.). Dictionary of Scientific Biography. 16 vols. New York: Charles Scribner’s Sons, 1970.
THOMPSON, Silvanus P. On hyperphosphorescence. Report of the 66th Meeting of the British Association for the Advancement of Science, v. 66, p. 713, 1896 (a).
THOMPSON, Silvanus P. On hyperphosphorescence. The London, Edinburgh and Dublin Philosophical Magazine and Journal of Science, [série 5], v. 42, p. 103-7, 1896 (b).
THOMSON, Joseph John. Longitudinal electric waves, and Röntgen’s X rays. Proceedings of the Cambridge Philosophical Society, v. 9, p. 49-61, 1896 (a).
THOMSON, Joseph John. On the discharge of electricity produced by the Röntgen rays, and the effects produced by these rays on dielectrics through which they pass. Proceedings of the Royal Society of London, v. 59, p. 274-6, 1896 (b).
THOMSON, Joseph John & RUTHERFORD, Ernest. On the passage of electricity through gases exposed to Röntgen rays. The London, Edinburgh and Dublin Philosophical Magazine and Journal of Science, [série 5], v. 42, p. 392-407, 1896.
WEILL, Adrienne R. Curie, Marie (Maria Sklodowska). Vol. 3, pp. 497-503, in: GILLIESPIE, Charles Coulston (ed.). Dictionary of Scientific Biography. 16 vols. New York: Charles Scribner’s Sons, 1970.
WYART, Jean. Curie, Pierre. Vol. 3, pp. 503-8, in: GILLIESPIE, Charles Coulston (ed.). Dictionary of Scientific Biography. 16 vols. New York: Charles Scribner’s Sons, 1970.

NOTAS:
1 Uma boa descrição histórica sobre esse período pode ser encontrada nos artigos: JAUNCEY 1946 e BADASH 1965. Ver também MARTINS, 1990.
2 Antes de 1898, apenas dois aspectos do trabalho de Becquerel haviam sido criticados: a polarização dos raios de urânio e a excitação dessa radiação pela luz. Gustave le Bon foi o primeiro a colocar em dúvida a polarização da radiação do urânio, em maio de 1897. Quanto à excitação por luz, Julius Elster e Hans Geitel, em 1897, notaram que a emissão de radiação pelo urânio não aumentava quando ele era submetido à luz solar, e permanecia constante no escuro, durante vários meses (ELSTER & GEITEL 1897).
3 Weill atribuiu erroneamente a invenção do nome “hiperfosforescência” a Henri Poincaré (WEILL 1970, p. 498).
4 A palavra aparece pela primeira vez no título do artigo “Sobre uma nova substância radio -ativa contida na pechblenda” (CURIE & CURIE, 1898).
5 Os resultados obtidos por Sagnac não eram totalmente novos. Logo após a descoberta dos raios X, Röntgen e outros pesquisadores haviam investigado se essas radiações podiam ser refletidas por metais e outras substâncias. Os primeiros resultados indicavam que não havia reflexão regular, mas que ocorria aparentemente uma difusão de raios X, ou seja, uma parte dos raios X incidentes era espalhada para todos os lados quando atingiam uma superfície metálica. No entanto, estudando essa radiação difundida, Dwelshauvers-Dery notou que ela era menos penetrante do que os raios X incidentes (DWELSHAUVERS-DERY, 1896). Concluiu que “a reflexão difusa, constatada por diversos físicos, é devida, pelo menos em parte, à produção de raios diferentes dos raios X na substância; não é portanto uma reflexão propriamente dita” (DWELSHAUVERS-DERY, 1896, p. 487).
6 Atualmente nós nos referimos a raios X primários e raios X secundários. Sagnac utilizava uma nomenclatura um pouco diferente. Ele não se referia aos raios secundários como sendo um tipo de raios
X, mas dava-lhes um nome diferente (raios S), o que parece indicar que ele imaginava tratar-se de radiação de um outro tipo. Ele também não se referia aos raios X incidentes como raios “primários”.
7 Embora muitas vezes se associe Marie Curie à química (ver por exemplo WYART 1970, p. 507: “Marie Curie, por outro lado, tinha sido treinada principalmente como química...”), ela nunca teve qualquer título nessa área. Em 1893, Marie foi aprovada e classificada em primeiro lugar no concurso de licenciatura em física pela Sorbonne. No ano seguinte, foi aprovada em segundo lugar no concurso de licenciatura em matemática. Para informações biográficas sobre Marie Curie, ver: CURIE, Eve, Madame Curie; REID, Marie Curie.
8 Esse primeiro estágio de pesquisa da vida de Marie Curie foi obtido graças a seu ex-professor, Gabriel Lippmann, que foi também quem apresentou à Academia de Ciências de Paris o primeiro artigo de Marie sobre a radiação do tório.
