domingo, 15 de março de 2020

Nísia Floresta e a questão da emancipação feminina pelo viés educacional

Nísia Floresta e a questão da emancipação feminina pelo viés 
educacional


Dra. Mônica Karawejczyk


Obs: as imagens presentes no texto foram escolhidas por mim para ilustrar o trabalho da autora. 


Nísia Floresta Brasileira Augusta, pseudônimo de Dionísia de Faria Rocha nasceu em Papary, interior do Rio Grande do Norte, em 1810. Foi uma figura singular na sua época. Residiu em diversas cidades, entre elas, Olinda, Recife, Porto Alegre e Rio de Janeiro antes de se mudar para a Europa e residir na França, na Itália e em Portugal, até falecer em Rouen (França), em 1885. Segundo Constância Duarte,1 a escolha do pseudônimo

“revela a personalidade e as opções existenciais da autora. Nísia, de Dionísia; Floresta, para te consigo lembranças da infância passada no sítio Floresta; Brasileira, como uma afirmação de seu sentimento nativista; e Augusta, numa provável homenagem de afeto e fidelidade ao companheiro Manuel Augusto”. (1995, p. 24).

Retrato de Nísia Floresta
Nísia foi uma grande educadora preocupada com a educação da mulher, chegando a fundar e a dirigir um

“colégio para moças no Rio de Janeiro, e escrevia livros e mais livros para defender os direitos não só das mulheres, como também dos índios e dos escravos. [...] O fato de estar à frente do seu tempo vai lhe custar o não-reconhecimento do seu talento, por isso seu nome não consta na história da Literatura Brasileira, como escritora romântica, e muito menos na história das mulheres, ou da educação feminina, como educadora. [...] Teve quinze títulos publicados, entre poemas, romances, relatos de viagens e ensaios – em português, francês e italiano”. (DUARTE, 2005, p. 14-16).

Tal como aponta a pesquisadora Constância Duarte, desde 1830, Nísia já era conhecida no Brasil e causava polêmica por onde passava. Além disso, Duarte também aponta que Nísia

“deve ter sido uma das primeiras mulheres no Brasil a romper os limites do espaço privado e a publicar textos em jornais da chamada grande imprensa. [...] Sua presença constante na imprensa, desde 1830, comentando questões polêmicas de sua época”. (DUARTE, 2005, p. 14-15).

Essa era uma situação não muito usual às mulheres ocidentais na época em questão.

No ano de 1832, Nísia foi a responsável pela divulgação da versão do livro intitulado Vindications of the rights of woman da inglesa Mary Wollstonecraft.2 A versão escrita por Nísia recebeu o título de Direitos das mulheres e injustiça dos homens e não era uma “simples tradução do texto”, mas uma adaptação do mesmo à realidade nacional.3 Raquel Araújo chega a denominar tal obra como uma “antropofagia literária” que consiste na apropriação de um texto não para produzir uma réplica, mas para transformá-lo com elementos da cultura local.4 Tal façanha literária conferiu a Nísia o epíteto de “precursora do feminismo”, não somente no Brasil, como também na América Latina.5

Capa de uma edição do livro Direitos das Mulheres e Injustiça dos Homens, escrito por Nísia Floresta e publicado originalmente em 1832. 
As diferenças gritantes entre a obra original e a sua tradução são assinaladas tanto por Constância Duarte quanto por Raquel Araújo que tem se dedicado a pesquisar tais obras atualmente. Tanto Mary Wollstonecraft quanto Nísia Floresta procuraram acentuar a importância da mulher na sociedade e o papel secundário relegado a elas, mas, enquanto o objetivo final de Wollstonecraft parece ter sido o de exigir uma educação de igual qualidade para homens e mulheres, para Nísia a educação seria um meio para aperfeiçoar as virtudes da alma feminina e, assim, provar a sua própria superioridade sobre os homens.

