terça-feira, 20 de agosto de 2019

Mosteiro da Batalha: monumento a Dinastia de Avis

A Igreja e Mosteiro de Santa Maria da Vitória mais conhecido como Mosteiro da Batalha, consiste em uma das igrejas mais belas de Portugal, por conservar muito de seu estilo gótico do século XIV. Situado no concelho de Batalha, a igreja e seu complexo foram construídos por ordem do rei D. João I, que passava também a inaugurar uma nova dinastia real. Nesse texto decidi contar um pouco sobre essa bela igreja que tive oportunidade de visitar este ano. 

A guerra dos tronos: 

Para entender a história da origem do Mosteiro de Batalha devemos saber qual foi a batalha que a inspirou. Sendo assim, essa história começou dois anos antes, em 1383 com a morte do então monarca D. Fernando I (1345-1383), primogênito de D. Pedro I de Portugal e sua primeira esposa. Durante seu reinado o rei Fernando ambicionou expandir seus domínios para os reinos espanhóis, alegando ser direito seu por ancestralidade por via materna. Tal ideia não deu muito certo, já que os reis de Aragão e Navarra não aceitaram essas reivindicações. Com isso o governo de Fernando I em parte foi marcado por guerras. No ano de 1383 com 37 anos de idade, falece D. Fernando I, sem deixar herdeiros varões o que iniciou um impasse que poderia ter sido resolvido facilmente na ocasião. (OLIVEIRA MARTINS, 2010, p. 94). 

O rei possuía uma filha, a infanta Beatriz que havia sido prometida em casamento ao rei D. João de Castela. Confirmado o matrimônio, João de Castela passaria a ser rei de Portugal também. Mas a situação não era tão fácil assim. D. Fernando I possuía dois meio-irmãos que detinham direito ao trono: João de Portugal (c. 1346-1387), herdeiro legítimo, mas que foi desterrado e enviado a exílio por intrigas familiares, vindo a tornar-se Duque de Valencia de Campos em território hispânico. Por sua vez, o segundo meio-irmão era João de Avis (1347-1433) que também detinha direito ao trono, mas possui o entrave para isso pela condição de ser um bastardo. Logo, o trono de Portugal era disputado por três João.

A crise se instaura quando João de Avis não reconhece-se o casamento de sua sobrinha Beatriz, que naquele mesmo ano casou-se com o rei João de Castela. Por mais que ele tenha se proclamado rei de Portugal, João de Avis e vários aliados negaram tal reconhecimento e iniciaram uma conspiração. Enquanto isso, João de Portugal foi aprisionado e levado a Toledo, saindo de cena por hora. Com a conspiração tendo sido iniciada, somando-se a intrigas, traições e assassinatos estava dado início a uma guerra civil pelo trono português. João de Avis e seus aliados tomam o controle de Lisboa e conseguem ser aclamados como defensores legítimos do reino, os quais estavam ali para defendê-lo de ser tomado por um rei estrangeiro. Entre os aliados de João de Avis estava o nobre cavaleiro e general Nuno Álvares Pereira (1370-1431), Condestável de Portugal, posteriormente aclamado herói nacional e até foi canonizado tempos depois. 

Estátua de Nuno Álvares diante do Mosteiro de Batalha. Foto de minha, tirada em 2019. 

No ano de 1384 o rei D. João I de Castela ordenou que seu exército invadisse Portugal e marchasse até Lisboa com o intuito de capturar e executar João de Avis e seus conspiradores. Mas para infortúnio dos castelhanos a peste afligiu suas tropas, além disso, o engenho militar de Nuno Álvares e seus comandantes garantiram as vitórias necessárias para resistir aos ataques dos castelhanos. Apesar daquela derrota não significava João I de Castela havia desistido. Sabendo disso, João de Avis decidiu pedir socorro, enviando cartas para possíveis aliados, dentre os que lhe responderam estavam os ingleses, os quais lhe enviaram os aguardados reforços. (OLIVEIRA MARTINS, 2010, p. 99). 

Em 6 de abril de 1385, João de Avis foi coroado em Coimbra como rei legítimo de Portugal. Embora representantes da nobreza portuguesa reunidos nas Cortes de Coimbra tenha feito reconhecimento formal quanto ao novo rei, alguns nobres portugueses recusaram a participar das cortes ou negaram reconhecê-lo, com isso o novo monarca declarou guerra a eles, especialmente os fidalgos da Beira. Obtendo vitória sobre os traidores que apoiavam os castelhanos, a batalha derradeira se aproximava. O rei de Castela havia organizado novo exército para uma nova tentativa de capturar Lisboa, então capital portuguesa e assim prender seu opositor. (MONTEIRO, 2000, p. 225). 

Para evitar que Lisboa fosse cercada novamente, D. João I de Portugal decidiu que seu exército, o qual ele acompanhava na ocasião, deveria interceptar os castelhanos, longe da capital. O conflito ocorreu em 14 de agosto de 1385. Segundo a história tradicional, na noite de véspera da batalha o rei teria feito uma promessa a Nossa Senhora dizendo que se ele obtivesse a vitória na batalha de amanhã, iria construir uma igreja em sua homenagem. A chamada Batalha de Aljubarrota ocorreu no Campo de São Jorge próximo a Vila de Aljubarrota, no concelho de Porto de Mós. O exército anglo-luso era comandado pelo próprio rei D. João I e o general Nuno Álvares. Por sua vez, o exército castelhano contava com a presença do rei D. João de Castela e aliados franceses, além de estar em maior número. Ainda assim, graças a estratégia portuguesa, a vitória naquele conflito foi dada aos portugueses e seus aliados. (MONTEIRO, 2000, p. 230-231). 

Detalhe de uma gravura medieval do século XV, representando um momento da Batalha de Aljubarrota. 

A vitória em Aljubarrota forçou a retirada do rei D. João de Castela, fazendo-o desistir de nova campanha e a contragosto, reconhecer que seu adversário era o legítimo rei de Portugal. Em homenagem a este conflito, o rei D. João I renomeou o castelo de Lisboa com o nome de Castelo de São Jorge, e por sua vez, comprometeu-se em cumprir sua promessa e providenciar a construção de uma igreja.

A igreja da promessa: 

A igreja começou a ser construída no distrito de Leira, na província de Beira Litoral. Apenas em 1500 o território no qual encontrava-se a igreja e a vila em torno, foi tornada uma vila, passando a ser chamada de Batalha. A construção da igreja levou mais de dois séculos. De início ainda em 1385, já iniciando os procedimentos para a construção da nova igreja, o rei ordenou que um bom terreno próximo do campo da Batalha de Aljubarrota, fosse providenciado. O local escolhido ficava próximo a um riacho, situada na propriedade Quinta do Pinhal, a qual pertencia a Egas Coelho e sua mãe, Maria Fernandes Meira. O rei propôs comprar aquela parte da fazenda para construir a igreja, Coelho concordou e vendeu as terras. As obras tiveram início por volta de 1386. Passado dois anos, a igreja ainda estava em construção, mas D. João decidiu nomear a ordem monástica que cuidaria do templo, por influência de frei Lourença Lampreia, que pertencia a Ordem de São Domingos, e era confessor real, o rei decidiu conceder aos Dominicanos a guarda daquela igreja, nomeada de Santa Maria da Vitória. (BAPTISTA NETO, 1990, p. 6). 

