Quando os canhões começaram a se difundir pela Itália, os arquitetos militares tiveram que repensar a forma de como projetar as fortalezas e muralhas, e dessa forma surgiram as fortificações com novas estruturas as quais tinham que aguentar o dano explosivo e de impacto dos projeteis das armas de fogo, entre outras características. Com isso originou-se uma nova forma de fortificações com baluartes ou bastiões. Os quais foram uma estrutura da arquitetura militar surgida na Itália, no século XV, sendo aprimorada nos dois séculos seguintes. Os baluartes consistiam em estruturas geralmente com três pontas, as quais se projetavam dos ângulos de uma fortificação. Os baluartes permitiam ampliar os ângulos de ataque, como também gerava reforço para defender os muros em caso de cerco. (TALLET, 1992, p. 34).
Forte de Jaca, Espanha. Um exemplo de fortificação com cinco baluartes. |
“A fortaleza com bastião era uma construção “científica”, o que significava que seu projeto era feito com base em cálculos matemáticos para minimizar da melhor maneira a área da muralha que o tiro podia atingir. Portanto, o ataque tinha de ser “científico” também”. (KEEGAN, 1995, p. 337).
“Assim, uma bala disparada (em função de determinado ângulo) na direcção do horizonte seguiria inicialmente em linha recta; o projéctil iniciaria depois uma trajectória curva em função do decréscimo do ímpeto aplicado pela carga explosiva, para na terceira e última fase terminar o seu percurso segundo uma trajectória rectilínea na direcção do solo”. (SOUSA, 2013, p. 59).
“O novo sistema de fortificação teria de incorporar características que resistissem ao bombardeio e, ao mesmo tempo, mantivessem a infantaria do inimigo à distância. A solução para esse problema de diminuir a altura e aumentar a espessura foi o bastião angular, que se projetava dos muros, dominava o fosso e era suficientemente forte para não ser destruído por uma concentração de fogo inimigo”. (KEEGAN, 1995, p. 334).
Além do bastião, a arquitetura moderna também empregou novas e velhas estruturas que passaram a complementar a defesa, como hornaveques, coroas, revellins, fossos, escarpas, trincheiras, etc. cujas estruturas garantiam que os disparos viessem a ricochetear, como também serviriam de reforço para muralha, além de minimizar os “ângulos mortos”, locais que apresentavam fraqueza na estrutura (SOUSA, 2013, p. 80). No caso dos fossos, escarpas e das trincheiras, consistiam em formas antigas de manter o exército invasor à distância, inviabilizando a tentativa de se escalar os muros.
Projeto das defesas do Forte da Vila de Santos, no Brasil. |
O modelo italiano ou “traço italiano” como ficou conhecido, tornou-se referência para a construção de fortificações na Europa Ocidental. Ao invés de se fazer um forte ou fortaleza quadrangular como antes, agora fazia-se em disposição geométrica mais variada: pentágono, hexágono, heptágono, etc. Os chamados “fortes estrelas”, nome devido às suas várias pontas. Por sua vez, o bastião não apenas apresentava-se como uma estrutura de defesa nas pontas da muralha, mas também era uma estrutura na qual se armavam baterias para o ataque. Assim, ele tornava-se uma estrutura defensiva e ofensiva ao mesmo tempo (PARKER, 1994, p. 8-9).
“O pentágono, uma vez mais, permitiria chegar a um equilíbrio entre aquilo que era preconizado pela teoria e as possibilidades militares pragmáticas, alcançando-se assim uma economia de esforços. Os cinco lados permitiam construir plataformas de tiro mais espaçosas em número superior à forma quadrada, evitando-se o excesso decorrente de um circuito com seis ou oito lados que obrigaria a um maior espaçamento entre os bastiões para optimizar as linhas de fogo, aumentando a escala da cidadela para as proporções de uma cidade”. (SOUSA, 2013, p. 84).
