Nesta singela homenagem aos 150 anos do nascimento do "pai da psiquiatria brasileira", o médio Juliano Moreira, compartilho esse artigo da professora Dra. Ana Venancio.
O tema deste artigo é
o estatuto de originalidade e verdade concedido aos documentos que compõem o
arquivo pessoal de Juliano Moreira (1873-1933) e aos trabalhos publicados sobre
e por esse psiquiatra baiano. Este trabalho advém de um estudo de antropologia
histórica preocupado em discutir o "lugar" de Juliano Moreira na
produção da psiquiatria no Brasil e em compreender o papel desse campo
científico nos projetos de construção de uma "nação" brasileira. O caminho
aqui apresentado é de ida ao campo dos acervos históricos em busca de fontes
secundárias e primárias sobre o tema. Nesse percurso, discuto questões
relativas à idealização dos acervos pessoais e à forma como o próprio processo
de busca me informou sobre meu objeto, problematizando as noções de verdade e ciência
que estiveram aí implicadas.
Não é difícil
reconhecer que muitos dos trabalhos produzidos desde os anos 1980 sobre a
história da psiquiatria indicam que Juliano Moreira foi o "fundador"
da psiquiatria científica brasileira, por oposição à figura de Teixeira
Brandão, difusor do pensamento psiquiátrico francês no Brasil e precursor da
"entrada" da psiquiatria na esfera da assistência pública, como se
verificou nas últimas décadas do século XIX (Costa, 1989; Oda, 2001;
Portocarrero, 2002; Vasconcelos, 1998). Tal produção, ainda que tenha
difundindo uma perspectiva crítica sobre a história da psiquiatria e sobre a
obra de Juliano Moreira, afirmava o caráter "excepcional" ou
"singular" desse personagem, também presente, em décadas precedentes,
em trabalhos de psiquiatras preocupados em registrar os "avanços
históricos" da psiquiatria brasileira (Austregésilo, 1933; Colares, 1973;
Lopes 1964; Roxo, 1933).
O que me interessava,
entretanto, não era julgar a atribuição de paternidade da psiquiatria
brasileira a Juliano Moreira ou a Teixeira Brandão, e sim o fato de Juliano
Moreira ser representado, historicamente, como o pai da psiquiatria científica
no Brasil. Por que Juliano Moreira permanece no imaginário erudito como o
fundador do saber e da prática psiquiátrica por excelência? Quais as suas
concepções científicas sobre os estados "perturbados" nomeados como
doença mental? Quais as relações entre tais concepções e a construção de uma
imagem de homem brasileiro para o processo civilizatório nacional das três
primeiras décadas do século XX? Até então o que eu poderia dizer é que o
estatuto de verdade concedido pelo próprio campo psiquiátrico às proposições
publicadas por Juliano estava referido à proposta programática para a política
assistencial e tratamentos especializados para doentes mentais que ele
formulara. Foi como autor dessa proposta programática, divulgada em dezenas de
artigos publicados em periódicos científicos, que Juliano Moreira perpetuou a
imagem de ator fundador da psiquiatria científica no Brasil.
O personagem
Juliano Moreira,
mestiço e de origem pobre, nasceu em Salvador em 6 de janeiro de 1873. Segundo
Carvalhal (1997), aos 13 anos matriculou-se como interno na Faculdade de
Medicina da Bahia. Adquiriu o grau de doutor em 1891 com a tese "Sífilis
maligna precoce", que foi divulgada e elogiada no exterior, no Jornal des
Maladies Chlauées el Syphililiques e nos Annales de Dermatologie el
Syphiligraphie. Em 1896 ingressou na Faculdade de Medicina da Bahia como
professor substituto da Seção de Doenças Nervosas, após defender a dissertação
"Disquinesias arsenicais". Na Bahia, dedicou-se à dermatologia e à
neuropsiquiatria, colaborou no periódico Gazeta Médica da Bahia, na Revista
Médico-Legal e na Revista dos Internos da Faculdade de Medicina da Bahia e foi
um dos fundadores da Sociedade de Medicina e Cirurgia e da Sociedade de
Medicina Legal da Bahia.
