terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

O mito europeu das sereias

A ideia de mulheres sobrenaturais que viveriam no mar, oceano, rios e lagos existe entre diferentes povos e lugares ao longo da História, porém, a versão das sereias oriundas da mitologia grega foi a que mais se difundiu no Ocidente e em outras partes do mundo. Sendo assim, a presente postagem comentou a respeito do mito grego das sereias e como ele foi ressignificado por outros povos europeus, ajudando a construir o imaginário que ainda hoje possuímos desses seres fantásticos. 

A Sereia. Elizabeth Jerichau Bauman, 1873. 

As sirenas e as sereias na mitologia grega

Nos mitos gregos existiam dois seres femininos híbridos com nomes parecidos e que estavam associados ao mar, elas eram as sirenas e as sereias. Eventualmente ambos os seres acabaram sendo confundidos e até mesmo considerados sinônimos. As sirenas eram seres alados metade mulher e metade pássaro, as quais viviam em algumas ilhas do Mediterrâneo. As sirenas era descritas como belas mulheres e gracioso canto, o qual encantava os marinheiros e navegantes, atraindo-os a ponto de eles perderem o controle das embarcações, levando-os a colidirem com recifes ou rochedos, ou até mesmo a pularem no mar para nadar até a ilha delas, mas acabavam se afogando. Essa visão negativa das sirenas pode ser encontrada na Odisseia

Vaso grego retratando Odisseu preso ao mastro de seu navio, enquanto ouve o canto das sirenas. Vaso datado de c. 475 a.C. 

Porém, nem sempre as sirenas foram tidas como criaturas traiçoeiras. O poeta romano Ovídio em seu livro de mitologia conta que as sirenas eram companheiras da deusa Perséfone, por sua vez, Higino repete esse relato, mas diz que Deméter culpou as sirenas em não proteger sua filha que foi sequestrada por Hades, então as baniu para uma ilha, tornando seu canto traiçoeiro aos homens. 

Pseudo-Apolodoro já escrevendo mais tardiamente, compara as sirenas com as sereias, falando que elas eram filhas do deus-rio Aqueloo, porém, ele compilou diferentes mitos sobre a identidade da mãe delas, mostrando que haveria três candidatas para isso: as musas Melpômene ou Terpisícore, ou Estérope. Outra versão atribui a paternidade delas a Fórcis, uma divindade marinha. Já quanto a quantidade de sirenas, ele escreveu que dependendo do mito existiriam duas, três ou quatro delas, cujos nomes variavam de acordo com a versão. Ainda assim, os nomes mais comuns das sirenas seriam Pisione, Aglaope e Thelxiepe

Estátua de uma sirena. Data de c. 370 a.C. 

Não se sabe ao certo quando a confusão entre as sirenas e as sereias surgiu, mas ela ainda ocorreu durante a Antiguidade, entre os próprios gregos e foi legada aos romanos. Condição essa que em versões mais tardias da Odisseia, as sirenas que aparecem ali foram substituídas por sereias. No mito da jornada dos argonautas também houve essa mudança, em que se trocou a disputa de Orfeu com as sirenas, substituindo-as pelas sereias. Condição essa que autores romanos como Ovídio, Higino e Pseudo-Apolodoro já consideravam em suas épocas entre os séculos II e I a.C, que as sereias e sirenas eram os mesmos seres, por tal condição esses autores chegaram a dizer que elas seriam filhas de Aqueloo. 

Mas quem seriam as sereias nos mitos gregos? 

Por conta de elas aparecerem confundidas com as sirenas, é difícil distinguir quando elas realmente passaram a ganhar importância, pois os mitos em que elas costumam serem citadas como nas jornadas de Odisseu e dos Argonautas, elas substituíram as sirenas. Por sua vez, os mitos que dizem que as sirenas eram companheiras de Perséfone e até das musas, as sereias não aparecem nesses casos. É interessante observar que a ideia das sirenas como mulheres-pássaros que cantam, faça mais sentido do que mulheres-peixes cantoras, pelo simples fato de que aves e pássaros cantam, mas os peixes não. 

