Entre 1914 e 1918 a Europa e territórios africanos e asiáticos foram acometidos pela Grande Guerra, que vitimou entre 8 a 9 milhões de soldados e civis, além de deixar um saldo maior de feridos. Todavia, nos últimos meses que antecediam o término da guerra, a Europa foi acometida por uma repentina e mortífera forma de vírus Influenza H1N1, que ficou comumente conhecido como gripe espanhola. A doença se espalhou de forma tão rápida e severa, que em poucos meses foi considerada um problema de saúde mundial, sendo classificada como a primeira pandemia do século XX, a qual duraria até 1920, acometendo as Américas, África e Ásia, gerando pelo menos 50 milhões de mortos. Em dois anos a terrível gripe conseguiu matar mais gente do que somando-se o número de mortos da Primeira Guerra e da Segunda Guerra. Neste texto procurei contar um pouco da história dessa terrível doença que assombrou o mundo.
Uma ameaça sorrateira:
A epidemia de gripe que acometeu a Europa no ano de 1918 passou despercebida por algum tempo, já que o centro das atenções ainda era a Grande Guerra que se encontravam em seus meses finais, já que os impérios envolvidos já haviam demonstrado sinais para um armísticio a fim de pôr fim a aquela guerra que durava quatro anos. Logo, em meio ao cenário de ruínas, miséria, sangue e morte que alguns países europeus vivenciavam, algumas doenças se espalhavam e entre elas uma mortífera variedade de gripe, o Influenza H1N1. Como havia um descolocamento de muitas pessoas, entre militares e refugiados, além de haver vários hospitais lotados devido aos feridos pela guerra, a gripe passou inicialmente despercebida. Fato esse que não se sabe exatamente quando ela começou e onde se originou. Com o término da guerra e o retorno das tropas para casa, os soldados adoentados ou que contraíram o vírus da gripe, mas que estava adormecido, ajudaram sem saber, a propagar a doença.
Anny Silveira (2005, p. 93-96) comenta que em 1918 o diagnóstico médico para se identificar a gripe ainda era impreciso. As vezes a pessoa era diagnosticada tendo apenas uma "febre". Surtos de gripe em menor escala já haviam acometido alguns países europeus desde o final do século XIX, mas nunca haviam gerado um alarde nacional e uma vasta quantidade de infectados e de mortos. No ano de 1892 o médico Richard Friedrich Johann Pfeiffer (1858-1945), em um estudo bacteriológico, disse ter identificado o responsável pela gripe. Na época Pfeiffer acreditava que a gripe fosse causada por bactérias, embora saiba-se que trata-se de vírus. A pesquisa de Pfeiffer recebeu várias críticas negativas, todavia, ele obteve êxito em propor uma vacina para outra doença, o tifo. Embora Pfeiffer tenha errado ao identificar o patógeno que causa a gripe, sua hipótese de que ele poderia ser disseminado pelo ar, e isso consistia na sua forma de contágio, estava certa. Além disso, ele também acertou ao sugerir que a gripe além de febre, causava problemas respiratórios que tendiam a levar a uma insuficiência respiratória, a qual causaria a morte do enfermo.
Por mais que Pfeiffer houvesse identificado uma bactéria e não o vírus da gripe, suas hipóteses sobre contágio e alguns dos sintomas eram válidas. O problema é que os médicos nos anos seguintes, acreditavam que se tratava de uma bactéria, além de haver alguns que alegavam que Pfeiffer havia errado nos demais aspectos. No final, isso em nada contribuiu para uma melhoria no diagnóstico da gripe, a qual foi tomada como casos de febre forte, mas a medida que essa "febre maligna" se espalhava rapidamente, acometendo várias pessoas e até mesmo levando a óbito em poucos dias, já não se tratava de uma simples febre.
A gripe se espalha, mas é omitida:
A falta de um diagnóstico preciso prejudicou identificar quando a gripe espanhola começou a se disseminar, não sabendo de onde ela se originou, apenas sabe-se que em determinado momento as autoridades médicas foram pressionadas pelos governos a omitir que uma epidemia de gripe ocorria. Em março de 1918, soldados americanos que estavam de retorno ao seu país, carregavam consigo o vírus dessa gripe. Alguns já haviam partido nos navios já doentes e não conseguiram concluir a travessia do Atlântico. Outros adoeceram durante a viagem ou quando chegaram. Hospitais militares americanos começaram a ter suas alas de enfermagem e internação lotadas não por causa dos feridos, mas devido aos soldados gripados. Isso de início foi silenciado a imprensa. (REID, TAUBENBERGER; FANNING, 2001, p. 81).
Kuszewski e Brydak (2000, p. 189) comentam que sinais que antecedem a epidemia de gripe espanhola em 1918, ocorreram nos anos seguintes, mas somente tomou-se conhecimento a respeito, anos depois, após investigação jornalistica e histórica. Os dois autores comentam o fato que em 1915 e 1916 ocorreram pequenos surtos de gripe pelos Estados Unidos, por sua vez, nas trincheiras francesas da guerra, em 1917, relatórios militares médicos informavam casos de vários soldados ingleses com problemas respiratórios, especialmente de bronquite. Os autores indagam se seriam apenas bronquite ou já podia-se delinear alguns casos de gripe. Porém, eles sublinham que essas informações foram de início omitidas, isso partia da condição que o governo evitava causar um alarde público, para não levar ao medo e pânico generalizados, além da condição que essas informações poderiam chegar aos ouvidos dos inimigos, revelando um desfalque no contingente das tropas.