Curiosamente, uma das vindicações6 mais importantes assinaladas por Mary em sua obra é omitida na versão de Nísia Floresta. Essa se refere a uma maior participação política das mulheres feita pela autora inglesa. Contudo, esse ponto deve ser entendido pela diferença dos contextos históricos vividos pelas autoras. Enquanto Mary Wollstonecraft escreve seu manifesto na Inglaterra, durante a vigência da Revolução Francesa e, após ter, provavelmente, assistido às manifestações ocorridas na França por uma maior participação política e quem sabe ainda tenha buscado inspiração na leitura dos Direitos da mulher e da cidadã, da francesa Olympe de Gouges,7 Nísia Floresta se vê num Brasil recém liberto da sua situação de Colônia, um lugar onde tudo estava por fazer, e as instituições ainda não estavam consolidadas. Poucos eram os que participavam (ou mesmo que se interessavam em participar) do mundo político no começo da vida política do Brasil imperial. A própria Constituição de 1824 restringiu, e muito, os personagens que poderiam fazer parte do mundo político e definiu a baixa participação popular.8

Assim, uma das principais vindicações de Nísia Floresta, nessa obra, foi por uma valorização da mulher pela educação. Aliás, esta foi a sua principal bandeira por toda a vida: a busca pela igualdade de oportunidades no campo educacional para as mulheres.9 A falta de uma educação formal era vista por Nísia como a fonte dos males e a grande responsável pela discriminação da mulher, uma vez que, somente em 1827, a primeira legislação, que tocava no assunto da educação feminina, havia sido promulgada.10 (HANHER, 2003, p. 78). Constância Duarte é uma das autoras que acentua esse ponto na sua análise das obras de Nísia Floresta. Segundo Duarte, a própria Nísia delimitou com clareza o seu próprio papel de educadora, buscando combater a ignorância a que a mulher se via imersa nos idos de 1800. Duarte assim resume o papel atribuído, pela própria Nísia Floresta, ao seu trabalho e aos escritos:

“A tarefa a que se atribuía não incluía ainda a promoção da mulher enquanto cidadã nem a conquista de direitos sociais, de modo a alterar, aí, a posição da mulher na sociedade. A preocupação em 1832 parece ter sido mais a de contribuir para desfazer os preconceitos e o mito de incapacidade intelectual feminina existentes na época”. (1995, p. 175-176).

O combate da ignorância a que a mulher era submetida também foi o mote de luta de outra mulher, Maria Lacerda de Moura, quase um século depois, nas décadas iniciais do século XX. Moura foi também uma “educadora, convencida de que a educação é uma força revolucionária e de que sua missão seria exercê-la”. (LEITE, 2005, p. 15). Contudo, o pioneirismo de Maria de Moura foi na área de estudos sobre a condição feminina, divulgando a luta empreendida pela extensão do direito à cidadania, mas principalmente,

"a necessidade de resistência ao papel exclusivo para a mulher de procriadora e o esclarecimento de seu direito ao amor e ao casamento de livre escolha, a necessidade de uma maternidade consciente e aos problemas da solteirona e da prostituta, provocados pela família burguesa". (LEITE, 2005, p. 17).

A escritora e professora feminista Maria Lacerda de Moura, foi influenciada pela obra e trabalho de Nísia Floresta.
Maria Lacerda de Moura tomou parte dos primeiros movimentos organizados em prol do sufrágio feminino ao lado de Bertha Lutz, em 1919, mas logo se desvinculou desse movimento porque “seu objetivo era outro: queria conscientizar as mulheres de sua condição de servidão à família e conduzi-las à participação social”. (LEITE, 2005, p. 17).

A conquista da educação foi encarada como uma das maneiras de se conseguir a emancipação feminina. Um claro exemplo da importância desse ato pode ser conferido na análise feita por Mariana Coelho, na década de 30 (séc. XX), pois, segundo suas palavras,

“o edifício das conquistas político-sociais, que a mulher vem construindo – principalmente desde a guerra mundial, com uma celeridade pasmosa, está bem firme e bem assente porque o seu principal alicerce, já hoje bastante sólido, foi cimentado na igualdade da instrução difundida entre os dois sexos”. (2002, p. 111).11

Assim, parece se destacar, na questão da emancipação da mulher, a tomada de consciência da situação de inferioridade feminina em relação ao homem, ocorrida pela via da igualdade da educação entre os gêneros, que tem sido vista como uma das, senão a principal, conquista das mulheres.