Como a ordem dos Dominicanos não podia herdar propriedades, o rei escreveu uma carta ao então papa Bonifácio XV solicitando uma exceção. Com isso o papa autorizou os dominicanos portugueses a passaram legalmente a dispor da propriedade da igreja em construção de suas rendas. A medida que a igreja era construída surgiu a Vila da Batalha, sendo que inicialmente ela teve início como uma vila operária, formada por alojamentos, casas simples e várias oficinas as quais eram usadas nas obras. Além disso, desenvolveu-se também uma pequena feira que abastecia com alimentos os trabalhadores. Como as obras da igreja se estenderam por dois séculos, parte da população acabou se assentando permanentemente ali. (BARBOSA, 1886, p. 6-7). 

Como o reinado de D. João I foi longo, durando 38 anos e a igreja teve tempo para crescer, deixando de ser uma pequena capela de pedra para se tornar um edifício maior com mais de uma capela, sendo a mais famosa nesse período, a Capela do Fundador. Suas obras iniciaram em 1426 com o intuito de abrigar os restos mortais de D. João e sua esposa, a rainha D. Felipa de Lencastre. De fato, eles foram sepultados lá, mas apenas em 1434, ano que a capela foi concluída e que coincide também com o fato que o rei faleceu em 1433. A Capela do Fundador é a maior da igreja, possuindo um formato octogonal e na época era iluminada por altas janelas em estilo gótico tardio. Posteriormente novos vitrais góticos foram adicionados. A decisão de construir essa capela era uma novidade na época, pois até então os monarcas portugueses escolhiam igrejas ou mausoléus para serem sepultados. Dificilmente mandavam construir uma igreja para isso. Porém, D. João inovou ao ponto de ordenar a construção de uma capela funerária que serviria também de monumento a dinastia por ele fundada. (RAMÔA; SILVA, 2008, p. 77).

Inaugurada em 1434 a capela em estilo gótico-tardio apresenta largas e altas colunas em arcos adornados, uma cúpula em formato de estrela e com vitrais. Ao centro encontra-se o sarcófago do rei e da rainha, cuja tampa carrega a efígie dos dois. Nas laterais foram criados nichos para abrigar os túmulos dos parentes e descendentes do monarca. Quatro dos seus filhos foram ali sepultados. Embora que nem todos os nichos foram preenchidos. Além disso, o rei deixou explícito em seu testamento que somente descendentes diretos poderiam ser sepultados naquela capela, pois se tratava de uma capela familiar. 


Visão parcial da Capela do Fundador no Mosteiro da Batalha. 

“O moimento ou monumento funerário mandado executar por D. João I para acolher, em arca única, os seus restos mortais e os de D. Filipa de Lencastre, sua esposa, constitui a segunda originalidade que importa desde logo assinalar. Trata-se de um sarcófago extenso, de pedra calcária, constituído por uma grande arca paralelepipédica assente sobre oito leões, com os dois jacentes dos tumulados sobre a tampa única, extensos epitáfios laudatórios de cada uma das personagens nos dois faciais maiores e decoração heráldica e fitomórfica nos dois menores. As dimensões da arca, verdadeiramente excepcionais – 375cm (de comprimento) X 170cm (de largura) X 107cm (de altura), sem contar com os suportes, que lhe acrescentam com esta última medida 77cm –, ajustam-se convenientemente à realidade de nela se reunirem, mais até do que dois corpos, dois ataúdes distintos (no cumprimento de uma determinação expressa exarada em testamento pelo próprio rei D. João I), separação que, contudo, dada a composição do monumento numa arca e tampa únicas, apenas transparece nos jacentes e nos baldaquinos individuais que os cobrem”. (RAMÔA; SILVA, 2008, p. 80).


Sarcófago de D. João I e D. Felipa de Lencastre na Capela do Fundador. 

Ainda durante o governo de D. João I foi construído o Claustro Real com 55x46 m2 e suas adjacências como a Sala do Capítulo, uma bela sala que chama atenção por seu teto que é formado pela junção de vários arcos que formam uma sala. Além disso, o recinto é ornamentado com símbolos associados a Maria. As salas do capítulo eram espaços usados para fins de reuniões e assembleias. Além dessa sala, o claustro também é formado pelo dormitório, cozinha e refeitório. Além de abrigar um belo jardim. Os corredores do claustro apresentam colunas curtas e janelões em forma de arco. O acesso a essa parte do mosteiro é reduzido, pois os monges dominicanos ainda hoje o habitam. 


Claustro Real do Mosteiro da Batalha

A igreja possui uma longa nave com mais de sessenta metros de comprimento, em estilo gótico-tardio, com suas altas colunas. A decoração interna é mais arquitetônica, havendo poucas imagens como estátuas. Não há pinturas ou afrescos. Embora que os vitrais da capela-mor contenham imagens de Jesus, Nossa Senhora e de santos. No ano de 1434 já sob reinado recente do rei D. Duarte (1391-1438), deu-se início a novas obras na igreja, dessa vez a construção de novas capelas, as quais ficaram inconclusas até hoje; primeiro, porque o rei faleceu em 1438 e no mesmo ano morreu o então arquiteto-chefe da igreja, Mestre Huguet que dedicou a vida à aquele templo. (BARREIRA, 2014, p. 187). 

Com isso o novo monarca, Afonso V (1432-1481) também não deu seguimento a tais obras por ser uma criança, estando sob tutela regencial até a adolescência. Finalmente quando o rei tomou interesse em ordenar alguma obra na igreja, já havia se passado vários anos e a capela de seu pai que tinha a finalidade de ser uma capela fúnebre, nunca foi concluída, permanecendo até hoje sem teto. E assim tornaram-se capelas imperfeitas. 


As capelas imperfeitas que originalmente deveria ser uma grande capela fúnebre para o rei D. Duarte. 

Durante o governo de D. Afonso V, o rei ordenou a construção de um novo claustro, embora seja um pouco menor, medindo 50x46 m2. O segundo claustro conta com primeiro andar e fica situado atrás do dormitório. Ele abriga outras salas do mosteiro. Sua visita também é limitada. Além do novo claustro, o monarca ordenou reformas e novas obras de embelezamento da igreja. Tais obras se estenderam de 1438 a 1477, sofrendo vários atrasos em parte porque o monarca dedicou-se a campanhas na África, além de ter sido confrontado por traições e conspirações. Afonso chegou a cogitar a concluir as capelas iniciadas por seu pai, mas nunca realizou tal ordem. Após a conclusão do claustro, as obras focaram-se na colocação de novos vitrais, procedimento caro e difícil que durou longos anos. 