A gripe começou a matar muitos soldados americanos e alguns civis que tinham contato com os enfermos, entre os meses de março e maio. Enquanto isso, soldados europeus que estavam na Europa ou no norte da África também padeciam dessa misteriosa doença. Em junho de 1918 a Royal Academy of Medicine de Londres noticiou que a misteriosa doença que estava matando muitos soldados, poderia se tratar de um tipo perigoso de gripe. Apesar da prestigiada instituição médica ter acertado quanto a identificar a doença como gripe, e não febre, tifo ou outra enfermidade, ainda assim, a academia inglesa defendeu que notícias sobre a epidemia não deveriam ser levadas a público para não causar pânico. (GOULART, 2005, p. 102).
Mas enquanto a gripe não era noticiada publicamente, a segunda onda da epidemia teria ocorrido entre agosto e setembro. Se a primeira onda foi noticiada tendo ocorrido entre os soldados franceses, ingleses e americanos em março de 1918, a segunda onda já acometia a população civil no geral na Europa, em países como Portugal, Espanha, Itália, França, Inglaterra, Polônia, Alemanha, etc. e inclusive nos meses de outubro a dezembro identificou-se pessoas contaminadas em países na América do Sul, como Brasil e Argentina. Foi a partir dessa segunda onda que jornais espanhóis foram os primeiros a noticiar que hospitais espanhóis estavam lotados por causa de pessoas acometidas por uma forte gripe. A imprensa nacional utilizou esse fato e começou a chamar a gripe daquele ano de gripe espanhola e até mesmo surgiu boatos na época dizendo que ela teria começado na Espanha. (REID, TAUBENBERGER; FANNING, 2001, p. 82).
Com a notícia de que uma forte e virulenta gripe acometia os Estados Unidos, Espanha, Polônia e França, outros países europeus começaram a notificar casos dessa doença, mesmo que na época já houvesse ocorrido vários óbitos ocasionados pela gripe espanhola. Com isso, em meados de 1918, já circulavam notícias falando de uma perigosa doença que teria se originado na Espanha. Em outubro daquele ano, jornais europeus, africanos e americanos já noticiavam de forma mais clara, embora ainda imprecisa, sobre a existência de um surto de gripe na Europa e nos Estados Unidos. Em dezembro de 1918, surtos de gripe serão noticiados em outros países da América Latina e outros países do norte e leste da Europa.
Os jornais espanhóis embora noticiassem a gripe espanhola, apresentavam uma reação bem adversa. Uns tratavam a doença como uma gripe comum que volta e meia ocorre; outros alegaram que a gripe foi trazida pelos franceses, ao ponto de falar de uma "gripe francesa". Alguns jornais alegavam que a gripe estava sendo virulenta apenas nos Estados Unidos e na França, mas por hora a Espanha estava com poucos casos. Notícias sobre possíveis mortos pela gripe, foram divulgadas, mas a população desconfiava se era verdade ou boato. Alguns jornais fizeram sátiras a respeito, apresentando pessoas moribundas, esqueléticas, doentes, etc. indo se consultar com os médicos, os quais diziam que estava tudo bem, pois era um simples resfriado. Todavia, já em outubro, a noção de que uma epidemia de gripe era real e grave já se espalhava pela Espanha. (TRILLA; TRILLA; DAER, 2008, p. 670-671).
A gripe avança para outros continentes:
Na América do Sul, países como Brasil e Argentina foram os mais acometidos pela doença. No caso argentino no ano de 1917, poucas pessoas pereceram de gripe, sendo que pessoas morriam mais por causa de tuberculose, meningite, complicações cardíacas e respiratórias. No entanto, no final de 1918, o índice de mortos por gripe aumentou em sete vezes em relação ao ano anterior. Desde maio os jornais argentinos noticiavam acerca da gripe espanhola, mas somente no final do ano que a doença chegou ao país. No entanto, foi em 1919 que os surtos de gripe ocorreram, tornando a doença uma epidemia. Cidades pequenas como Catamarca, Jujuy, Mendonza, La Rioja, Salta, San Juan, Santiago del Estero e Tucumán, tiveram um grande surto da doença e elevadas taxas de mortandade para suas pequenas populações. Em algumas dessas cidades observou-se um crescimento exponencial de até 133 vezes no número de infectados e mortos. A estimativa é que mais de 20 mil argentinos faleceram devido a gripe, principalmente no norte e noroeste do país. (CARBONETTI, 2010, p. 162-163).
Adrián Carbonetti (2010, p. 170) observou que em cidades e regiões com alta taxa de médicos para cada mil habitantes, o número de vítimas causados pela gripe, foi baixo, o que incluiu a própria capital Buenos Aires. Algo diferente do visto no Brasil, onde a capital Rio de Janeiro foi a cidade com maior número de mortos no país, mesmo tendo muitos médicos lá.
A gripe espanhola no ano de 1918 começou acometer mais o norte da África e a adentrar o Oriente Médio. No caso africano, soldados franceses e britânicos que haviam contraído a doença na Europa, e foram relocados para a África, devido a guerra, disseminaram a doença. Viajantes que deixaram os países infectados e seguiram para o continente africano, também levaram sem saber o vírus da gripe. Niall Johnson e Juergen Mueller (2002, p. 110) apresentam uma tabela mostrando números aproximados de mortos em consequência da gripe, os quais faleceram entre 1918 e 1920. Eles apontam que os dados antigos sejam imprecisos, sendo impossível precisar a quantidade de mortos, mas ambos consideram que houve exagero nos número apresentados, de qualquer forma, eles assinalaram que países como Egito, Congo Belga, Camarões, Quênia, Nigéria e África do Sul, houveram dezenas de milhares de mortos.
A gripe espanhola chegou à Ásia também e depois em menor escala a Oceania. No continente asiático a doença foi espalhando-se do Oriente Médio à China. Porém, viajantes que iam de navio da Europa para o Extremo Oriente, como China, Japão e Filipinas, também levaram a doença por rota marítima. Johnson e Mueller (2002, p. 112) comentam que países como China e Índia devido o alto índice populacional e carência de médicos, sistema de saúde e condições sanitárias ajudou a disseminar a gripe de forma bastante virulenta. Estima-se que na China de 4 a 9 milhões de pessoas faleceram. Na Índia a estimativa ultrapassa os 18 milhões de mortos. Indonésia teria tido mais de 1,5 milhão de mortos. Japão e Afeganistão tiveram mais de 300 mil mortes.
