No dia 6 de janeiro é comemorado anualmente em alguns países cristãos de maioria católica a chamada Festa de Reis, Folia de Reis, Reisada, Dia de Reis, Dia dos Três Reis Magos etc., festejo antigo que remonta suas raízes no período medieval europeu, associando-se a outras festividades que marcavam o período de dezembro, janeiro, fevereiro e março, época conhecida na Baixa Idade Média (XI-XV) e na Idade Moderna (XVI-XVIII) como um período de festejos que ia do Natal ao Carnaval. Sobre essa festividade trago o seguinte texto, o qual aborda um pouco a respeito.
Religiosidade popular e Folia de Reis
Ma. Gabriela Marques Gonçalves
Introdução
Este
artigo tem como objetivo fazer uma explanação inicial sobre o tema da
religiosidade popular tendo como referência a Folia de Reis, a partir de uma
revisão bibliográfica. Para isso é importante ressaltar que o debate teórico a
cerca do conceito e as próprias características da festa na contemporaneidade
exigem um olhar atento na tentativa de não reduzir essas esferas a suas
fundamentações mais tradicionais.
Ressalta-se,
assim como Renata Menezes (2004), que todo o esforço para delimitar este campo
de estudo, bem como teorizá-lo, é de fundamental importância para a compreensão
das mudanças e ressignificações que ocorreram na sociedade e, logo, nestes dois
domínios que serão aqui abordados, a religiosidade popular e a Folia de Reis.
Por
isso, não considera-se pertinente abandonar o conceito de religiosidade popular
ao se trabalhar teoricamente algumas manifestações, no entanto é preciso ter em
mente que estas já não possuem características idênticas àquelas de quando o
conceito foi fortemente delimitado e por isso já não abarcam algumas definições
de maneira tão sistemática quanto antes. Essas manifestações continuam sofrendo
influências não só da fé de seus sujeitos e interferências da Igreja, mas
também da vida social, política, cultural e econômica como um todo.
"Deveremos
sempre situar as religiões que desejamos conhecer em seu contexto histórico e
social, buscando as razões de sua existência na nossa realidade. [...] como
conjunto de crenças e práticas sagradas professadas por determinados grupos
sociais". (OLIVEIRA, 1988, p. 107).
Assim,
não se deve pensar a Folia de Reis e sua religiosidade popular a partir de uma
perspectiva de ingenuidade dos seus sujeitos, ou mesmo de uma supersticiosidade
presente nessas narrativas das interpretações do sagrado, mas sim por meio de
construções simbólicas que contribuem na (re)construção de discursos que
envolvem inclusive disputas de hegemonia.
"…
a ideia de uma religiosidade popular nos lembra que as religiões envolvem
questões de legitimidade e estão marcadas por disputas, configurando campo de
tensões entre seus membros ou fiéis, questões que devem ser incorporadas à
análise, isso significa não apenas reproduzi-las, num deslizamento ingênuo por
sobre as categorias nativas, mas tomá-las como um dos problemas a serem
explicitados e explicados". (MENEZES, 2003, p. 2).
Partindo
dessa perspectiva pode-se, como sugere Heloísa Martín (2003), desconstruir
esferas fortemente delimitadas historicamente, como a própria religião. Com
isso, o que antes estava demarcado dentro do conceito de religiosidade popular,
pode ser entendido como constituindo uma rede complexa de elementos que compõem
a própria vida, em sua cotidianeidade, assim como já destacado por Bakhtin
(1999) quando nos mostra as relações de manifestações culturais como as festas,
a literatura, a escultura e o teatro populares com a própria prática cotidiana
da vida.
"...
siguiendo Giumbelli, la religión en cuanto categoría ‘[d]essubstantivada e
perpassando todo o espaço social... ficaria disponibilizada tanto para ser
tratada através de seus usos nativos, quanto para sofrer reformulações
conceituais e propiciar empreendimentos teóricos’ (Giumbelli 2002: 428-429)
[...] es necesario analizar las prácticas – designadas como ‘religiosas’ y
‘populares’ a partir de lugares empíricos específicos – a partir de los flujos
que dan integridad a la red que organiza lo social y que nos permiten dar
cuenta de esos ‘híbridos’ de religión, política, etnicidad, música, género,
emociones que constituyen las prácticas nativas". (MARTÍN, 2003, p. 5).