Claustro de Afonso V

“No período decorrido entre 1477 e 1490, a partir dos dados recolhidos na documentação, os trabalhos devem ter estado concentrados principalmente na produção e colocação de vitrais, pois temos dois mestres vidreiros a coordenar o estaleiro (mestre Guilherme, entre 1477 e 1480) e João Rodrigues (de 1480 a 1485). Entre 1485 e 1490 temos João Arruda: muito provavelmente estariam a ser colocados os vitrais das janelas da nave central”. (BARREIRA, 2014, p. 193). 

A fabricação e colocação dos vitrais nas capelas da igreja compreenderam o reinado de D. João II (1455-1495), herdeiro e sucessor de Afonso V. Apesar que diferente de seu pai, João II não deu muita atenção as obras da igreja, estando preocupado com questões políticas que comprometiam a integridade de seu reinado. Após sua morte o trono foi herdado por D. Manuel I (1469-1521), lembrando pelas grandes navegações e obras empreendidas especialmente em Lisboa. Durante seu governo a Igreja de Santa Maria da Vitória teria seu visual modernizado, recebendo traços barrocos do período, apesar que grande parte de sua arquitetura ainda conserve os traços góticos de sua fundação. E um dado curioso é que data do reinado de Manuel I a construção de várias gárgulas. 

Uma das gárgulas da igreja. Localizada nas Capelas Imperfeitas. Fotos por mim tirada em 2019. 

As gárgulas foram colocadas na parte externa das Capelas Imperfeitas, sendo as mais famosas de Portugal, enquanto na França temos as gárgulas de Notre-Dame de Paris. Por outro lado, D. Manuel I tinha como planos concluir as capelas imperfeitas lhes dando teto e uma cúpula, algo que seu pai e avô nunca fizeram. Porém, os planos foram adiados várias vezes, além do fato que o rei acabou por algum tempo ocupado com as obras do novo paço, a Igreja de Belém e o Mosteiro dos Jerônimos, além da política comercial com os negócios no Brasil, África e Índia. 

Após a morte de D. Manuel I em 1521, seu sucessor D. João III (1502-1557) ordenou que em 1551 fosse construído um terceiro claustro, mas feito de madeira. Esse serviu como hospedaria para nobres, clérigos e pessoas autorizadas. As obras foram ordenadas por D. João III. No entanto, no ano de 1810 durante a invasão dos exércitos napoleônicos, o claustro foi incendiado. Durante o reinado de D. João III as obras na igreja de Batalha progrediram pouco, e o grande destaque do período foi o claustro que hoje não existe mais. Depois de sua morte seus sucessores não deram mais atenção significativa a igreja. De qualquer forma por quase duzentos anos a Igreja de Santa Maria da Vitória ou Mosteiro da Batalha como é mais conhecido desde então, foi o templo da Dinastia de Avis, abrigando reis, rainhas e príncipes, além de ser o monumento para exaltar as façanhas dessa família, passando pelos cuidados atenciosos de seis gerações. 

Entrada principal da igreja. Foto tirada por mim em 2019. No lado direito da entrada temos a Capela do Fundador e no lado esquerdo o muro do Claustro Real. 

Dicas de turismo: 
  • É recomendável ir por conta própria de carro, ou de ônibus pois existem percursos diretos para Batalha; ou por alguma excursão, apesar que no caso das excursões turísticas normalmente se permanece de 30 a 45 minutos na cidade, pois tais excursões exploram várias cidades. Se você quer ter mais tempo para explorar o local, vá por conta própria ou combine uma excursão privada, ditando seus termos. 
  • Há um estacionamento público ao lado do mosteiro para quem for de carro. 
  • Em torno do mosteiro há algumas praças com oliveiras frondosas e bem antigas. São boas para se fotografar e descansar, especialmente em dias quentes, pois em torno do mosteiro há grande incidência de calor, apesar que no seu interior seja fresco, e as paredes e colunas ficam até mesmo frias. 
  • Batalha fica acerca de 20 minutos de carro de Fátima, quem tiver interesse, dá para visitar os dois lugares no mesmo dia e até ir ao Parque do Buda em Bombarral, ou ir para Tomar, Alcobaça ou Nazaré, todas são cidades relativamente próximas. 
  • A entrada no mosteiro é gratuita, porém, algumas áreas dele são acessíveis apenas por ingresso comprado no local. Quando fui em 2019, custava 6 euros. No caso, para visitar a Capela dos Fundadores e os claustros é preciso pagar ingresso. Todavia, se você tiver com pouco tempo, não dará para visitar essas partes. 
  • Em torno do mosteiro há várias lojas, restaurante e lanchonetes. Se você for para passar mais tempo, terá local para se alimentar.
  • Nas lojas vendem-se souvenires e artesanato. É possível comprar camisas, xales, panos de prato, toalhas de mesa e de banho, cobertores, tapetes a um bom preço. 
  • Se tiveres com tempo para fotografar, aconselho fotografar o mosteiro por vários ângulos, para captar sua beleza gótica medieval. 
  • Embora o Mosteiro da Batalha seja a principal atração turística da cidade, há outros lugares para se visitar em Batalha como o Jardim do Lena, a Igreja Matriz e a Ponte da Boutaca. As excursões turísticas tendem ir apenas ao mosteiro
Referências bibliográficas: 
BAPTISTA NETO, Maria João Quintas Lopes. O restauro do Mosteiro de Santa Maria da Vitória de 1840 a 1900, vol. 1. Dissertação de Mestrado em História da Arte, Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa, Lisboa, 1990. 2v
BARBOSA, Ignácio de Vilhena. Monumentos de Portugal históricos, artísticos e archeológicos. Lisboa, Castro Irmãos Editores, 1886. 
BARREIRA, Catarina Fernandes. O mosteiro de Sta. Maria da Vitória e a vocação moralizante das gárgulas do Panteão Duartino. In: BARREIRA, Catarina Fernandes; SEIXAS, Miguel Metelo de (coors.). D. Duarte e sua época: arte, cultura, poder e espiritualidade. Lisboa, Universidade Lusíada de Lisboa, 2014, p. 185-210. 
MONTEIRO, João Gouveia. A aventura da guerra no Portugal Medieval. Máthesis, n. 9, 2000, p. 221-231. 
OLIVEIRA MARTINS, Joaquim Pedro de. História de Portugal. Lisboa, Edições Vercial, 2010. 
RAMÔA, Joana; SILVA, José Custódio Vieira da. O retrato de D. João I no Mosteiro de Santa Maria da Vitória. Um novo paradigma de representação. Revista de História da Arte, n. 5, 2008, p. 76-95. 


quarta-feira, 7 de agosto de 2019

Piltdown, a fraude interdisciplinar

PILTDOWN, A FRAUDE INTERDISCIPLINAR

A. Bracinha Vieira


Obs: As imagens aqui apresentadas foram escolhidas por mim para ilustrar a obra do autor. 