Na Oceania os principais países afetados foram Austrália, Nova Zelândia, Fiji e Samoa Ocidental. Na Austrália estima-se que mais de 14 mil pessoas faleceram por causa da doença. Na Nova Zelândia as estimativas ficam em 8 mil mortos. Arquipélagos como Fiji e Samoa Ocidental também tiveram altos índices de mortos, considerando sua diminuta população. Estima-se que mais de 8 mil pessoas morreram em cada uma dessas ilhas.
A gripe espanhola no Brasil, um breve comentário:
No Brasil casos de gripe espanhola começaram a circular nos jornais em setembro, sendo informado que as pessoas não entrassem em desespero e seguissem as recomendações médicas, apesar que as autoridades de saúde brasileira perceberam que o Brasil não tinha medidas eficientes para combater e tratar de uma epidemia. Por mais que a doença tornou-se pública, os jornais controlavam as informações para não causar uma histeria coletiva.
A cidade do Rio de Janeiro, na época era a capital federal e a cidade mais populosa do país, com quase 1 milhão de habitantes. Também sofreu com a gripe espanhola, que chegou por volta do mês de outubro. As notícias sobre a gripe na Europa, no Rio, São Paulo e Bahia foram tomadas de diferentes formas. Alguns jornais fizeram sátiras sobre a chegada da doença ao Brasil, outros jornais disseram que a doença seria usada pelo governo para interferir na vida privada, obrigando a população a se vacinar, e isso poderia causar uma nova revolta, como ocorreu com a Revolta da Vacina em 1904. Circulava através de boatos e em conversas cotidianas, apreensões, medos e desconfianças. Algumas pessoas temiam a epidemia que acometia os europeus e americanos, mas outras pessoas achavam que a gripe espanhola fosse como qualquer outra gripe, sendo perigosa apenas para crianças, idosos e pessoas já adoentadas. (GOULART, 2005, p. 103-105).
Se a gripe no início foi tomada como um resfriado comum, mesmo tendo causado 48 mortes na capital, no final do mês de outubro, o número de mortos passava de mil. Embora a população da capital fosse cem vezes maior, no entanto, nunca se imaginou que me menos de um mês uma simples gripe poderia matar em torno de 1.073 pessoas. No meses de novembro e dezembro a situação piorou, embora o número de mortos não cresceu tanto, mas o número de infectados disparou de forma assombrosa. Em poucas semanas, milhares de pessoas na capital e em outras cidades do estado, estavam infectadas. Hospitais começaram a superlotar devido a grande quantidade de enfermos que chegavam. Como ainda não havia um tratamento contra a gripe naquele tempo, as pessoas acreditavam que bastava levar ao hospital e os médicos fariam algo para curá-las. Mas isso somente gerou atribulações e conflitos. (GOULART, 2005, p. 105, 108).
Além de hospitais superlotados, a vida nas cidades com altos índices da gripe espanhola sofreu alterações. Pessoas começaram a faltar ao trabalho, pois estavam doentes ou tinham que ficar em casa para cuidar dos doentes. Aulas foram suspensas para se evitar que os alunos transmitissem a doença ou fossem por ela infectadas. Lojas que tinham poucos funcionários, fecharam, pois todos estavam doentes. Lojas maiores tiveram número de funcionários reduzido. Serviços públicos foram afetados por causa dos profissionais que ficaram doentes. Remédios que supostamente poderiam ter algum tratamento de combate a doença, começaram a escassear nas farmácias e hospitais. As pessoas com medo, começaram a estocar comida em suas casas, evitando sair na rua para não contrair a doença. Cemitérios tiveram problemas para arranjar caixões e espaço, pois nunca morreu-se tanta gente em poucas semanas. Alimentos, medicamentos e outros produtos foram superfaturados devido a escassez. As autoridades médicas não sabiam como agir, pois as medidas publicadas não estavam sendo seguidas pelos profissionais de saúde e nem pela população. A gripe estava acometendo e matando pessoas de todas as idades e classes sociais. (GOULART, 2005, p. 108-109).
Com o crescimento de casos de pessoas infectadas pelo vírus da gripe e a mortandade aumentada, o governo tomou a decisão de evitar divulgar os números a respeitos para evitar aumento da histeria coletiva. Alguns jornais ainda tentavam consultar tais números e criticavam que o governo estava agindo de má fé por esconder a real situação, quando alegava que a doença não era tão severa assim, e não passava de boatos escandalosos. No ano de 1919, a gripe espanhola ainda continuou a fazer vítimas na cidade e no estado. O recém-eleito presidente da república, Rodrigues Alves faleceu em em 16 de janeiro de 1919, vítima da gripe espanhola. O fato do presidente do Brasil ter morrido por causa daquela doença, voltou a gerar alarde na cidade e em outros lugares do país. O importante médico e sanitarista Carlos Chagas foi nomeado para o combate da doença, criando postos de socorro e distribuindo equipes pela capital federal, mas a medida não surtiu efeito desejado. Apenas no estado do Rio de Janeiro, mas de dez mil pessoas morreram em poucos meses.
Em São Paulo o Annuario Demographico de 1918 tentou contabilizar o número de infectados e mortos, notificando com dificuldade que apenas em algumas cidades como São Paulo, Santos, Campinas e Ribeirão Preto, o número de mortos levantados era mais de 6 mil pessoas, posteriormente dados advindos de outras cidades do estado, forneciam um valor de pelo menos 12 mil mortos em 1918. Apesar que novos casos continuaram a serem notificados no ano seguinte, acometendo outras cidades do estado, mas sendo que o número de mortos decaiu para 7.735. (BASSANEZI, 2013, p. 76-81).