Dessa
forma, será feito, primeiramente, um breve histórico sobre as origens da Folia
de Reis, tradicionalmente festejada entre os dias 24 de dezembro e 6 de
janeiro, que ainda hoje vive processos de reconstrução a partir dos contextos e
das comunidades nas quais está inserida. Em seguida, se tentará fazer um debate
a partir do diálogo entre os trabalhos de Brandão, Zaluar, Pedro Oliveira,
Renata Menezes, Da Matta e Eloísa Martín sobre o que se pode entender hoje da
religiosidade vivida nessa manifestação e pelos seus sujeitos. Para em seguida
fazer não uma conclusão sobre o tema, mas uma síntese sobre o assunto proposto
neste artigo.
Folia de Reis
A
Folia de Reis tem sua origem na Europa e remonta a passagem bíblica de Mateus
que conta a visita de alguns Magos a Jesus Cristo no seu nascimento. Guiados
pela Estrela do Oriente, eles encontraram a manjedoura onde estava o menino e
ali lhe entregaram os presentes que levavam: ouro, mirra e incenso. Mesmo com a
rápida referência aos Magos, o imaginário popular conseguiu construir ao longo
dos séculos uma rica narrativa sobre a visita. Os Magos foram então ganhando
nome, idade, origem, quantidade e o status de Reis.
Mas
antes de se tentar compreender a festa da Folia de Reis, é preciso conhecer o
próprio caráter festivo existente na Idade Média entre as sociedades que
ajudaram a construir a narrativa da visita dos Reis Magos, bem como o papel da
Igreja na sua função de transmitir os fatos bíblicos e suas interpretações.
Assim, o próprio surgimento do teatro medieval em muitos países europeus tem
como base as encenações de textos litúrgicos principalmente ligados ao Natal e
à Páscoa (FÉLIX e PESSOA, 2007, p. 132). À medida que estas se desenvolviam,
agregavam mais elementos e enriqueciam as narrativas. Além disso, Bahktin
(1999, p. 66) mostra que a própria Igreja fazia coincidir as datas das festas
oficiais cristãs com as festas pagãs, a fim de cristianizá-las, sendo portanto
inevitável as misturas e influências mútuas.
Paralelo
às encenações da Igreja, comemorava-se no ciclo natalino a Festa dos Loucos ou
Festa dos Foliões, “... ela acontecia geralmente no dia 1º de janeiro e dela
tomavam parte até mesmo padres piedosos e cidadãos ordeiros, sempre portando
máscaras grotescas e cantando modinhas insinuantes.” (FÉLIX e PESSOA, 2007, pg.
133). Nestas festas, a ordem estabelecida já não tinha espaço e até membros da
alta sociedade estavam sujeitos à sátira dos foliões.
"Dentre
os diversos temas religiosos que eram alvos de sátiras, estava também a Festa
dos Reis Magos. E ela foi passada de 1 de janeiro para a Epifania, mas durava o
ano todo, sob o comando de um rei - que não era um dos Magos - eleito no início
de cada ano para comandar os festejos". (Heers apud FÉLIX e PESSOA, 2007,
p. 133).
Tais
manifestações se espalharam por grande parte da Europa e só perderam um poucode
sua força por volta do século XVI com influência direta da Reforma e
Contrarreforma, período marcado “pelo enrijecimento hierárquico, pela
doutrinação paternalista das massas, pela extinção da cultura popular, pela marginalização
mais ou menos violenta das minorias e dos grupos dissidentes.” (GINZBURG, 1987,
p. 33-34).
Devido
a essa grande difusão da festa pela Europa, às vezes se torna difícil definir
suas origens, mas no caso da Folia de Reis é possível reconhecer Portugal como
a região onde se originou a dança “Folia”. Já a tradição de se cantar os Reis,
também conhecida como reisadas1 ou janeiras, não era exclusividade deste país
e, segundo Jadir Pessoa e Madeleine Félix (2007, p. 139), na Alemanha estaria a
provável origem desses cantares.
É
a partir de todo esse contexto de influências e construções simbólicas
acumuladas ao longo de quinze séculos que a Festa da Folia de Reis chega ao
Brasil junto com os padres jesuítas no período da colonização portuguesa se
incorporando “de maneiras diferenciadas às diversas realidades econômicas e
culturais do território brasileiro” (FËLIX e PESSOA, 2007, p. 155).
