O Menino de Belém:
da festa do Natal à iconografia da Natividade e da Adoração
Dra. Maria Isabel Roque
“E
quando eles ali [Belém] se encontravam, completaram-se os dias de ela dar à
luz. E teve o seu filho primogénito, que envolveu em panos e recostou numa
manjedoira, por não haver para eles lugar na hospedaria. Na mesma região, encontravam-se
uns pastores, que pernoitavam nos campos, guardando os seus rebanhos durante a
noite. O anjo do Senhor apareceu-lhes e a glória do Senhor refulgiu em volta
deles, e tiveram muito medo. Disse-lhes o anjo: 'Não temais, pois vos anuncio
uma grande alegria, que o será para todo o povo: Hoje, na cidade de David,
nasceu-vos um Salvador, que é o Messias, Senhor. Isto vos servirá de sinal para
o identificardes: Encontrareis um Menino envolto em panos e deitado numa
manjedoira". […] “Quando os anjos se afastaram deles em direcção ao Céu,
os pastores disseram uns aos outros: "Vamos então até Belém e vejamos o
que aconteceu e que o Senhor nos deu a conhecer.' Foram apressadamente e
encontraram Maria, José e o Menino, deitado na manjedoira.”2 (Lc 2, 6-16)
A festa do Natal
O
nascimento de Cristo é descrito de forma sucinta e breve nos Evangelhos
canónicos. Lucas é o mais minucioso no relato e insere a narrativa paralela do
anúncio aos pastores. É através do seu assombro e da dicotomia entre a
singeleza do acto – o nascimento de uma criança no mais humilde dos cenários –
e a circunstância singular da aparição gloriosa do anjo, que se transmite a
dimensão extraordinária deste acontecimento.
O
local é explícito: José e Maria estavam em Belém, na Palestina, para cumprir as
formalidades do recenseamento ordenado pelo imperador César Augusto; foi para
Belém que os pastores se dirigiram ao encontro do Menino. Em contrapartida, os
indícios apresentados nos Evangelhos para determinar a data são contraditórios:
Mateus situa o nascimento durante o governo de Herodes, o Grande, morto a 4 d.
C.; por seu turno, o recenseamento referido por Lucas decorreu no império
romano durante o ano 6 d. C., mas que, na Judeia, apenas se realizou no ano
seguinte.
Para
os cristãos, o dia mais importante era o da morte, que assinalava a passagem
para a vida eterna. Orígenes (c. 185-253), no Leviticum, homília VIII,
confirmava que a memória do dia natal, início da vida terrena, não era uma
prática de homens santos: “Sancti vero non solum non agunt festivitatem in die
natalis sui, sed et Spiritu sancto repleti exsecrantur hunc diem”3 (Origenes
1857, 495). Por conseguinte, o carácter secundário da comemoração da data
natalícia face à primazia da celebração pascal justifica a quase ausência de informações
acerca da data do nascimento de Cristo.
A
primeira reflexão crítica acerca desta remonta à Patrística do final do século
II. Clemente de Alexandria (c. 150-215), na Stromata, calcula-a a partir da
data da morte do imperador Comodus, fixando-a no ano 28 de Augusto:
“From the birth of
Christ, therefore, to the death of Commodus are, in all, a hundred and
ninety-four years, one month, thirteen days. And there are those who have
determined not only the year of our Lord's birth, but also the day; and they
say that it took place in the twenty-eighth year of Augustus, and in the
twenty-fifth day of Pachon”. (Clemente de Alexandria 2009, 655).
Na
ausência de referências concretas, a conjectura acerca da data do nascimento de
Cristo tornou-se objecto de uma discussão, que se manteve nos séculos
seguintes. Dionísio, o Exíguo (c. 470-c. 544) criou uma tabela com as futuras
datas da Páscoa, onde fixou o Anno Domini: “[…] anni DXXV. Isti sunt anni ab
incarnatione Domini”4 (Dionísio, o Exíguo 1844, 499). Apesar de não ser
consensual, o modelo de datação de Dionísio implantou-se progressivamente no
mundo ocidental, a partir da utilização por Beda, o Venerável, para datar os
acontecimentos da Historia ecclesiastica gentis Anglorum, em 731, tornando-se
comum ao longo do século IX. Baseado em premissas não enunciadas, nem
justificadas, o cálculo de Dionísio está errado. Através dos indícios
encontrados nos relatos evangélicos, em conjugação com a data da morte de
Herodes e a passagem da estrela de Belém que, segundo uma observação de Kepler
geralmente aceite, se tratou de uma possível conjunção de Júpiter e Saturno
sobre a constelação de Peixes (Sachs and Walker 1984, 43–44), estima-se que
Cristo tenha nascido entre os anos 7 e 2 a.C.
O
dia 25 de Dezembro também se fixou tardiamente. A mais antiga referência surgiu
em 354, no Chronographus Anni CCCLIIII, de Furio Dionisio Filocalo, cuja parte
“XII: Depositio Martitum” abre com a indicação: “VIII kal[endas] Ian[uarii]
natus Christus in Betleem Iudeae”5 (Filocalo 1877, 71). A escolha desta data,
coincidente com o dia do solstício de Inverno segundo o calendário romano,
justifica-se pelo sincretismo entre o cristianismo e o culto solar de Mitras e
do Sol Invictus no império romano. “[…] the
fourth-century ‘inculturation’ of Christianity into a society which honored the
official state solar god resulted in a partial assimilation of Christ to the
solar god by way of such titles as ‘Sun of Righteousness’, ‘Sun of the
Resurrection’, and a Logos Christology.” (Roll 1995, 62) O nascimento de Mitra,
divindade solar de origem persa incorporada no panteão romano, era celebrado em
25 de Dezembro. Além disso, também se celebrava, nessa altura, o Dies Natalis
Solis Invicti, festival do Sol Invicto, o invencível deus sol, cujo culto, originário
da Síria, se implantara em Roma desde o início do século III, por acção do
imperador Heliogábalo. O dia do nascimento de Mitra ou do Sol Invicto no
solstício de Inverno, a partir do qual diminui a distância angular entre o sol
e a terra e, no hemisfério norte, aumenta o tempo de exposição solar, comemora
a vitória da luz sobre a noite mais longa do ano.