Branca Moreira Alves é outra autora que aborda esse ponto ao salientar que Nísia Floresta pregava a emancipação feminina através da educação. Todavia, para essa estudiosa o feminismo de Nísia Floresta “mesclava-se à visão romântica da mulher dedicada ao amor, ao lar, ao marido e filhos”. (1980, p. 88). No entanto, como esperar um posicionamento díspar da sua época? Como exigir que Nísia Floresta, apesar do seu pioneirismo e ousadia, tivesse uma visão de mundo tão diferente daquela por ela vivenciada e apreendida? Um aparte, aqui, se faz necessário para se compreender tal ponto.

O sociólogo alemão Norbert Elias, no seu livro dedicado ao músico Wolfang Amadeus Mozart, alerta que “não devemos nos iludir julgando o significado, ou falta de significado, da vida de alguém segundo o padrão que aplicamos à nossa própria vida”. (1995, p. 10). Elias procura demonstrar que não se pode compreender uma pessoa e os atos por ela tomados, senão no contexto em que eles aconteceram. Nada é desvinculado do todo. Se uma dada manifestação ocorreu foi somente porque havia condições para que ela ocorresse naquele exato momento e naquela época determinada. Sem tirar a genialidade ou o pioneirismo de ninguém, o que se quer aqui assinalar é como o conflito de padrões, a que se refere o autor, deve ser levado em conta quando fazemos nossa análise do passado.

Elias também chama a atenção que não se deve utilizar, ou ainda, cristalizar, conceitos estáticos para se compreender o passado ou as pessoas que ali viveram. Não se deve esperar encontrar posicionamentos e visões de mundo de nossa época em outra tão diferente, pois isso pode impedir “nossa compreensão do significado que, num tempo passado, o curso dos eventos tinha para os próprios seres humanos que os viviam”. (ELIAS, 1995, p. 16).

Apesar de Elias estar se debruçando, em específico, sobre a vida individual de uma pessoa (no caso Mozart), creio ser correto extrapolar as suas considerações para o caso aqui analisado. Quero enfatizar que ideias, tais como: discriminação ou ainda a percepção da diferença de tratamento entre os sexos, estavam de alguma forma circulando em terras brasileiras desde muito antes do que se pensa. Uma figura como Nísia Floresta não poderia surgir sem que houvesse as condições necessárias para acolher as suas ideias, mesmo que essas a tivessem levado a buscar um tipo de “exílio voluntário” na Europa em busca de “outros ares”.12

Creio que não se poderia esperar outra atitude, que não a exaltação do papel da mulher como mãe e educadora para a época em questão, ou seja, o começo do século XIX. Tal como adverte June Hahner, no seu estudo sobre as mulheres brasileiras,

“o passado das mulheres não pode ser estudado num vácuo. As mulheres foram uma parte da sociedade em que viveram e cujos valores absorveram. Devemos esforçar-nos em aprender como sua experiência distinta afetou essa absorção, não as isolando de seu cenário histórico”. (1981, p. 17).

Ao dar ênfase à diferença de tratamento entre os sexos e ao querer assegurar uma suposta superioridade feminina sobre os homens, Nísia Floresta deixa entrever muito da sua época e de seus ideais. Ao enfatizar e mesmo ao exaltar o papel da mulher, ela não poderia, de modo algum, o desvincular do seu papel tradicional de provedora. Provedora do lar, dos filhos e do marido. Como esgarçar e mesmo romper o tecido social que fora já, há muito tempo, tramado? Como esperar outra atitude que não a primeira de todas? Duarte também se pergunta: “Como pleitear emancipação política se as mulheres ainda precisavam ser alfabetizadas?” (1995, p. 175).