Entretanto, na mitologia grega existe um deus marinho chamado Tritão, tido como filho de Poseidon e Anfitrite. Ele aparece em poucas narrativas, geralmente retratado como uma divindade benévola, apesar que existam histórias em que ele age de forma criminosa. De qualquer forma, Tritão era descrito como sendo metade homem e metade peixe. Um aspecto interessante, condição essa que seu nome passou mais tardiamente a designar o masculino de sereia. Ainda assim, não se sabe quando sua aparência teria influenciado as sereias. 

Héracles lutando contra Tritão. Vaso grego datado de c. 520 e 510 a.C. 

Apesar desse vaso com Tritão ser mais antigo do que o vaso apresentado anteriormente com a sirena, no entanto, já no século VI a.C existem vasos representando as sirenas, o que significa que ambos os seres já eram retratados na mesma época, mas o mais interessante é que não temos representações de sereias desse período, o que novamente aponta que o mito grego das sereias seja posterior ao das sirenas. Por sua vez, na arte romana já mais tardia, entre os séculos II a.C a III d.C, encontramos sereias em mosaicos. 

As sereias como guias dos mortos

Outro aspecto menos conhecido das sereias diz respeito a ligação delas com os mortos, atuando como psicopompos (guia das almas). Não se sabe quando e como essa crença surgiu, mas ela já era referida pelos gregos e romanos desde antes o século V a.C, em que encontramos epitáfios e hinos fúnebres fazendo menção as sirenas ou sereias pedindo que elas auxiliassem a alma em sua jornada para a outra vida. (CASELLI, 2020). 

A crença de espíritos, criaturas ou divindades que auxiliavam os mortos a encontrar o rumo certo existe em diferentes religiões, no caso dos gregos e romanos isso existiu também, condição essa que o próprio deus Hermes possuía uma função de psicopompo, assim como, o deus Tânatos e outras divindades. A condição das sereias estarem associadas com a morte no sentido de atrair para a perdição os homens que eram encantados por seu canto ou beleza, as tornaram mais próximas da morte, mas o intrigante é a condição de elas em algumas crenças se tornarem guias dos mortos, auxiliando pelo céu ou pelo mar a viagem da alma até o seu descanso. Alguns túmulos gregos e romanos possuíam imagens de sereias e outros seres que atuavam como guardiões dos mortos e psicopompos. 

Uma sereia alada com duas caudas em um túmulo romano do século III a.C. 

As sereias na Idade Média

Quando o medievo começou no século V d.C. a fusão entre sirenas e sereias já estava concluída, apesar que alguns escritores, poetas, escultores e pintores ainda as distinguissem, condição essa que se pode encontrar representações medievais de sirenas como seres distintos das sereias, de qualquer forma, foram as sereias que prevaleceram como as cantadoras do mar. Outro fato a ser mencionado que a palavra sirena passou a ser sinônimo de sereia, condição ainda hoje mantida em alguns idiomas como o espanhol, o italiano e o francês, o que mostra com ambas as criaturas realmente foram mescladas. 

No século VII o bispo Isidoro de Sevilha (c. 560-636) escreveu uma enciclopédia sobre vários assuntos, intitulada Etimologias. No livro sobre os animais e criaturas fantásticas ele menciona brevemente as sereias, chamando-as de sirenas, falando serem criaturas metade mulher e metade pássaro, mas algumas eram metade peixe, pois Vênus nasceu do mar. Em seguida ele comentou que haveria apenas três delas, as quais seriam excelentes cantoras, com direito a usarem instrumentos musicais. Isidoro associava as sereias as alegorias do amor, por isso dizendo que elas seriam pássaros com garras afiadas porque o "amor voa e fere", mas elas se tornaram aquáticas, pois a deusa do amor nasceu do mar. Essa interpretação é importante ser destacada, pois diferente de outros autores medievais, ele não destacou o lado negativo das sereias, mas até mesmo o suprimiu.