Imagem 1: Cristo representado como Sol Invictus. Autor desconhecido, séc. III-IV. Vaticano, Basílica de São Pedro, necrópole, mausoléu M. |
Um
dos pontos de partida para a associação da luz ao cristianismo é enunciado por
São João: “N’Ele estava a Vida e a Vida era a luz dos homens“ (Jo 1, 4). Esta
triangulação entre Cristo, a luz e a vida é confirmada pelo próprio discurso
cristológico: “Eu sou a Luz do mundo. Quem me segue não andará nas trevas, mas
terá a luz da vida” (Jo 8, 12). A correspondência entre o cristianismo e os
cultos solares pagãos poderia fundamentar a assimilação das festas pagãs no
calendário litúrgico e, nomeadamente, na celebração do Natal. Por outro lado, a
dificuldade em erradicar a tradição das festas pagãs justifica a estratégia de
as cristianizar, transformando, neste caso, o Natalis solis em Natalis Christi.
O
factor decisivo para a marcação da festa do Natal é a data da encarnação que,
desde o século III, no ocidente, era celebrada em 25 de Março, coincidente com
o equinócio da primavera. Contando, a partir daqui, o período de nove meses de
gestação, o Natal ocorre em 25 de Dezembro. Ao simbolismo da luz, o equinócio
da primavera acrescenta o sentido da vida, através da germinação e da
renovação. “The significance of light shining in the darkness,
and the promise of the growth of light and the increase of life and fertility
belongs to the feast celebrating the birth of the Promised One as a child in
human flesh.” (Roll
1995, 62) O equinócio marca, simultaneamente, a morte de Cristo, pelo facto de,
no século III, “o dia da Paixão e do dia da Concepção de Cristo terem sido
considerados idênticos” (Ratzinger 2001, 80), criando, entre os dois
acontecimentos, uma relação unitária que lhe confere o sentido, ao associar o
mistério da encarnação à redenção da vida humana. “Decisivas devem ter sido as
relações entre Criação e Cruz e Criação e Concepção de Cristo.” (Id., ibid.)
O
Papa Libério (352-366), institui o Natal a 25 de Dezembro, separando-o das
festas da Epifania e do Baptismo, juntamente com as quais era celebrado, em 6
de Janeiro: “there remains uncertain only the minor point whether 25th Dec. of
353 or of 354 was the first Christmas in Rome” (Lake 1910, 601). O Papa Libério
fundou, igualmente, a igreja de Santa Maria Maior, inicialmente designada Santa
Maria ad Nives (em alusão ao milagre da neve, que terá ocorrido em 352) ou
Santa Maria Liberiana, a qual se tornou um importante santuário do culto
natalício. “This church was the center of the Roman celebration
of Christmas. The
Pope celebrated Mass there on the Vigil” (id. Ibid.), não sendo certo até que
ponto se estabeleceu uma dicotomia entre as celebrações de Santa Maria Maior, a
25 de Dezembro, e as da Basílica de São Pedro, que continuaram a 6 de Janeiro
(cfr. id., 608). Cerca de 432, o Papa Sisto III (432-440) criou uma gruta da
Natividade, à semelhança da primitiva de Belém, na cripta de Santa Maria Maior.
A
proeminência da festa da Epifania nos primeiros tempos do cristianismo
reflete-se na iconografia. Num dos painéis em mosaico do arco triunfal de Santa
Maria Maior, feito também durante o papado de Sisto III, o tema é centralizado
na figura de Cristo, sentado num trono imponente e majestoso, ornado de
pedrarias, relegando a Virgem e os reis magos, com túnicas e calças persas e
barretes frígios, para um plano secundário.
Não
se trata, por conseguinte, de um episódio da Natividade, mas de um símbolo da
divindade de Cristo “reconocido por los reyes de la tierra como el rey de reyes
(rex regum)” (Réau 1996, 258). Em representações posteriores, este esquema
altera-se passando o Menino a sentar-se ao colo da Virgem.
Imagem 2: Epifania. Autor desconhecido, séc. V, Roma, Basílica de Santa Maria Maior. |
A
ligação da igreja de Santa Maria Maior às festas natalícias consolidou-se
durante o pontificado de Teodoro I (642-649), ao receber os cinco fragmentos da
madeira manjedoura do presépio (Sacra Culla) que terão sido entregues ao papa
pelo patriarca de Jerusalém ante o perigo da invasão muçulmana. “Porro Christi
natalis nobilissimum monumentum ex ligno confectum, nullaq[ue] argenti vel auri
celatura contectum, post multa tempora inde translatum, Roma possidet”6
(Baronio 1864, 2). A igreja recebeu, nessa altura, o nome de Santa Maria al
Presepio (Liverani 1854, 61–62) em virtude das relíquias depositadas na
confessio da igreja e expostas sobre o altar, para adoração dos fiéis, a 25 de
dezembro.
