Introdução
Em 1998 em uma viagem à Islândia, o
escritor britânico Neil Gaiman, na época conhecido principalmente por seu
trabalho com histórias em quadrinhos, em especial a série Sandman, ao visitar aquela remota e distante ilha no Atlântico
Norte, teve a ideia de escrever um livro sobre os Estados Unidos. Gaiman já
vivia na América há vários anos com sua esposa, então teve a ideia de escrever
sobre a cultura americana ou a “alma dos Estados Unidos”. A obra seria um livro
que envolveria mitologia, religião, trapaças, golpes, suspense, viagens,
romance, etc. como ele comenta em algumas entrevistas dadas sobre esse livro, o
qual foi intitulado Deuses Americanos
(American Gods), tendo sido publicado
originalmente em 2001. Apesar que dez anos depois recebeu uma nova edição,
revista e ampliada.
No ano de 2017, a obra ganhou uma
adaptação para os quadrinhos e para a televisão, pela Amazon Play. Como a história em quadrinhos é uma adaptação mais
próxima do livro, optamos em trabalhar apenas com o livro e o seriado, pois
esse apresenta várias diferenças na trama. Embora trata-se de um livro
publicado há dezessete anos, possuindo vários trabalhos a respeito, pois a obra
ganhou alguns prêmios literários na época, e hoje é um dos trabalhos mais
populares de Neil Gaiman, esse presente artigo pretendeu analisar esse volumoso
trabalho de mais de quinhentas páginas a partir dos conceitos religiosos de totemismo
e culto.
Em Deuses
Americanos a trama gira em torno de Shadow Moon, o protagonista recém-saído
da prisão que conhece um misterioso homem chamado Wednesday, o qual lhe propõem
um trabalho: ser seu motorista e guarda-costas, pois o Sr. Wednesday diz que
está participando de uma guerra um tanto atípica. Somente com o desenrolar da
trama é que Shadow dará conta que se trata de uma guerra de deuses.
Cena do seriado Deuses Americanos. Shadow Moon (Richard Whittle) torna-se motorista e guarda-costa do misterioso Sr. Wednesday (Ian Machsane). |
O
livro Deuses Americanos é conhecido
por trazer referências há várias divindades de origem nórdica, eslava, egípcia,
indiana, nativo americana, etc. porém, o que nos chamou a atenção é como o
autor abordou a crença nos antigos e novos deuses, pois o cerne da questão como
proposto por Gaiman é que os deuses são inventados pelos seres humanos, quando
esses passam a crer que eles existam, possuam habilidades, poderes, que atendam
nossos desejos ou nos castigam, e que eles necessitam de nós para serem
adorados. Assim, utilizando princípios de crença, totemismo, culto e memória,
Gaiman construiu sua visão sobre o que seria a religião.
No entanto é necessário comentar que
tais características são centrais em sua obra, pois os novos deuses incluem a
internet, a mídia, as teorias da conspiração, o mercado financeiro, estradas de
ferro, carros, aviões e no caso do seriado inclui-se armas de fogo, rodovias,
etc. Na perspectiva religiosa criada por Gaiman, essas invenções humanas
acabaram se tornando sagradas devido a atenção exagerada das pessoas, que gerou
uma espécie de adoração ou de idolatria.
Diante dessa percepção de que os novos
deuses são oriundos da adoração desmedida dos americanos a máquinas,
tecnologias e ideias, nesse artigo decidimos estudar com base no conceito de
totemismo, culto e dos novos movimentos religiosos abordar a visão do autor
quanto a reduzir a crença nos deuses a uma questão de memória e culto. Para
isso utilizamos autores vinculados as Ciências das Religiões, História e
Sociologia para estudar essa percepção religiosa existente no livro Deuses Americanos.
Noções sobre totemismo
O
conceito de totemismo surgiu na segunda metade do século XIX, na Europa. O
conceito advém da língua do povo Ojibway, da América do Norte. Entre essa
cultura, os nativos usam a palavra totem para se referir a estátuas de madeira,
geralmente com formas de animais, as quais representavam espíritos protetores
ou os espíritos dos antepassados. (Frazer 1910). Os europeus já conheciam esses
totens dos nativos americanos há séculos, os tendo considerados a partir da
visão cristã, como ídolos, logo, objetos de idolatria. Embora a noção desses
totens variasse entre os povos, para a mentalidade do conquistador cristão,
todos representavam “falsos deuses” que eram cultuados por aqueles pagãos.
No
século XIX com o advento da Antropologia, Arqueologia, Sociologia, História e
da Ciência da Religião, novas preocupações quanto ao estudo das crenças
religiosas se formalizaram e surgiram, dentre as quais a teoria do Totemismo.
Nessa teoria que possui diferentes correntes de pensamento[1]
que perpassam autores da Antropologia, Sociologia, Psicologia, etc. é dito que
uma das formas mais antigas de pensamento religioso seria o culto a imagens. Assim,
a partir desse conceito, os antropólogos do final do XIX e começo do XX,
procuravam pensar a religião como uma categoria autônoma e com suas próprias
características, como salienta Talal Asad:
"Em muito do pensamento evolucionário do
século XIX, a religião era considerada uma condição humana primeira a partir da
qual o direito, a ciência e a política modernos emergiram e se separaram. Neste
século, a maioria dos antropólogos abandonou as ideias evolucionárias
Vitorianas, e muitos desafiaram a noção racionalista de que a religião é
simplesmente uma forma primitiva e, portanto, ultrapassada das instituições que
hoje nós encontramos em sua forma verdadeira na vida moderna (direito,
política, ciência). Para esses antropólogos do século XX, a religião não é um
modo arcaico do pensamento científico, nem de qualquer outra empreitada secular
que nós valorizamos atualmente: ela é, ao contrário, um espaço distintivo da
prática e da crença humanas que não pode ser reduzido a nenhum outro". (ASAD, 2010, p. 263).