No Liber Monstrorum (Livro dos Monstros) uma pequena enciclopédia de autoria anônima, escrita entre os séculos VII e VIII, menciona que as sereias eram belas criaturas metade mulher e metade peixe, as quais com sua beleza e canto encantavam os marinheiros atraindo-os para o fundo do mar ou para as rochas, levando as embarcações a encalhar.   

Sereias atacando um navio. A tripulação dormiu diante do canto delas. Ilustração para o bestiário de Bodleian, séc. XIII. 

No livro Fisiólogo de autoria anônima, o qual é o ancestral dos bestiários, em suas várias versões, algumas apresentam as sirenas e as sereias, em alguns momentos ambas as criaturas são tratadas como seres diferentes, mas em alguns casos são considerados o mesmo ser. O Fisiólogo por ter um discurso religioso de influência cristã passou a retratar as sereias como seres ainda mais perversos, os quais malignamente seduziam os marinheiros com seu canto e beleza, atraindo-os para armadilhas. 

Uma das versões datada do século VIII ou IX, conta que o canto da sereia fazia os homens adormecerem, então elas os assassinavam e os esquartejavam; outro relato diz que elas os devorariam. Por conta disso, a sereia passou a ser um símbolo de luxúria, pois ela se valia da sensualidade para iludir os homens. Vale lembrar que o Fisiólogo possuía em alguns casos noções de moral, advertindo os cristãos a terem cuidado com as várias artinhas do Diabo e seus seguidores, pois, as sereias e outros monstros dos mitos antigos passaram a serem considerados demônios. 

No século XIII o clérigo erudito Alberto Magno (c. 1190-1280) em seu bestiário intitulado De Animalibus, escreveu que as sereias eram belas mulheres metade peixe ou metade pássaro, as quais possuíam um doce e sedutor canto que atraía os marinheiros para a morte. Em seguida ele relata que os navegantes experientes tapavam os ouvidos e atiravam garrafas no mar, pois elas atraíam a curiosidade das sereias, distraindo-as. 

Uma sereia retratada no bestiário de Guilherme de Clerc, folio 21, séc. XIII. 

Embora sereias fossem citadas ainda no começo da Idade Média, as representações iconográficas como ilustrações, pinturas, esculturas e desenhos somente começaram a proliferar a partir do século XI com as mudanças artísticas iniciadas pela arte românica e a arte gótica, condição essa que nos duzentos anos seguintes proliferaram representações de seres mitológicos e fantásticos, incluindo a condição de encontrarmos sereias esculpidas ou pintadas em algumas igrejas. Mas a presença delas não seria algo positivo, pois naquele período havia o costume de representar nas igrejas os monstros e demônios como forma de instruir os cristãos a temerem tais seres e saberem reconhecê-los caso visse algum, deveriam se manter longe. 

Um aspecto a ser apontado é que na arte sacra tínhamos principalmente a representação das sereias, porém, em alguns bestiários e ilustrações de livros, poderia se encontrar sereias e sirenas, lembrando que ambas nesse tempo eram consideradas a mesma criatura, apenas sendo uma variante. 

Também foi no medievo que sereias passaram a serem usadas na heráldica para ilustrar brasões de armas de famílias e cidades. Inclusive algumas bandeiras também adotaram a imagem delas mais tardiamente. De qualquer forma, um dos brasões mais famosos contendo sereias é o da cidade de Varsóvia, atual capital da Polônia. Essa sereia seria baseada na lenda de Melusina, que se popularizou no século XIV. Originalmente a seria de Varsóvia ainda conservava aspectos das sirenas, por conter corpo de pássaro e até escamas de dragão, depois adotaram o visual mais comumente que conhecemos. Outro fato a ser mencionado é que essa sereia era vista de forma positiva, mesmo na Idade Média, tida como um espírito protetor da cidade. 

