quinta-feira, 8 de julho de 2021

Canis pugnax: os cães de guerra da Roma Antiga

O uso de cachorros na guerra é uma prática militar que remonta desde a Antiguidade e até hoje adotada, com diferentes usos. Em geral os cães de guerra foram usados para intimidação, perseguição, combate e rastreio. Diferentes raças foram empregadas por diversos exércitos de distintas nacionalidades ao longo da História. Ainda hoje os cães militares são usados pelas forças armadas, polícias e forças especiais, principalmente para resgate, perseguição e rastreamento de drogas e explosivos. O presente texto abordou um caso específico sobre cães de guerra, a chamada raça canis pugnax, empregada pelos antigos romanos em seus exércitos e para outros fins também. Devido a escassez de fontes sobre o tema, o texto acabou ficando curto. 

O molosso grego

O termo canis pugnax refere-se a uma raça que hoje não existe. Tais cães surgiram do cruzamento de espécimes da raça molosso, de origem grega, desenvolvida pelos Molossos que habitavam o Épiro. Consistindo em cães grandes, peludos e pesados, usados para a guarda e o pastoreio de bovinos e equinos. Em alguns casos, eles também eram treinados para a caça e até o combate, havendo menções por parte de filósofos, poetas e dramaturgos gregos e romanos, os quais fizeram referências a essa raça. (The Dog Encyclopedia, 2013, p. 70). 

O molosso grego com o tempo foi extinto por motivos desconhecidos e não se sabe quando isso aconteceu. No entanto, a raça deu origem a três categorias: os molossos, os dogues e os mastins, sendo que essas categorias compreendem dezenas de raças com características em comum. Devido a essa diversidade, algumas dessas raças foram usadas pelos romanos para criar seus cães de guerra. 

O canis pugnax nos jogos de gladiadores

O emprego de cães no exército pelos romanos, ainda começou na época da República (509-27 a.C), embora os romanos já criassem cães antes disso, para usos como guarda, caça e companhia. Mas à medida que o Estado tornou-se expansionista, o número de guerras aumentaram, consequentemente a conquista de territórios e assimilação de culturas, tradições, costumes, hábitos e espécies animais e vegetais. Os gregos, germânicos, gauleses, egípcios, persas, citas, entre outros povos, já faziam uso de cães de guerra, e os romanos enxergaram um potencial nisso, embora que tenha sido algo aplicado de forma tardia. (FORSTER, 1941, p. 114-115). 

Para fins de guarda e combate nas arenas, os romanos passaram a cruzar diferentes raças de molossos para chegar a espécimes que se adequassem aos intentos marciais: cães de porte grande com seus 60 cm de altura, aspecto bruto, latido grave e intimidador, pesando entre 40 a 50 kg, de cor preta, obedientes, territorialistas, leais e ferozes. Com isso, o "molosso romano" para fins de combate, passaram a serem chamados de canis pugnax "cão de combate". 

No século IV a.C os jogos de gladiadores se tornaram um evento regular e prestigiado no mundo romano. Além da luta entre homens - e menos usualmente entre mulheres também -, foi inserido o combate com animais, tais partidas eram chamadas de venatios, as quais teriam começado no século II a.C, sendo um dos relatos mais antigos conhecido, datado de 186 a.C. As venatios emulavam caçadas, mas também a luta entre homem e animal. Eram usados animais selvagens como leões, leopardos, elefantes, girafas, lobos, ursos, javalis, cervos, e animais domésticos como touros, cavalos e cães. As lutas poderiam incluir combates apenas entre os próprios animais, em outros casos, cães e outros bichos eram adestrados para fazerem truques como no circo. Usava-se também esses animais para intimidar e executar prisioneiros e criminosos. (WILLMOTT, 2009, p. 12-19). 

Ilustração retratando como teriam sido os canis pugnax nos jogos de gladiadores. 

"Os animais ferozes eram soltos na arena depois de terem sido mantidos em jejum e na obscuridade; sua morte tinha que ser espetacular, e em muitos casos havia uma espécie de corrida com touros ou rinocerontes, lutas entre animais e caçadas nas quais os animais perseguiam homens desarmados que, inevitavelmente, acabavam despedaçados. Muita atenção era dada à cenografia, que buscava recriar o ambiente natural das feras". (LIBERATI; BOURBON, 2005, p. 72).

Sendo assim, o canis pugnax inicialmente foi criado para ser usado nas arenas, para os jogos mortais dos gladiadores. No entanto, os romanos perceberam que aqueles cães de combate poderiam ter um uso prático também pelo exército. Os gregos, germânicos e gauleses já faziam uso de cães de guerra, inclusive à medida que os domínios romanos se expandiam pela Gália, Germânia e Bretanha, os romanos tomaram contato com outras raças caninas, e passaram a cruzá-las com seus molossos, originando novas raças de canis pugnax. (IRELAND, 2008, p. 16, 215-216). 

Mosaico romano retratando um cachorro de guarda. Não se sabe se seria um canis pugnax ou outra raça. 