I. The Origin of Species fora publicado em 1859, e The Descent of Man em 1871, mas poucos fósseis de linhagem humana e pré-humana eram conhecidos à data de aparecimento desses livros. A situação manteve-se após a morte de Darwin, em 1882, e ao longo dos primeiros anos do séc. XX, e grande expectativa pairava no domínio da evolução do homem, contrapondo-se diversas teorias alternativas sobre a origem humana. Sendo já descobertas as ideias de Mendel, procuravam-se, ainda titubeantes, os fundamentos do que viria a ser a Teoria Sintética da Evolução. Foi neste contexto que decorreu a maior falsificação da história da antropologia, comumente denominada a fraude de Piltdown.

A povoação de Piltdown Common situa-se no East Sussex, perto de Brighton, junto ao vale do pequeno rio Ouse que, vindo de oeste, deriva para sul e se lança mais adiante no Canal de Inglaterra. Foi na planície a norte do rio, em pedreiras expostas para obtenção de brita, que – entre 1908 e 1915 – foram encontrados os materiais que informaram a fraude. No dia 18 de Dezembro de 1912, Charles Dawson, solicitador no Sussex e arqueólogo amador, autor inicial dos achados, e Arthur Smith Woodward, paleontólogo do British Museum (Natural History), comunicaram à comunidade científica, em Burlington House, Piccadilly, sede da Geological Society, a natureza e a importância dos achados, que constavam de:

  • parte de uma calote craniana espessa, de aspecto humano, de facto de origem relativamente recente e carácter patológico;
  • metade da mandíbula de um orangotango juvenil, com dois dentes molares implantados, limados para simularem um padrão de desgaste humano, com fracturas ósseas que excluiam o queixo e o côndilo para a articulação têmporo-maxilar; 2
  • artefactos líticos de feição arcaica, modificados pela acção de ferramentas metálicas;
  • ossos e dentes fósseis de mamíferos plio-pleistocénicos extintos, incluindo dentes de mastodonte, de um hipopótamo anão que vivera na ilha de Malta, de rinoceronte, castor, veado e cavalo.
Réplica do crânio do Homem de Piltdown. 
Obtido o reconhecimento da descoberta por duas importantes figuras do mundo científico inglês - Arthur Keith, anatomista do Royal College of Surgeons, e Grafton Elliot Smith, neuroanatomista de origem australiana ligado à Universidade de Manchester - Smith Woodward denominou a pretendida nova espécie de Eoanthropus dawsoni, significando o nome genérico «homem auroral» e o nome específico um tributo a Dawson. Keith desenvolvera previamente um modelo propugnando pela alta antiguidade de um antepassado humano de grande volume craniano; e Elliot Smith defendia que a evolução do cérebro tinha dirigido a evolução humana.

Entretanto, os trabalhos no terreno prosseguiram, juntando-se ao grupo inicial o jovem jesuíta francês Pierre Teilhard de Chardin, que estudava no Colégio Jesuíta de Hastings, próximo de Piltdown. Se Keith e Elliot Smith propunham teorias da evolução do homem centradas no primado da «cerebralização» sobre o bipedismo, Teilhard de Chardin viria a desenvolver um complexo modelo transformista teleológico, de inspiração vitalista (próximo das ideias do filósofo Henri Bergson expressas no livro L’énergie spirituelle), e com pressupostos (diríamos, preconceitos) neolamarckistas, postulando a evolução de linhas ascendentes paralelas ilustrando «o movimento da matéria para o espírito».1 Em 30 de Agosto de 1913, Chardin encontrou um dente canino pertencente à hemimandíbula exumada, mas que dela se desprendera. Tratava-se de um dente de configuração antropóide, também retocado artificialmente.

Em Maio de 1912, a calote e restantes materiais foram levados para o Museu Britânico (História Natural), para avaliação. Em Dezembro, Smith Woodward reconstituiu o conjunto crânio-facial. Em Junho de 1913, Keith fez a sua própria reconstituição do crânio, com base em moldes de gesso, mas com capacidade craniana superior à da reconstituição de Smith Woodward, e apresentou-a ao Royal College of Surgeons. A diferença de volumes era superior a 300 cc (1500 cc para a representação de Keith), por serem diversas as curvas delineadas para posicionar os fragmentos cranianos disponíveis. Elliot Smith contestou este trabalho de Keith, o que significou o afastamento pessoal entre ambos. Em 1922, Elliot Smith, junto com um colaborador, fez uma terceira reconstituição do crânio, com capacidade de 1200 cc, julgada mais persuasiva pelos antropólogos estrangeiros, entre eles Marcellin Boule, por reduzir o «paradoxo anatómico».

Entretanto, Frank Barlow fizera moldes dos materiais de Piltdown, que foram enviados a museus e universidades, enquanto as peças originais ficaram fechadas no Museu Britânico, vedadas mesmo à observação de especialistas, sob pretexto da sua grande importância (só Ales Hrdlicka, investigador norte-americano da Smithsonian Institution e fundador da disciplina da antropologia física, teria sido autorizado a estudá-las directamente). Também esta disposição adiou o desmascaramento da fraude e prolongou o mal-entendido que germinava no mundo da então chamada paleontologia humana.

Ora, desde início, diversos anatomistas e antropólogos refutaram as descobertas, sem que ninguém, contudo, suscitasse publicamente a hipótese de fraude. Assim, logo em 1913, David Waterston, anatomista do King’s College, admitiu tratar-se de «peças de diferentes indivíduos, cuja integração era tão inconsequente (...) como articular um pé de chimpanzé com uma perna humana», e, em 1916, um dentista, Lyne, notou com estranheza o uso excessivo de um dente canino imaturo (Lyne, 1916). Também Marcellin Boule, aliás mestre de Chardin, falou de «associação paradoxal de um crânio basicamente humano com uma mandíbula de antropóide.», concluindo tratar-se de um achado compósito. 

E, em 1915, Gerrit Miller, da Smithsonian Institution, tendo estudado comparativamente vários esqueletos de chimpanzés, gorilas, orangotangos, e ainda crânios humanos actuais, concluiu que o mesmo indivíduo não poderia reunir tal crânio e tal mandíbula. Miller teve, sabe-se, a ideia de se tratar de uma falsificação – mas não tornou públicos os seus argumentos por não ter podido observar directamente o material. Também o paleontólogo norte-americano Henry Fairfield Osborn e o antropólogo inglês Louis Leakey formularam objecções.