A gripe espanhola espalhou-se por vários dos outros estados brasileiros de norte a sul do país do Pará ao Rio Grande do Sul, vitimando também pessoas mesmo nos estados mais interioranos como Goiás, Mato Grosso e Amazonas. Surtos fortes como os vistos no Rio e São Paulo, também ocorreram na Bahia e no Ceará. A gripe continuou a fazer mortes até o começo de 1920, quando os casos diminuíram e se encerraram. O número de infectados no país foi de centenas de milhares ou de mais de um milhão, já que relatórios médicos são imprecisos quanto a quantidade de pessoas infectadas, além de que o diagnóstico era incerto, onde pessoas com resfriado ou outras doenças poderiam ser tomadas como estando gripadas. Estima-se que pelo menos 35 mil brasileiros tenham morrido entre 1918 e 1920 por causa da gripe espanhola, 1/3 desse total apenas no estado do Rio de Janeiro. Cidades como Recife e Porto Alegre tiveram mais de mil mortos por causa da doença. Salvador teve um alto índice de infectados, mas poucas mortes.
Considerações finais:
Surtos de gripe nos Estados Unidos, Europa e Ásia não eram incomuns, inclusive desde 1900, já haviam sido relatados aumentos significativos dessa doença, embora recordo que na época ainda não se soubesse os fatores que causavam a influenza. Fato esse que nem sempre o diagnóstico da mesma era exato. Nos relatórios médicos de diferentes países, os gripados eram diagnosticados tendo dores no corpo, dores de cabeça, fadiga, dificuldades para respirar, vômitos, náuseas, febre, as vezes diarreia, sudorese, fotossensibilidade a luz, etc. Alguns dos sintomas eram confundidos com os de bronquite, sinusite, pneumonia, tifo, resfriado, dengue, etc. o que dificultava um diagnóstico exato para tratamento. Além disso, soma-se a condição de que a falta de medidas sanitárias e de internação adequadas, favoreceram a disseminação da doença.
Se a Peste Negra era principalmente difundida por pulgas na Idade Média europeia e asiática, a gripe espanhola foi mais epidêmica por ser transmitida pelo ar e pelo contato com algumas secreções corporais dos infectados. Soma-se a isso que em alguns casos a doença demorava a se manifestar, e o vírus incubado poderia ser transportado sem que a pessoa soubesse para outras cidades, estados, países e continentes. Se hoje existe um risco de algo do tipo ocorra devido a facilidade das viagens aéreas, entre 1918-1920, não havia viagens de avião, mas bastou as de navio para espalhar a doença pelos continentes.
Em alguns países de tradição cristã havia pessoas que acreditavam que a gripe espanhola fosse um anúncio do Apocalipse. Em 1918 terminava a Grande Guerra, com seus 9 milhões de mortos, e agora seguia-se uma pandemia. Os cavaleiros do Apocalipse, Guerra, Peste e Morte estavam atuantes, restava o Fome chegar para encerrar o ciclo de terror. Lembrando que além das várias pessoas doentes e mortas, a doença em algumas cidades afetou o cotidiano; ruas vazias, comércio fechado, hospitais lotados, cemitérios abarrotados de funerais e com falta de espaço para sepultar os mortos; escasseamentos de alimentos e medicamentos; escolas, universidades e faculdades fechadas; pessoas usando máscaras na rua e em casa, com medo de até ir falar com o vizinho, para não pegar a doença; medo, histeria, desconfiança, revolta, etc.
Estimativas exageradas dizem que a gripe espanhola teria matado de 50 a 100 milhões de pessoas, hoje em dia trabalha-se com valores que vão de 20 a 40 milhões de mortos pelo mundo, porém, o número de infectados foi dezenas de vezes maior. Por fim, se ainda há mistério quando e como esse surto se tornou uma pandemia, o fim disso também não é claramente compreendido. Em 1919 as taxas de infectados e mortos começou a cair em meados do ano. Os últimos relatos considerados de infectados por gripe espanhola datam do começo de 1920 e depois cessam. Não houve novos surtos dessa doença, naquele ano ou nos anos seguintes. Muitas das vítimas da gripe espanhola curiosamente não foram crianças ou idosos, mas pessoas entre seus 20 e 30 anos, consideradas um grupo mais saudável e resistente.
NOTA: A palavra influenza usada para se referir a gripe, é de origem italiana, surgida no século XV, a partir da mentalidade astrológica, onde acreditava-se que os astros poderiam influenciar a saúde das pessoas.
NOTA 2: O seriado espanhol El Ministério del Tiempo (2016-2018), no episódio cinco da segunda temporada, aborda a gripe espanhola.
NOTA 3: No jogo Vampyr (2018) a trama se passa em Londres no ano de 1918, acometida pela gripe espanhola e por uma série de ataques de vampiros.
NOTA 4: Em 2009 novo surto de gripe H1N1, chamada de gripe suína assustou o mundo, pois temia-se que pudesse alcançar proporções desastrosas. Mas felizmente a Organização Mundial da Saúde em parceria com os países conseguiram controlar a doença.
Referências bibliográficas:
BASSANEZI, Maria Silvia C. Beozzo. Uma trágica primavera. A epidemia de gripe de 1918 no estado de São Paulo, Brasil. In: BAENINGER, Rosana; DEDECCA, Claudio Salvadori (orgs.). Processos migratórios no estado de São Paulo: estudos temáticos, v. 10. Campinas, Núcleo de Estudos de População, 2013, p. 73-90.
CARBONETTI, Adrián. Historia de uma epidemia olvidada. la pandemia de gripe española en la Argentina, 1918-1919. Desacatos, n. 32, 2010, p. 159-174.