O brasão de Varsóvia possui uma sereia guerreira. Ele surgiu no final da Idade Média. 

A lenda da Melusina

A Melusina foi uma lenda que se difundiu por países como França, Alemanha e Inglaterra, inspirada nas sereias, pois a Melusina era um espírito aquático associado a rios, lagos e fontes, o qual era descrito como uma bela mulher que teria características híbridas como ser metade peixe ou cobra, e até possuir duas caudas e asas. 

A lenda da Melusina se tornou popular em algum momento do século XIV, pois a partir dele por mais de cem anos depois, vários escritores e poetas escreveram sobre a personagem. Cada autor concedeu suas próprias interpretações e gostos para a lenda, condição essa que outros personagens foram criados para a lenda, como a mãe, as irmãs, o marido, os amantes etc. 

Além disso, em algumas narrativas a Melusina é referida como uma mulher boa, a qual escondia seu segredo, por conta disso não costumava mostrar os pés, sempre usando vestidos longos que arrastavam no chão, pois da cintura para baixo ela teria uma cauda escamosa. Algumas versões relatam que ela conseguia se transformar totalmente em mulher, mas em determinados momentos ela voltava a sua forma original, então escondia-se nesse momento. Em outras histórias a personagem tem um caráter mais maléfico como o das sereias, em que ela ludibria os homens que se apaixonam por sua grande beleza. 

O segredo de Melusina. Ilustração para o Romance de Melusina, datado de 1410. 

Embora tenha sido inspirada nas sereias, a Melusina não era associada ao mar, mas a rios, lagos, lagoas e fontes, ela encarnava a ideia dos espíritos aquáticos encontrada pelo folclore europeu do período como as nixies, as fadas d'água, as naiades etc. Por conta disso, em algumas narrativas a Melusina era encontrada banhando-se num rio ou lago. Na França e na Inglaterra essa lenda inclusive foi associada ao Ciclo Arturiano, havendo narrativas que colocam essa sereia da água doce em contato com Lancelot e a lendária ilha de Avalon, associada com as fadas. 

As serias na Idade Moderna

No período moderno a presença das sirenas se tornou cada vez mais rara, predominando a iconografia das sereias, as quais ainda seguiam como seres traiçoeiros que com sua sedução pelo canto ou pela beleza, enganavam os marinheiros, fazendo-os dormir ou se jogarem na água para ir atrás delas. Mas se até o medievo as sereias ainda estavam principalmente associadas ao Mediterrâneo e a costa europeia, foi com as Grandes Navegações que seu mito se espalhou. Dessa forma, nos séculos XVI e XVII viajantes relataram terem avistado ou ouvido falar de sereias na África, Américas e Ásia. Esses seres passaram a serem supostamente avistados no Atlântico Sul, no Índico e no Pacífico. 

Cristóvão Colombo (1451-1506) em uma de suas viagens ao Caribe, relatou que não viu monstros como ouvia dizer que existiam nas Índias, mas falou que viu de longe três sereias e elas não eram belas como se diziam ser nas lendas. Por sua vez, Fernão Cardim (c. 1549-1625) em visita ao Brasil, relatou que existiam monstros aquáticos chamados de ipupiaras, os machos seriam seres horrendos, mas as fêmeas eram um pouco mais bonitas. O interessante de seu relato é que ele não as comparou diretamente com as sereias, mas isso fica subentendido. Todavia, ele não mencionou nenhum canto, mas diz que essas "sereias" atacavam os homens e os puxavam para a água, beijando-os antes de afogá-los. Então elas poderiam arrancar seus olhos, narizes, orelhas, dedos e os genitais. (DEL PRIORE, 2000). 