Retrato de Juliano Moreira na década de 1920. |
Entre 1895 e 1902 fez uma série de viagens à Europa para tratar-se de tuberculose, contraída pela rotina desregrada e pela dedicação intensiva aos estudos. Nesse período, frequentou diversos cursos de doenças mentais, tendo, como professores Flechsig, Krafft-Ebing, Emil Kraepelin, Magnan, entre outros, cujas experiências resultaram em trabalhos publicados na Gazela Médica da Bahia. Na Europa também realizou estágio de anatomia patológica com Virchow e visitou as principais clínicas psiquiátricas e manicômios da Alemanha, Inglaterra, Escócia, Bélgica, França, Itália, Áustria e Suíça.
De volta ao Brasil,
Juliano Moreira instalou-se no Rio de Janeiro, no bairro de São Cristóvão. Em
1903, por influência de Afrânio Peixoto e J.J. Seabra (ministro da Justiça do
governo Rodrigues Alves), foi nomeado diretor do Hospital Nacional de
Alienados. Sua nomeação dava-se após uma série de escândalos ocorridos na administração
de Antonio Dias Barros, que resultou num inquérito levado a cabo pelo
Ministério da Justiça. Esse inquérito constatou as péssimas condições de tratamento
no hospital e a completa promiscuidade entre crianças e adultos (Engel, 2001:
255). E verdade que as críticas à assistência prestada aos alienados eram
recorrentes desde a época do antigo hospício. Já nos anos 1860 discutia-se sua
administração e quase 20 anos mais tarde eram comuns denúncias de violência e
maus tratos (Teixeira, 1997: 312). O que distingue as antigas críticas daquelas
que resultaram na nomeação de Juliano Moreira é o momento sociopolítico no qual
estiveram inseridas.
A nomeação de Juliano
Moreira para a direção desse hospital de alienados e as reformas que ele lá
empreendeu coadunavam-se com o processo de saneamento e urbanização da cidade
do Rio de Janeiro durante a gestão do prefeito Pereira Passos (1902-1906).
Nessa época, no intuito de atrair capital e mão-de-obra imigrante, e de
melhorar as vias de acesso ao porto do Rio de Janeiro, várias ruas foram
alargadas, casas foram demolidas e uma intensa campanha de vacinação e
profilaxia de doenças infecciosas (febre tifoide, febre amarela, malária etc.)
foi promovida por Oswaldo Cruz, então diretor geral de Saúde Pública. Nesse
contexto, a nomeação e a atuação de Juliano Moreira no referido hospital
reforçavam as iniciativas "modernizadoras" do Estado, ampliando-as
para essa esfera da assistência pública - a dos alienados - corroborada pelo
projeto de desenvolvimento de uma ciência psiquiátrica brasileira.
No período em que esteve na direção do Hospital Nacional de Alienados (1903-1930) Juliano Moreira atuou como divulgador de uma psiquiatria científica brasileira tanto no âmbito nacional quanto no panorama internacional. Em 1905 fundou os Archivos Brasileiros de Medicina, juntamente com Antonio Austregésilo e Ernani Lopes. No mesmo ano, com Afrânio Peixoto, criou a Sociedade Brasileira de Psychiatria, Neurologia e Sciencias Affins. No contexto internacional participou de diversos congressos médicos, como os de Lisboa (1906), Amsterdã e Milão (1907), Londres e Bruxelas (1913), sendo também membro de várias sociedades cientificas européias. Em 1911 foi nomeado diretor da Assistência Médico-Legal de Alienados, órgão criado em 1890 para a formulação de uma política assistencial para os alienados - órgão este que em 1927 foi rebatizado de Serviço de Assistência a Psychopatas (Sap), pelo Decreto no 17.805 de 23 de maio, passando a integrar o Ministério da Justiça e dos Negócios Interiores.
E durante sua gestão, Juliano Moreira criou o Manicômio Judiciário e envidou esforços para a aquisição do terreno, a construção e a fundação da Colônia Juliano Moreira.
Já em 1928,
foi convidado pelas universidades japonesas de Tokyo, Kyoto, Sendai e Osaka
para fazer diversas conferências sobre sua especialidade, sendo condecorado com
a Ordem do Tesouro Sagrado pelo Imperador Hirohito (1901-1992). Somente em 1930
se afastaria da direção do Hospital Nacional de Alienados, vindo a falecer,
três anos mais tarde, na cidade de Correias, no Rio de Janeiro, para onde se
mudara já muito debilitado devido à tuberculose.