Sendo a teoria totêmica um antigo
conceito concebido para se pensar, classificar e estruturar o pensamento
religioso, como essa teoria é bastante ampla, decidimos abordar somente alguns
poucos autores, pois esses já foram suficientes para explicar de maneira básica
os principais aspectos do totemismo.
No livro The Worship of Animals and Plants (1870), do antropólogo e advogado
escocês John Ferguson McLennan (1827-1881), o autor havia sugerido com base no
conceito de anima[2], que os
“povos primitivos” conceberam os totens no intuito de ordenar seus ritos e
adoração a tais espíritos e divindades, antes sem aparência. (Frazer 1910).
Embora a teoria de McLennan tivesse alguns problemas, no entanto, ela se tornou
atrativa aos olhos de outros estudiosos como James George Frazer, Émile
Durkheim e Bronislaw Malinowski. No caso de Frazer ele publicou um volumoso
livro intitulado Totemism and Exogamy
(1910) dividido em quatro volumes. Nessa obra, Frazer percebia o totemismo como
uma espécie de “religião universal”, sendo compartilhada por todos os “povos
primitivos”, mas que manteve resquícios mesmo entre “religiões mais
desenvolvidas”. Frazer influenciado pelo darwinismo social do século XIX,
enxergava uma espécie de “evolução natural do pensamento mágico, religioso e
científico”.
Embora essa visão darwinista tenha sido
abandonada com o tempo, ela vigorou por décadas. Mas além dessa percepção,
Frazer (1910) em seu estudo apontou como os totens podiam ter distintas formas,
não estando restritos apenas a estátuas de animais ou de plantas, mas podendo
ter formas antropomórficas, abstratas, ou representados por signos, símbolos ou
partes do corpo, como chifres, dentes, cascos, presas, etc. além de serem feitos
de distintos materiais como madeira, pedra, osso, dente, casco, concha, etc. e
necessariamente não serem apenas estátuas, mas imagens e até mesmo tatuagens.
Essa observação da diversidade de formas e materiais que formavam os totens é
interessante, pois em Deuses Americanos,
Gaiman narra a história de um povo pré-histórico fictício cujo totem era o
crânio de um mamute.
No entanto, James George Frazer (1910)
também comentou que os totens necessariamente não teriam apenas uma função
religiosa, mas social e cultural, incidindo sobre determinados comportamentos,
hábitos e costumes, além de haver totens do clã e totens pessoais, que poderiam
ser usados para magia, proteção pessoal, fertilidade, etc. Sobre isso o
sociólogo Émile Durkheim em seu livro Formas
elementares da vida religiosa (1912) também comentou a respeito dessa
ligação com o social, mas Durkheim foi enfático ao dizer que a ligação do totem
com o cotidiano e a vida privada era de caráter religioso, pois os totens
essencialmente era “objetos sagrados”. Apesar de outros autores como Malinowski
e Radcliffe-Brown[3]
posteriormente discordarem dessa opinião de Durkheim em considerar todo totem
como fruto de uma crença religiosa primitiva, ainda assim, a ideia de que o
totem esteja relacionado com a magia e a religião permaneceu no senso comum.
O próprio Neil Gaiman aborda o uso de
totens nesse sentido, sem adentrar o campo do social. Em sua obra os totens
antigos são estritamente religiosos e sagrados. E mesmo os novos deuses cujos
totens sejam celulares, computadores, armas de fogo, carros, televisores, etc.
Gaiman restringe a ideia de totem no sentido dessas máquinas serem vistas como
algo sagrado e de culto. Nesse ponto, Gaiman embora restringiu o sentido de
totem, ainda assim, não estava errado em fazê-lo.
O antropólogo Claude Lévi-Strauss em
seu livro Totemismo hoje (1975)
comentava que os totens tratavam de construções mentais as quais reconheciam
nas figuras totêmicas valores e princípios pelos quais concederiam alguma
utilidade para aquela sociedade, podendo ser uma utilidade de caráter
religioso, sagrado, divino, moral, mágico, social, cultural, etc. Com isso,
Lévi-Strauss salientava que uma das funções do totem era ser algo ideológico.
Entendendo-se ideológico aqui na ideia de transmitir informações, valores e
experiências. Entretanto, não basta apenas haver totens é preciso ter crença
neles, para que funcionem, para que se tornem sagrados.
A necessidade de ser cultuado
Em Deuses
Americanos, o uso da televisão pela deusa Media a qual ela diz que servia
de altar para ser adorada, representa o uso desse aparelho em servir como vetor
ideológico. Embora no livro isso não seja mais profundamente abordado, no
seriado, a deusa comenta como ela manipula os programas de televisão para
prender a atenção do telespectador, criando algo que ele admire, cobice, deseje
e venere. Aqui entramos na questão de como a mídia influencia no comportamento
e nos valores sociais e até morais. (Adorno, 2009). No livro a deusa costuma
assumir a forma da atriz Lucy Ricardo[4],
a qual se tornou um ídolo da televisão por causa de seu protagonismo na série I Love Lucy (1951-1957), vindo a ser
idolatrada.
A deusa Media (Gillian Anderson) no seriado assume a forma de celebridades. No caso, ela aparece inicialmente como a atriz Lucy Ricardo a direita. |
Assim são os símbolos da indústria da
cultura. Eles são preparados, expostos, elevados ao seu máximo valor de símbolo
(e de troca), se esgotam e desaparecem. Quando estão no auge sua marca é
requisitada em todos os produtos possíveis. O ator que faz sucesso na novela é
aproveitado pelas gravadoras, que estão sempre à espreita de um novo ídolo, e
lança um álbum, assim como podem estrelar um blockbuster e protagonizar espetáculos teatrais que “descansam” sua
imagem enquanto ele espera o convite para a próxima novela; a cantora que faz
incursões no cinema, apresenta programas, lança um livro. O sucesso é
aproveitado ao máximo. A indústria tem preferências por ídolos que possam
congregar valores simbólicos e atingir públicos diversos cada vez maiores.
(Costa 2010: 7).