A
primeira representação figurada do presépio é atribuída a São Francisco de
Assis que, em 1223, quis celebrar o Natal na floresta junto ao burgo medieval
de Greccio: “Volo enim illius pueri memoriam agere, qui in Bethlem natus est,
et infantilium necessitatum ejus incommoda, quomodo in praesepio reclinatus,
quomodo astante bove, atque asino supra foenum positis extitit, utcumque
corporeis oculis pervidere.”7 (Celano and Amoni 1880, 134). São Francisco de
Assis obteve do papa Honório III (1148-1227) autorização para integrar a
representação viva do presépio numa missa celebrada fora do espaço sagrado da
igreja, junto à gruta, iluminada com tochas pelos frades, onde instalou a
imagem do Menino numa manjedoura com palha, junto ao boi e ao burro. Durante a
missa, São Francisco pregou um sermão, dirigindo-se ao Menino de Belém (puerum
de Bethlehem), que, estando a dormir, acordou na presença do santo, segundo o
testemunho de um homem virtuoso (Celano and Amoni 1880, 137). O desígnio
autenticou a representação do presépio.
Se
a representação plástica da Natividade é tardia, a sua dramatização foi
frequente ao longo da Idade Média, incluída nas sacra rappresentazioni do ciclo
da vida de Cristo. Também neste domínio a influência do espírito franciscano
foi determinante, conferindo-lhes uma maior humanização e alegria.
Imagem 3: Instituição do presépio em Greccio. Giotto di Bondone, 1297-1300, Assis, basílica superior. |
“Early Franciscanism
meant above all the democratizing, the humanizing of Christianity; with it
begins the ‘carol spirit’ which is the most winning part of the Christian
Christmas, the spirit which, ahile not forgetting the divine side of the
Nativity, yet delights in its simple humanity, the spirit that links the
Incarnation to the common life of the people, that brings human tenderness into
religion.” (Miles
2008, 37).
Ao
longo do Gótico, de resto, assiste-se a uma progressiva expressividade das
personagens e cenas religiosas, aproximando-as do quotidiano e dos sentimentos
humanos, surgindo novos temas e tipos de representação. É neste contexto que se
propaga a construção do presépio, inicialmente impulsionada pelas ordens
mendicantes, franciscanos e dominicanos, desde a península itálica a toda a
Europa central nos finais da Idade Média.
O
primeiro conjunto escultórico do presépio de que há notícia foi encomendado, em
1288, pelo papa Nicolau IV (1227-1292) a Arnolfo di Cambio, para a cripta da
igreja de Santa Maria Maior. Actualmente truncado, restam as estatuetas de São
José, dos Reis Magos e do boi e do burro, a maior parte esculpidas em
alto-relevo apenas na parte visível, criando um aparato idêntico à descrição da
encenação franciscana.
A
iconografia do presépio consolida-se, assim, a partir da longa tradição das
dramatizações medievais e da figuração plástica seguindo o modelo proposto por
Francisco de Assis: o Menino deitado sobre as palhas da manjedoura, entre a Virgem
e São José, na companhia do boi e do burro, que contribuem para a
contextualização do estábulo enunciado no evangelho de Lucas.
Fontes para a
iconografia da Natividade
Tema bizantino
No
mundo bizantino, o tema da Natividade fixou-se como um parto humano comum, sem
interferências extraordinárias que confirmassem o seu teor divino. A
representação pressupõe um parto uterino, pelo que a Virgem, fatigada e dorida
(decumbens et aegrotans), se encontra deitada ou reclinada no leito (Réau 1996,
229). Ao lado da Virgem, o Menino deitado na manjedoura ou num berço, com o
corpo e a cabeça inteiramente envolto em faixas de pano branco (pannis
involutus), deixando apenas o rosto a descoberto, segundo o costume na
Palestina. Destacando-se sobre o fundo escuro do interior da gruta, as duas
figuras determinam o centro da composição, desenhada de forma esquemática, sem
intenções perspéticas ou de proporcionalidade, em torno da qual se representam
outros episódios secundários em relação ao tema fulcral da Natividade, como o
banho do Menino, o cortejo dos Magos e o anúncio aos pastores.
São
José é igualmente marginalizado no contexto da representação, em consonância
com a condição de pai putativo, sem qualquer envolvimento na concepção de
Cristo (Mt 1, 18-19; Lc 1-27-33). “Saint Josqeph
stands to the side as he observes the scene, as required by traditional
iconography, especially in Nativity scenes.” (Giorgi 2008, 355) É, por isso,
representado alheado, de costas para a cena, ou entregue a actividades
prosaicas, a enxugar os cueiros, a atiçar e a soprar o fogo, ou a tapar o
Menino. Por influência dos autos sacramentais, o carácter anedótico da figura
de São José foi amplamente explorado nas iluminuras medievais e na pintura dos
primitivos flamengos.
Imagem 4: Natividade. Autor desconhecido, 1150, Palermo, Capela Palatina. |
Ao
ser transposto para a arte medieval do ocidente, o tema da Natividade mantém a
representação de Maria reclinada, da figura duplicada do Menino, deitado na
manjedoura e a ser levado ao banho, e de São José marginalizado. No entanto,
assiste-se a uma progressiva alteração e simbolização de alguns aspectos da
composição. Na arte francesa do século XII, que se difunde depois por toda a
Europa, a manjedoura toma o aspecto de altar, numa prefiguração do sacrifício
de Cristo, que confere o sentido extraordinário deste nascimento.
Ocorre,
por esta altura, uma sintetização da representação do Menino, eliminando a cena
do banho, para representar o episódio seguinte, após o momento da lustração, em
que as parteiras entregam o Menino à Virgem. Esta, por influência da crescente
humanização do Gótico final e dos temas da Virgem da Ternura e da Virgem do
Leite, adquire uma atitude mais maternal em relação ao Filho, pondo-o ao colo
ou amamentando-o. O Menino, embora continue a representar-se enfaixado, começa
a surgir nu ou coberto por um lençolinho.
Imagem 5: Natividade. Mestre de Salzburgo, c. 1400, Viena, Museum Mittelalterlicher Österreichischer Kunst. |
Esta
representação manteve-se ao longo da Idade Média, sendo suplantada, no século
XV, pelo tema da Adoração.