A ida a campo
Minha aproximação da
história desse personagem, entretanto, foi inicialmente secundária. Em 1987,
quando iniciei o mestrado em antropologia social, me interessei pelo tema da
psiquiatria como modo social erudito de representar as "perturbações
mentais" através da conjugação da ciência com a assistência pública. Essa
relação entre a produção de uma ciência - que toma a loucura como um objeto a
ser investigado - e de uma assistência pública – inaugurada com a instituição
asilar - é mesmo fundamental na constituição da psiquiatria, sendo atualizada
de forma distinta em diferentes contextos nacionais, como informam Foucault (1980:
2), Castel (1978: 101) e Shorter (1997: 69) sobre os casos francês e alemão.2
Naquela época eu
estava particularmente curiosa a respeito da transformação pela qual a
psiquiatria brasileira vinha passando - mais tarde intitulada pelo próprio
campo de "reforma psiquiátrica" - e que tinha como principal lema
"Por uma sociedade sem manicômios". Coincidentemente, naquele período
fui trabalhar num núcleo de pesquisa em psiquiatria social localizado na
Colônia Juliano Moreira. Situada em Jacarepaguá, a Colônia Juliano Moreira era
uma instituição psiquiátrica tipicamente asilar que, desde 1981, estava
engajada num processo de transformação de seu aparato institucional e
assistencial. A própria criação de um núcleo de pesquisa numa unidade de
assistência fazia parte das propostas de transformação: buscava-se compreender
os determinantes e os atores sociais importantes no processo de mudança de
paradigma do cuidado e construir uma visão crítica no interior da própria
instituição. Esse foi o meu primeiro contato com o nome de Juliano Moreira,
quando tomei conhecimento de que ele havia sido um "psiquiatra
importante" que se dedicara com afinco à criação da referida Colônia, em
1924, então chamada Colônia de Jacarepaguá.
Ainda nesse período,
tive contato com a dissertação de mestrado em filosofia de Vera Portocarrero,
intitulada "Juliano Moreira e a descontinuidade histórica da
psiquiatria". A fotocópia desse trabalho circulava bastante como
referência entre os profissionais da área voltados para uma "psiquiatria
social". Tratava-se de um trabalho que indicava o papel pioneiro de Juliano
Moreira na construção de uma ciência psiquiátrica e que o articulava aos
processos de medicalização e normatização social, entre fins do século XIX e a
década de 1930. Pareceu-me à época que esse era um trabalho definitivo sobre a
figura de Juliano Moreira e que náo era possível falar mais nada a respeito.
Doze anos mais tarde
eu já concluíra o doutorado, trabalhava no Instituto de Psiquiatria (Ipub) da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e prestava assessoria ao
Instituto Franco Basaglia (IFB), uma organização não-governamental na área da
saúde mental. Imersa profissionalmente no campo psiquiátrico, deparei-me
inúmeras vezes com o nome de Juliano Moreira, por essas duas vias
institucionais. No Ipub, Juliano Moreira não somente era citado como o fundador
da psiquiatria científica brasileira, mas também tinha sido objeto de uma
dissertação de mestrado que enaltecia sua originalidade e seu papel avant la lettre frente à questão das
relações entre ciência e assistência pública. No IFB, ele era objeto de uma
pesquisa intitulada "Fontes primárias e secundárias relativas a Juliano
Moreira", que visava a reunir documentos e trabalhos publicados por e sobre
esse personagem. A perspectiva que informava essa pesquisa era mais crítica do
que a produzida na instituição universitária e me fez suspeitar de que havia
mais coisas entre o céu e a terra no mundo psiquiátrico do que poderia
suspeitar minha vã filosofia.
Nesse período eu
trabalhava no Ipub numa pesquisa antropológica sobre a hegemonia biológica no
campo psiquiátrico contemporâneo e as representações da pessoa moderna aí
implicadas. Interessei-me em buscar compreender como, historicamente, a
psiquiatria brasileira se auto-representara como científica, exatamente por sua
atenção mais detida no caráter orgânico das doenças mentais. Juliano Moreira
aparecia, assim, como figura fundamental para a investigação. Juntei-me então à
equipe de pesquisa do IFB - um psiquiatra e uma historiadora recém-graduada -,
que já realizava a busca de fontes primárias e secundárias sobre o referido
psiquiatra.