Nota-se nesse exemplo como Gaiman se
aproveita do uso da palavra ídolo para se referir aos atores, cantores,
dançarinos, esportistas e outros tipos de celebridades, tomando aqui a noção de
culto a imagem a essas pessoas, que analogicamente lembra o culto aos deuses e
heróis, embora seja um culto dessacralizado, ainda assim, essa atenção
desmedida gerada pelos fãs, lembra a ideia de devotos religiosos. Inclusive o
termo fanatismo pode ser usado para ambos os casos.
De fato, na indústria midiática os fãs
clubes são importantes para a manutenção dos ídolos em destaque. Quanto maior a
quantidade de fãs consumindo os shows, novelas, filmes, séries, livros e outros
produtos desses ídolos, esses mantêm-se diante dos holofotes. (Costa 2010). Nesse
sentido se percebe como Gaiman usa essa ideia de presença midiática como uma
analogia a sua percepção religiosa. Ou seja, da mesma forma que os ídolos pop precisam
estar em evidência para não perderem fama, e eventualmente caírem no
esquecimento, os deuses precisam também estar presentes de alguma forma,
precisam ser lembrados, para não saírem de cena. E no caso dos deuses esse sair
de cena pode significar a morte deles.
Por essa perspectiva, Neil Gaiman
aponta a ideia de para algo ou alguém ser sagrado, ele deve ser cultuado,
idolatrado. Assim aquele objeto, animal, planta ou pessoa ganharia uma dimensão
sagrada e/ou divina[5]. No
entanto, a noção de culto proposta por Gaiman embora seja inspirada no contexto
midiático, ainda assim ela é diferente. Antes de explica-la, vejamos alguns
significados para o conceito de culto. A concepção da palavra culto mudou ao
longo da História, recebendo outros significados, mas no âmbito religioso,
trata-se de um rito de adoração. Vilhena (2005) explica que a palavra rito pode
se referir a ações tanto de caráter religioso quanto laico. No âmbito
religioso, o culto consiste em ritos pelos quais as pessoas através de
distintas ações como orar, rezar, cantar, participar de cerimônias, ofertar
oferendas, sacrifícios, participar de peregrinações, ou até mesmo pintar ou
esculpir imagens ou símbolos religiosos, estejam adorando algum deus,
divindade, espírito, antepassado, etc.
Mircea Eliade (1972, 2001) sublinhava
em alguns de seus livros que o culto religioso sendo uma forma de rito, não
teria apenas uma função de prestar veneração aos deuses, espíritos, divindades,
etc. mas seria também um meio pelo qual as pessoas se conectariam com o
sagrado, o divino, com esses seres sobrenaturais. O rito segundo sua
perspectiva fenomenológica, consiste no meio pelo qual mitos cosmogônicos[6]
são recriados e um elo entre o mundano e o sagrado ocorre. Logo, as pessoas no
ato de participar de cerimônias, peregrinações, danças, cantos, dramatizações,
etc. os quais estejam relacionados a intuitos religiosos, se sentem conectados
com o sagrado, estando assim venerando seus deuses, prestando-lhe
agradecimento, ou solicitando algo, ou recebendo suas bênçãos.
Todavia, a palavra culto não deve ser
confundida com religião. Nesse caso, Thomas O’Dea (1969) comenta que religião
normalmente é percebida como uma estrutura que envolve ritos, sacerdócio,
dogmas, doutrinas, crenças, instituições, regras, etc. O culto estaria incluso
entre as práticas de uma religião. Entretanto, o autor sublinha que realizar o culto
a determinada divindade, não implica em criar uma religião, pois o culto em seu
conceito mais simples, é a veneração de algo ou alguém a nível do sagrado.
Assim, o culto não precisa ser institucionalizado ou padronizado. Uma pessoa
que ora solitariamente para algum deus ou espírito, está realizando um culto. Esse
pode ser algo privado ou público, institucionalizado, padronizado ou informal.
Por tal viés, o culto dado aos antigos
deuses como comentado por Gaiman, era algo pessoal, individual e público. Por
sua vez, o culto aos novos deuses é algo informal, desinstitucionalizado,
dessacralizado, individual, grupal e até inconsciente, pois as pessoas não
percebem que estão cultuando aquelas coisas que por um momento nem se
imaginaria que fossem novos deuses.
No seriado em um breve diálogo entre o
Garoto Técnico e a deusa Bilquis[7],
o novo deus encontra a velha deusa no meio da rua, maltrapilha. Ele zomba dela,
dizendo que ela tem que se esconder da guerra dos deuses, pois é uma divindade
fraca, além de que para sobreviver atua como prostituta, mendigando culto de
seus clientes. Essa cena é diferente no livro, apesar que o comentário do
Garoto Técnico seja similar. No caso da série, o Garoto oferece um smartphone
para Bilquis, dizendo que ela poderia encontrar naquela tecnologia uma nova
forma de ser cultuada. Pelo que parece, através do smartphone, Bilquis teria
acesso à internet, e assim a pornografia, encontrando outro meio de ser
cultuada, alcançando muitas pessoas, pois os deuses dependem de quantidade de
fiéis para sobreviver.
A atriz Yetide Badaki interpreta Bilquis, deusa africana fictícia associada com a sexualidade e a fertilidade. |
Essa ideia é pertinente, pois no livro
e no seriado, Bilquis atrai seus clientes para que eles ofereçam dinheiro e
sacrifiquem sua vida a ela. Algo bem marcante, pois o dinheiro do pagamento
pelo programa sexual e depositado debaixo de uma estátua que representa a
deusa, logo, o dinheiro serve como oferenda. Por sua vez, durante o ato sexual,
Bilquis induz os homens a adorarem, declararem seu amor por ela, louvarem sua
beleza e sensualidade, antes de sacrificá-los. E através desse sacrifício ela
rejuvenesce e mantém sua existência.