Mas, em 20 de Janeiro de 1915 – portanto já em plena Primeira Grande Guerra –, a cerca de duas milhas da jazida inicial de Piltdown, Dawson disse ter encontrado um novo fragmento de crânio, compreendendo um osso frontal com arcada supraciliar e a raiz nasal; e em Julho do mesmo ano, removeu um dente molar (mais uma vez antropóide e manipulado), e mais tarde um fragmento de occipital. Dawson morreria em 1916 (Teilhard de Chardin encontrava-se mobilizado como capelão militar na frente de combate), e o local de proveniência dos novos achados – denominado Piltdown 2 – permaneceu de localização desconhecida. Com esta nova comunicação à comunidade científica, alguns antropólogos cépticos – como Boule e Leakey – acabaram por aceitar a validade das descobertas, por ser de todo improvável a repetição de achados conjuntos crânio-dentognáticos (respeitando maxilar e dentes) da mesma natureza.

O argumento principal (para além de Piltdown 2) a favor da autenticidade da estranha criatura proposta era a admitida contemporaneidade entre crânios, mandíbulas e vestígios de fauna fóssil, supostos pertencerem ao mesmo «piso de habitat», tendo portanto a mesma idade (método de datação relativa, hoje denominado bioestratigrafia, ou páleoestratigrafia). Por outro lado, as fracturas do queixo e do côndilo que tinham sido impostas à mandíbula impediam a demonstração de uma incompatibilidade anatómica pura e simples. A importância de Piltdown fora tal que, já em 1918, os achados e interpretações tinham suscitado mais de cento e vinte títulos por mais de cinquenta autores.

Ilustração criada em 1913 para imaginar o suposto Homem de Piltdown, cuja espécie foi nomeada Eoanthropus dawsoni. Embora tenha ganho fama nesse período, vários cientistas desconfiavam que tudo pudesse ser uma grande fraude.  
Em 1935 deu-se um acontecimento decisivo para acentuar a perplexidade dos investigadores perante os ossos e dentes de Piltdown: o dentista inglês Alvan Marston encontrou no Kent um crânio de hominídeo fóssil, com traços arcaicos e alta antiguidade, logo denominado o crânio de Swanscombe (hoje considerado como um pré-neandertal). Tudo nesta peça, notavelmente conservada, refutava a estranha associação crânio-mandibular suposta proveniente do Sussex. Perante a desconformidade entre os dois achados, Marston estudou os restos de Piltdown através de moldes, comparou-os com o fóssil que encontrara, e em 1936 fez circular um anúncio em que escrevia:

«Eoanthropus dawsoni vai sofrer grande cirurgia maxilo-facial na segunda-feira, 23 de Novembro, aquando da próxima reunião da Odontological Society of the Royal Society of Medicine, às oito horas da tarde. A operação implicará a extracção do canino inferior direito e a excisão da mandíbula. A situação deste dente e do maxilar, que há muito constituía um problema grave, foi por fim diagnosticada com rigor. Depois da excisão, propomos oferecer as partes removidas ao Museu Britânico (História Natural) para serem expostas na secção dos antropóides fósseis. Eoanthropus tem sido tão drogado que não parece necessário qualquer anestésico. Mas será preciso ajuda para estender a vítima. Espera-se que Eoanthropus tenha rápida convalescença. O prognóstico é bom. A aparência mental do sujeito será mais humana, e ele será menos anti-social sem uma mandíbula que o impede de comer e falar como um ser humano. Cirurgião dentário: A.T. Marston, L.D.S".

Mas os elementos restantes do grupo inicial obstinavam-se no seu culto à descoberta forjada e, em 1938, Sir Arthur Keith (entretanto nobilitado com este título, tal como os dois Smith), foi a Piltdown descerrar uma lápide memorial, que tinha inscrito: «Here in the old river gravel Mr. Charles Dawson, F.S.A., found the fossil skull of Piltdown, 1912-13. The discovery was described by Mr. Charles Dawson and Sir Arthur Smith Woodward in the Quarterly Journal of the Geological Society.» (Trinkaus & Shipman, 1993).

Decorriam os anos, e a instauração de um paradigma científico falso com base em achados fraudulentos arrastava entretanto a denegação de descobertas genuínas posteriores e – ó surpresa – mesmo anteriores. Assim, fora relegada para a sombra a descoberta de Eugène Dubois, de 1891-92, de uma calote craniana e um fémur provenientes do rio Trinil, em Java, peças que ele atribuíra à espécie Pithecanthropus erectus (uma denominação homenageando Ernst Haeckel, o evolucionista alemão que postulara a existência do género Pithecanthropus); e fora depois subestimada a importância do achado de Raymond Dart, na África do Sul, do crânio infantil de Taung, mostrando uma espécie por ele denominada Australopithecus africanus, bem como das subsequentes revelações, por Robert Broom, de outras formas de australopitecos provenientes de outras cavernas sulafricanas. A influência de Piltdown isolou e marginalizou estas descobertas e os seus autores do centro do debate científico. Contudo, o ilustre anatomista comparativo inglês Sir Wilfred Le Gros Clark reconheceu a importância do achado de Dart e dos achados posteriores de Broom (acompanhou até uma fase da sua investigação no terreno), tal como exprimira antes fortes reservas em relação a Eoanthropus.

Na China, a gruta de Zukudien fora alvo de pesquisas, na década de 20, por uma equipa dirigida por Otto Zdansky, e depois por Davidson Black. Em certa altura, Teilhard de Chardin juntou-se ao grupo que empreendia as prospecções, trabalhou no terreno, junto com o antropólogo chinês Pei-Wenzhong e, após a morte brusca de Black, veio a tomar a direcção das pesquisas – até à chegada do grande anatomista alemão Franz Weidenreich, que passou a dirigir o Laboratório Cenozóico de Pequim. Weidenreich, perante a sucessão de achados paleontológicos referentes ao «homem de Pequim» (denominado na altura Sinanthropus pekinensis, e que foi depois subsumido, tal como o «homem de Java», na espécie Homo erectus, da qual constituiu variedade regional), escreveu, em 1940, a propósito do homem de Piltdown:

«Eoanthropus deve ser apagado da lista de fósseis humanos. É uma combinação artificial de fragmentos de uma caixa craniana humana com uma mandíbula de orangotango.»

Enquanto Eoanthropus configurava uma crânio com dentes de antropóide, Australopithecus mostrava um crânio de antropóide com dentes quase humanos. Os paradigmas não podiam ser mais contraditórios e, perante o fulgor das descobertas verdadeiras e interpretações coerentes, os elementos do grupo inicial de Piltdown tentaram denegrir os seus autores. Elliot Smith escreveu, a propósito de Dart: «É grande lástima que não tenha tido acesso a material comparativo de crânios de chimpanzés jovens, gorilas ou orangotangos.» E Arthur Keith: «A descoberta [de Dart] esclarece a história natural dos antropóides, não a do ser humano.»