9 Quando certos cristais são comprimidos ou distendidos, surgem cargas elétricas e produz-se uma diferença de potencial entre suas faces. Isso ocorre, por exemplo, no caso do quartzo. Esse tipo de fenômeno foi descoberto e investigado por Pierre e Jacques Curie (WYART 1970, p. 504), e tem hoje diversas aplicações práticas, como certos acendedores de fogão que soltam uma faísca quando se aperta
um botão. Na época, era muito difícil medir pequenas correntes elétricas com precisão. O efeito piezoelétrico permitia produzir cargas elétricas sempre iguais e reguláveis, aplicando-se ao cristal uma força sempre igual. Medindo-se cargas elétricas e o tempo, podia-se determinar com grande precisão e de modo reprodutível as pequenas correntes elétricas envolvidas no fenômeno. Como já estava familiarizado com esse fenômeno, Pierre Curie logo pensou em utilizá-lo na investigação das radiações do urânio.
10 Marie Curie utilizou em seus primeiros estudos uma câmara de ionização de placas paralelas, muito semelhante à utilizada por Perrin e por Sagnac anteriormente.
11 Uma famosa anotação de Marie Curie nos cadernos de laboratório, no dia 6 de fevereiro de 1898, indica que a temperatura ambiente era de 6°.
12 Esses cadernos, contaminados e fortemente radioativos como muitos outros documentos dos Curie, foram descritos por Irène Curie. Vamos nos basear nessa descrição (JOLIOT-CURIE, 1940), indicando as datas dos experimentos mais importantes, de tal forma a facilitar a verificação das informações em qualquer outra edição dessa obra.
13 O urânio metálico foi preparado pela primeira vez em 1896 por Henri Moissan, que foi quem forneceu amostras para Becquerel e depois aos Curie.
14 É provável que Marie Curie estivesse se baseando na tese de doutoramento de Jean Perrin sobre raios X (PERRIN, 1897).
15 Evidentemente, como os próprios raios X produzem efeitos de ionização do ar, os experimentos eram feitos irradiando-se o urânio e, depois de desligados os raios X, medindo-se a ionização produzida pelo urânio.
16 Marie Curie aceitou como provado conclusivamente por Elster e Geitel que a radioatividade não pode ser aumentada pela luz (CURIE, 1899).
17 O nome “pechblenda” é simplesmente um aportuguesamento de “pechblende” (em inglês, pitchblende) e não tem nenhum significado óbvio. No entanto, “pech” ou “pitch” significa pixe, e o min eral recebeu esse nome por ser negro e ter uma aparência semelhante à do pixe. A tradução correta seria, portanto, “pixeblenda”, mas como essa palavra não existe nos dicionários, vamos utilizar o termo absurdo tradicionalmente empregado por todos.
18 Não existia ainda a palavra “radioatividade”, mas desde o início de suas pesquisas Marie Curie
utilizava a expressão “atividade”.
19 A correlação entre essas propriedades pode ser compreendida facilmente em termos de trocas de energia. Uma radiação pouco penetrante é aquela que é absorvida facilmente e cuja energia, portanto, é facilmente transmitida a outros materiais. Essa energia absorvida pelas substâncias é que produz efeitos observáveis e, portanto, uma absorção mais fácil indica uma maior produção de efeitos observáveis. Inversamente, uma radiação muito penetrante é mais difícil de ser detectada (pensem, por exemplo, nos neutrinos atuais).
20 Aquilo que atualmente chamamos de radiação cósmica somente foi descoberto posteriormente, e não tem semelhança com aquilo que Marie Curie imaginava.
21 Os trabalhos lidos diante da Academia de Ciências só eram apresentados pelos seus próprios autores quando eles eram membros da Academia. Nos outros casos, era preciso que um membro da Academia se tornasse avalista do trabalho, apresentando-o.
22 Esta foi a tese de doutoramento de Marie Curie.
23 Este artigo reproduz a tese de doutoramento de Perrin.
24 Publicado sob forma de separata com o título: Eine neue Art von Strahlen. Würzburg: Verlag und Druck der Stahel’schen K. Hof - und Universitäts- Buch- and Kunsthandlung, 1895. Reproduzido também em: Annalen der Physik und Chemie [3] 64 (1): 1-11, 1898. Traduções em inglês: On a new kind of rays. Trad. Arthur Stanton. Nature 53 (1369): 274-6, 1896; On a new form of radiation. The Electrician 36 (13): 415-7, 1896. Tradução em francês: Une nouvelle espèce de rayons. Revue Générale des Sciences Pures et Appliquées 7: 59-63, 1896.
25 Publicado sob forma de separata com o título: Eine neue Art von Strahlen. II. Mittheilung. Würzburg: Verlag und Druck der Stahel’schen K. Hof - und Universitäts- Buch- and Kunsthandlung, 1896. Reproduzido também em: Annalen der Physik und Chemie [3] 64 (1): 12-7, 1898.


Fonte: MARTINS, Roberto de Andrade. As primeiras investigações de Marie Curie sobre elementos radioativos. Revista da Sociedade Brasileira de História da Ciência, São Paulo, v. 1, n. 1, 2003, p. 29-41.