Os
primeiros registros da Folia de Reis no Brasil datam do século XVIII e desde
então a festa se difundiu pelos estados brasileiros tendo ainda hoje grande
presença na zona rural. O grande fluxo de pessoas vindas do campo para as
cidades, principalmente a partir da década de 1960, fez com que a celebração
também tomasse forma nas áreas urbanas brasileiras, em muitos casos com menos
visibilidade e em outros com estilos próprios.
"…
expressões religiosas tradicionais que, sobrevivendo nas periferias das grandes
cidades, ganharam novas formas, devido às especificidades do grande contexto
urbano. Mesmo sabendo que essa população das cidades guarda muitas tradições de
origem rural, sabemos também que ela já tem um estilo de vida próprio, estilo
este que certamente influi nas suas práticas religiosas". (OLIVEIRA, 1983,
p. 911)
Apesar
de ser uma festa de caráter religioso e de ter sido trazida ao Brasil pelos
próprios jesuítas, é importante dizer que ela não dependia de representantes
oficiais da Igreja para ocorrer, além de carregar as próprias crenças vindas
com portugueses pobres que não tinham relação direta com o clero oficial ou
mesmo com uma elite da Coroa. Assim, apesar das boas relações com padres e
párocos de regiões próximas às de realização das festas, elas ocorriam de forma
autônoma agregando valores próprios, bem como a parte profana das danças e
bebidas.
É
por isso que a própria divisão tradicional entre sagrado/profano elaborada por
Durkheim (MARTÍN, 2003, p. 2), não tem espaço garantido nas manifestações
populares da religiosidade, já que seus sujeitos não veem as danças e bebidas
como um desrespeito ao santo para o qual se está comemorando, mas como
elementos a mais nessa forma de devoção. O sagrado e o profano são assim parte
de um mesmo ritual em uma dada comunidade.
Esta
autonomia fez com que, da mesma forma como a Festa dos Loucos sofrera
interferência direta da Reforma e da Contrarreforma no século XVI, o processo
de romanização implementado pela Igreja Católica na segunda metade do século
XIX e o Concílio Vaticano II na segunda metade do século XX também atingissem
diretamente a realização das Folias de Reis no país já que, segundo Pedro
Oliveira,
"se
a romanização não aboliu inteiramente as práticas religiosas tradicionais, é
entretanto inegável que ela contribuiu para retirar delas o seu caráter coletivo
e público, relegando muitas daquelas práticas para a esfera doméstica e privada".
(1983, p. 911).
Apesar
disso muitos grupos de Folia de Reis conseguem manter sua devoção fazendo o
giro2 em pequenas cidades, fazendas ou pelos bairros das grandes áreas urbanas.
Ainda hoje, o comando das Folias seguem nas mãos de leigos, que por uma
tradição familiar ou pelo envolvimento e dedicação à festa, têm a legitimidade
e o respeito da gente local para manter-se à frente de sua organização.
Atualmente, a função da Igreja na manifestação, quando existe, é a de ser local
de saída dos grupos na noite de 24 de dezembro ou a de receber uma grande missa
ao final do giro ou no domingo próximo ao dia 6 de janeiro.
"Mestre,
embaixador, tirador e capitão são os nomes mais empregados na designação de uma
mesma função, de enorme importância em qualquer Folia de Reis. Ele atua
decisivamente na organização de todo o ritual, posicionando vozes, direcionando
o giro, conferindo afinação de instrumentos etc. Mas, acima de qualquer dessas
tarefas, está a sua identidade maior, a de ser o depositário do conteúdo
estruturante do ritual – o ‘guardião do sagrado’ (Gomes; Pereira, 1995, p. 71).
É ao embaixador que se dirigem sempre para o esclarecimento de todos os
fundamentos da devoção (Pessoa, 1993). Ele deve saber o relato bíblico das
origens, transformando-o em versos ou em explicações práticas do andamento da
folia...". (FÉLIX e PESSOA, 2007, p. 207-208)
No
caso das Folias de Reis, por exemplo, é possível encontrar muitos mestres que
sabem contar toda a narrativa sobre a viagem dos Reis Magos com detalhes e
acréscimos, mesmo sem terem lido a pequena passagem bíblica que narra o fato.
Este conhecimento vem do aprendizado 'de ouvido' e assim contribui para dar
continuidade à tradição e até mesmo enriquecer a história.