Temas
provenientes de fontes apócrifas na iconografia medieval
Face
à exiguidade das referências ao tema da Natividade nos evangelhos canónicos, os
principais relatos do nascimento e da infância de Cristo são os evangelhos
Árabe e Arménio da Infância de Jesus, o Evangelho de Pseudo-Tomé, o
Proto-Evangelho de Tiago ou o Evangelho do Pseudo-Mateus. “As with much of the material to be found in the New Testament apocrypha
as a whole, these infancy gospels fill gaps left by the nativity stories in the
canonical Gospels.” (Elliott
1993, 46) O nascimento de Cristo na gruta, a presença das parteiras e a dos
animais apenas são referidos nos textos apócrifos.
O
Evangelho do Pseudo-Mateus, também conhecido como O Evangelho da Infância
segundo Mateus, apresenta-se em duas partes: a primeira configura-se como uma
reconstrução do Proto-Evangelho de Tiago (cap. I-XVII) pelo que os dois textos
constroem relatos semelhantes acerca do nascimento de Cristo; a segunda
apresenta episódios inspirados no texto de Pseudo-Tomé e outros que aparentam
ser inéditos. O texto constitui uma das principais fontes iconográficas para o
tema da Natividade em finais da Idade Média:
“O
anjo mandou parar o jumento, porque chegara o tempo de ela dar à luz. Depois
mandou Maria descer do animal e entrar numa gruta subterrânea onde sempre
reinou a obscuridade, sem que nunca entrasse a luz do dia. Mas no momento em
que Maria nela, o recinto foi inundado de resplendor e ficou tudo refulgente
como se o sol estivesse ali dentro. E, enquanto Maria aí esteve não faltou o
resplendor, nem de dia, nem de noite. Finalmente, deu à luz um Menino, que
ficou erecto sobre os seus pés, a quem no momento de nascer rodearam os anjos e
o adoraram dizendo: "Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens
de boa vontade".
“Fazia
algum tempo que José fora em busca de parteiras. Mas, quando retornou à gruta,
Maria já dera à luz o Menino. E José disse-lhe: "Aqui te trago duas
parteiras: Zelomi e Salomé. Mas elas ficaram à entrada da gruta, não se
atrevendo a entrar pelo excessivo esplendor que a inunda".
Imagem 6: Natividade. Robert Campin, 1425, Dijon, Musée des Beaux-Arts. |
[…]
“Entrou
Zelomi e disse a Maria: "Permite-me que te toque". Quando Maria lho
permitiu, exclamou em voz alta: "Senhor, tem piedade! Jamais se ouviu nem
passou por cabeça humana que os seios estejam cheios de leite, depois do
nascimento de um menino, permanecendo virgem a mãe. Nenhum derrame de sangue no
nascido. Nenhuma dor na parturiente. Concebeu virgem, virgem deu à luz e virgem
permaneceu depois".”8 (Evangelho do Pseudo-Mateus, 13, 2-3).
A narrativa de Pseudo-Mateus impõe um novo
sentido à iconografia do nascimento de Cristo, como um acontecimento
sobrenatural, isento da dor e da impureza a que aludia o tema bizantino. A
representação das parteiras, neste contexto, tem uma dupla funcionalidade: uma,
de ordem pragmática, porque, apesar de não ajudarem no parto, cumprem as restantes
tarefas complementares, como o banho do Menino; outra, simbólica, dado que, ao
confirmarem a virgindade de Maria, asseguram o carácter miraculoso do parto.
Por seu turno, a representação do banho, desnecessário por não haver vestígios
de sangue no recém-nascido, adquire o significado transcendente de prefiguração
do batismo.
O
Proto-Evangelho de São Tiago diverge na reacção da primeira parteira que
reconhece o prodígio desde o primeiro momento, sem necessidade de o comprovar
fisicamente: “Quando chegaram à gruta, pararam, e eis que uma nuvem luminosa a
encobriu. A parteira exclamou: "Hoje minha alma foi engrandecida, pois
meus olhos contemplaram coisas maravilhosas. Nasceu a salvação para
Israel".” (19, 2)
No
Evangelho do Pseudo-Mateus, as duas parteiras chamam-se Zelomi e Salomé, duas
versões diferentes do mesmo nome (Réau 1996, 230). A primeira, Zelomi, depois
de ter examinado a virgindade da parturiente, chama Salomé que se recusa a
acreditar sem comprovar, numa antecipação da incredulidade de São Tomé; porém,
ao tocar na Virgem, a mão ficou seca e sentiu-se desesperada até à aparição do
anjo que a mandou tocar o Menino. “Ela aproximou-se do menino com toda a
presteza, adorou-o e tocou-lhe a ponta dos panos em que estava envolto. No
mesmo instante, a sua mão ficou curada.” (Evangelho do Pseudo-Mateus, 13, 5)
Na
pintura de Robert Campin (figura 6), as falas da crente, da céptica e do anjo
são transcritas nas respectivas filateras: Azel. Virgo peperit filium / Salome.
Credam quum probavero / [Anjo]Tange puerum et sanaberis //9.
Dá-se,
a partir daqui, a ruptura com a representação bizantina da Natividade: o parto
foi conforme a natureza humana de Cristo, mas atinge sinais sobrenaturais. Os
textos apócrifos confirmam e circunstanciam aquilo que se depreende a partir da
referência ao envoltório no evangelho de Lucas: Maria “teve o seu filho
primogénito, que envolveu em panos e recostou numa manjedoira” (Lc 2, 7)
Infere-se, deste relato que Maria estava sozinha no momento do parto e que se
encontrava bem o suficiente para poder enfaixar o Menino.
O
parto, isento de sofrimento físico nem cansaço, é um acontecimento
extraordinário, que contraria o castigo que recaiu sobre Eva e a sua
descendência após a consumação do pecado original: “os teus filhos hão-de nascer
entre dores” (Gn 3, 16). A Natividade constitui um mistério teofânico, vivido
na intimidade das pessoas divinas, e que só é revelado à humanidade depois de
acontecer.