O deus Odin[8]
conta no livro, que no passado recebia guerreiros enforcados em árvores, como
sacrifício. O deus Czernobog[9]
comenta que animais eram sacrificados para ele, em colinas. O deus Anansi[10]
quando aparece a primeira vez no livro, se encontra numa cafeteria, estava
deprimente. Ele durante a conversa com Shadow, Odin e Czernobog fala a respeito
de seu passado na África. Anansi conta que nos dias antigos, quando ele era
bastante cultuado, as pessoas lhe davam comida e bebida, e até uma mulher para
que ele mantivesse relações sexuais. Porém, no presente, isso não ocorria da
mesma forma. Então toda oferenda por menor que fosse, ele tinha que aceitar
para sobreviver.
No seriado temos alguns exemplos novos
de culto. O deus Vulcan, personagem criado especialmente para a série de
televisão, é o deus das armas de fogo. Em determinada cena onde Wednesday
conversa com Vulcan, o deus das armas diz que cada tiro disparado seria como um
louvor para ele.
O ator Corbin Bersen interpretou o deus Vulcan, personagem criado especialmente para o seriado. |
Em dado momento do livro, a deusa Media
diz que a televisão era o seu altar. Os americanos passavam horas e horas,
todos os dias, ao longo do ano, dedicando suas vidas a ficar sentados no sofá
vendo televisão. Para Media o ato dos americanos fazerem isso seria algo
ritualístico. E de fato até pode ser entendido assim, pois o rito não precisa
ser algo religioso, ele pode ser laico. Nesse sentido, Gaiman brinca com as
especificidades do conceito rito, ao tornar o ato de assistir televisão algo
tão rotineiro ao ponto de criar um culto informal a mídia, o que levou ao
surgimento de uma deusa.
Ao longo do livro o autor mostra a
partir principalmente da fala dos antigos deuses essa noção de culto, ao ponto
das velhas divindades dizerem que a vida dos deuses depende dessa atenção
sagrada, pois quando um deus deixa de ser cultuado, ele é esquecido, e o
esquecimento é a morte final. Assim, Gaiman cria a noção de que os deuses
somente são imortais enquanto permanecerem na memória e na vida das pessoas,
pois, no momento que essas divindades perdem seu valor, seu atrativo, sua
importância, elas começam a ser esquecidas até que no fim desaparecem, morrem.
No livro, o autor apresenta alguns
casos de deuses antigos que foram esquecidos e acabaram morrendo, inclusive
Gaiman comenta que até novos deuses como o deus das estradas de ferro foi
esquecido, depois que os automóveis e aviões se popularizaram e passaram a
atrair o fascínio do povo americano[11].
Mas além do esquecimento, os deuses também podem morrer de outras duas formas:
serem assassinados por outros deuses, algo que ocorre durante a guerra entre
eles, ou cometerem suicídio. Entretanto comentemos sobre a questão da memória,
história e esquecimento.
Memória e história não são sinônimos.
Embora a história faça uso da memória para estudar e conhecer o passado, a
memória por si só não é história. Historiadores como Jacques Le Goff (1990) e Antoine Prost
(2008) são alguns nomes que abordaram essa relação de história e memória,
salientando que enquanto a história consiste num pensamento ordenado,
estruturado, verificável, temporalizado, contextualizado e criticado, a memória
consiste na recordação[12],
geralmente de acontecimentos pessoais e individuais, pautados na vivência e
convivência do indivíduo em sociedade, que pode resultar em uma memória
coletiva, tomando aqui a ideia de Halbwachs (1990), ao
dizer que nossa memória é compartilhada com aqueles que convivemos, pois a
sociabilização do ser humano, nos leva a compartilhar ideias, acontecimentos,
experiências, situações, impressões, etc.
Partindo
dessa breve noção de memória, na obra de Gaiman, o autor aborda a memória no
sentido bem menos complexo, simplificando-a como sendo a condição de recordar e
gravar informações. Nesse aspecto, os deuses somente continuam a existir
enquanto as pessoas pensam, acreditam e se lembram deles. Logo, Gaiman trabalha
com a memória diretamente no sentido da lembrança presente. Aquela recordação
que nos acompanha rotineiramente. E essa memória se liga a crença nos deuses,
pois enquanto as pessoas oram a eles, fazem oferendas, recorrem a sua ajuda, pensam
em seus nomes, eles continuam a existir. Eles se alimentam dessa fé.
Voltando
ao conceito de memória coletiva de Halbwachs ele nos é interessante para
perceber que a crença nos deuses como apresentada por Neil Gaiman, depende do
indivíduo, mas também da sociedade. Pois caso o indivíduo morra, sendo ele o
último crente em determinada divindade, essa divindade perecerá com o fiel. Uma
passagem do livro interessante para perceber isso é quando Odin fala sobre como
os antigos deuses chegaram a América:
"Quando as pessoas vieram para a América, nós viemos junto.
Elas me trouxeram, e trouxeram Loki e Thor, Anansi e o Deus Leão, leprechauns e
cluracans e banshees, Kubera e Frau Holle e Ashtaroth, e trouxeram vocês.
Viemos na mente delas e fincamos raízes. Viajamos com os colonos até o Novo
Mundo do outro lado do oceano. “A terra é vasta. Pouco tempo depois, nosso povo
nos abandonou, passou a nos tratar apenas como criaturas do Velho Mundo, como
algo que não os havia acompanhado até sua nova vida. Nossos verdadeiros fiéis
morreram ou pararam de acreditar, e nós, perdidos, assustados e desamparados, fomos
obrigados a sobreviver com qualquer resquício de adoração e fé que
encontrássemos. E a sobreviver da melhor forma possível". (GAIMAN, 2016, p. 139-140).
O ator Orlando Jones como o deus Anansi ou Sr. Nancy, antiga divindade africana. |
Por isso os antigos deuses procuram
conquistar novos crentes, pois com o tempo os imigrantes foram abandonando a fé
de suas terras natais. Nota-se aqui o papel da memória coletiva para preservar
essas crenças, pois estamos falando de divindades que ao chegarem aos Estados
Unidos estavam apartadas de suas antigas religiões. Esses deuses e outros seres
sobreviveram em meio a cristianização dos Estados Unidos, como resquícios da fé
dos imigrantes. Aqui sublinha-se o fato que Gaiman ignorou a existência de
seitas e religiões neopagãs que ainda cultuam deuses nórdicos, celtas,
egípcios, etc. Assim, ele diz que os antigos deuses sobreviveram na
marginalidade, tendo que viver como seres humanos e sendo cultuados
individualmente por imigrantes e seus descendentes.