"Um
tipo de saber que vive de reconstituir, o que já é conhecido de todos; que vive
de recriar na memória de cada tipo de agente o repertório de crenças e ritos
que fogem da prisão da leitura de todos, logo, de um tipo secular de controle
erudito sobre a memória coletiva do popular. Ali é importante para o agente
conhecer os segredos da cultura da classe e da comunidade e fazer sobre ela o
mundo da religião local". (BRANDÃO, 2007, p. 308).
Apesar
de todo esforço de interrupção das práticas de devoção mais festivas, a Folia
de Reis, assim como várias outras festas religiosas, consegue manter algumas de
suas características mais tradicionais. Segundo Alba Zaluar, as festas “são
parte de um sistema de reciprocidade com as divindades do cosmo construído
socialmente pelos homens. Esse sistema de reciprocidade, por sua vez, integra a
própria visão de mundo dos agentes sociais.” (1983, p. 80).
Nas
festas em geral, essa reciprocidade está presente, por exemplo, por meio do que
Pedro Oliveira (1983, p. 913-914) chama de oferta de dom, forma de culto mais
simples existente no catolicismo, que pode ser uma oração, os enfeites da
bandeira que carrega a imagem do santo durante o giro e a oferta de esmolas ao
santo, no caso da Folia de Reis. Segundo o autor, estes elementos são
considerados como agrados ao santo, mantendo assim uma relação pessoal entre
ele e seu devoto.
Fé e crenças na
construção de uma religiosidade popular
Na
bibliografia que discute a religiosidade popular parece lugar comum incluir
nesta categoria as promessas, festas, novenas, peregrinações, milagres, culto aos
santos, etc. No entanto, já não há um consenso quando se quer delimitar uma
significação para o conceito de popular na religiosidade presente nestas
manifestações. Segundo Fernandes (apud Menezes, 2003, p. 2) o “popular”
apresentaria pelo menos três sentidos diferentes nos estudos produzidos até os
anos 1980.
"O
termo pode significar ‘a maioria da população’, por oposição à minoria; algo
‘pertencente a extratos inferiores da população’, por oposição a práticas da
elite; ou ainda ‘extra-oficial’, no sentido de estar fora do controle ou da
regulamentação da autoridade instituída, por oposição a uma religião ‘oficial’".
(MENEZES, 2003, p. 2).
Ao
se pensar a Folia de Reis, por exemplo, têm-se as duas últimas características
presentes em sua manifestação, principalmente quando ela passa para o espaço
urbano, onde as relações de classe se complexificam e as diferenças sociais
podem ser percebidas pela própria localização dos bairros nas cidades3. Na
cidade de Juiz de Fora (MG), por exemplo, todos os treze grupos de Folia em
atividade atualmente são de bairros de periferia. Além disso, como foi visto, a
construção e consolidação das diversas manifestações religiosas existiram
sempre em espaços de disputas simbólicas, culturais, políticas, etc.
Assim,
as relações entre a Igreja e o Estado ao longo da história fazem com que o
caráter oficial dessas instituições, que são políticas e sociais, influencie em
uma diferenciação mais facilmente demarcada com as religiosidades populares que
conseguem manter-se de forma autônoma, ainda que em diálogo com elas.
"A
variedade de elementos simbólicos empregados no culto aos santos, elementos
estes que extrapolam largamente o código da liturgia oficial da Igreja [...]
não trazem em si mesmos uma ruptura com o código simbólico católico, embora nem
sempre sejam bem vistos pelas autoridades eclesiásticas. São, muitas vezes,
gestos discrepantes dos gestos da liturgia oficial, mas não gestos divergentes
ou antagônicos a ela. […] Suas diferenças em relação aos gestos e orações da
liturgia oficial devem ser atribuídas às diferenças de classe social e de
culturas, e não interpretados como formas não-católicas de culto ao santo.
Tanto assim que o povo sente-se perfeitamente dentro da Igreja Católica, sem
atribuir ao culto aos santos uma conotação de contestação religiosa. Não se
trata, pois, de um culto paralelo ao culto oficial, e muito menos, de um culto
contestador, antagônico ou substitutivo do culto oficial; trata-se, sim, de um
culto onde a liberdade expressiva dos devotos não fica limitada ao código da
liturgia oficial, assumindo por isso os traços próprios à cultura de cada grupo
ou classe social". (OLIVEIRA, 1983, p. 918-919)
Ao
mesmo tempo, a própria autonomia que provoca reações às vezes mais agressivas,
como já mostrado anteriormente, por parte das religiões oficiais, faz com que
essas instituições repensem suas atividades, suas maneiras de agir para com
outros grupos e remodelem suas práticas em uma dialógica constante de trocas
simbólicas entre o popular e a elite (GINZBURG, 1987, p. 12-13). Isso consta
nas próprias Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil, que
recomenda que essas manifestações sejam valorizadas e estimuladas já que elas
têm grande importância na iniciação à vida cristã (2011, p. 72).