GOULART, Adriana da Costa. Revisitando a espanhola: a gripe pandêmica de 1918 no Rio de Janeiro. História, Ciências, Saúde, v. 12, n.1, 2005, p. 101-142.
JOHNSON, Niall P. A. S; MUELLER, Juergen. Updating the Accounts: Global Mortality of the 1918-1920 "Spanish" Influenza Pandemic. Bull. Hist. Med., n. 76, 2002, p. 105-115.
KUSZEWSKI, K; BRYDAK, L. The epidemology and history of influenza. Biomed & Pharmacother, n. 54, 2000, p. 188-195.
REID, Ann H; TAUBENBERGER, Jeffrey K; FANNING, Thomas G. The 1918 Spanish influenza: integrating history and biology. Microbes and Infectation, n. 3, 2001, p. 81-87.
SILVEIRA, Anny Jackeline Torres. A medicina e a Influenza espanhola de 1918. Revista Tempo, Rio de Janeiro, n. 19, 2005, p. 91-105.
TRILLA, Antoni; TRILLA, Guilem; DAER, Carolyn. The 1918 "Spanish Flu" in Spain. Clinical Infectious Diseases, v. 47, n. 5, 2008, p. 668-673.
Referências da internet:
LAMARÃO, Sergio; URBINATI, Inoã Carvalho. Gripe Espanhola. Disponível em: https://atlas.fgv.br/verbetes/gripe-espanhola.
Uma ameaça sorrateira:
A epidemia de gripe que acometeu a Europa no ano de 1918 passou despercebida por algum tempo, já que o centro das atenções ainda era a Grande Guerra que se encontravam em seus meses finais, já que os impérios envolvidos já haviam demonstrado sinais para um armísticio a fim de pôr fim a aquela guerra que durava quatro anos. Logo, em meio ao cenário de ruínas, miséria, sangue e morte que alguns países europeus vivenciavam, algumas doenças se espalhavam e entre elas uma mortífera variedade de gripe, o Influenza H1N1. Como havia um descolocamento de muitas pessoas, entre militares e refugiados, além de haver vários hospitais lotados devido aos feridos pela guerra, a gripe passou inicialmente despercebida. Fato esse que não se sabe exatamente quando ela começou e onde se originou. Com o término da guerra e o retorno das tropas para casa, os soldados adoentados ou que contraíram o vírus da gripe, mas que estava adormecido, ajudaram sem saber, a propagar a doença.
Anny Silveira (2005, p. 93-96) comenta que em 1918 o diagnóstico médico para se identificar a gripe ainda era impreciso. As vezes a pessoa era diagnosticada tendo apenas uma "febre". Surtos de gripe em menor escala já haviam acometido alguns países europeus desde o final do século XIX, mas nunca haviam gerado um alarde nacional e uma vasta quantidade de infectados e de mortos. No ano de 1892 o médico Richard Friedrich Johann Pfeiffer (1858-1945), em um estudo bacteriológico, disse ter identificado o responsável pela gripe. Na época Pfeiffer acreditava que a gripe fosse causada por bactérias, embora saiba-se que trata-se de vírus. A pesquisa de Pfeiffer recebeu várias críticas negativas, todavia, ele obteve êxito em propor uma vacina para outra doença, o tifo. Embora Pfeiffer tenha errado ao identificar o patógeno que causa a gripe, sua hipótese de que ele poderia ser disseminado pelo ar, e isso consistia na sua forma de contágio, estava certa. Além disso, ele também acertou ao sugerir que a gripe além de febre, causava problemas respiratórios que tendiam a levar a uma insuficiência respiratória, a qual causaria a morte do enfermo.
Por mais que Pfeiffer houvesse identificado uma bactéria e não o vírus da gripe, suas hipóteses sobre contágio e alguns dos sintomas eram válidas. O problema é que os médicos nos anos seguintes, acreditavam que se tratava de uma bactéria, além de haver alguns que alegavam que Pfeiffer havia errado nos demais aspectos. No final, isso em nada contribuiu para uma melhoria no diagnóstico da gripe, a qual foi tomada como casos de febre forte, mas a medida que essa "febre maligna" se espalhava rapidamente, acometendo várias pessoas e até mesmo levando a óbito em poucos dias, já não se tratava de uma simples febre.
A gripe se espalha, mas é omitida:
A falta de um diagnóstico preciso prejudicou identificar quando a gripe espanhola começou a se disseminar, não sabendo de onde ela se originou, apenas sabe-se que em determinado momento as autoridades médicas foram pressionadas pelos governos a omitir que uma epidemia de gripe ocorria. Em março de 1918, soldados americanos que estavam de retorno ao seu país, carregavam consigo o vírus dessa gripe. Alguns já haviam partido nos navios já doentes e não conseguiram concluir a travessia do Atlântico. Outros adoeceram durante a viagem ou quando chegaram. Hospitais militares americanos começaram a ter suas alas de enfermagem e internação lotadas não por causa dos feridos, mas devido aos soldados gripados. Isso de início foi silenciado a imprensa. (REID, TAUBENBERGER; FANNING, 2001, p. 81).
Um hospital improvisado nos Estados Unidos, mostrando pessoas internadas por causa da gripe espanhola. |
A gripe começou a matar muitos soldados americanos e alguns civis que tinham contato com os enfermos, entre os meses de março e maio. Enquanto isso, soldados europeus que estavam na Europa ou no norte da África também padeciam dessa misteriosa doença. Em junho de 1918 a Royal Academy of Medicine de Londres noticiou que a misteriosa doença que estava matando muitos soldados, poderia se tratar de um tipo perigoso de gripe. Apesar da prestigiada instituição médica ter acertado quanto a identificar a doença como gripe, e não febre, tifo ou outra enfermidade, ainda assim, a academia inglesa defendeu que notícias sobre a epidemia não deveriam ser levadas a público para não causar pânico. (GOULART, 2005, p. 102).