Fortaleza de Santa Catarina, Cabedelo, no Brasil. Foto de Daniell Mendes. Essa fortificação erguida no final do século XVI, apresenta atualmente quatro baluartes e dois meio-baluartes. |
A Guerra de Flandres
Flandres é uma região atualmente situada no norte da Bélgica, fazendo fronteira com o sul da Holanda (ou Países Baixos). Todavia, a quinhentos anos, esse território foi alvo de disputas entre a República Unida dos Países Baixos contra o Império Espanhol, pois anteriormente o território das Províncias Batavas, pertencia a Espanha, e com a rebelião de sete províncias, as quais formaram uma república, popularmente chamada de Holanda, isso resultou na Guerra dos Oitenta Anos (1568-1648), fator esse, que o governo espanhol de Carlos I e seus sucessores, por vários anos tentaram retomar o controle daquelas províncias, originando a guerra de flandres, que ficou conhecida por ter influenciado na arquitetura militar e nas táticas de batalha.
“O que se entendia por guerra de
Flandres, isto é, a guerra dos Países Baixos entre a Espanha e as Província
Unidas, não esgotava obviamente as formas de conflito bélico na Europa da
primeira metade do Seiscentos. A guerra de sítio das posições estratégicas
constituía o privilégio das áreas mais desenvolvidas, como os citados Países
Baixos ou a Lombardia, que eram também os pontos quentes do equilíbrio
continental. Representando seu mais sofisticado modelo, a guerra de Flandres
foi uma guerra pelo controle das praças-fortes ao longo dos eixos fluviais que
sulcam a região; e sua arma fundamental: a artilharia e a minagem”. (MELLO,
2007, p. 247).
O aumento na quantidade de fortalezas e cidades fortificadas levou os exércitos europeus, principalmente em Flandres, França e na Lombardia, a mudarem suas táticas de batalha, variando de acordo com o contexto bélico. Nesse sentido, Parker (1994, p. 12-13) diz que em fins do século XVI começou a surgir duas formas de combate: as escaramuças promovidas por pequenos grupos (esquadrões) para se efetuar assaltos, emboscadas, encontros ocasionais, ataques rápidos, etc; e os cercos, os quais requeriam maior número de envolvidos e uma estratégia mais elaborada, pois os cercos poderiam durar dias, semanas e até meses.
No entanto, não foi apenas isso que mudou, a própria organização das companhias militares também sofreram mudanças, e na vanguarda dessa “revolução militar”, estiveram os próprios holandeses sob o comando de Maurício de Nassau, o qual reformulou a organização da infantaria.
“Maurício alterou a disposição das tropas em combate. Em vez de falanges de 40 ou 50 filas frontais de lanceiros usadas nas guerras do século XVI, colocou os seus homens em 10 filas. A força de choque das suas formações, mais pequenas, provinha mais do poder de fogo do que das cargas dos lanceiros. [...]. O exército holandês aperfeiçoou sobretudo a técnica do fogo de fileira: a primeira linha descarregava simultaneamente os mosquetes sobre o inimigo, depois parava para recarregar as armas enquanto as outras nove linhas iam ocupando o seu lugar, criando assim uma cortina de fogo constante”. (PARKER, 1994, p. 52).
Tal “revolução militar” começou ainda no século XVI, mas foi apenas na segunda metade do século XVII que ela se consolidou no sentido de que, a infantaria passou predominantemente a usar armas de fogo, até lá, a presença de piqueiros era recorrente. Por exemplo, as capitanías, formação usada pelos espanhóis na Itália no século XVI, cujo modelo ainda permaneceu em uso até o final do século, era composta por 500 homens, sendo 200 piqueiros, 200 espadachins e 100 arcabuzeiros. Por sua vez, dez capitanías somadas a duas companhias de piqueiros, formavam uma coronélia, totalizando um regimento com cerca de 6 mil homens, dos quais, 10% seriam arcabuzeiros (LÓPEZ; LÓPEZ, 2012, p. 5).
Por mais que no século XVII o uso de armas de fogo tenha crescido em comparação ao seu emprego no século XV, ainda assim, não foi incomum soldados usarem espadas, lanças e punhais.
“No início do século XVII, à metade, grosso modo, dos soldados de infantaria deviam ser fornecidos piques de treze pés (cerca de quatro metros) e couraças; a outros deviam ser fornecidos mosquetes de mecha (com cinco pés – metro e meio – de comprimento) com as respectivas forquetas de apoio (ou arcabuzes, mais curtos e leves), e também recipientes para a pólvora, balas e mechas de combustão lenta; às tropas de cavalaria, uma meia armadura, pistolas e lanças; e a todos os soldados, elmos e espadas”. (PARKER, 1994, p. 48).