Duas vias
investigativas estavam sendo perseguidas. A primeira visava a reunir os
trabalhos publicados por e sobre Juliano Moreira, e a segunda pretendia
localizar os documentos, fotos etc. que conformariam seu acervo pessoal, o qual
supúnhamos existir devido à importância desse personagem para a história da
psiquiatria no Brasil segundo as auto-representações do próprio campo: tanto as
mais críticas quanto as mais afeitas a uma historiografia sobre suas eminentes
figuras. Com relação a essa segunda via, apoiávamo-nos também em nossa própria
representação do estatuto de um "arquivo pessoal" como aquele que
expressaria a experiência vivida, dada a forma como o arquivo teria sido
elaborado por seu autor.
A equipe de pesquisa
já realizava visitas a diversas instituições do campo médico-psiquiátrico e a
bibliotecas, em busca de documentos e periódicos de época: Colônia Juliano
Moreira, Hospital Philippe Pinel, Centro Psiquiátrico Pedro II,3 Instituto de
Psiquiatria da UFRJ, Faculdade de Medicina da UFRJ, Academia Nacional de Medicina,
Academia Brasileira de Ciências, Instituto Histórico Geográfico Brasileiro,
Biblioteca Nacional e Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro. Através do
levantamento realizado, produziu-se uma relação de 112 artigos publicados por
Juliano Moreira, nove artigos de outros psiquiatras sobre seu colega baiano, escritos
entre 1913 e 1934, e mais dois outros trabalhos, escritos em 1964 e 1973 - este
último por ocasião da comemoração do centenário de seu nascimento. Desse total,
foram obtidas cópias de 48 artigos de Juliano Moreira e de alguns artigos sobre
ele, sendo que parte dos textos teve de ser transcrita à mão e depois digitada,
em virtude de suas condições precárias de conservação.4
Dois fatos chamavam a
atenção: o péssimo estado de conservação dos periódicos médicos e psiquiátricos
na maior parte das instituições de assistência e das universidades em que eram
mantidos-muitas vezes amarrados em pacotes jogados em sótãos ou salas de
depósito - e a total inexistência de informações sobre onde estaria o arquivo
pessoal de Juliano Moreira. Além disso, as sociedades científicas que Juliano
Moreira fundara não existiam mais, e mesmo a atual Associação Psiquiátrica do
Estado do Rio de Janeiro (Aperj) nada guardava de seu acervo pessoal.
O contato com a
psiquiatra que redigira no Ipub sua dissertação de mestrado sobre Juliano
Moreira, e que mais tarde seria presidente da Aperj, lançaria algumas luzes
sobre os silêncios e dúvidas relativos ao destino desse acervo. Segundo essa
informante, de fato o acervo pessoal de Juliano Moreira não estava sob a
guarda de nenhuma instituição. Ele teria sido mantido pela mulher de Juliano,
sra. Augusta Moreira, enfermeira alemã que o psiquiatra conhecera numa de suas
viagens à Europa e que aqui viveria até sua morte, em meados de 1970 ou início
dos anos 1980.
A estória que me foi
contada era a de que Juliano Moreira era um homem de muito poucas posses, que
vivia de seus proventos como funcionário público e residia com sua esposa no
próprio Hospital Nacional de Alienados (atual sede da Uni-Rio, Praia Vermelha),
como cabia à função de diretor da instituição. Sua mulher também não possuía
bens; ao vir morar no Brasil, trocara-os por títulos do governo alemão que
deixaram de ter qualquer valor nos anos 1920. Após deixar a direção do Hospital
Nacional de Alienados, Juliano teria se mudado com a mulher para o antigo Hotel
dos Estrangeiros, situado na praça José de Alencar, no Largo do Machado, e os
parcos recursos de sua aposentadoria precisariam ser acrescidos da "ajuda
de amigos", de modo a prover os cuidados necessários à sua saúde, já
debilitada.