São
Jerónimo, no século IV, negava a presença das mulheres e afirmava que Maria fora
parturiente e parteira. “Nulla ibi obstetrix: nulla muliercularum sedulitas
intercessit. Ipsa pannis involvit infantem, ipsa et mater et obstetrix
fuit."10 (Jerónimo 1883, col. 201) Apesar da sua existência ser negada
teologicamente, as parteiras continuaram a ser iconograficamente representadas
no tema da Natividade, por evocarem o carácter prodigioso do nascimento de
Cristo, reforçado, no Evangelho do Pseudo-Mateus, pela obstinada desconfiança
de Salomé. Em contrapartida, não se conhece a origem do tema do banho do Menino
que, além disso, contraria o parto sem mácula e o envoltório feito pela Virgem.
Réau (1996, 234) aponta para uma possível transferência do tema do nascimento
de Baco, frequente nos sarcófagos romanos.
Imagem 7: Púlpito (pormenor): Natividade, Nicola Pisano, , 1260, Pizza, Batistério da Catedral. |
Sem
referências documentais que a suportem, a representação deste tema tem um
objectivo essencialmente emblemático, como prefiguração do baptismo, pelo que a
bacia onde o Menino é banhado tem o aspecto formal de uma pia batismal.
Também
a presença do burro e do boi, que não é mencionada nos evangelhos canónicos, é
registada por Pseudo-Mateus que lhes confere uma dimensão simbólica.
“Três
dias depois do nascimento do Senhor, nosso Jesus Cristo, Maria saiu da gruta e
alojou-se num estábulo. Aí reclinou o Menino numa manjedoura, e o boi e o burro
o adoraram. Cumpriu-se, então, o que foi anunciado pelo profeta Isaías: "O
boi reconheceu seu amo e o asno o presépio de seu senhor". Os próprios
animais entre os quais se encontrava, o adoravam sem cessar Cumpriu-se, assim,
o que dissera Habacuc: "Dar-te-ás a conhecer no meio de dois
animais".” (Evangelho do Pseudo-Mateus, XIV).
As
circunstâncias do presépio cumprem, assim, a profecia de Isaías “o boi conhece
o seu possuidor, e o jumento o estábulo do seu dono” (Is 1,3), cujo teor foi
esclarecido por São Gregório de Nissa, no século IV: “Per bovem intellige
illum, qui Legis jugo subjectus est: per asinum autem, quod est animal serendis
oneribus natum, eum, qui simulacrorum cultus onustus est crimine.”11 (Gregório
de Nissa 1863, col. 1142) A presença dos animais alude, por isso, à religião
judaica e aos gentios que Cristo veio suplantar.
Imagem 8: Sarcófago de Stilicone (pormenor): Presépio. Autor desconhecido, século IV, Milão, Igreja de Santo Ambrósio. |
Grousset
regista que, embora seja no texto de Pseudo-Mateus que “les deux animaux y
figurent, et c’est le seul où ils figurent” (1884, 335), a tradição
iconográfica é anterior, pelo que “l’existence légendaire des deux animaux est
bien antérieure au seul Evangile apocryphe qui l’ait constatée." (id.,
336). São vários os sarcófagos datados do século IV, onde o Menino, enfaixado,
se encontra ladeado pelo boi e pelo burro.
Os
animais têm a função contextualizadora do estábulo. Na iconografia, o burro e o
boi são representados a aquecer o Menino e participam no tema da adoração e,
como tal, acabaram por se fixar na tradição e na devoção popular.
Simbolicamente, prefiguram o bom e o mau ladrão que ladeiam Cristo no Calvário,
tal como o Menino é envolto em panos, numa antevisão da mortalha em que é
envolto após a descida da cruz, confirmando a manjedoura como uma representação
da mesa do sacrifício.
A
iconografia medieval da Natividade, mantendo as referências ao tema bizantino,
incorpora um conjunto de figuras e cenas complementares que lhe conferem uma
dimensão simbólica e acentuam a função catequética da representação.
As Revelações de
Santa Brígida e o tema ocidental da Adoração
No
século XIV, o aparecimento de uma fonte de informação acerca do nascimento de
Cristo provoca uma alteração de paradigma na concepção iconográfica da
Natividade. Este fenómeno é descrito por Sarnoff como “a change of emphasis in
the source of details of a gospel” (2003, 85), referindo, como exemplo, a visão
de Santa Brígida, ao mesmo tempo que define a sua importância como fonte de
símbolos transcendentes.
“Mystical visions
reflect reality, culture, current custom and spiritual needs to a greater extent
than do dream visions. The communicative symbols that are found in visions tend
to support conformity to the conscious thought patterns of a culture, and are
more apt to be shaped by the sense of reality and the symbols contained in the
memory panels of organized religion”. (Sarnoff 2003, 84–85).
Santa
Brígida da Suécia, em 1371, com quase 70 anos, fez uma viagem de peregrinação à
Terra Santa, onde experienciou a revelação do nascimento de Cristo, traduzidas
para Latim por Pedro de Skninge, um dos seus confessores:
Cvm essem ad præsepe
domini in Bethleem. Vidi
quandam Virginem pregnantem pulcherrimam valde, indutam albo mantello, et
subtili tunica, per quam ab extra eius carnes virgineas clare cernebam. Cuius
vterus plenus, et multum tumidus erat, quia iam parata erat ad pariendum. Cum
qua senex quidam honestissimus erat, et secum habebant ambo vnum bouem et
asinum. Qui cum intrassent speluncam. Senex ille ligatis boue,
et asino ad presepe exiuit extra, et portauit ad Virginem candelam accensam,
fixitque eam in muro, et exiuit extra, ne partui personaliter interesset.