Detalhe da pintura Captain Hailborne in Saint John at Newfoundland. Ludwig Gottfriedt, 1655. Nessa imagem vemos colonos ingleses no Canadá avistando sereias. 

O viajante inglês Anthony Knivet (c. 1560 - c. 1649) esteve no Brasil em 1591 durante o ataque pirata de Thomas Cavendish à colônia portuguesa. Ele acabou sendo feito prisioneiro, morando vários anos no Brasil até que em 1599 foi enviado para Portugal, onde residiu até 1602. De qualquer forma, nesses anos vivendo na América Portuguesa, Knivet mais tarde escreveu um relato dessa sua experiência, publicado somente em 1625. Nesse seu livro ele mencionou ter visto sereias nas praias brasileiras. 

O Livro das Maravilhas de Juan de Mandevilla foi publicado no século XVI e representa uma narrativa fictícia de um inglês que viajou pela África e Ásia, relatando sobre curiosidades e estranhezas daquelas terras exóticas. Um dos destaques da obra é as várias menções a monstros, o que incluem sereias, embora ele não tenha dado atenção a elas, mas disse que elas existiriam no Oceano Índico como em outras partes do mundo. 

Detalhe do mapa Theatrum Orbis Terrarum de Abraham Ortelius, 1570, mostrando duas sereias contemplando suas belezas em espelhos. Ambas são encontradas no Oceano Pacífico. 

O peixe-boi e as sereias

No século XV quando os europeus começaram a navegar pela costa atlântica da África e depois chegaram às Américas, eles se depararam com uma espécie animal nova o peixe-boi, os quais abundavam em algumas localidades da costa africana, na costa atlântica da América do Sul e pelo Caribe e as Antilhas, chegando até o que hoje é a Flórida. Quando os europeus viajaram também para a Ásia, ali encontraram outra espécie aparentada, os dugongosEsses animais hoje estão ameaçados de extinção por conta da caça predatória e desequilíbrio ambiental, mas seiscentos anos eles abundavam nessas águas, e por serem animais totalmente diferente do que os europeus estavam acostumados, eles ao avistarem de longe tomaram para si que seriam sereias ou tritões. 

Localização das três espécies restantes de peixes-boi do Atlântico. Em verde o peixe-boi marinho, em vermelho o peixe-boi amazônico e em laranja o peixe-boi africano. 

No passado o peixe-boi marítimo era localizado ao largo da costa brasileira, indo do Amapá até o Rio de Janeiro, mas por conta dos problemas já relatados, as populações sumiram dessa localidade, restando apenas alguns poucos indivíduos protegidos em reservas. Apesar de eles terem sido quase extintos do litoral brasileiro, ainda assim, na região caribenha e africana é possível encontrar esses animais pelo mar, embora em menor quantidade. E como eles eram abundantes no passado, significava que era ainda mais fácil de serem avistados. (HARTMAN, 1969). 

A cauda do peixe-boi lembra a da sereia, inclusive seu dorso também sugere isso. No escuro e em baixa luminosidade, um peixe-boi nadando perto de uma embarcação poderia ser confundido com uma sereia. Inclusive as fêmeas possuem mamas e produzem leite, afinal, são mamíferos. Fato esse que Colombo teria avistado peixes-boi em suas viagens pelo Caribe e relatou que as "sereias" eram feias. Outros viajantes também chegaram a associar o peixe-boi com as sereias apontando as semelhanças que eu assinalei acima, mas concordando que eles eram feios, e não pareciam com as belas sereias que as lendas falavam. (HARTMAN, 1969). 

Três peixes-boi, os quais no passado foram confundidos com as sereias. 