Ainda segundo essa
informante, Juliano teria poucos livros, pois além da vida modesta que levava,
sempre se empenhara em formar uma ótima biblioteca para o próprio hospital,
sobre a qual encontramos menção em O cemitério dos vivos de Lima Barreto. Após
sua morte, os livros de Juliano Moreira teriam sido doados por d. Augusta ao
Hospital de Juqueri, em São Paulo, não havendo, entretanto, mais notícias a
esse respeito. Havia, sim, álbuns de fotografias, de recortes de jornais e de
documentos, feitos pelo próprio Juliano Moreira e por sua mulher. E onde estão
esses álbuns, perguntava eu? Até onde sei, respondeu a informante, alguns foram
distribuídos por d. Augusta aos amigos que sustentaram Juliano Moreira no fim
da vida; como Ernani Lopes, a fim de retribuir a ajuda recebida. Além disso,
completava a informante, em 1973, ano do centenário de nascimento de Juliano
Moreira, o psiquiatra dr. Neves Manta empenhou-se na realização de uma
comemoração na Academia Nacional de Medicina, ocasião em que d. Augusta teria
doado cinco desses álbuns para ele. O dr. Neves Manta conhecera essa informante
e, segundo ela, ao longo do convívio que tiveram na Santa Casa da Misericórdia,
vez ou outra lá chegava presenteando-a com um desses álbuns. Eu encontrava,
assim, pane do acervo pessoal de Juliano Moreira, embora a informante não
tenha franqueado, na época, meu acesso a esse material.
Em 2004 retomei o
contato com essa psiquiatra, após quatro anos de convivência institucional com
ela no Ipub e alguns trabalhos que publiquei sobre Juliano Moreira. O contato
telefônico foi cordial e, como insisti para que me contasse mais sobre o acervo
que guardava, ela me convidou para uma visita. Mostrou-me então dois desses
álbuns, mencionando que não sabia mais onde estavam os outros três, pois tinha
se mudado e precisaria procurá-los. Dois dos álbuns estavam à mão porque ela
acabara de produzir um DVD sobre Juliano Moreira, para apresentação no
Congresso Brasileiro de Psiquiatria, utilizando muitas das imagens que os
compunham. Ela não sabia ao certo quais álbuns haviam sido organizados pelo
próprio Juliano Moreira ou por d. Augusta, nem se essa organização datava de
antes ou depois da morte do psiquiatra.
Quando o campo é o arquivo: história e ciência
psiquiátrica
A ida ao campo era um
processo tanto de busca quanto de realização de encontros: de um lado, as
fantasias e expectativas de um encontro com o "passado" guardado em
algum lugar acessível, no qual seria possível "mergulhar" para
conhecê-lo; de outro; o fato de que era mais a busca do que o encontro dos
arquivos que lançava luz sobre o personagem em estudo e seu lugar na história
da psiquiatria no Brasil. As fantasias e expectativas apoiavam-se num certo
preciosismo das fontes, que construía a imagem de um arquivo pessoal rico em
fotos e recortes de jornais, com vasta documentação de todos os grandes feitos
reveladores da história da psiquiatria no Brasil, tal como construída por
Juliano Moreira. Entretanto, a busca por seu acervo pessoal não nos remeteu à autoimagem
de J Juliano nem nos descortinou a cena de três décadas de vida pública,
iluminada por holofotes, como demonstra sua produção de artigos e a de seus
comentadores.
No ponto de chegada
dessa busca e do encontro possível, havia apenas um certo "retrato"
do final da vida de Juliano Moreira, marcado pela doença e pelo ostracismo.
Pela via do arquivo, não houve acesso à sua própria visão de sua trajetória
pessoal e de sua vivência como "fundador da ciência psiquiátrica
brasileira", à sua percepção da relação entre a experiência que viveu e as
questões cientificas que abordou. O pequeno fragmento da experiência desse
personagem, contido em apenas poucos álbuns de recortes, também estava
destituído de um possível sentido "original", pois nem ao menos se
sabia se ele fora "construído" em vida por Juliano Moreira ou se fora
elaborado a posteriori por sua
mulher, como tentativa de rememorar os anos vividos em conjunto com seu marido.
A estória que me foi
recontada por minha informante havia sido ouvida por ela de outro psiquiatra (o
dr. Neves Manta). Percebi então que também não havia elementos para atribuir um
estatuto de verdade, senão ao acervo pessoal de Juliano Moreira, ao menos aos
fatos que eram contados: não havia testemunha ocular e, segundo a informante,
"os que poderiam saber mais sobre esses fatos já morreram". O que se
podia depreender era apenas que, no imaginário das pessoas que teriam vivido ou
contado essa estória, o acervo pessoal de Juliano Moreira teria tido o valor de
moeda de troca em relação aos recursos materiais e afetivos que ele recebeu ao
final de sua vida.