Com o avançar do tempo, instalaram-se dúvidas crescentes e sucessivas, e o material de Piltdown tornou-se cada vez mais problemático e equívoco no seu significado. Em 1948, Kenneth Oakley, geólogo e palentólogo do Departamento de Paleontologia do Museu Britânico, redescobriu um antigo método esquecido de datação, o método dos fluoretos, aplicável a material fóssil e por fim aplicado aos ossos de Piltdown: num mesmo terreno, a captação de flúor pelos ossos enterrados é proporcional ao tempo que decorre. Eis que Oakley demonstrou a grande antiguidade dos fósseis de mamíferos exumados com os ossos humanos, a pertença recente do crânio humano – subfóssil, com pouco mais de mil anos – e a pura e simples actualidade da mandíbula. Publicou estes resultados em Março de 1950 (Oakley & Hoskins, 1950), ainda sem desconfiar de uma fraude. 

Mas, nos anos seguintes, Joseph Weiner, antropólogo de origem sul-africana, antigo discípulo de Raymond Dart, então a trabalhar em colaboração com Le Gros Clark na Universidade de Oxford, partiu para uma análise mais sistemática do material de Piltdown, que o Museu Britânico já não podia manter fechado, ante o novo ambiente ideológico e científico instaurado com o termo da Segunda Grande Guerra e após a vitória dos Aliados. Descobriu então ao microscópio, nos dentes, sinais de desgaste feito por ferramentas metálicas, e para mais em planos de atrição diferentes no primeiro e no segundo molares, fenómeno impossível na natureza. Le Gros Clark confirmou o bem fundado destas observações.

A pedido de Weiner e Le Gros Clark, Oakley repetiu o seu ensaio dos fluoretos, confirmando a primeira avaliação (Weiner, Oakley & Le Gros Clark, 1952). A 21 de Novembro de 1953, os três publicaram, num artigo de cinco páginas, as conclusões da sua investigação convergente: «that the faking of the mandible and canine is so extraordinarily skillful, and the perpetration of the hoax appears to have been so entirely unscrupulous and inexplicable, as to find no parallel in the history of palaeontological discovery.» 

A 25 de Novembro, Oakley e Weiner comunicaram à Geological Society os fundamentos da sua demonstração, para espanto geral – e sobretudo de Marston, que se encontrava na assistência. Na tarde desse mesmo dia, na Câmara dos Comuns, um deputado apresentou uma moção de desconfiança ao Museu Britânico (secção de História Natural); mas um outro lembrou que os políticos «had enough skeletons in their own cupboards» (Milner, 1993).

Seguiram-se comentários do Speaker: «Not sure how serious the motion is [laughter], but sure we have many other things to do besides examining the authenticity of a lot of old bones [loud lauhter].» E, na Câmara Alta, o Lorde do Sêlo Privado: «The government had found so many skeletons to examine when they came into office that there had not yet been time to extend the researches into skulls [lauhter]» (in Reader, 1988, p.78). 

Eis como os comentários dos responsáveis políticos exprimiram uma funda incompreensão e um vivo desprezo pela ciência, em contraste com a gravidade da longa adulação de falsos achados, dos seus mentores e da ideologia nacionalista e xenófoba que os animava. Com ditos de ironia, o pragmatismo britânico encerrara o caso que, por feliz circunstância, fora desvendado por investigadores ingleses com participação do Museu Britânico.

Matéria de 1953 confirmando mais uma vez que o fóssil do Homem de Piltdown era uma fraude. Embora várias dessas matérias tenham sido publicadas desde 1914, por décadas elas não foram aceitas como derradeiras pelos cientistas, pois alguns alegavam que fossem calúnias e os fósseis fossem reais. 
Foram então feitos contactos discretos com Keith e Chardin, os únicos participantes do grupo de Piltdown ainda vivos. Ambos mostraram evasivas inexplicadas e enigmáticas reticências em aclarar a questão, como se tivessem sido tomados de amnésia profunda. Keith disse então que destruíra toda a correspondência trocada com Dawson, e Chardin mostrou um silêncio obstinado ante tão penoso problema. Mas como afastar a ideia de declínio e o sentimento de náusea perante a mudança abrupta que, em duas gerações, se abatera sobre a ciência inglesa no domínio da história natural, desde os tempos de Darwin e Wallace, Lyell e Huxley, até aos de Piltdown? 

II. Iniciou-se então o processo de pesquisa e decifração, quer do móbil, quer do autor (ou antes, do instigador) do projecto fraudulento; e à medida que as indagações prosseguiam multiplicaram-se os suspeitos, tendo sido sucessivamente indiciados (para além de Charles Dawson, por todos considerado conivente mas incapaz de gizar sozinho tão complexa trama):

  • William Sollas, geólogo, adversário de Smith Woodward (Halstead, 1978);
  • Grafton Elliot Smith (Miller, 1972);
  • O químico Samuel Woodhead (segundo Peter Costello, investigador independente de Dublin – Costello, 1985);
  • Sir Arthur Conan Doyle, o criador de Sherlock Holmes, escritor de crença espírita e adversário obstinado de Ray Lankaster e das ideias evolucionistas, para mais interessado em muitas das disciplinas implicadas (arqueologia, anatomia humana, química, colecta de fósseis) e amante de enigmas e intrigas, que vivia perto de Piltdown Common e se sabe que acompanhou parte das pesquisas no terreno (Winslow & Mayer, 1983);
  • Pierre Teilhard de Chardin, apontado como suspeito por Stephen Jay Gould (1980, 1983) com base em pressupostos cronológicos e epistolares bem como no seu silêncio [Alan Ternes, editor de Natural History, sugeriu mesmo que Teilhard, como padre, poderia ter ouvido Dawson em confissão, não podendo desde então revelar os factos, mas distanciando-se deles] e ao admitir que, de todos os envolvidos, era ele o especialista com mais inteligência e universalidade de conhecimentos2;
  • Arthur Keith, segundo a rigorosa investigação conduzida por Philip Tobias (1994);
  • Martin Hinton, do Museu Britânico, amigo de Smith Woodward – desde que foi descoberta uma caixa com as suas iniciais, num gabinete do Natural History Museum, contendo ossos talhados artificialmente e escurecidos pelo mesmo meio químico utilizado na fraude (Brian Gardiner, in Jurmain e al., 1997).
Nos arquivos da Geological Society encontraram-se inúmeras cartas sobre o caso de Piltdown, referindo peripécias, controvérsias e interpretações mas, para surpresa geral, nenhumas cartas de Dawson sobre o assunto, o que desde logo pareceu estranho, dada a convicção geral de que o procurador fora um agente mais que provável na gestão da fraude, constituindo elo entre o laboratório e o museu, por um lado, e entre os teóricos e o trabalho de campo (limitado à inumação subreptícia de ossos, fósseis e artefactos, e à sua exumação mais tarde, apresentando-os como autênticos, com decisão e falsa inocência).