É preciso salientar que à medida que os europeus começaram a colonizar parte da África e das Américas, eles se habituaram aos peixes-boi, havendo relatos descrevendo sua aparência e até consumo, pois eles eram caçados por serem animais de boa quantidade de carne e gordura. Ainda assim, alguns ilustradores da época chegaram a usar características desse animal para ilustrar tritões e outros monstros marinhos. No entanto, a associação com as sereias embora tenha sido desassociada com o tempo, pois percebeu-se que eles não eram as mulheres das lendas, no entanto, na taxonomia essa associação se manteve, até hoje a ordem animal a qual os peixes-boi e dugongos pertence é chamada Sirênia

As sereias no Romantismo

Com o advento do Romantismo no século XIX, as sereias foram efetivamente tratadas como apenas lendas, já que a crença de que elas poderiam ser reais começou a decair ainda no XVII. As sereias ainda eram usadas para expressar o drama, o amor e a paixão. A primeira grande referência desse período foi o conto de fadas A Pequena Sereia (1835) do escritor dinamarquês Hans Christian Andersen, cuja narrativa apresenta uma jovem Sereia (ela não tem nome no texto original) a qual ao se apaixonar por um príncipe, decide encontrar uma forma de se tornar humana para viver sua paixão. Apesar de ser uma história infantil, ela possui sua carga de dramaticidade, a qual foi adaptada para o desenho animado A Pequena Sereia (1989).

Ilustração de A Pequena Sereia, em que a protagonista conhece o príncipe. Henry Holiday, 1867. 

O escrito português Camilo Castelo Branco (1825-1890) publicou o romance trágico A Sereia (1865), fazendo uso dela como alegoria para sua narrativa. Embora que em seu livro não apareçam sereias propriamente, mas o imaginário e símbolos que elas representam, são encontrados nesse romance. Data também dessa época a música O Canto da Sereia de Oberon (1866) do compositor Charles Kinkel

Mas além de expressarem o lado dramático e passional, na pintura as sereias se tornaram ícones de beleza. Por conta disso, entre 1879 e 1910 é possível encontrar uma variedade de pinturas de sereias, a maioria delas retratando formosas mulheres.

Quadro Donzelas do Mar, Evelyn de Morgan, 1885-1886. 

Essa tendência ainda hoje é mantida, fato esse que uma mulher ser chamada de sereia é normalmente tido como um elogio, não uma ofensa, pois o lado negativo delas passou a ser suprimido principalmente com o Romantismo, tornando as sereias em seres belos e benéficos. Embora que um ou outro autor ainda mantivesse de pé o legado mitológico das sereias como traiçoeiras cantadoras do mar ou a noção cristã delas como a tentação da luxúria. 

O folclorista brasileiro Câmara Cascudo apontou que a lenda de Iara foi construída com base na versão romântica das sereias. Ele assinala que antes do século XVIII não encontramos relatos sobre Iara. E as lendas e contos que dispomos do XIX, retratam ela como uma sereia de água doce, de grande beleza, a qual poderia ser gentil ou agressiva, capturando os homens, derrubando-os dos barcos. (OLIVEIRA, 2021). 

A influência romântica do século XIX foi legada ao século seguinte, em que tivemos pinturas, livros, filmes, desenhos animados, histórias em quadrinhos, músicas retratando o lado positivo e belo das sereias. Embora que surgiram também narrativas apresentado os aspectos traiçoeiros e sombrios, como dos antigos mitos e lendas medievais. 

NOTA: A atriz e nadadora australiana Annette Kellerman (1886-1975) foi a primeira atriz a se popularizar na interpretação de sereias. Ela atuou em cinco filmes sobre o tema. 

NOTA 2: O famoso escritor de ficção científica H. G. Wells possui uma história de sereia, embora seja pouco conhecida. Ela foi intitulada The Sea Lady (1901). 

NOTA 3: No livro infantil Peter Pan e Wendy (1911), sereias habitam a Terra do Nunca, e elas são retratadas como mulheres belas, mas perigosas. 

NOTA 3: No livro infantil Wet Magic (1913) de Edith Nesbit, acompanhamos quatro crianças que são capturadas ao lado de uma sereia e passam a serem exibidas num circo. Mas eles conseguem fugir e a sereia apresenta o reino de onde ela veio. 