Caía o pano. A única
via de acesso alternativa seriam os trabalhos publicados por Juliano Moreira ao
logo de sua vida e as fontes secundárias. Tais fontes, datadas em sua maioria
de 1913 a 1934, como já mencionado, foram redigidas, portanto, durante a vida
de Juliano Moreira por colegas de profissão. Todas elas são marcadas por um tom
enaltecedor da importância da obra do psiquiatra baiano para a ciência e a
assistência psiquiátrica brasileira. Interessante notar que em nenhum desses
artigos encontra-se menção ao fato de Juliano Moreira ser mulato e ter se
casado com uma mulher alemã (união que não gerou filhos), apesar de todo o
debate da época sobre a constituição racial do povo brasileiro e suas possíveis
relações com os temas da alienação mental e da degeneração. A bibliografia mais
crítica produzida a partir dos anos 1980 - que problematizava a obra de Juliano
Moreira e a psiquiatria a partir da análise dos processos de medicalização e
normatização da sociedade brasileira - também não se detinha nas possíveis
relações entre a trajetória pessoal desse personagem e temas sociais cruciais
da época, como a questão racial. A única referência que encontramos a esse respeito
é uma menção de Freyre (1973: 183) ao fato de que Juliano Moreira conseguira
ascensão social e embranquecimento através
de seus estudos médicos.
O que encontramos
nessas fontes secundárias foi o mesmo imaginário que produziu nossa curiosidade
em buscar o arquivo pessoal de Juliano Moreira: o de que seu acervo pessoal ou
sua obra serviriam como testemunho do sentido último de uma verdade. No
primeiro caso, tratava-se da verdade sobre a relação entre a experiência
pessoal desse personagem e sua vida pública, enquanto no segundo a verdade
dizia respeito à comprovação dos "avanços" incontestes da psiquiatria
capitaneados por ele nas três primeiras décadas do século XX, como se tudo que
Juliano Moreira escreveu e publicou tivesse sido de fato efetivado. Medidas
jurídico-punitivas para os sifilíticos que se casavam, fundação de laboratórios
nos hospitais de alienados, colônias para os epilépticos e reformatórios para
alcoolistas são alguns dos temas das exemplares propostas assistenciais de Juliano
Moreira presentes em seus artigos. Mas o que se pode observar é que, até o
momento, as pesquisas históricas não informam se tais diretrizes foram, em
grande medida, implantadas no Rio de Janeiro. Seria aqui necessário um trabalho
de investigação que se debruçasse sobre os prontuários psiquiátricos da época -
os diagnósticos e as práticas terapêuticas - e sobre outros acervos
institucionais, de modo a iluminar os princípios que organizaram a criação de
"núcleos", "blocos" e "hospitais" nas instituições
psiquiátricas do Rio de Janeiro.
Deste percurso ficou
a questão sobre a tensa relação entre um "outro" que, distinto de
nós, é constituído como objeto, e o que dele encontramos em nós mesmos. A construção
do "objeto" histórico nos remeteu, portanto, à idéia de verdade que
encontramos no campo da ciência, mas que também podemos estar reproduzindo em
nossas próprias pesquisas. Constatávamos que a auto-representação da
psiquiatria sobre suas origens científicas no Brasil poderia ser identificada
como análoga à própria representação que essa pesquisa em ciências sociais
estava construindo em relação aos arquivos pessoais, sua originalidade e o
estatuto de verdade sobre o indivíduo que eles comportam.
A psiquiatria científica e o processo civilizatório
brasileiro
De qualquer modo,
para além de nossa ilusão inicial sobre as revelações que poderíamos encontrar
no acervo pessoal de J Juliano Moreira e para além das referências elogiosas
presentes nas fontes secundárias citadas, permanecíamos sem resposta à nossa
pergunta inicial: o que havia de científico no modo de Juliano Moreira pensar o
conhecimento e a prática psiquiátrica? Dito de outro modo: por que o
conhecimento e a prática psiquiátrica empreendida por Juliano Moreira
permaneciam no imaginário erudito como fundadores de uma "verdadeira"
ciência brasileira? Nossa hipótese, era a de que, como toda ciência, sua
prática teria se imbuído da tarefa de responder a uma questão de modo
sistemático e com base em evidências. Mas qual era essa questão?