Um novo tipo de crença
Nas páginas anteriores fomos
apresentados a noções sobre os conceitos de Totemismo, Culto e Memória, as
quais se unem a visão religiosa concebida pelo escritor britânico Neil Gaiman
para um de seus livros mais populares, Deuses
Americanos, um enredo sobre mitologia, fé, ceticismo, conspirações,
trapaças, aventuras e crimes pelo interior oeste dos Estados Unidos. No
entanto, uma questão central ainda a ser comentada, diz respeito ao fato que
quando Gaiman decidiu escrever sobre novos deuses, os quais dão título ao
livro, eles os imaginou a partir da cultura americana. Para isso, ele decidiu
tomar alguns estereótipos americanos como o gosto por televisão, internet,
carros, armas, dinheiro, fama, conspirações, etc. Essencialmente os novos
deuses são frutos do consumismo americano e seu apego a vida material. Sobre
isso, Odin durante a reunião dos deuses proferiu o seguinte comentário:
Deuses novos estão ganhando força nos
Estados Unidos, agarrando-se a focos crescentes de fé: deuses do cartão de
crédito e da rodovia, da internet e do telefone, do rádio, do hospital e a
televisão, deuses do plástico e do bipe e do neon. Deuses orgulhosos, criaturas
gordas e estúpidas, envaidecidas com a própria novidade e importância. (GAIMAN, 2016, p. 140).
Nota-se pela fala do personagem Odin como
os “deuses americanos” são frutos de tecnologias, máquinas e estruturas, as
quais são endeusadas pelos americanos. O interessante é que se retomarmos ao
conceito de totemismo, onde lemos que totens poderiam ser feitos de distintos
materiais como madeira, pedra, metal, dentes, ossos, etc. na fala de Odin,
esses novos deuses são feitos de plástico, bipe e neon, o que pode ser
entendido como os novos materiais totêmicos.
Além
disso, em outras passagens do livro notamos como esses estereótipos culturais e
ligação com o consumo se encontram presentes. Durante a guerra dos deuses,
Shadow Moon viu antigos e novos deuses. O narrador descreve alguns dos antigos
deuses e cita os seus nomes, mas no caso dos novos deuses ele não diz os seus
nomes, mas os descreve:
"E também reconheceu os novos. Viu
alguém que só podia ser um barão das estradas de ferro, com um terno antiquado
e a corrente do relógio esticada por cima do colete. Tinha ares de quem já vira
dias melhores. A testa tremelicava em movimentos involuntários. Via os grandes
deuses cinzentos dos aviões, herdeiros de todos os sonhos de viagem mais pesada
que o ar. Os deuses dos carros também estavam lá, um contingente poderoso,
todos muito sérios, com sangue nas luvas pretas e nos dentes cromados". (GAIMAN, 2016, p. 507).
Percebe-se
nessa descrição dos novos deuses como Gaiman alude o deus das estradas de ferro
ao estereotipo do magnata americano do final do XIX e começo do XX, trajando
seu terno preto, assim como, refere-se aos deuses dos aviões como sendo
cinzentos, pois antes de se popularizar a cor branca para os aviões, eles eram
pintados de cinza. Por fim, os deuses dos carros são retratados como valentões
usando luvas pretas referentes a usadas por pilotos, e dentes cromados, como
referência ao cromo usado nos para-choques dos automóveis.
O
outro exemplo comentado ocorre em um diálogo entre a deusa Media e Shadow, onde
a deusa diz que:
"Você precisa entender meu ponto de
vista, Shadow: nós somos a próxima moda. Somos shoppings, enquanto seus amigos
são atrações fajutas de beira de estrada. Olha, somos até lojas virtuais,
enquanto seus amigos estão sentados no acostamento vendendo frutas de pomar
caseiro em uma carroça. Não, eles não chegam nem a vendedores de frutas. Eles
vendem chicotes de cocheiros. Consertam corseletes de osso de baleia. Nós somos
o agora e o amanhã. Seus amigos não são nem mais o ontem". (GAIMAN, 2016, p. 174).
Por
essa citação podemos fazer um paralelo com o que foi comentado no início do
tópico anterior, onde observou-se que Gaiman utilizou a ideia de ídolos da
cultura pop como paralelo ao culto religioso. Na fala de Media isso fica bem
explicito quando a ela diz que os novos deuses são a moda da vez, da
modernidade, a tecnologia, o progresso e o futuro. Isso é bem claro quando ela
compara os novos deuses como shoppings e os velhos deuses são pequenos
comerciantes de beira de estrada. Aqui nota-se não apenas a ideia de dualidade
entre antigo e novo como comentando por Marin (2014), mas
também a noção consumidora da sociedade americana, pois parte dos novos deuses
surgem desse afã pelo consumo de serviços, produtos, veículos e viagens.
Nesse ponto, Stephen Hunt (2003) comenta que na esteira do movimento da
Nova Era (New Age) que uniu crenças espirituais, religiosas, esotéricas,
paranormais, pseudocientíficas, filosóficas, medicina alternativa, política,
etc. com questões culturais e ideológicas em voga no país e no mundo nas
décadas de 1960 e 1970, ele assinalou que essas seitas, grupos e movimentos se
embasavam em alguns casos em aspectos culturais da sociedade americana daquele
período.