Mas enquanto a gripe não era noticiada publicamente, a segunda onda da epidemia teria ocorrido entre agosto e setembro. Se a primeira onda foi noticiada tendo ocorrido entre os soldados franceses, ingleses e americanos em março de 1918, a segunda onda já acometia a população civil no geral na Europa, em países como Portugal, Espanha, Itália, França, Inglaterra, Polônia, Alemanha, etc. e inclusive nos meses de outubro a dezembro identificou-se pessoas contaminadas em países na América do Sul, como Brasil e Argentina. Foi a partir dessa segunda onda que jornais espanhóis foram os primeiros a noticiar que hospitais espanhóis estavam lotados por causa de pessoas acometidas por uma forte gripe. A imprensa nacional utilizou esse fato e começou a chamar a gripe daquele ano de gripe espanhola e até mesmo surgiu boatos na época dizendo que ela teria começado na Espanha. (REID, TAUBENBERGER; FANNING, 2001, p. 82).
Com a notícia de que uma forte e virulenta gripe acometia os Estados Unidos, Espanha, Polônia e França, outros países europeus começaram a notificar casos dessa doença, mesmo que na época já houvesse ocorrido vários óbitos ocasionados pela gripe espanhola. Com isso, em meados de 1918, já circulavam notícias falando de uma perigosa doença que teria se originado na Espanha. Em outubro daquele ano, jornais europeus, africanos e americanos já noticiavam de forma mais clara, embora ainda imprecisa, sobre a existência de um surto de gripe na Europa e nos Estados Unidos. Em dezembro de 1918, surtos de gripe serão noticiados em outros países da América Latina e outros países do norte e leste da Europa.
Os jornais espanhóis embora noticiassem a gripe espanhola, apresentavam uma reação bem adversa. Uns tratavam a doença como uma gripe comum que volta e meia ocorre; outros alegaram que a gripe foi trazida pelos franceses, ao ponto de falar de uma "gripe francesa". Alguns jornais alegavam que a gripe estava sendo virulenta apenas nos Estados Unidos e na França, mas por hora a Espanha estava com poucos casos. Notícias sobre possíveis mortos pela gripe, foram divulgadas, mas a população desconfiava se era verdade ou boato. Alguns jornais fizeram sátiras a respeito, apresentando pessoas moribundas, esqueléticas, doentes, etc. indo se consultar com os médicos, os quais diziam que estava tudo bem, pois era um simples resfriado. Todavia, já em outubro, a noção de que uma epidemia de gripe era real e grave já se espalhava pela Espanha. (TRILLA; TRILLA; DAER, 2008, p. 670-671).
A gripe avança para outros continentes:
Na América do Sul, países como Brasil e Argentina foram os mais acometidos pela doença. No caso argentino no ano de 1917, poucas pessoas pereceram de gripe, sendo que pessoas morriam mais por causa de tuberculose, meningite, complicações cardíacas e respiratórias. No entanto, no final de 1918, o índice de mortos por gripe aumentou em sete vezes em relação ao ano anterior. Desde maio os jornais argentinos noticiavam acerca da gripe espanhola, mas somente no final do ano que a doença chegou ao país. No entanto, foi em 1919 que os surtos de gripe ocorreram, tornando a doença uma epidemia. Cidades pequenas como Catamarca, Jujuy, Mendonza, La Rioja, Salta, San Juan, Santiago del Estero e Tucumán, tiveram um grande surto da doença e elevadas taxas de mortandade para suas pequenas populações. Em algumas dessas cidades observou-se um crescimento exponencial de até 133 vezes no número de infectados e mortos. A estimativa é que mais de 20 mil argentinos faleceram devido a gripe, principalmente no norte e noroeste do país. (CARBONETTI, 2010, p. 162-163).
Adrián Carbonetti (2010, p. 170) observou que em cidades e regiões com alta taxa de médicos para cada mil habitantes, o número de vítimas causados pela gripe, foi baixo, o que incluiu a própria capital Buenos Aires. Algo diferente do visto no Brasil, onde a capital Rio de Janeiro foi a cidade com maior número de mortos no país, mesmo tendo muitos médicos lá.
A gripe espanhola no ano de 1918 começou acometer mais o norte da África e a adentrar o Oriente Médio. No caso africano, soldados franceses e britânicos que haviam contraído a doença na Europa, e foram relocados para a África, devido a guerra, disseminaram a doença. Viajantes que deixaram os países infectados e seguiram para o continente africano, também levaram sem saber o vírus da gripe. Niall Johnson e Juergen Mueller (2002, p. 110) apresentam uma tabela mostrando números aproximados de mortos em consequência da gripe, os quais faleceram entre 1918 e 1920. Eles apontam que os dados antigos sejam imprecisos, sendo impossível precisar a quantidade de mortos, mas ambos consideram que houve exagero nos número apresentados, de qualquer forma, eles assinalaram que países como Egito, Congo Belga, Camarões, Quênia, Nigéria e África do Sul, houveram dezenas de milhares de mortos.
A gripe espanhola chegou à Ásia também e depois em menor escala a Oceania. No continente asiático a doença foi espalhando-se do Oriente Médio à China. Porém, viajantes que iam de navio da Europa para o Extremo Oriente, como China, Japão e Filipinas, também levaram a doença por rota marítima. Johnson e Mueller (2002, p. 112) comentam que países como China e Índia devido o alto índice populacional e carência de médicos, sistema de saúde e condições sanitárias ajudou a disseminar a gripe de forma bastante virulenta. Estima-se que na China de 4 a 9 milhões de pessoas faleceram. Na Índia a estimativa ultrapassa os 18 milhões de mortos. Indonésia teria tido mais de 1,5 milhão de mortos. Japão e Afeganistão tiveram mais de 300 mil mortes.