De modo que o papel desempenhado por Nísia Floresta nessa trama da emancipação feminina deve ser entendido no seu contexto. A questão que aqui se apreende é: tal tomada de consciência da diferença de tratamento entre homens e mulheres e a sua subsequente reivindicação por igualdade, pelo menos no quesito educacional, poderia levar, mais tarde, a outras tomadas de posição e contestações? Como bem relembra Roderick Barman, no século XIX,

“o casamento era o destino da maioria das mulheres ocidentais [...]. A missão de vida da mulher consistia em prestar apoio, conforto e lealdade ao marido e em gerar e criar seus filhos. As mães educavam as filhas não só para contar com esse destino, mas também para aceitá-lo de bom grado. [...] Aos olhos da sociedade, o casamento conferia status e certa influência à mulher”. (2005, p. 78).

Como se percebe da leitura do excerto acima, o casamento e os filhos eram uma das preocupações mais constantes na vida das mulheres e não só no início do século XIX. Esse fato (apesar de poder ser considerado como uma obviedade para muitos) ainda era citado no fim do século como um dos mais básicos objetivos a serem alcançados pela mulher, tal como se pode constatar no artigo intitulado “Ser mãe”, publicado no jornal A Família, de autoria de Julia L. de Almeida:

Ser mãe é:
Renunciar a todos os prazeres mundanos, aos requintes do luxo e da elegância, aos espetáculos em que se ri ou em que se chora, mas em que o espírito se deleita e se abre avidamente, com a sofreguidão dos sequiosos; é deixar de aparecer em bailes, de valsar, de ir a piqueniques sem temer o sol, o vento, a chuva, uma independência feliz; é passar as noites num cuidado incessante, em sonos curtos, leves como o pensamento sempre preso à mesma criaturinha rósea, pequena, macia, que lhe magoa os braços, que a enfraquece, que a enche de susto, de trabalhos e prevenções, mas que a faz abençoar a ignota providência de a ter feito mulher para ser mãe. (Apud BERNARDES, 1998, p. 170).

A maternidade, exaltada e execrada no excerto acima, era extremamente valorizada, e isso se deve não só à doutrina cristã, mas também ao papel que a mulher tradicionalmente ocupou na sociedade. E não só no Brasil, também na Europa, esse era o papel mais “desempenhado” pela mulher, tal como se pode constatar neste trecho que descreve a participação das mulheres na sociedade, até as primeiras décadas do século XX, na parte ocidental da Europa:

"O que caracterizava sua vida [das mulheres] era a impossibilidade de separar as funções familiares e o trabalho. Estas eram levadas a efeito num único ambiente, no qual a maior parte dos homens e mulheres realizavam suas tarefas sexualmente diferenciadas – tanto naquilo que hoje consideremos “casa” como na “produção”. Os agricultores precisavam das esposas para o trabalho da fazenda, bem como para cozinhar e criar os filhos; e os mestres-artesãos e pequenos lojistas necessitavam delas para conduzir seu comércio. Se existiam ocupações que reuniam homens sem mulheres, durante longos períodos [...] não existiam ocupações puramente femininas [...] que não fossem, normalmente, levadas a efeito a maior parte do tempo, dentro de uma casa. [...] Na medida em que o grosso das mulheres do mundo continuavam a viver desse modo, agrilhoadas pelo duplo trabalho e pela sua inferioridade em relação ao homem, pouco há que dizer sobre elas que não se dissesse igualmente nos tempos de Confúcio, Maomé ou do Velho Testamento". (HOBSBAWM, 2009, p. 276-277).

Observa-se, nessa descrição de Hobsbawm, que o trabalho de cuidar da casa e ser mãe – dentro do ambiente doméstico – parece ter influenciado de forma contumaz na vida das mulheres, até mesmo nas suas reivindicações políticas, tal como veremos nos próximos capítulos. O ritmo de vida13 das mulheres europeias e brasileiras bem mostra a interdependência dos vários papéis impostos a ela, com ênfase especial ao papel de mãe-educadora.