Por tal viés podemos fazer uma analogia
com o livro Deuses Americanos, pois
em seu prefácio, Gaiman diz que ao escrever esse livro ele procurou apresentar
aspectos da sociedade americana, e tais aspectos se basearam no estilo de vida
americano, destacando-se o apego a bens materiais e a dependência do
entretenimento televisivo e da internet. No caso da internet essa não ganhou
tanto destaque na época da publicação do livro, pois o acesso a computadores e
a rede mundial ainda não era tão generalizado como atualmente. Todavia, no
seriado esse fator já é mais perceptível. Assim, com base na cultura americana
durante o período de transição entre os séculos XX e XXI, Gaiman criou um novo
tipo de fé: o culto as coisas. A divinização do dinheiro, máquinas, estruturas,
objetos, dinheiro, fama, entretenimento, etc. Fator esse que fica claro na fala
de Odin, destacada nas páginas anteriores, onde ele fala de deuses do cartão de
crédito, telefone, televisores, internet, hospitais, estradas, etc.
Hoche Marin (2014) em seu artigo sobre
a sacralização da ciência em Deuses
Americanos, observa como Neil Gaiman valeu-se da ideia de substituir a fé
em seres sobrenaturais e mitológicos por uma fé pautada nos “milagres
tecnológicos”. Esse novo tipo de fé é diferente daquela fé religiosa, mas ainda
mantém inconscientemente um apego a expectativas, anseios, confortos,
acolhimento e desejos. Diante de uma população cada vez mais secularizada como
comenta Marin, as pessoas acabam dando atenção mais a questões e coisas do dia
a dia do que a divindades. Sendo assim, essa atenção que no livro é
representada pela ciência e seus desdobramentos tecnológicos assume o papel
antes atribuído a deuses, espíritos e divindades.
Ao invés de recorrer a tais seres para
se curar, a pessoa vai a um hospital. Ao invés de sonhar em voar e nunca
conseguir isso, você pode viajar de avião. Ao invés de orar aos deuses pedindo
por um lá bom, seguro, uma fonte de água limpa, lenha para a fogueira, uma
brisa refrescante para os dias quentes ou um calor aconchegante para noites
frias, você pode desfrutar de água encanada, energia elétrica, sistema de
refrigeração ou aquecimento, serviços de entrega de alimentos ou outros
produtos. Tudo proveniente das comodidades do século XXI. Marin (2014) comenta
que esse uso da tecnológica, do comércio, da ciência, etc. em suprir nossas
necessidades diárias levou a falta de preocupação das pessoas em recorrerem as
divindades para solicitar isso.
É preciso salientar que embora Neil
Gaiman não tenha concebido o culto aos novos deuses como um novo tipo de
religião, ainda assim, essa percepção pode ser pensada a partir dos Novos
Movimentos Religiosos (NMR). Rodrigues (2008) comenta
que em alguns casos apesar de que um NMR apresente ideias espiritualistas ou
religiosas, ele necessariamente não opera como uma religião convencionalmente
que conhecemos, seu foco se dá mais em instruir “filosofias de vida”, levando
as pessoas a adotarem determinados hábitos que podem implicar ou não em crenças
espirituais sobre Deus, deuses, vida após a morte, alma, etc. ou podem apenas
figurar no campo social, onde os crentes adotam posturas de comportamento e
hábitos de vida, que visam alcançar o bem-estar, paz, harmonia, prosperidade,
sucesso, etc. Nesse ponto, Rodrigues (2008) também comenta que essa tendência
gera uma banalização que repercute na condição que as pessoas já não sabem
estabelecer com mais clareza se seus atos e ações são meramente mundanos ou
apresentam algo que pode ser considerado religioso.
Em Deuses
Americanos como comentado anteriormente, a deusa Media conversando com o
protagonista Shadow Moon, diz que a televisão era o seu altar. Que a ação dos
americanos, sozinhos ou em grupo, em assistirem televisão diariamente, as vezes
passando várias horas por dia fazendo isso, tornou-se um rito não percebido por
esses, onde Media era adorada, pois as pessoas eram cativadas por aquele mundo
da televisão, vivenciando realidades e experiências diversas, que em geral as
agradavam, pois Media costuma focar em novelas, programas de auditório e
comerciais, os quais atraem a atenção do público americano. Dessa forma, a
população ao almejar a fama, o sucesso, a riqueza, ou os produtos apresentados,
elas tornam o consumo num vetor para adorar a mídia, que na obra torna-se uma
figura sacralizada e ganha a forma de uma divindade.
Essa obsessão de parte da população,
gera uma crença que para Gaiman é equivalente a uma crença religiosa. Por isso
o papel de culto por ele destacado. Pois segundo sua perspectiva, os deuses
somente existem porque há quem acredite neles. Além disso, os deuses são
invenções das necessidades humanas. Rodrigues (2008) comenta que um dos fatores
que levou ao grande surgimento de novos movimentos religiosos foi a condição de
pessoas estarem com a sua fé abalada em outras religiões ou não terem um apego
espiritual, logo, começou a se criar seitas, grupos e religiões alternativas
aos modelos tradicionais como o Cristianismo, Islão e Budismo. Esses modelos
alternativos se revelam atrativos e oriundos a partir de determinados públicos
alvos, pautados em discursos menos dogmáticos, conservadores, restritos (embora
alguns apresentem restrições), além de que em alguns casos, eles apresentem uma
preocupação mais imediata com a vida presente, do que uma preocupação futura
relacionada a doutrinas soteriológicas.
Quando retomamos o caso da deusa Media,
a qual é um dos melhores exemplos descritos por Gaiman, tanto no livro, quanto
na série, a deusa em suas conversas com Shadow tenta convencê-lo a abandonar os
antigos deuses e se unir aos novos deuses. Ela promete sucesso, riqueza e
poder. Algo que lembra o discurso propagandístico visto em novelas, filmes e
séries, que se tornam modelos para expectativas de vida, de forma a se tornar
um ideal cobiçado por algumas pessoas, ao ponto de até ser encarado como um
padrão para o sucesso de vida. Pois ao invés de se preocupar com a vida
espiritual e a salvação futura, essas pessoas se preocupam com o agora, com a
vida mundana. Com a expectativa de conquistar seus sonhos e suas realizações de
vida não num mundo transcendental e invisível, mas na presente realidade. (Adorno,
2009).