Mas porquê, afinal, esta falsificação tão subtilmente gizada? Quais os móbeis? Qual a inspiração? Quais os seus efeitos? Porque a confiança inicial – mantida durante quatro décadas – no valor dos achados de Piltdown, antes de abalar a credibilidade de instituições científicas respeitáveis, como o Museu Britânico, comprometeu a construção de modelos teóricos válidos em paleoantropologia e desfocou a importância dos que já existiam, subalternizando a importância do autêntico registo fóssil e arqueológico que entretanto surgira, provindo da África, da Ásia e também da Europa, denegrindo os seus autores e o bem fundado dos seus métodos e conclusões.

É de admitir que a fraude tenha sido inspirada pela anterior falsificação de Moulin Quignon, envolvendo uma mandíbula, e que lançara a humilhação sobre o arqueólogo francês Boucher de Perthes, em 1859, no próprio ano da publicação de The Origin of Species. Quanto ao achado do canino em falta, imitou porventura semelhante acontecimento ocorrido na fase precursora das pesquisas em Pequim, quando Max Schlosser, em 1903, estudou um dente fóssil de um primata, obtido por Haberer, sem conseguir esclarecer se pertencia a um pongídeo ou a um humano (in Reader, 1988). Os materiais provieram de diversos museus de diversos países: o crânio patológico, de um museu de medicina ou de antropologia física; os dentes de hipopótamo, provavelmente de Malta; o dente de mastodonte, marcado por forte radioactividade, seguramente da Tunísia, onde existia uma jazida com essas características. Houve então que coordenar a procura de todos estes materiais esparsos, juntá-los, impregnando-os com 11 a mesma coloração química, enterrá-los, e enfim fazê-los aparecer segundo uma ordem lógica e a tempos adequados.

«A lição de Piltdown – escreveu Tobias (1994) – é de que a desonestidade deve incluir-se entre os factores que influenciam a rejeição e a aceitação de descobertas e conceitos científicos.» Deste modo, contribui para determinar as heurísticas positiva e negativa de que falou Imre Lakatos (1970), aquilo que merece ou não ser investigado num dado momento e contexto da evolução de uma ciência. Ora, as causas da desonestidade foram aqui o racismo e o nacionalismo, a sede de notoriedade científica e social e o desejo de confirmação de teorias já formuladas. «As fraudes científicas com sucesso geralmente partilham dois aspectos: caucionam convicções problemáticas mas desejadas e acentuam orgulhos locais e patriotismo.» (Milner, 1990, p. 363). Uma vez aceitada a validade do material apresentado, tornava-se implícito que «em Inglaterra tinham vivido humanos de aspecto moderno ainda antes que os homens de neandertal tivessem surgido no continente.» (Gould, 1983, p. 231).

Quando uma teoria suscita exaltação ideológica, os investigadores postos ao seu serviço retiram-se quase sempre do tecido da ciência e preocupam-se mais com a demonstração de objectivos do que com o rigor dos métodos. Por isso, as fraudes foram comuns em ciência, e sobretudo nos ramos da ciência que se ocupam da origem e evolução do homem e de comparações inter-étnicas3. As falsificações neste domínio surgem invariavelmente ao serviço de ambições pessoais baseadas em teorias de conteúdo ideológico, de crenças e reivindicações de um grupo, ou da autoridade manipulativa do governo de um estado. Não esqueçamos que Piltdown consagrava as teorias de Keith e Elliot Smith sobre a preeminência da cerebralização no processo evolutivo, e as ideias de Henry Fairfield Osborn quanto a uma origem centro-asiática da humanidade, contrariando a origem africana, postulada por Darwin.

Hoje, numa sociedade em que tudo se torna mercadoria e em que a investigação precisa de verbas consideráveis e pode constituir um motor poderoso para a indústria, a frequência da falsificação em ciência tende a crescer, sob máscaras mais ou menos discretas: ocultação e destruição de provas que provem o bem fundado de teorias alheias colidindo com as próprias; processos de manipulação e influências prejudicando a concessão de meios de investigação a terceiros; publicação premeditada de mentiras.

Toda a história da ciência foi percorrida por manipulações tendentes a distorcer a realidade, havendo gradientes e antíteses na impostura em ciência. A fraude representa apenas o culminar de um processo de delinquência científica cuja base comporta: a sobrevalorização de trabalhos e observações (por vezes fantasiados, como na monografia de Carl von Linné sobre a sua viagem à Lapónia, subsidiada pela Academia Sueca); o retocar de dados, visando ajustá-los melhor às predições (às vezes demasiado, como aconteceu com Mendel); o plagiato e a apropriação de ideias alheias sem citar os autores (o que sucedeu com Tschermak e Correns, e esteve perto de acontecer com Hugo de Vries, em relação à monografia de Mendel); a manipulação material de animais de experiência (por exemplo, Kammerer, 1924, procurando forçar a demonstração de uma tese neolamarckista) – conjunto de atitudes a que poderemos chamar de ilicitude de construção; mas também a forja de dados destinados a refutarem conclusões válidas ou a sustentarem hipóteses absurdas de terceiros (o caso recente de Reiner Protsh von Zieten, em Frankfurt, falsificando datações por forma a dar crédito à hipótese errónea de híbridos férteis entre neandertais e homens modernos – cf. The Guardian, de 19 de Fevereiro de 2005), o furto de materiais fundamentais (o caso, também actual, do roubo e danificação dos fósseis de Homo floresiensis por Teuku Jacob, na Indonésia) – o que se poderá denominar de ilicitude de destruição.

Assim, os métodos ilícitos acompanham o processo de desenvolvimento da ciência e representam uma vertente a ter em conta na avaliação da informação científica em cada domínio e em cada período, tendo-se constituído recentemente um campo de investigação e reflexão sobre este tema (Broad & Wade, 1983; Judson, 2004; Greenberg, 2005). Para credibilidade científica plena, torna-se claro que é essencial preservar dois aspectos estreitamente inter-relacionados e que devem ser presentes em todo e qualquer momento da pesquisa: o rigor da metodologia, e a ética (devida à comunidade científica, aos seres vivos, à natureza em geral, e à própria ciência). E ainda assim, no dizer de Le Gros Clarck, «a história de Piltdown tem afinal um lado positivo: porque a sua detecção levou ao desenvolvimento de um conjunto de técnicas que serão no futuro de grande valia na determinação da idade de fósseis genuínos e tornarão impossível a quem quer que seja repetir semelhantes falsificações.» (In Trinkaus & Shipman, 1993).