[...]
Virgo
genuflexa est, cum magna reuerencia ponens se ad oracionem, et dorsum versus
præsepe tenebat, faciem vero ad celum leuatam versus orientem. Erectis igitur
manibus, et oculis in coelum intentis, stabat quasi in extasi contemplacionis
suspensa, inebriata diuina dulcedine. Et ea sic in oracione stante, vidi tunc
moueri iacentem in vtero eius, et illico in momento, et ictu oculi peperit
filium, a quo tanta lux ineffabilis, et splendor exibat, quod sol non esset ei
comparabilis, neque candela illa, quam posuerat senex, quoquomodo lumen
reddebat, quia splendor ille diuinus splendorem materialem candele totaliter
annichilauerat, et tam subitus, et momentaneus erat ille modus pariendi, quod
ego non poteram aduertere, nec discernere, quomodo vel in quo membro pariebat.
[...]
Verumptamen statim vidi illum gloriosum infantem iacentem in terra nudum, et
nitidissimum. Cuius carnes mundissime erant ab omni sorde et immundicia.12
(Brígida da Suécia 1606, 658).
O
modelo iconográfico da Natividade alterou-se em função deste relato e, a partir
do século XV, o tema bizantino focado no parto foi substituído pelo tema
ocidental da adoração do Menino.
A
pintura de Niccolo di Tommaso (figura 9), quase contemporânea da visão de Santa
Brígida, retrata-a nesse momento, integrando os detalhes referidos no relato. A
cena desenrola-se numa gruta onde, ao centro, se encontra o Menino, ladeado
pela Virgem e por São José, ambos ajoelhados e em atitude de veneração. Em
primeiro plano, no canto inferior direito, à entrada da gruta, Santa Brígida
assiste à cena. Numa glória aberta no topo ao centro, a figura de Deus Pai
preside à cena.
O
Menino deixa de estar enfaixado, para surgir radioso e desnudo, deitado sobre
as palhas da manjedoura. Luminoso, de acordo com a visão de Santa Brígida, o
Menino é a fonte de luz, que irradia sobre o rosto extasiado da Virgem e
ilumina a zona da gruta onde se desenrola a cena. As palhas onde se deita criam
o efeito de mandorla ou de uma auréola dourada, que realça a sua luminosidade
radiante.
A
Virgem é representada ajoelhada (flexis genubis), com a cabeça baixa e as mãos
unidas sobre o peito, em atitude de adoração. Da boca saem as palavras que
correspondem à exclamação testemunhada por Santa Brígida: “Bene veneris, Deus
meus, Dominus meus, et filius meus!"13 (Brígida da Suécia 1606, 658) A
figura, com os longos cabelos caídos sobre as costas e vestida com uma longa
túnica alva, destaca-se sobre a mandorla dourada que a rodeia. Ao lado, sobre o
manto, os panos brancos dobrados, tal como os tinha arranjado antes do
nascimento, provam a ocorrência do parto prodigioso.
Imagem 9: Visão da Natividade por Santa Brígida. Niccolo di Tommaso, séc. XIV (último quartel), Vaticano, Pinacoteca. |
A
visão de Santa Brígida teve forte influência no posterior modelo iconográfico
deste tema. “In Bridget’s vision, Mary was freed from travail at
Christ’s birth. Mary had previously been described as giving birth in pain,
then lying down and holding the child in her arms.” (Sarnoff 2003, 85)
Não foi, porém, um fator exclusivo, dado que corresponde a uma longa evolução
do pensamento teológico e do desenvolvimento do culto mariano, sobretudo a
partir de São Bernardo de Claraval, no século XII. A mariologia bernardina
assentava na ideia de que Maria estava isenta da mácula do pecado, em cujo
conceito não está implícita a certeza da sua imaculada conceição, criando uma
alternativa santificada à Eva pecadora do Antigo Testamento. Da mesma forma, o
nascimento de Cristo não decorre de uma acção corpórea e sensível, mas de um
acontecimento místico, não descritível pelas leis da natureza.
“Filius
Dei, nascitur in Bethlehem Iudae. O nativitas illibatasanctitate, honorabilis
mundo, amabilis hominibus collati magnitudine beneficii, investigabilis
etiamangelis sacri profunditate mysterii […]! O partus solus sine dolore, solus
nescius pudoris, corruptionis ignarus, non reserans, sed consecrans virginalis
uteri templum! O nativitas supra naturam, sed pro natura; miraculi excellentia
superans, sed reparans virtute mysterii!”14 (Bernardo 1862, col. 87).
O
parto, sem causar dor nem mácula, é um mistério divino e consagra Maria como o
tabernáculo divino. A visão de Santa Brígida está coerente com os parâmetros da
religiosidade da Idade Média, que decorrem da teologia mariológica de São
Bernardo, o que justifica a sua influência na iconografia da Natividade.
O
pensamento de São Bernardo exerceu uma profunda influência nos teólogos das
centúrias seguintes e, nomeadamente, em São Tomás de Aquino que confirma a
santidade de Maria e a expande a São José: “credimus, quod sicut mater Iesu
fuit virgo, sic Ioseph”15 (Tomás de Aquino 2011). São José é enaltecido como
esposo virginal de Maria (virgineus sponsus Virginis) e em conformidade com a
linhagem que lhe é referida nos evangelhos. Mateus e Lucas atribuem-lhe
descendência de David, através de Salomão (Mt 1, 6) ou de Nathan (Lc 3-31), o
que o habilita a assumir a paternidade terrena do Filho de Deus. “One would rather expect that, if Jesus used his earthly family as
analogy for God’s heavenly family, the role of the father would be important.” (Van Aarde 1998,
325). À medida que São José é assumido como membro modelar da Sagrada Família,
a sua presença no presépio dignifica-se como guardião e protector do Menino.