No
que se refere às crenças e fé desses sujeitos adeptos de uma religiosidade
popular, algumas características são comuns como a devoção aos santos, o
pagamento de promessas, a espera de milagres para casos de doenças e sofrimento
e o pedido de proteção. Os Reis Magos, assim como outros santos católicos, são
objeto de três ações do devoto: o culto, maneira de mostrar o apreço e carinho
ao santo; a invocação, pedido de proteção, favores e graça; e punição, quando o
santo deixa de atender um pedido ou dar proteção aos fiéis (OLIVEIRA, 1983, p.
913).
Tais
características não são de exclusividade popular, mas se diferenciam de acordo
com os contextos nos quais estão inseridas. É por isso que Da Matta afirma que
"todas
as religiões em todos os tempos e sociedades sempre estiveram voltadas para
duas tarefas simultâneas: a de justificar a ordem social existente e a de dar
sentido ao sofrimento, ao acidente, à doença e à morte. A grande questão é que
cada uma delas faz isso de modo diverso". (1986, p. 141).
Se
antes “tudo podia ser explicado, em última análise, pela manifestação da
vontade divina” (ZALUAR, 1983, p. 86), hoje os santos repartem essas
responsabilidades com novas crenças ou mesmo com a falta delas trazidas com os
avanços científicos, por exemplo. Além disso, no caso da Folia de Reis, alguns
de seus membros participam hoje do giro não para pagar uma promessa ou pedir
proteção aos santos, mas pelo fato de fazer parte de um grupo que muito vezes é
visto mais pelo seu caráter artístico que religioso.
No
entanto, outras características estão presentes nas festas até os dias de hoje,
consideradas um espaço de reforço dos laços da rede de relações da qual fazem
parte seus sujeitos, de “competição pelo prestígio e para expressar
simbolicamente a unidade e os conflitos inerentes a essas relações sociais
estabelecidas” (idem, p. 95).
Da
mesma forma, Pedro Oliveira afirma que “promover ou participar da festa do
santo é ao mesmo tempo promover ou participar do trabalho social de restauração
e reforço dos laços de solidariedade do grupo” (1983, p. 929). A própria
preparação da festa já é ela mesma “um ato coletivo de culto, com profundo
sentido religioso” já que combina “diversos rituais durante um período mais ou
menos longo de preparação e na sua realização propriamente dita” (idem, p.
921-922).
É
por isso que, mesmo mantendo neste trabalho o uso do conceito de religiosidade
popular, devemos compreender sua complexidade, já que nos dias atuais até a fé
e as crenças partem de outros contextos e estão em processo dialógico constante
com as ações de seus sujeitos. Assim, “es posible pensar que puede haber un
‘sagrado’ fuera de los grupos definidos como estrictamente ‘religiosos’ y que
lo ‘religioso’ puede ser construido con elementos ‘no sagrados’...” (MARTÍN,
2003, p. 5).
Logo,
as práticas de pertencimento a uma dada religião podem mudar ao longo dos tempos,
mas elas provavelmente vão acompanhar também as mudanças sociais vividas pelos
seus sujeitos e vice-versa, já que elas não são “apenas capazes de ‘dizer’
coisas sobre a ordem social, mas também de influir nessa ordem e, num certo
sentido, contribuir para construí-la e reconstruí-la” (MENEZES, 2004, p. 28).
Estas diferenças não significam dizer que uma manifestação seja mais autêntica
ou verdadeira que outra, mas apenas que elas fazem parte da própria maneira de
ver o mundo de cada um dos grupos sociais e assim a legitima.
Considerações
finais
Todo
esse debate sugere que mesmo com todas as mudanças vividas na sociedade
brasileira, por exemplo, é possível destacar a característica popular de
determinadas manifestações religiosas ainda que muitas de suas ações de fé e
devoção não sejam exclusividade de grupos populares. Essa afirmativa pode ser
feita considerando-se que “há várias maneiras possíveis de uma religião ser
concretamente vivida” (MENEZES, 2003, p. 2). E é a partir dessas
especificidades que o caráter “popular” deverá ser delimitado em uma dada
religiosidade, já que cada grupo social mostra uma forma própria de viver a
religião,
Por
mais que haja normas e modelos a serem seguidos, cada grupo realizará seu giro
de Folia de Reis, por exemplo, à sua maneira.