Como bem lembra Maria Lygia Quartim de Moraes sobre o tema da maternidade, “ser mãe, no entanto, é uma noção culturalmente construída, que envolve muito mais do que o simples ato biológico da reprodução”. (2003, p. 500). De modo que não me parece demasiado supor que a primeira reivindicação feminina tenha sido pela igualdade de educação, almejando, quem sabe, uma vida melhor para suas próprias filhas. Um ponto que vale a pena ser relembrado é que a ideia tradicional “que a maternidade não exigia aprendizado” foi, ao longo do século XIX, sendo cada vez mais posta em dúvida, tal como explicita June Hahner. Essa autora acentua a relação que aconteceu, ao longo de todo o século, entre o fato de se instruir as mulheres para que elas modelassem os homens de amanhã. Assim, “aliando maternidade a progresso e patriotismo, os brasileiros partidários da modernização ofereciam às mulheres um papel mais significativo na vida da nação, desde que elas o desempenhassem em seus lares”. (HAHNER, 2003, p. 124-125). Esse papel de educadora dos homens de amanhã também era acentuado pela doutrina positivista que tanto influenciou no coração e na mente dos homens brasileiros durante boa parte do século XIX.

Voltando ao tema participação política, quero ressaltar que, no ano em que Nísia Floresta publica sua versão do livro de Mary Wollstonecraft (1832), a ideia do sufrágio universal estava ainda distante e não só nas terras brasileiras. Essa discussão ainda não tinha muita força no mundo ocidental de modo geral. Foi somente com as revoluções que ocorreram em 1848 (que convulsionaram o continente europeu) que a busca por uma maior participação na vida política se firmou como uma das reivindicações básicas do novo mundo que se descortinava. Em terras brasileiras, também ocorreram muitas revoltas e contestações de Norte a Sul e que abalaram o império, entre as décadas de 30 e 40 (séc. XIX), tais como a Guerra dos Farrapos, a Sabinada e a Balaiada.

O exemplo de Nísia Floresta foi aqui apresentado para que se pudesse perceber que o tema emancipação feminina já estava presente desde o início do século XIX, mesmo que, num primeiro momento, a questão da participação da mulher no mundo político ainda não fosse mencionada. Nesse primeiro momento de reivindicações femininas no Brasil, não se refletia seriamente sobre o afastamento do mundo político, que alijava grande parte da população do seu meio e não só as mulheres.

Outro ponto destacado na trajetória de Nísia Floresta foi a sua aproximação com Auguste Comte. Essa se deu em meados de 1850, quando ela já se encontrava na França. Constância Duarte informa que foi na segunda viagem de Nísia Floresta à França (1856) que a autora estreitou relações com Auguste Comte. Inclusive, as célebres correspondências trocadas entre Comte e ela são datadas entre os anos de 1856 e 1867. As cartas que Comte escreveu a Nísia Floresta estão sob a guarda do Apostolado Positivista do Brasil, na cidade do Rio de Janeiro, e as respostas dela, na Maison d’Auguste Comte, em Paris, segundo Duarte: “Esta correspondência [...] resume-se a cartas de cortesia, contendo agradecimentos pela remessa de um retrato ou de um livro, pêsames pelo aniversário de morte de Clotilde de Vaux e alusões a doenças e tratamentos.” (1995, p. 46). Ainda sobre essa temática, Duarte afirma que primeiro houve o contato da brasileira com as teorias positivistas; só mais tarde conhecerá pessoalmente o filósofo. Em 1851, ela era uma das pessoas interessadas que afluíam ao auditório Palais Cardinal, para as conferências do Curso de História Geral da Humanidade que Comte ministrava divulgando seu pensamento. E só em 1856 se aproxima do filósofo, quando, então, confessa ter se impressionado muito com a filosofia positivista. (1995, p. 38).14