III. Como explicar que o ludíbrio de Piltdown permanecesse intocável durante tão longo tempo, apesar dos avanços da ciência e da multiplicidade dos achados autênticos? A causa da longa resistência da fraude ao desmascaramento residiu muito provavelmente no seu carácter multi e interdisciplinar, delineando e antecipando o próprio cenário transdisciplinar da paleoantropologia, que hoje combina elementos e saberes encadeados de ciências da Terra, da vida, do homem e da linguagem, numa rede tridimensional cujos métodos se entrecruzam e em que os conhecimentos de uma área confirmam, infirmam, corrigem e precisam os que provêm de outras áreas (Vieira, 1995).

De facto, em Piltdown combinaram-se conhecimentos de anatomia comparada, anatomia funcional e paleopatologia (o patologista Samuel G. Shattock, do Royal College, concluiu que o espessamento do ossos da calote craniana apresentada se devia a uma doença) com saberes da paleontologia e geologia, química, arqueologia e bioestratigrafia; e ainda uma subtil e judiciosa manipulação museológica, e enfim ideológica junto das sociedades científicas e da opinião pública.

Houve que premeditar e planear a mistificação segundo uma estratégia persuasiva: escolher, procurar, subtrair de museus vários, reunir e falsificar activamente os materiais ajustados aos desígnios fraudulentos; dispô-los dolosamente e criar circunstâncias favoráveis à sua larga divulgação; convencer o público culto, e mesmo o público especializado, de que eram autênticos; atribuir-lhes valor de prova para teorias preexistentes; subtrair das vistas o material, encarcerando-o nos cofres do Museu Britânico e prevenindo assim observações directas de cientistas independentes; gerir a cronologia dos achados, a sua divulgação, as reacções suscitadas; enviar notícias e comentários consentâneos para a imprensa geral e científica; atender ao impacto causado no estrangeiro; e finalmente explorar o poder da aliança entre os paradigmas proclamados e a ideologia dominante, alimentando o desejo inconsciente da opinião pública e trazendo-lhe a caução do prestígio científico com o rigor dos seus métodos.

Todo este processo implicou reunir fósseis de diversa proveniência, a mandíbula de um antropóide actual e um crânio patológico; desgastar os dentes, dando-lhes o falso aspecto de um padrão de desgaste humano; fracturar crânio e mandíbula, descartando os pontos por onde a verdade seria facilmente restabelecida; obter os utensílios líticos; ferver todo o material numa solução de dicromato de potássio; enterrar as peças nos locais propícios; orquestrar o seu sucessivo aparecimento e o tempo e modo da sua apresentação às sociedades científicas, gerindo as próprias diferenças de expectativa e de opinião dos especialistas envolvidos– sempre em nome de paradigmas teóricos, que partilhavam a convicção, então dominante no Reino Unido, de que o desenvolvimento do cérebro dirigira a evolução humana e de que essa linhagem superara todas as outras, excluindo selectivamente espécies colaterais (como os neandertais, antigos habitantes do continente) e as então supostas raças de primitivos actuais (fueguinos, pigmeus africanos, andamanêses, lapões, etc.) e evoluíra em Inglaterra desde uma alta antiguidade.

O mais surpreendente é que, após a proclamação do Eoanthropus, os figurantes do grupo inicial – que constam do célebre retrato por John Cook: de pé, Frank Barlow, o autor dos moldes, Grafton Elliot-Smith, Charles Dawson, Arthur Smith Woodward; sentados, Underwood, especialista dentário, Arthur Keith, de bata, no centro do quadro, o zoólogo Pycraft e o museólogo Edward Ray Lancaster, todos sob o olhar de Darwin, num quadro em mise en abyme na parede ao fundo – acentuaram expectativas e interpretações diversas que os afastaram uns dos outros e de uma presumível ideia comum jogada a priori como núcleo da fraude. 

Essas mesmas divergências entre alguns dos hoje suspeitos acabaram por juntar credibilidade ao ardil, que evoluiu a partir de certa altura com uma dinâmica própria – como se cada um extraísse dele as consequências que lhe aproveitassem e as vantagens que concedesse à sua visão dos factos evolutivos. Assim, Keith e Elliot Smith opuseram-se acerbamente um ao outro quanto às proporções crânio-faciais da quimera que tinham reconstituído; e, antes do aparecimento do canino direito descoberto por Teilhard, Woodward previra um canino de talhe antropóide e Keith um dente humano; enfim, Smith Woodward fora viver para perto de Piltdown Common para mais assiduamente participar das futuras prospecções no terreno!

Os teóricos do Homem de Piltdown. Pintado por John Cooke em 1915. Fileira de trás: (da esquerda para a direita) F. O. Barlow, G. Elliot Smith, Charles Dawson, Arthur Smith Woodward. Fileira da frente: A. S. Underwood, Arthur Keith, W. P. Pycraft e Sir Ray Lankester.
Atendendo a este conjunto de elementos, parece-nos que a fraude de Piltdown, a mais insidiosa das mistificações científicas e a de mais nefastas consequências para a ciência da evolução humana, não foi tarefa para um só homem – contra o que muitos autores pretenderam e pretendem – mas para um extenso grupo multidisciplinar, em que alguns dos intervenientes agiram no terreno, outros nos gabinetes do Museu Britânico e nos bastidores das sociedades científicas, outros enfim na sombra; e que foram conseguidas conivências e aquiescências museológicas, universitárias e de altas instâncias do poder.

NOTAS:

1 Na sua extensa obra escrita, largamente divulgada nos anos 50 e 60, e que despertou viva curiosidade em círculos cristãos, avultam sínteses teóricas sobre a origem e evolução humanas – Le phénomène humain, L’avenir de l’homme, e outros livros. Mais tarde, Chardin acompanhou as investigações de campo na China, quando da descoberta do então denominado Sinanthropus, na caverna de Zukudien, perto de Pequim.   
2 Gould veio à Europa investigar o caso Chardin, e falou com investigadores que tinham conhecido o célebre jesuíta - como o zoólogo Pierre-Paul Grassé e o paleontólogo Jean Piveteau. Ambos lhe afirmaram que o padre Teilhard de Chardin tinha da ciência tão alto ideal que jamais seria conivente numa fraude. O mesmo nos disse a este respeito o padre Manuel Antunes, que conhecera Chardin. 
A Arqueologia constitui a este título uma ciência «perigosa» e sujeita a pressões por vezes tremendas. Na China actual, por exemplo, os arqueólogos têm sido intimidados e perseguidos quando as suas descobertas refutam as teses oficiais sobre o passado do país; e no Japão foi decretada a proibição de prospectar os túmulos imperiais, cuja localização é em geral conhecida, sob vários pretextos que encobrem uma razão central: há justificadas razões para supor (e a antropologia molecular decidi-lo-ia sem lugar para dúvidas) que os primeiros imperadores foram de origem coreana! 

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