De
uma região para outra e até entre folias da mesma região, cada uma tem suas
características, detalhes que lhe são próprios, embora todas guardem o mesmo
objetivo. Isto se deve ao fato de ser cultura popular. Os grupos não têm forma
rígida, pois não há escola de formação de folião. É a continuação de uma
cultura que teve início há séculos e por povos originários de várias culturas.
Conforme é a cultura dos participantes, é a riqueza das participações
(Vigilato, apud FÉLIX e PESSOA, 2007, p. 179).
Assim,
a festa possui um caráter ambíguo da própria vida humana, pois ela consegue ser
ao mesmo tempo uma representação dos pensamentos e modos de vida das pessoas em
sua cotidianeidade, e também carrega seu caráter extraordinário por ser um
espaço/tempo que quebra as rotinas rígidas impostas ou apresentadas
principalmente pelo trabalho, pelo sistema oficial, bem como pelas relações
hierárquicas. Aqui ocorre uma inversão da hierarquia social; os sujeitos tidos
como subordinados, passam ao status de líderes, principalmente pelos seus
conhecimentos relativos às crenças nos santos e à organização da folia.
A
continuidade no uso do conceito de religiosidade popular deve vir, portanto,
acompanhada da clareza de que esse conceito não é fixo e imutável e, por isso,
acompanha as mudanças sociais, políticas e culturais de cada comunidade, já
que, como lembra Brandão … uma formação social como a brasileira [...] opõe
grupos, classes e etnias, sobrevivendo das contradições entre eles, e soma
diferenças sobre categorias de pessoas dentro da classe e, sobretudo, entre as
elas, multiplicando tipos diversos de interesses e aflições para todas e para
cada uma (2007, p. 277).
É
por isso que os cruzamentos, fusões, similitudes e até mesmo as negações de um
pelo outro são constitutivos do próprio campo religioso brasileiro, mas não uma
exclusividade sua. Como aponta Sanchis (1997), o processo de sincretismo
estende-se ao campo, genérico, da cultura. O próprio reconhecer-se ou negar-se
no outro produz de alguma forma proximidades resultando em um processo contínuo
de reconstrução de conceitos e campos de estudos, estando aí o desafio de
constante renovação na pesquisa acadêmica.
Segundo
Bakhtin (1999, p. 43), a carnavalização da consciência ajudaria a destruir
“pretensões de significação incondicional e intemporal”, liberando o pensamento
e a imaginação humana para que fiquem disponíveis ao desenvolvimento de novas
possibilidades, necessárias ao campo da religiosidade, como vimos.
NOTAS:
1.
Em
alguns estados brasileiros a festa de Folia de Reis é conhecida como Reisado,
como no estado de Alagoas.
2.
Giro
é a peregrinação feita pelos foliões que inclui um ponto inicial, a festa de
partida, e um ponto final, a festa de chegada. O percurso é composto pela
visita a casas de devotos que recebem a bandeira dos santos e lhes dão
oferendas, fazem rezas de pedidos e agradecimentos. (FELIX e PESSOA, 2007, p.
8).
3.
Segundo
o coletivo do Ponto de Cultura Escola Livre de Comunicação Compartilhada, “a
questão urbana no Brasil é um reflexo da questão econômica e social. Quer
dizer, os padrões de crescimento e estruturação da nossa sociedade e da nossa
economia se refletem especial e espacialmente na cidade. Quer dizer, a maneira
como as cidades foram organizadas no país tem a ver com a maneira com que foram
organizadas nossa economia e nossa sociedade.” Disponível em
http://www.ipiranga895.outraspalavras.net/site/home acesso em 10 de junho de
2012.
Referências
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MENEZES, Renata de Castro.
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sociabilidade e santidade num convento do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 2004.
OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro
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Liturgia. In Revista Eclesiástica Brasileira, vol. 43, fasc. 172, dez. 1983,
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ZALUAR, Alba. Os homens de Deus - um estudo dos santos e
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Fonte: GONÇALVES, Gabriela Marques. Religiosidade popular e Folia de Reis. Anais do III Congresso Internacional de História da UFG: História e diversidade cultural, Jataí, 25 a 27 de novembro de 2012.
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