Na Oceania os principais países afetados foram Austrália, Nova Zelândia, Fiji e Samoa Ocidental. Na Austrália estima-se que mais de 14 mil pessoas faleceram por causa da doença. Na Nova Zelândia as estimativas ficam em 8 mil mortos. Arquipélagos como Fiji e Samoa Ocidental também tiveram altos índices de mortos, considerando sua diminuta população. Estima-se que mais de 8 mil pessoas morreram em cada uma dessas ilhas.
A gripe espanhola no Brasil, um breve comentário:
No Brasil casos de gripe espanhola começaram a circular nos jornais em setembro, sendo informado que as pessoas não entrassem em desespero e seguissem as recomendações médicas, apesar que as autoridades de saúde brasileira perceberam que o Brasil não tinha medidas eficientes para combater e tratar de uma epidemia. Por mais que a doença tornou-se pública, os jornais controlavam as informações para não causar uma histeria coletiva.
A cidade do Rio de Janeiro, na época era a capital federal e a cidade mais populosa do país, com quase 1 milhão de habitantes. Também sofreu com a gripe espanhola, que chegou por volta do mês de outubro. As notícias sobre a gripe na Europa, no Rio, São Paulo e Bahia foram tomadas de diferentes formas. Alguns jornais fizeram sátiras sobre a chegada da doença ao Brasil, outros jornais disseram que a doença seria usada pelo governo para interferir na vida privada, obrigando a população a se vacinar, e isso poderia causar uma nova revolta, como ocorreu com a Revolta da Vacina em 1904. Circulava através de boatos e em conversas cotidianas, apreensões, medos e desconfianças. Algumas pessoas temiam a epidemia que acometia os europeus e americanos, mas outras pessoas achavam que a gripe espanhola fosse como qualquer outra gripe, sendo perigosa apenas para crianças, idosos e pessoas já adoentadas. (GOULART, 2005, p. 103-105).
Se a gripe no início foi tomada como um resfriado comum, mesmo tendo causado 48 mortes na capital, no final do mês de outubro, o número de mortos passava de mil. Embora a população da capital fosse cem vezes maior, no entanto, nunca se imaginou que me menos de um mês uma simples gripe poderia matar em torno de 1.073 pessoas. No meses de novembro e dezembro a situação piorou, embora o número de mortos não cresceu tanto, mas o número de infectados disparou de forma assombrosa. Em poucas semanas, milhares de pessoas na capital e em outras cidades do estado, estavam infectadas. Hospitais começaram a superlotar devido a grande quantidade de enfermos que chegavam. Como ainda não havia um tratamento contra a gripe naquele tempo, as pessoas acreditavam que bastava levar ao hospital e os médicos fariam algo para curá-las. Mas isso somente gerou atribulações e conflitos. (GOULART, 2005, p. 105, 108).
Além de hospitais superlotados, a vida nas cidades com altos índices da gripe espanhola sofreu alterações. Pessoas começaram a faltar ao trabalho, pois estavam doentes ou tinham que ficar em casa para cuidar dos doentes. Aulas foram suspensas para se evitar que os alunos transmitissem a doença ou fossem por ela infectadas. Lojas que tinham poucos funcionários, fecharam, pois todos estavam doentes. Lojas maiores tiveram número de funcionários reduzido. Serviços públicos foram afetados por causa dos profissionais que ficaram doentes. Remédios que supostamente poderiam ter algum tratamento de combate a doença, começaram a escassear nas farmácias e hospitais. As pessoas com medo, começaram a estocar comida em suas casas, evitando sair na rua para não contrair a doença. Cemitérios tiveram problemas para arranjar caixões e espaço, pois nunca morreu-se tanta gente em poucas semanas. Alimentos, medicamentos e outros produtos foram superfaturados devido a escassez. As autoridades médicas não sabiam como agir, pois as medidas publicadas não estavam sendo seguidas pelos profissionais de saúde e nem pela população. A gripe estava acometendo e matando pessoas de todas as idades e classes sociais. (GOULART, 2005, p. 108-109).
Jornal Gazeta de Notícias, noticiando em 1918 o surto de gripe espanhola no Rio de Janeiro. |
Em São Paulo o Annuario Demographico de 1918 tentou contabilizar o número de infectados e mortos, notificando com dificuldade que apenas em algumas cidades como São Paulo, Santos, Campinas e Ribeirão Preto, o número de mortos levantados era mais de 6 mil pessoas, posteriormente dados advindos de outras cidades do estado, forneciam um valor de pelo menos 12 mil mortos em 1918. Apesar que novos casos continuaram a serem notificados no ano seguinte, acometendo outras cidades do estado, mas sendo que o número de mortos decaiu para 7.735. (BASSANEZI, 2013, p. 76-81).
A gripe espanhola espalhou-se por vários dos outros estados brasileiros de norte a sul do país do Pará ao Rio Grande do Sul, vitimando também pessoas mesmo nos estados mais interioranos como Goiás, Mato Grosso e Amazonas. Surtos fortes como os vistos no Rio e São Paulo, também ocorreram na Bahia e no Ceará. A gripe continuou a fazer mortes até o começo de 1920, quando os casos diminuíram e se encerraram. O número de infectados no país foi de centenas de milhares ou de mais de um milhão, já que relatórios médicos são imprecisos quanto a quantidade de pessoas infectadas, além de que o diagnóstico era incerto, onde pessoas com resfriado ou outras doenças poderiam ser tomadas como estando gripadas. Estima-se que pelo menos 35 mil brasileiros tenham morrido entre 1918 e 1920 por causa da gripe espanhola, 1/3 desse total apenas no estado do Rio de Janeiro. Cidades como Recife e Porto Alegre tiveram mais de mil mortos por causa da doença. Salvador teve um alto índice de infectados, mas poucas mortes.