Nesse momento da
pesquisa, buscamos somente analisar as "grandes idéias" desse
personagem presentes em seus artigos, tomando por base as representações
sociais que sustentavam a própria construção de um modelo de ciência
psiquiátrica e comparando-as às noções precedentes, expressas à época como
superáveis pelos "avanços do conhecimento". Em Venancio e Carvalhal
(2001) e Venancio (2004) perseguiríamos então a relação entre os temas
candentes à época, que discutiam a imagem do Brasil - o clima tropical e seus
efeitos sobre o comportamento do brasileiro, incluindo-se aí os excessos
sexuais, a miscigenação das raças, os ideais de saúde e doença -, e as teorias
científicas psiquiátricas divulgadas por Juliano Moreira.
Por um lado, o
conhecimento psiquiátrico que vigorava na época de Juliano Moreira estabelecia
uma relação de determinação entre raça e aparecimento de doença mental. Nina
Rodrigues (1862-1906), um dos maiores expoentes da nascente psiquiatria
brasileira, da medicina legal e da antropologia - num período em que tais
disciplinas estavam entrelaçadas -, discutiria a relação entre loucura e crime,
utilizando para tanto o aporte teórico da noção de degeneração e de sua
correlação com a miscigenação racial. Para Nina Rodrigues (1939 apud Oda,
2001), a distinção racial era importante para a compreensão das doenças físicas
e mentais, considerando-se que as raças transmitiriam "aos produtos de
seus cruzamentos caracteres patológicos diferenciais de valor". Nesse
contexto, segundo Oda (2001: 3),
“a inferioridade
racial dos negros e indígenas com relação ao branco era indiscutível e, assim
sendo, a miscigenação entre raças em diferentes patamares evolutivos
resultaria, fatalmente, em indivíduos desequilibrados, degenerados, híbridos do
ponto de vista físico, intelectual e nas suas manifestações comportamentais”.
Por outro lado, como
já mencionado, Juliano Moreira fundamentara sua ciência psiquiátrica no
pensamento do alemão Emil Kraepelin, que, em sua grande síntese classificatória
das doenças mentais de meados do século XIX, preocupara-se em estabelecer
nítidos critérios classificatórios do quadro clínico - tendo-se em vista a
etiologia patológica - e do curso ou evolução das doenças mentais. Conforme já
analisado em Venancio e Carvalhal (2001), para Kraepelin, assim como 'para
Juliano Moreira, as chamadas doenças mentais eram uma exceção biológica
passível de ser observada através da dimensão orgânica dos indivíduos.
O mais notável,
entretanto, na adoção da psiquiatria kraepeliniana por Juliano Moreira foi a
ousadia de sua transposição para uma realidade como a nossa, que, do ponto de
vista do mundo "civilizado", poderia servir como testemunho
societário da irredutibilidade das diferenças biológicas/naturais. O Brasil
vivia um período de desmantelamento de uma ordem social "tradicional",
com a eclosão de questões em torno da construção de uma identidade nacional.
Conforme Russo (1997), tratava-se de uma sociedade caracterizada pela
miscigenação de raças e que trazia em seu cerne as marcas de uma ordem social
hierárquica fortalecida pelos modelos de organização social imperial e
escravocrata, há bem pouco tempo colocados formalmente em jogo. Além disso,
fatores como o clima e as incipientes condições sanitárias reforçavam a
composição de um quadro social no mínimo problemático, tendo-se em vista o
estado de civilização dos países europeus na época.
E, portanto, em
relação a esse contexto que podemos entender o valor de ciência conferido aos
esforços de Juliano Moreira para refutar a idéia de uma hierarquia dos povos
pautada na diferença entre países de climas variados ou formações raciais
diversificadas. Moreira e Peixoto (1906) desenvolveriam a tese de que não
existem doenças mentais climáticas, afirmando assim que os climas tropicais em
si não dariam origem naturalmente a mais ou menos casos desse tipo de moléstia.
Na perspectiva desses autores, a incidência de neurastenia e histeria no
Brasil, por exemplo, não era diferente dos índices encontrados na Europa e na
América do Sul, mesmo considerando-se que formas convulsivas da histeria
poderiam se tornar epidemias, como a da Astasie-Abasia, em São Luís do
Maranhão, de 1879-1881. São recorrentes, nesse sentido, as afirmações sobre a
importância de um meio social saudável e uma educação eficaz na prevenção do
possível aparecimento de doenças mentais.