A tomada de Breda, Diego de Velázquez, c. 1634-1635. Nota-se a presença de piques e alabardas. |
Tallet (1992, p. 24) aponta que foi a partir do século XVII que começou a se inverter a proporção de soldados munidos com armas de fogo. Até o final do XVI as infantarias europeias ainda eram formadas na sua maioria por falanges de piqueiros, sendo apoiadas por soldados munidos de armas de fogo. No século seguinte os valores se invertem devido ao crescimento das fábricas de armas, e as mudanças nas táticas de batalha, as quais passaram a se usar mais formações de mosqueteiros em detrimento dos piqueiros.
Essa mudança em parte se deu pelo fato de que a cavalaria bastante poderosa no medievo foi na modernidade perdendo sua ação tática devido ao uso de armas de fogo, canhões, paliçadas e trincheiras. Por outro lado, as batalhas campais começaram a diminuir em detrimento de batalhas entre trincheiras e no cerco de praças-fortes. Se antes presava-se pela força bruta do homem sobre o cavalo, agora passou a se prezar pela força bruta do poder explosivo da pólvora, mas com o diferencial de que ao invés de ser um conflito corpo-a-corpo, os soldados se combatiam a distância.
“A maneira quase universal de alcançar a vitória numa batalha medieval consistia em obter a superioridade no corpo-a-corpo. Os vencedores desta confusa troca de golpes a curta distância deveriam perseguir o inimigo batido, mantendo a pressão de forma a provocar a debandada geral do exército adversário. Em termos de opções tácticas, era uma situação algo limitada; com as principais linhas de batalha empenhadas, qualquer movimento de envolvimento era difícil, para não dizer impossível. No final, a vantagem militar cabia ao general que utilizava em último lugar as suas reservas”. (SOUSA, 2013, p. 119).
Logo, se antes falanges eram eficazes contra a cavalaria a qual era a principal força de combate em batalhas campais, com a diminuição de seu uso, em substituição pelas infantarias artilheiras, e a adoção de um conflito a longa distância e estratégico, já não era mais viável manter uma grande quantidade de piqueiros, pois se tornaram alvos fáceis aos artilheiros, embora que seu emprego se manteve como forma de proteger a artilharia do ataque de soldados com espadas.
Por tal motivo, na segunda metade do XVII o número de piqueiros nos exércitos foi diminuindo cada vez mais. Entretanto, mesmo tendo ocorrido essa mudança na configuração das forças armadas europeias, não significa que a cavalaria caiu em desuso; essa ainda continuou a ser usada ao longo do século XVII e até nos séculos seguintes, embora que numa fração bem menor.
“É certo que, nos primeiros decénios do século, a cavalaria representava menos de 10% da maior parte dos exércitos da Europa Ocidental; em 1635, quando a França declarou guerra à Espanha, foram recrutados 132 000 infantes e apenas 12 400 cavaleiros. [...]. Com o aumento das dimensões dos exércitos europeus e com o aumento proporcional da cavalaria, que na segunda metade do século atingiu 20% do total de um exército, os criadores de cavalos passaram a dispor de um mercado florescente”. (PARKER, 1994, p. 48).
Parker (1994, p. 42), assinala que na primeira metade do século XVII, os exércitos europeus, na maioria das vezes sempre levavam um exército com homens em excesso, pois na maioria dos casos, a deserção era o principal motivo que levava a diminuição dos efetivos militares.
“Um dos motivos por que se tentava recrutar mais homens do que os que teoricamente eram necessários era o facto de os novos recrutas depressa se arrependerem de se terem alistado. Sobretudo na primeira metade do século, as deserções, embora comportassem a pena de morte, eram um grave problema para todos os exércitos, em especial durante os prolongados cercos que constituíam o ponto fulcral das operações militares da época barroca. Em 1622, o exército espanhol da Flandres que cercava Bergen-op-Zoom perdeu cerca de 40% dos seus 20 600 soldados, muitos dos quais por deserção. Das muralhas de Bergen, as sentinelas viam os inimigos abandonar furtivamente os seus postos, fingindo que iam buscar lenha ou legumes, afastar-se a pouco e pouco das trincheiras, e fugir”. (PARKER, 1994, p. 42).