Considerações finais:
Surtos de gripe nos Estados Unidos, Europa e Ásia não eram incomuns, inclusive desde 1900, já haviam sido relatados aumentos significativos dessa doença, embora recordo que na época ainda não se soubesse os fatores que causavam a influenza. Fato esse que nem sempre o diagnóstico da mesma era exato. Nos relatórios médicos de diferentes países, os gripados eram diagnosticados tendo dores no corpo, dores de cabeça, fadiga, dificuldades para respirar, vômitos, náuseas, febre, as vezes diarreia, sudorese, fotossensibilidade a luz, etc. Alguns dos sintomas eram confundidos com os de bronquite, sinusite, pneumonia, tifo, resfriado, dengue, etc. o que dificultava um diagnóstico exato para tratamento. Além disso, soma-se a condição de que a falta de medidas sanitárias e de internação adequadas, favoreceram a disseminação da doença.
Se a Peste Negra era principalmente difundida por pulgas na Idade Média europeia e asiática, a gripe espanhola foi mais epidêmica por ser transmitida pelo ar e pelo contato com algumas secreções corporais dos infectados. Soma-se a isso que em alguns casos a doença demorava a se manifestar, e o vírus incubado poderia ser transportado sem que a pessoa soubesse para outras cidades, estados, países e continentes. Se hoje existe um risco de algo do tipo ocorra devido a facilidade das viagens aéreas, entre 1918-1920, não havia viagens de avião, mas bastou as de navio para espalhar a doença pelos continentes.
Em alguns países de tradição cristã havia pessoas que acreditavam que a gripe espanhola fosse um anúncio do Apocalipse. Em 1918 terminava a Grande Guerra, com seus 9 milhões de mortos, e agora seguia-se uma pandemia. Os cavaleiros do Apocalipse, Guerra, Peste e Morte estavam atuantes, restava o Fome chegar para encerrar o ciclo de terror. Lembrando que além das várias pessoas doentes e mortas, a doença em algumas cidades afetou o cotidiano; ruas vazias, comércio fechado, hospitais lotados, cemitérios abarrotados de funerais e com falta de espaço para sepultar os mortos; escasseamentos de alimentos e medicamentos; escolas, universidades e faculdades fechadas; pessoas usando máscaras na rua e em casa, com medo de até ir falar com o vizinho, para não pegar a doença; medo, histeria, desconfiança, revolta, etc.
Estimativas exageradas dizem que a gripe espanhola teria matado de 50 a 100 milhões de pessoas, hoje em dia trabalha-se com valores que vão de 20 a 40 milhões de mortos pelo mundo, porém, o número de infectados foi dezenas de vezes maior. Por fim, se ainda há mistério quando e como esse surto se tornou uma pandemia, o fim disso também não é claramente compreendido. Em 1919 as taxas de infectados e mortos começou a cair em meados do ano. Os últimos relatos considerados de infectados por gripe espanhola datam do começo de 1920 e depois cessam. Não houve novos surtos dessa doença, naquele ano ou nos anos seguintes. Muitas das vítimas da gripe espanhola curiosamente não foram crianças ou idosos, mas pessoas entre seus 20 e 30 anos, consideradas um grupo mais saudável e resistente.
NOTA: A palavra influenza usada para se referir a gripe, é de origem italiana, surgida no século XV, a partir da mentalidade astrológica, onde acreditava-se que os astros poderiam influenciar a saúde das pessoas.
NOTA 2: O seriado espanhol El Ministério del Tiempo (2016-2018), no episódio cinco da segunda temporada, aborda a gripe espanhola.
NOTA 3: No jogo Vampyr (2018) a trama se passa em Londres no ano de 1918, acometida pela gripe espanhola e por uma série de ataques de vampiros.
NOTA 4: Em 2009 novo surto de gripe H1N1, chamada de gripe suína assustou o mundo, pois temia-se que pudesse alcançar proporções desastrosas. Mas felizmente a Organização Mundial da Saúde em parceria com os países conseguiram controlar a doença.
Referências bibliográficas:
BASSANEZI, Maria Silvia C. Beozzo. Uma trágica primavera. A epidemia de gripe de 1918 no estado de São Paulo, Brasil. In: BAENINGER, Rosana; DEDECCA, Claudio Salvadori (orgs.). Processos migratórios no estado de São Paulo: estudos temáticos, v. 10. Campinas, Núcleo de Estudos de População, 2013, p. 73-90.
CARBONETTI, Adrián. Historia de uma epidemia olvidada. la pandemia de gripe española en la Argentina, 1918-1919. Desacatos, n. 32, 2010, p. 159-174.
GOULART, Adriana da Costa. Revisitando a espanhola: a gripe pandêmica de 1918 no Rio de Janeiro. História, Ciências, Saúde, v. 12, n.1, 2005, p. 101-142.
JOHNSON, Niall P. A. S; MUELLER, Juergen. Updating the Accounts: Global Mortality of the 1918-1920 "Spanish" Influenza Pandemic. Bull. Hist. Med., n. 76, 2002, p. 105-115.
KUSZEWSKI, K; BRYDAK, L. The epidemology and history of influenza. Biomed & Pharmacother, n. 54, 2000, p. 188-195.
REID, Ann H; TAUBENBERGER, Jeffrey K; FANNING, Thomas G. The 1918 Spanish influenza: integrating history and biology. Microbes and Infectation, n. 3, 2001, p. 81-87.
SILVEIRA, Anny Jackeline Torres. A medicina e a Influenza espanhola de 1918. Revista Tempo, Rio de Janeiro, n. 19, 2005, p. 91-105.
TRILLA, Antoni; TRILLA, Guilem; DAER, Carolyn. The 1918 "Spanish Flu" in Spain. Clinical Infectious Diseases, v. 47, n. 5, 2008, p. 668-673.
Referências da internet:
LAMARÃO, Sergio; URBINATI, Inoã Carvalho. Gripe Espanhola. Disponível em: https://atlas.fgv.br/verbetes/gripe-espanhola.