Mas além da deusa Media, o deus Garoto
Técnico (Technical Boy) também apresenta uma percepção similar ao que vem sendo
comentado a respeito das influências culturais e da mudança de perspectiva de
uma vida espiritual, para uma vida terrena e consumidora. Essa divindade que é
a segunda mais expressiva entre os novos deuses, foi inspirada em estereótipos
sociais. Originalmente o Garoto Técnico como descrito no livro e representado
nos quadrinhos, é um jovem grande, gordo, com várias espinhas, e que anda numa
limusine e fuma cigarro sintético. Ele representa o nerd gordo fissurado em
computadores, mas que em dado momento acabou enriquecendo por causa disso. Por
sua vez, no seriado, o Garoto Técnico é baixo e magro, e incorpora o visual e
estilo de um jovem youtuber pretensioso, arrogante e esnobe, que recentemente
ficou rico e popular.
No seriado, o Garoto Técnico comenta
que os smartphones são considerados sendo totens modernos. Ele que representa a
divinização dos computadores e da internet, diz que cada americano carrega um
celular, o seu totem pessoal que concede oferendas a ele. Pois os americanos
gastam horas diariamente acessando sites, blogs, redes sociais, e-mails, etc.
ou simplesmente navegando na internet, a qual se tornou a oitava maravilha do
mundo, ao ponto que no livro, a internet devido ao seu alcance global e de
limites desconhecidos, tornou-se uma entidade senciente e consciente, um deus
digital, que incorpora no estereótipo do jovem aficionado por essa tecnologia.
Dessa forma os novos deuses
apresentam-se como oriundos da desconhecida noção do ser humano em adorar
coisas e tecnologias, dedicando seu tempo, atenção e vida ao ponto de como
estivessem dependentes daquilo. No entanto, não são apenas as novas divindades
que se manifestam através da ciência ou de outras práticas culturais que
personificam os costumes americanos, os próprios deuses antigos tiveram que se
adaptar a esse novo estilo de vida.
Odin tornou-se um trapaceiro e golpista
que vive viajando pelo país, aplicando seus golpes. Czernobog passa seus dias
fumando, tomando café e lendo jornais e revistas, enquanto vive sua
aposentadoria enfadonha e monótona, pois ele conta a Shadow que sente falta de
seu emprego no abatedouro. Bilquis atua como prostituta. Anansi não possui sua
ocupação definida com clareza, embora que no seriado ele seja representado como
um alfaiate. Mas no caso do livro, os senhores Íbis e Jacal (Jacquel), os quais
representam os deuses egípcios Thot e Anúbis[13],
são donos de uma funerária no Cairo, cidadezinha em Illinois. O interessante é
que dos antigos deuses apresentados, apenas esses dois têm seu ofício detalhado
e trabalham honestamente.
Takehana
e Silva (2015) comentam que os dois deuses egípcios
surgem como uma espécie de critica ao sistema capitalista, pois o sr. Íbis
explica que a pequena funerária deles oferece um serviço diferenciado, com o
qual trata os mortos com dignidade, diferente das grandes companhias fúnebres
que sepultam ou cremam os mortos de qualquer forma, tratando-os como um serviço
de que deve ser despachado. Assim, a funerária de Íbis e Jacal se mostra
preocupada com o lado emocional e espiritual daqueles que o procuram.
Mas
se por um lado, os deuses Thot e Anúbis procuram manter suas funções outrora
religiosas, agora disfarçadas em uma funerária, procurando conceder um desfecho
mais ou menos digno aos mortos, em contraparte a indústria funerária que
segundo eles, não se preocupa com isso, a deusa Easter, divindade germânica da
primavera, que passou a ser associada com a Páscoa, no livro ela aparece
brevemente, porém, no último episódio da primeira temporada de Deuses Americanos, a deusa tem um papel mais
significativo. No caso da série, a deusa diz que para poder sobreviver teve que
adotar a Páscoa comercial com seus ovos de chocolate e coelhinhos brancos, como
forma de ser lembrada, pois as pessoas de hoje em dia não se recordavam dos
antigos ritos e da crença que ela no passado era uma divindade da primavera. Embora
que o ato de dar ovos durante essa época, seja um rito de origem pagã.
Aqui
sublinha-se um fato interessante. Dos antigos deuses apresentados por Neil
Gaiman, apenas Easter é que se utiliza do consumismo da cultura contemporânea
para poder sobreviver. Ao se associar com a Páscoa comercial a deusa é lembrada
não necessariamente por quem ela era, mas pelo que se tornou: um produto
comercial baseado em doces que são dados como presente, que no caso representam
as oferendas que em nome da Páscoa, são ofertadas em sua memória. Apesar que
para Judaísmo e o Cristianismo a Páscoa possua uma importância religiosa, mas
no livro esses dois casos não foram considerados pelo autor[14].
Algumas considerações:
Nesse
breve estudo procuramos analisar com as noções religiosas de totemismo e
idolatria foram utilizadas e adaptadas pelo escritor Neil Gaiman na composição
de seu livro, Deuses Americanos
(2001), o qual nos traz uma narrativa de viagens, trapaças, perseguições,
fugas, suspense, solidão, companheirismo, etc. que se une ao conflito entre os
antigos e novos deuses.
Neste caso, procuramos analisar com
Gaiman a partir da cultura americana concebeu esses novos deuses, baseados em
objetos, veículos, produtos, estruturas, em suma, Gaiman transformou a
tecnologia em algo digno de ser cultuada. Um culto inconsciente que gerou
deuses que representam o dinheiro, o automóvel, o avião, o trem, a televisão, o
telefone, a internet, as armas, as rodovias, as conspirações, etc.