“No exército francês, durante a primeira metade do século, sabia-se que, se se queria levar 1200 homens para a frente de batalha, tinha que se recrutar 2000, porque era normal perder-se 40% dos soldados nos primeiros meses, por deserção e doença. Assim, em 1635, primeiro ano de guerra aberta contra a Espanha, decidiu-se recrutar 145 000 homens para se manter na frente uma força efectiva de apenas 69 000”. (PARKER, 1994, p. 43).
“A fortaleza não é um lugar simplesmente de proteção contra um ataque, mas também de defesa ativa, um centro onde os defensores estão protegidos da surpresa ou da superioridade numérica e uma base da qual podem fazer surtidas para manter os predadores à distância e impor controle militar sobre a área por que se interessam”. (KEEGAN, 1995, p. 155).
“O assalto de infantaria a um bastião, por mais que este tivesse sido danificado, era sempre um negócio desesperado. Uma prática defensiva universal mandava ter à mão materiais – cestas cilíndricas para encher de terra, chamadas de gabiões, postes, trilhos e barricadas de madeira – com os quais fosse possível improvisar uma defesa interna atrás de uma brecha, ao mesmo tempo em que mosqueteiros e canhoneiros de um bastião vizinho podiam sempre atirar sobre grupos de assalto que atravessassem o fosso ou mesmo chegassem à esplanada inclinada do lado de fora”. (KEEGAN, 1995, p. 337).
“A guerra de assédio era demorada e trabalhosa porque os meios de trazer fogo suficiente para acossar uma fortaleza com bastião exigiam um enorme esforço de escavação. A fortaleza com bastião era uma construção “científica”, o que significava que seu projeto era feito com base em cálculos matemáticos para minimizar da melhor maneira a área da muralha que o tiro podia atingir. Portanto, o ataque tinha de ser “científico” também. Os engenheiros de assédio logo estabeleceram os princípios. Era preciso cavar uma trincheira paralela a um dos lados do traçado do bastião, onde se pudessem colocar canhões para iniciar o bombardeio. Sob a proteção desse fogo, trincheiras “de aproximação” eram então cavadas adiante, até que uma nova “paralela” mais próxima pudesse ser cavada, para onde eram levados os canhões, a fim de continuar o bombardeio a distância mais curta”. (KEEGAN, 1995, p. 337).
NOTA: Para Geoffrey Parker (1996, p. 21) os principais marcos da “revolução militar” da Idade Moderna foram: a criação e desenvolvimento das fortificações com baluarte; o emprego recorrente das armas de fogo; o desenvolvimento de uma indústria da guerra; diminuição do uso da cavalaria em detrimento de uma infantaria armada com lanças e mosquetes; reformulação na organização das tropas; mudança nas táticas de batalha; surgimento de escolas militares; aumento na quantidade de soldados nos exércitos.
KEEGAN, John. Uma história da guerra. Tradução de Pedro Soares Maia. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda restaurada: guerra e açúcar no nordeste, 1630-1654. 3. ed. São Paulo: Ed. 34, 2007.
PARKER, Geoffrey. The
Military Revolution: military innovation and the rise of the West, 1500-1800.
2. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 1996.
PARKER,
Geoffrey. O Soldado. In: VILLARI, Rosario (dir.). O homem barroco.
Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Lisboa: Editoria Presença, 1994.
RUNCIMAN, Steven. A civilização bizantina. Tradução de Waltensir Dutra. 2. ed.
Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977.
SOUSA,
Luís Filipe Guerreiro Costa e. Escrita e Prática de Guerra em Portugal:
1573-1612. 2013. 844 f. Tese (Doutorado em História dos Descobrimentos e
Expansão) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade de Lisboa,
Lisboa, 2013.
TALLETT, Frank. War
and Society in early modern Europe, 1495-1715. New York/London: Routledge,
1992. (Collection War in context).
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