Santa
Brígida contribui para esta alteração. “She experienced a revelation in a vision in which St. Joseph became an
active participant in the story of the birth of Christ, replacing his usual
iconic images as sleeping man or pale observer.” (Sarnoff 2003, 85) O papel que
desempenha nos relatos apócrifos é reformulado: além de ir chamar as parteiras,
permitindo que Maria fique só, pendura a lanterna acesa, símbolo da Velha Lei,
a qual é literalmente ofuscada pela Nova Lei que o Menino representa. Na
iconografia do tema, São José aproxima-se da cena principal, centrada no
Menino, ocupando o lado oposto ao da Virgem e em idêntica atitude,
estabelecendo o tema da Adoração de Cristo.
Imagem 10: Natividade. Lorenzo Lotto, 1523, Washington, National Gallery of Art. |
O
Concílio de Trento, realizado entre 1545 a 1563, confirmou o propósito de
dignificação que vinha a informar a iconografia da Natividade, ao mesmo tempo
que redefiniu a dupla função da imagem na explicação dos mistérios sagrados e
na elevação do espírito daqueles que a contemplam. “O Concílio tentou restituir
ao cristianismo, englobando aqui aspectos que vão dos conceitos teológicos às
práticas litúrgicas e à devoção individual, a força da sua doutrina original,
baseada numa maior simplicidade e misticismo, eliminando todas as contaminações
erróneas mais tardias.” (Roque 2004, 50) Neste sentido, as disposições
tridentinas impuseram a eliminação dos temas acessórios, não referidos nos
textos canónicos, como a representação das parteiras e, por conseguinte, o
banho do Menino e o desaparecimento do boi e do burro, os quais reprovava pela
falta de nobreza. Contudo, os animais, apesar de inicialmente reprimidos,
continuaram a representar-se, dado o cunho familiar e rústico que imprimiam à
cena.
Em
contrapartida, a Igreja reformada promoveu o tema da Adoração, em que se inclui
a dos Magos, registada desde os tempos paleocristãos, e a dos Pastores,
complementadas com a presença dos coros de anjos cantores e músicos.
Imagem 11: Josefa de Óbidos, 1650-1660. Coleção particular. |
Confirma,
igualmente, a representação do Menino luminoso, surgido no século anterior, e
que terá particular expressão plástica no contexto do barroco, criando
profundos contrastes entre as figuras iluminadas e os fundos escurecidos.
Temas
complementares da cena da Natividade
Adoração
dos Magos
A
Epifania não é um episódio da Natividade, mas é reconhecida como a primeira
teofania de Cristo e, por conseguinte, como o acontecimento fundador da Nova
Aliança, registando-se como um símbolo da divindade de Cristo. Daí que, nos
primeiros tempos do Cristianismo, a festa da Epifania se tenha sobreposto ao
tema da Natividade e a representação iconográfica da adoração dos magos remonte
aos primeiros tempos do cristianismo.
A
vinda dos magos para homenagear o Menino, é referida em Mateus (Mt 2, 1-12),
sendo registada de forma quase idêntica nos textos apócrifos (Proto-Evangelho
de São Tiago 21, 1-3; Evangelho do Pseudo-Mateus 16, 1-2).
“Tendo
Jesus nascido em Belém da Judeia, no tempo do rei Herodes, chegaram a Jerusalém
uns magos vindos do Oriente. […] E a estrela, que tinham visto no Oriente, ia
adiante deles, até que, chegando ao lugar onde estava o Menino, parou. Ao ver a
estrela sentiram, grande alegria, e, entrando em casa, viram o Menino com
Maria, Sua mãe. Prostrando-se, adoraram-n’O, e, abrindo os cofres,
ofertaram-Lhe presentes: Ouro, incenso e mirra.” (Mt 2, 1-11)
Nos
evangelhos são genericamente referidos como homens sábios ou magos, a
denominação dada aos sacerdotes persas de Zoroastro que, além das funções
religiosas, se dedicavam ao estudo da astronomia e da astrologia,
atribuindo-se-lhes poderes ocultos.
Inicialmente,
os Magos, em número indefinido e sem se lhes atribuírem nomes, eram
representados de maneira indiferenciada, com o traje persa dos sacerdotes de
Mitra: barrete frígio e manto sobre as costas. Desfilam em cortejo na direcção
da Virgem, trono vivo de Deus menino, a quem levam presentes em bandejas ou em
ricos receptáculos de ourivesaria.
A
partir do elenco de presentes, o número dos magos acaba por se fixar em três.
Nos Excerpta latina barbari, uma cronologia composta em grego, no século V, e
traduzida para latim, surge a mais antiga referência conhecida aos nomes dos
três magos: “In his diebus sub Augusto Kalendas Ianuarias magi obtulerunt ei
munera et adoravunt eum: magi autem vocabantur Bithisarea Melchior Gathaspa”16
(Auctores antiquissimi 1892, 278).
No
século VII, Beda, o Venerável, fornece uma descrição detalhada da identidade de
cada um:
Imagem 12: Epifania. Autor desconhecido, século VI, 1o quartel Ravena, Igreja de Santo Apolinário o Novo. |
Magi
sunt, qui munera Domino dederunt: primus fuisse dicitur Melchior, senex et
canus, barba prolixa et capillis […]; aurum obtulit regi Domino. Secundus,
nomine Caspar, juvenis imberbis, rubicundus […] thure quasi Deo oblatione
digna, Deum honorabat. Tertius, fuscus, integre barbatus, Balthasar nomine […]:
per mirrham Filium hominis moriturum professus est.17 (Beda o Venerável 1862,
col. 541)
Desenha-se,
a partir daqui, a simbologia atribuída a cada um, relacionando-os com as três
idades do homem e com os três continentes (Europa, Ásia e África), pelo que a
adoração representa a homenagem de toda a humanidade e de todo o mundo
conhecido.