Os cães de guerra

Stanley Ireland (2008, p. 16, 162) informa que o uso de cães de guerra pelos exércitos romanos teria começado por volta do século I a.C, quando Júlio César (100-44 a.C) e outros generais invadiram a Gália (atual França) e a Bretanha (atual Inglaterra), ali eles ficaram interessados no emprego dos cães de guerra, vindo adotar seu uso em campanhas posteriores, embora o uso de cachorros pelo exército romano não foi uma prática regular como se pensa, não havendo esquadrões caninos. 

Inclusive são poucos os relatos do uso desses cães no campo de batalha, embora que exista a problemática que alguns autores acabassem não dando importância a esses animais, ocultando a presença deles nos acampamentos, mesmo que fosse para a guarda, alerta, rastreio e intimidação. Por sua vez, os gregos possuem mais relatos sobre o uso de cães de guerra, incluindo o fato de que Felipe II da Macedônia e Alexandre, o Grande, possuíam apreço por esses animais, embora servissem como cães de guarda. (KITCHELL JR, 2013, p. 50). 

    Desenho retratando legionários acompanhados de canis pugnax. 

No caso romano, os relatos sobre o uso de cães de guerra são escassos o que sugere que não foi uma prática habitual desse povo, já que em geral os poetas e escritores exaltam os cães como animais de guarda, caça e na luta nas arenas, mas raramente falam do uso deles no campo de batalha. O historiador Públio Tácito (c. 56-117) em seu Anais, escreveu que havia a presença de cães em acampamentos e bases, atuando na guarda e alerta, as vezes usados para intimidação também de prisioneiros e na captura de fugitivos, mas seu uso na batalha na era regular. Tácito também informa que geralmente as legiões situadas na Germânia, Bretanha, Dácia e Trácia faziam mais uso de cães de guarda. (KITCHELL Jr, 2013, p. 51). 

Durante o reinado do imperador Marco Aurélio (r. 161-180), fizeram uso de canis pugnax em guerras, pelo menos o que se atesta no monumento dedicado ao monarca. Coluna de Marco Aurélio foi concluída em 193, após a morte do imperador, no entanto, ela foi erguida como monumento comemorativo da vitória de suas legiões contra as tribos germânicas dos marcomanos e dos quados, e depois contra o povo sármata no leste europeu, ocorrido no ano de 176. No caso, cães foram empregados em algumas campanhas, apesar de se desconhecer o uso exato deles, se teriam servido apenas como cães de guarda e rastreio, ou foram usados em batalhas. No monumento há sugestão de que cães participaram dos conflitos. 

Detalhe da coluna comemorativa do imperador Marco Aurélio, mostrando um legionário romano segurando um canis pugnax pela coleira, enquanto outro cachorro está de boca aberta para o inimigo. 

Raças descendentes dos cães de guerra romanos

Existem controvérsias de quantas raças teriam se originado e se todas as que são citadas, realmente descendem daquela época ou são originárias de raças bem posteriores. No entanto, de acordo com a The Dog Encyclopedia (2013), algumas raças que teriam se originado a partir de cães usados na Roma Antiga, foram: 

  • Cane corso: raça originária da Córsega, descende de antigas raças de molossos romanos, usadas para a guarda, pastoreio e a guerra. Sua aparência deveria ser a mais próxima do canis pugnax
  • Mastim: uma raça surgida do molosso, que deu origem a várias sub-raças. Os mastins eram usados como cães de guarda, caça e guerra. 
  • Mastim napolitano: raça de porte grande, surgida a partir do cruzamento de vários mastins, que eram usados como cão de guarda, de combate nas arenas e no exército. 
  • Rottweiler: raça de origem alemã que descenderia do cruzamento de raças germânicas e de molossos romanos. Era empregado para a guarda, pastoreio e guerra. 
Nesse vídeo temos um evento de recriacionismo histórico, mostrando homens vestidos como gladiadores e funcionários dos jogos, e a presença de canes corso como os canis pugnax. 

NOTA: Considera-se que a raça mais próxima do molosso seja o atual molosso-do-épiro, o qual ainda conserva traços em comum e segue sendo criado na mesma região de seus ancestrais. 
NOTA 2: Os romanos criaram diferentes raças de cães, embora seja difícil precisar elas, mas sabe-se por pinturas e esculturas que haviam raças usadas na caça, guarda, combate e como cães de companhia. 

Referências bibliográficas: 
FORSTER, E. S. Dogs in Ancient Warfare. Greece & Rome, v. 10, n. 30, 1941, p. 114-117. 
IRELAND, Stanley. Roman Britain: A Soucerbook. 3 ed. London, Routledge, 2008. 
KITCHELL Jr, Kenneth F. Animals in the Ancient World from A to Z. London, Routledge, 2013. 
LIBERATI, Anna Maria; BOURBON, Fabio. A Roma Antiga. Tradução Alexandre Martins. Barcelona, Ediciones Folio S. A, 2005.
THE Dog Encyclopedia. The definitive visual guide. New York, DK Publishing, 2013. 
WILLMOTT, Tony. Gladiadores: feras em combate. Tradução de Amanda Nero, Revista BBC História, vol. 3. São Paulo, Tríada, 2009. p. 12-19. 

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