Augusto Comte, filósofo francês e fundador do Positivismo. Comte se correspondeu com Nísia por alguns anos. Sua filosofia positivista influenciou o trabalho de Nísia. 
Tal aproximação pode ter se dado pelo destacado papel tanto da educação quanto da mulher proposto pelo positivismo, assuntos muito caros para Nísia Floresta. Duarte conjectura que as propostas de Nísia Floresta para a educação feminina (que foram divulgadas nas suas obras) “poderiam se resumir no desempenho satisfatório dos tradicionais papéis femininos”. (1995, p. 176). A doutrina positivista também reforçava o papel tradicional da mulher, de dona de casa e mãe de família, apesar de valorizá-lo e de o enaltecer, o que talvez explique a admiração de Nísia Floresta pelos ensinamentos de Comte.

Assim, a contribuição de Nísia Floresta deve ser exaltada nesta, que foi a primeira das reivindicações femininas: a educação igualitária entre homens e mulheres. Apesar de sua conquista ainda ter demorado algumas décadas para acontecer no Brasil, considero que foi através de seu embate que a questão da emancipação feminina pode ser cada vez mais debatida, compreendida e apreendida pelas brasileiras. Levando a novas reivindicações, tais como o direito de participar de forma ativa da vida pública do País e até o direito de votar.