Os
presentes referem-se à tripla natureza de Cristo: ouro, metal precioso próprio
da realeza, para o rei; incenso, queimado nos rituais religiosos, para Deus;
mirra, usado no embalsamento, para o homem. Porém, Voragine, na Lenda Dourada,
coligida cerca de 1260, refere outras analogias populares durante a Idade
Média:
Le
choix de ces présents et leur don s’expliquent par plusieurs motifs : 1e
c’était l’usage, chez les anciens, de ne jamais approcher d’un dieu ou d’un roi
sans lui offrir des présents ; […] 2e d’après saint Bernard, l’or était destiné
à alléger la pauvreté de la Vierge, l’encens à effacer la mauvaise odeur de
l’étable, la myrrhe à consolider les membres de l’enfant en expulsant les vers
des ses intestins ; 3e ces trois présents signifiaient la royauté du Christ, sa
divinité et son humanité […] ; 4e ces trois présents signifiaient ce que nous
devons offrir au Christ : car l’or est le symbole de l’amour, l’encens celui de
la prière et la myrrhe symbolise la mortification de la chair. (Voragine 1998,
76).
A
partir do século XV, a progressiva humanização dos temas religiosos,
representados em contextos profanos, permitiu que os Magos retratassem os
doadores e respectiva corte, ostentando indumentárias luxuosas e adornos ricos.
Progressivamente, o tema tende a afastar-se da iconografia da Natividade,
retomando o antigo modelo do cortejo em direcção à Virgem com o Menino ao colo.
Imagem 13: Adoração dos Magos. Gentile da Fabriano, 1423, Florença, Galleria degli Uffizi. |
Adoração dos Pastores
Nas
composições bizantinas e medievais, o Anúncio aos Pastores e os coros de anjos
eram representados atrás da cena da Natividade. No evangelho de Lucas (2,
8-14), fala-se de um anjo, que surgia envolto em luz perante o assombro dos
pastores, seguido pelos exércitos celestiais. O contexto bucólico da cena é
assegurado pela presença do rebanho e do cão. Os pastores evidenciam emoções de
espanto ou de deslumbramento, enquanto outros prosseguem no seu labor,
indiferentes ao anúncio. Vindo dos céus, um anjo geralmente com uma filactera
onde se lê o início do hino Gloria in excelsis Deo.
Ao
longo da Idade Média, o tema independentiza-se, sendo recorrente na ilustração
dos livros de Horas, ao mesmo tempo que as representações dos autos pastoris,
com uma dramaturgia repleta de episódios, provocaram importantes alterações na
iconografia.
A
partir do Renascimento, a cena incorpora elementos pitorescos retirados das
representações dos autos pastoris, criando um contraponto humano ao coro
celeste. Também este se transforma numa corte de anjos músicos e cantores,
ricamente adornados e inseridos em magníficas glórias celestes.
No
século XVI, surgiu o tema da Adoração dos Pastores, o qual, não sendo inédito,
ganhou uma popularização crescente ao longo das centúrias seguintes e, em
particular, nas armações dos presépios de influência napolitana. O episódio é
brevemente tratado no evangelho de Lucas (2, 15-16). A introdução do tema na
iconografia da Natividade completa a narrativa do nascimento de Cristo e o
ciclo das adorações: ao esquema compositivo triangular do Menino adorado por
Maria e São José, anexam-se os grupos dos pastores e dos magos, com simbologias
complementares e paralelas. A Adoração dos Pastores desenvolve-se como a versão
popular da Adoração dos Magos e, refletindo a Epifania, os pastores são as primeiras
testemunhas do nascimento de Cristo.
Imagem 14: Anúncio aos pastores. Livro de Horas, manuscrito, c. 1400. Universidade de Coimbra, Biblioteca Geral. |
Os
pastores costumam representar-se em díade, criando uma composição simétrica com
os pares da Virgem e o Menino e do boi e do burro, ou em tríade, num
paralelismo com o número dos Magos. Complementando a Adoração da Virgem e São
José, os dois grupos de adoradores assimilam a simbologia associada ao burro e
à vaca. “[Os pastores] Representan a los gentíos, mientras que los Reyes Magos
son el símbolo de los gentiles.” (Réau 1996, 245).
O
acto de adoração implica a entrega de oferendas: em contraposição às dos Magos,
os pastores entregam animais e instrumentos do seu ofício. Entre os presentes,
destacam-se um cordeiro, um cajado e a flauta pastoril, cuja simbologia alude à
missão terrena do Menino: “el cordero con las patas atadas significa el
sacrificio de Jesús, el cayado indica que será pastor de almas, y el caramillo
que sus discípulos lo seguirán como a un nuevo Orfeo” (Réau 1996, 245) O
cordeiro de pés atados, que surge com frequência aos pés do Menino, prefigura o
Agnus Dei.
O
século XV marca a mudança de paradigma na iconografia da Natividade, centrada
na representação do prodigioso nascimento do Menino em torno do qual se
desenvolvem as várias cenas de Adoração. O cenário é uma cabana de madeira com
cobertura de palha ou, por influência do Renascimento, numa estrutura
arquitetónica classicizante em ruínas, símbolo do velho mundo que desmorona
perante a nova lei trazida pelo Messias.
Imagem 15: Adoração dos pastores. Bartolome Esteban Murillo, 1668, Londres, Wallace Colection. |
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Fonte: ROQUE, Maria Isabel. O Menino de Belém: Da Festa do Natal à Iconografia da Natividade e da Adoração. Guadium Sciendi, n. 5, dezembro 2013, 104-126.
Fonte: ROQUE, Maria Isabel. O Menino de Belém: Da Festa do Natal à Iconografia da Natividade e da Adoração. Guadium Sciendi, n. 5, dezembro 2013, 104-126.
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