Gaiman em seu relato revela como os
cartões de crédito, as armas, os veículos e outros aparelhos se tornaram os
totens do século XXI, pelos quais o homem contemporâneo em sua vida
secularizada e materialista, ao ponto de dedicar seu tempo, sua atenção, sua
emoção, anseios, expectativas e desejos aos bens que cobiça ou consome, acaba
se tornando dependentes desses para alegrar a sua vida. Ao invés de termos
deuses aquém devemos nos submeter, os americanos contemporâneos tornaram-se
dependentes da tecnologia, do capitalismo, do sistema, da cultura. A fé não se
encontra, mas nos milagres da religião, mas nos milagres da ciência. E é essa
ciência inconscientemente idolatrada, a qual de origem a deuses americanos.
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[1] Dentre as principais obras se
destacam Totemism and Exogamy (1910)
do antropólogo James George Frazer, Les
formes élémentaires de la vie religieuse (1912) do sociólogo Émile
Durkheim, Totem und Tabu (1913) de
Sigmund Freud, The origin of Totemism
(1916) do antropólogo Franz Boas, The
sociological theory of Totemism (1929) do antropólogo Alfred
Radcliffe-Brown, Le Totémisme
aujourd'hui (1958) de Claude
Lévi-Strauss.
[2] Palavra latina que significa
espírito. Segundo o Animismo, conceito concebido pelo antropólogo Edward
Burnett Tylor (1832-1917), as religiões somente se formaram com o
desenvolvimento social, urbano e cultural, passando assim a surgir os primeiros
politeísmos. Antes disso, não haveria religiões, pois para esses
"primitivos", a ideia de sagrado e sobrenatural era vaga e
demasiadamente abstrata. No caso, Tylor dizia que esses povos adoravam
espíritos (anima) na natureza, os quais os consideravam como seus antepassados,
pois para eles, o sol, a lua, as estrelas, o céu, a terra, água, fogo, vento,
animais, pessoas, plantas, etc. todos possuiriam uma anima, a qual viajava por
um mundo espiritual, e poderia transmigrar para outros corpos ou se contatava
através de algumas práticas mágico-religiosas. (Durkheim, 2000).
[3] Malinowski em Magic, Science and Religion (1948), comentava que o Totemismo era
visto tendo dois lados: um lado religioso relacionado a ritos, magia, devoção e
culto; e um lado social, relacionado à identidade, comportamento, reverência,
etc. Por sua vez, Radcliffe-Brown em Structure
and Function in Primitive Society (1952), comentou que em alguns casos os
totens possuíam uma função mágica, de proteção e até de identidade pessoal ou
coletiva. E necessariamente a magia não estava totalmente ligada a religião. O
autor comenta casos de totens pessoais que eram criados ou concedidos a
determinadas pessoas da comunidade pelo reconhecimento de seu valor.
[4] No seriado a deusa assume a forma
de Marylin Monroe e David Boyer, grandes ídolos do cinema e da música.
[5] No campo religioso isso pode ser
interpretado pelas noções de animismo, totemismo, fetichismo, etc.
[6] Mitos cosmogônicos referem-se as
narrativas que falam sobre a origem do universo, mundo, deuses, pessoas,
animais, plantas, lugares, sentimentos, crenças, ideias, etc. (Almeida júnior, 2014).
[7] Bilquis não é uma deusa real.
Consiste numa divindade africana inventada por Gaiman, que representa o amor,
sexualidade, fertilidade e fecundidade. O nome Bilquis é uma referência a
Rainha de Sabá, mencionada no Antigo Testamento e no Corão.
[8] Principal divindade do panteão
nórdico. Era o rei dos deuses, estando associado com a guerra, a nobreza, a
autoridade, a sabedoria e a magia. Todavia, em algumas narrativas Odin era
conhecido por agir disfarçado, vivendo entre os homens, ajudando ou enganando.
(Langer, 2015). No livro, Gaiman focou mais esse aspecto mundano do deus
nórdico, pois Odin surge como um golpista ardiloso.
[9] Trata-se de uma divindade eslava
cujas funções originais são pouco conhecidas. Seu nome significa literalmente o
“deus negro”, como forma de diferenciar de seu irmão gêmeo Bielobog “deus
branco”. As principais referências a Czernobog advém de autores cristãos que o
associaram com Satanás. Porém, os estudiosos assinalam que Czernobog fosse uma
divindade associada com os mortos, à noite, a violência. Mas não sendo
exclusivamente maléfico como Satanás. (Znayenko,
1980).
[10] Divindade da África Ocidental,
oriunda em época desconhecida, suas histórias se espalharam por vários lugares,
sendo levadas para o Caribe e Antilhas pelos escravos africanos. Anansi costuma
se transformar numa aranha. É uma divindade trapaceira e que possui uma lábia
persuasiva. No livro Anansi é falastrão e em dados momentos gosta de se exaltar
narrando seus feitos, que em geral implicam em história bem-humoradas de como ele
conseguiu enganar alguém ou resolveu algum problema. (Lynch, 2004).
[11] Esses três deuses são citados
brevemente e não recebem nome. No livro, Gaiman embora cite a existência de
vários novos deuses, ele enfatiza apenas em três novos: Media, Garoto Técnico e
Sr. World.
[12] A noção de memória é mais ampla,
adentrando o campo da neurologia, psicologia, sociologia, arquivística, etc.
pois memória também pode se referir a suportes materiais ou digitais utilizados
para a gravação de informações, como salienta Le Goff (1990). Além que memória
também consiste num estilo de narrativa pessoal associada com a escrita
diarística.
[13] Thot era o deus da sabedoria,
magia, escrita, etc. Já Anúbis era o mensageiro dos mortos e do deus da mumificação. (Lynch, 2004). No livro é o senhor Jacal que prepara os defuntos
para o funeral, enquanto o senhor Íbis administra o negócio ou dirige o carro
da funerária.
[14] Na entrevista publicada como
material extra para a edição de 2016 de Deuses
Americanos, Gaiman conta que pretendia pôr Jesus Cristo em sua história,
tendo escrito até um diálogo dele com Shadow Moon. Porém, devido as mudanças
que ele realizou no enredo, não viu espaço para manter esse peculiar encontro.
Todavia, no seriado, o episódio 08 é intitulado Come to Jesus, apresentando vários Jesus Cristos. Sendo que um
deles conversa com Shadow.
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