NOTAS:
1 Constância Duarte é a responsável pela redescoberta da obra de Nísia Floresta. Atualmente, é professora de Literatura Brasileira na UFMG. Desde 1980, quando da feitura de sua Tese de Doutoramento em Literatura Brasileira, na USP (defendida em 1991), tem se dedicado a publicar livros sobre Nísia, entre os quais destaco: Nísia Floresta: vida e obra, 1995; Literatura feminina do Rio Grande do Norte: de Nísia Floresta a Zila Mamede, 2001; Nísia Floresta: a primeira feminista do Brasil, 2005. Também organizou e publicou os seguintes livros da escritora potiguar: Direitos das mulheres e injustiças dos homens, 1989; A lágrimade um caeté, 1997; Cintilações de uma alma brasileira, 1997; Itinerário de uma viagem à Alemanha, 1998, e Cartas: Nísia Floresta & Auguste Comte, 2002. Recebeu o título de Cidadã Norte-Rio- Grandense, em agosto de 2010, pela Assembleia Legislativa do Rio Grande doNorte em reconhecimento ao seu empenho.
2 Nos dias atuais é considerada como uma das obras fundadoras do feminismo mundial.
3 Direitos das mulheres e injustiça dos homens mais do que uma tradução é considerada a primeira obra da autora. Além disso, é importante assinalar que o alcance da obra parece ter sido grande na época em que foi publicada, uma vez que foi citada no romance A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo, escrita no ano de 1844. Como aponta Raquel Martins Borges Carvalho Araújo, na sua pesquisa realizada para o Grupo de Pesquisa “Vozes Femininas”, do Departamento de Teoria Literária e Literaturas da Universidade de Brasília (UnB), o manifesto de Wollstonecraft até hoje não foi traduzido para o português, tendo somente recebido a “tradução livre” feita por Nísia Floresta Brasileira Augusta em 1831, 40 anos depois de ter sido publicado na Inglaterra. Raquel Araújo fez uma análise comparativa das duas obras apontando suas diferenças e similitudes em artigo publicado no site do grupo na internet com o título “Mary Wollstonecraft e Nísia Floresta: diálogos feministas”. O resultado de sua pesquisa também foi apresentado no Simpósio Temático Direitos Humanos e Gênero, no dia 26 de agosto de 2010, no Congresso Internacional Fazendo Gênero 9, na cidade de Florianópolis. O livro de Nísia Floresta também recebeu várias reimpressões sendo uma delas feita enquanto residia em Porto Alegre, em 1833 e outra em 1839, no Rio de Janeiro.
4 Raquel Araújo parece fazer um trocadilho com uma expressão utilizada por Constância Duarte: “antropofagia libertária”. Ver mais em DUARTE, Constância Lima. Posfácio: nos primórdios do feminismo brasileiro. In: FLORESTA, Nísia. Direitos das mulheres e injustiças dos homens. 4. ed. São Paulo: Cortez, 1989. p. 107. A expressão também é utilizada em DUARTE, Constância L. Nísia Floresta: a primeira feminista do Brasil. Florianópolis: Mulheres, 2005. p. 18.
5 Constância Duarte faz uma ressalva que deve ser levada em consideração sobre essa questão ao comentar sobre a precocidade da atuação de Nísia: “Pode até ser que as reivindicações femininas não tenham começado em 1832 com essa publicação. Preferimos mesmo acreditar na capacidade de resistência da brasileira e achar provável que tenham existido outras manifestações cujos registros se perderam ao longo dos séculos.” (DUARTE, Nísia Floresta: vida e obra..., p. 166).
6 Segundo a definição do dicionário online Priberam da Língua Portuguesa, vindicação é o ato de vindicar, ou seja, de reclamar uma coisa que nos pertence e que está entre as mãos de outrem, ou ainda, de exigir o reconhecimento ou a legalização de uma coisa, ou ainda, tem o significado de recuperar, reivindicar, justificar e defender. Disponível em: <http://www.priberam.pt>.
<http://www.priberam.pt>.
7 Olympe de Gouges é o pseudônimo da francesa Marie Gouze (1748-1793). Em 1791, publicou o manifesto “Les Droits de la Femme et de La Citoyenne” como uma forma de contestação da Declaração dos Direitos dos Homens e do Cidadão, de 1789. Nele ela conclamou as mulheres à luta e reivindicou os mesmos direitos que os homens. Na fase conhecida como “Reinado do Terror” da Revolução Francesa, foi guilhotinada em 3 de novembro de 1793, por ser considerada “perigosa”, principalmente por suas ideias de igualdade de tratamento para as mulheres. Sua sentença acusava-a de “ter querido ser homem de Estado e ter esquecido as virtudes próprias do seu sexo”. (ALVES, Branca M.; PITANGUY, Jacqueline. O que é feminismo? São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 34). Quanto à
inspiração de Mary Wollstonecraft para o seu manifesto, lanço apenas conjecturas, uma vez que, segundo Constância Duarte, não foi encontrada nenhuma referência ao texto de Olympe de Gouges nem em sua obra nem em suas correspondências.
8 Aliás, em todo período imperial, a participação política foi muito baixa, os únicos dados existentes sobre o comparecimento eleitoral na época imperial são as das eleições de 1886, e esses mostram que o comparecimento era de menos de 1% da população. (NICOLAU, Jairo. História do voto no Brasil. Rio de Janeiro: J. Zahar Ed., 2004. p. 24).
9 Ainda que esse não fosse tão amplo como exigia Mary Wollstonecraft na Inglaterra. A educação formal das meninas no Brasil baseava seus programas em ensinamentos de língua estrangeira (quase sempre o francês), corte e costura, música, prendas domésticas e alguma coisa de aritmética. Existia uma grande diferença entre os currículos das escolas primárias femininas e masculinas e não era admitida a coeducação. Ver mais em (SAFFIOTI, Heleieth I. B. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. Petrópolis: Vozes, 1976. p. 187-204). Já LOURO, Guacira L. Mulheres na sala de aula. In: PRIORE, Mary Del (Org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2000. p. 447, aponta que somente no fim do século XIX é que a educação da mulher foi vinculada “à modernização da sociedade, à higienização da família, à construção da cidadania dos jovens”.
10 A lei de 1827 admitia que as meninas cursassem somente a escola elementar. Somente em 1879 é que seriam admitidas mulheres no Ensino Superior no Brasil.
11 Correspondências trocadas entre Mariana Coelho e Bertha Lutz (presidente da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF)) encontradas no fundo da FBPF (Arquivo Nacional – RJ) atestam a constante troca de ideias e sugestões entre essas mulheres na feitura desse livro, publicado, originalmente, em 1933.
12 Constância Lima Duarte, ao comentar esse exílio de Nísia Floresta em 1849, também faz conjecturas sobre as razões do mesmo, levantando algumas hipóteses, tais como: a necessidade de “uma mudança de ares” para a filha que estava em tratamento médico, ou ainda, pela campanha difamatória que estava sofrendo no Brasil, depois de ter publicado um livro em que elogiava uma revolução contrária aos interesses do Imperador ou mesmo uma mistura dos dois. Segundo Duarte, “a mãe preocupada era também a escritora polêmica, e a ideia de tal viagem pode ter sido vista como conveniente para todos”. (DUARTE, C. L. Nísia Floresta: vida e obra. Natal: Ed. da UFRN, 1995. p. 36-37).
13 Expressão utilizada por ELIAS, Norbert. O processo civilizador: formação do Estado e civilização. Rio de Janeiro: Zahar, 1993. p. 207. O autor assim define ritmo de vida: “Uma manifestação do grande número de cadeias entrelaçadas de interdependência, abrangendo todas as funções sociais que os indivíduos têm que desempenhar e da pressão competitiva que satura essa rede densamente povoada e que afeta, direta ou indiretamente, cada ato isolado da pessoa.”
14 A aproximação de Comte e Nísia Floresta também é comentada por SOARES, Mozart Pereira. O Positivismo no Brasil: 200 anos de Augusto Comte. Porto Alegre: AGE; Ed. da UFRGS, 1998. p. 88-90.