“O clima não influi
em nada sobre os sintomas de diversas psicoses. E no grau de instrução do
indivíduo que reside a causa das diferenças que podem se apresentar. O
descendente puro de dois caucasianos, igualmente puros, criado no interior, no
meio de pessoas ignorantes, apresenta os mesmos delírios rudimentares que os
indivíduos de cor desprovidos de instrução”. (Moreira e Peixoto, 1906: 238,
tradução minha).
Juliano Moreira
negaria também a correlação entre degeneração e constituição racial, indicando
que a primeira decorria de outros fatores causais: o alcoolismo, a sífilis e as
condições educacionais e sanitárias precárias. Como representante do pensamento
sanitarista no campo psiquiátrico, defenderia medidas profiláticas que, entretanto,
não tinham uma conotação racista (Oda, 2001: 6).
O pensamento de Juliano
Moreira sobre a dimensão físico-orgânica das doenças mentais e sobre suas
causas e evolução coadunava-se assim com uma perspectiva inovadora para o
pensamento psiquiátrico, pautada numa visada sobre
a igualdade das raças que possibilitaria a inclusão do miscigenado povo
brasileiro num projeto universalista de desenvolvimento. O que estava em jogo
era a prospecção de uma sociedade cujos integrantes, pelas vias da educação e
da produção de um meio social saudável, poderiam se constituir como moralmente
iguais e passíveis de ser influenciados por uma moralidade civilizada. Dessa
forma, eram combatidas as diferenças irredutíveis, presentes apenas na dimensão
físico-orgânica dos indivíduos. Tratava-se aqui da defesa do projeto de uma
sociedade igualitária frente às possíveis diferenças físico-orgânicas
individuais que, apesar de poderem atingir uma parcela da população, eram
comprovadamente independentes do clima e da constituição racial.
NOTAS:
1. Seria interessante
aprofundar os desenvolvimentos e transformações desse órgão público federal que
tomava para si a responsabilidade da assistência psiquiátrica no Brasil.
Conforme Engel (2001: 258) e Venancio (2003: 889), em 1930 o Sap passa a
integrar o Ministério da Educação e Saúde Pública criado pelo Governo
Provisório e, em 2 de abril de 1941, através do Decreto no 1.371, o
Sap é substituído pelo Serviço Nacional de Doenças Mentais (SNDM). A
reformulação do SNDM se daria em 1970, com a nova designação de Divisão
Nacional de Saúde Mental, órgão do Ministério da Saúde.
2. 2. Segundo os
autores citados, no caso da nascente psiquiatria francesa da primeira metade do
século XIX, a clínica psiquiátrica foi edificada em conjunto com uma política
assistencial asilar para os alienados, não estando nos avanços científicos e
sim na problemática da assistência pública a construção de uma competência
médica. No caso alemão, a ciência psiquiátrica se constituiu e se consolidou
afastada de uma política de assistência, sendo exercida desde seu surgimento
apenas nas clínicas universitárias. O prestígio da psiquiatria alemã florescia
nos espaços universitários, para onde convergia a criação de associações e de
revistas científicas e onde o ensino e a pesquisa psiquiátrica eram dominantes.
Ali era menos freqüentemente importante a demonstração para os alunos de
pacientes internados nos asilos, cuja preocupação com sua própria administração
tornava-os, em grande medida, abrigo para casos crônicos. Para uma discussão
mais estendida sobre a história da relação entre ciência psiquiátrica e
política assistencial no Brasil, ver Venancio (2003).
3. Esses três
hospitais psiquiátricos federais foram municipalizados a partir de 1996, e são
hoje designados respectivamente como Instituto Municipal de Assistência à Saúde
Juliano Moreira, Instituto Philippe Pinel e Instituto Municipal de Assistência
à Saúde Nise da Silveira.
4. Esse acervo de
textos fotocopiados encontra-se à disposição para consulta no Instituto Franco
Basaglia (IFB), sediado no Instituto Philippe Pinel, no Rio de Janeiro.
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Fonte: VENANCIO, Ana Teresa A. As faces de Juliano Moreira: luzes e sombras sobre seu acervo pessoal e suas publicações. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 36, julho-dezembro, 2005, p. 59-73.
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