Referências:
ALVES, Branca M.; PITANGUY, Jacqueline. O que é feminismo. São Paulo: Brasiliense, 1985.
ALVES, Branca Moreira. Ideologia e feminismo: a luta da mulher pelo voto no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1980.
BARMAN, Roderick J. Princesa Isabel do Brasil: gênero e poder no século XIX. São Paulo: Edunesp, 2005.
BERNARDES, Maria T. C. C. Mulheres de ontem?: Rio de Janeiro, século XIX. São Paulo: Queiroz, 1988.
COELHO, Mariana. A evolução do feminismo: subsídios para a sua história. 2. ed. Curitiba: Imprensa Oficial do Paraná, 2002.
DUARTE, Constância L. Nísia Floresta: a primeira feminista do Brasil. Florianópolis: Mulheres, 2005.
DUARTE, Constância L. Nísia Floresta: vida e obra. Natal: Ed. da UFRN, 1995.
ELIAS, Norbert. Mozart: sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1995.
ELIAS, Norbert. O processo civilizador: formação do Estado e civilização. Rio de Janeiro: Zahar, 1993. v. 2.
HAHNER, June E. Emancipação do sexo feminino: a luta pelos direitos da mulher no Brasil: 1850-1940. Florianópolis: Mulheres, 2003.
HAHNER, June E. A mulher brasileira e suas lutas sociais e políticas: 1850-1937. São Paulo: Brasiliense, 1981.
HOBSBAWM, Eric. A era dos impérios: 1875-1914. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2009.
LEITE, Miriam L. Moreira. Maria Lacerda de Moura: uma feminista utópica. Florianópolis: Mulheres, 2005.
LOURO, Guacira L. Mulheres na sala de aula. In: PRIORE, Mary Del (Org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2000.
MORAES, Maria Lygia Quartim de. Brasileiras: cidadania no feminino. In: PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla B. (Org.). História da cidadania. São Paulo: Contexto, 2003.
NICOLAU, Jairo. História do voto no Brasil. Rio de Janeiro: J. Zahar Ed., 2004.
SAFFIOTI, Heleieth I. B. A mulher na sociedade de classes: mito e realidadePetrópolis: Vozes, 1976.
SOARES, Mozart Pereira. O positivismo no Brasil: 200 anos de Augusto Comte. Porto Alegre: AGE; Ed. da UFRGS, 1998.

Fonte: KARAWEJCZYK, Mônica. Nísia Floresta e a questão da emancipação feminina pelo viés educacional. Métis: história e cultura, v. 9, n. 18, 2010, p. 113-126. 

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