NOTA 4: A personagem Namora da Marvel Comics foi criada em 1947, sendo inspirada na beleza das sereias. 

NOTA 5: No livro As Crônicas de Nárnia: A Viagem do Peregrino da Alvorada (1952), sereias aparecerem. 

NOTA 6: No conto Um pequeno sacrifício no livro The Witcher: A Espada do Destino (1992), Geralt de Rívia conhece a bela sereia Sh'eenaz, descrita tendo mamilos, pele e cabelos esverdeados. Na história ela esta apaixonada por um príncipe e pede a ajuda de Geralt para investigar seu futuro noivo. Todavia, nos jogos da franquia as sereias e sirenas são criaturas perversas, Sh'eenaz é uma exceção, por ser bondosa e gentil. 

NOTA 7: No jogo The Legend of Zelda: Link's Awakening (1993) temos oito instrumentos musicais mágicos que são chamados de Instrumentos das Sereias. Além disso, existe uma sereia com quem se pode conversar e ajudar a encontrar um objeto perdido. 

NOTA 8: Na franquia Harry Potter sereias vivem no lago diante de Hogwarts, inclusive o maior destaque a elas e os tritões ocorre em Harry Potter e o Cálice de Fogo (2000). Todavia, nessa franquia, as sereias e tritões não teriam uma aparência igualmente humana. 

NOTA 9: No filme Piratas do Caribe: Navegando em Águas Misteriosas (2011), sereias são apresentadas como mulheres sedutoras que atraem os homens para a morte. 

NOTA 10: No jogo Dragon Quest XI (2017) existem algumas sereias e uma delas faz parte de uma história de amor. 

Fontes: 

ALBERT, The Great. Man and the Beasts. De Animalibus (books 22-26). New York, Medieval & Renaissance texts & Studies, 1987. 

HOMERO. A Odisseia. Tradução de Frederico Lourenço. Lisboa: Livros Cotovia, 2013. 

ISIDORE of Seville. Etymologies. Cambridge, Cambridge University Press, 2006. 

KNIVET, Anthony. As incríveis aventuras e estranhos infortúnios de Anthony Knivet. Rio de Janeiro, Jorge Zahara, 2007. 

OVÍDIOMetamorfoses. Tradução de Manuel Bocage. Porto Alegre, Concreta, 2016. 

PHYSIOLOGUS. A medieval book of nature lore. Translated by Michael J. Curley. Chicago, University of Chicago Press, 2009. 

RODRIGUEZ, Temperley; MERCEDES, Maria (orgs.). Juan de Mandevilla: Libro de las maravillas del mundo y del Viaje de la Tierra Sancta de Jerusalem. Buenos Aires: Ibicrit-Secret, 2011. 

Referências bibliográficas: 

CABRAL, Luiz Alberto Machado. A Biblioteca de Pseudo-Apolodoro e o estatuto da mitografia. Tese em Doutorado em Linguística, Universidade Estadual de Campinas, 2013. 

CASELLI, Andrea. As sereias que singraram o Atlântico. Práticas da História, n. 10, 2020, p. 219-248. 

DEL PRIORI, Mary. Esquecidos por Deus: monstros no mundo europeu e ibero-americano (séculos XVI-XVIII). São Paulo, Companhia das Letras, 2000. 

HARTMAN, D. S. Florida's manatees, mermaids in peril. National Geographic, v. 136, n. 3, 1969, p. 342-353. 

GRIMAL, Pierre. Dicionário da mitologia grega e romana. Tradução de Victor Jabouille. 5a ed. Bertrand Brasil, 2005. 

KURY, Mário da Gama. Dicionário de mitologia grega e romana. 8a ed. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2009. 

OLIVEIRA, Leonardo Davino de. De Musas e Sereias: a presença dos seres que cantam poesia. Cadernos da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, 2021. 

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

A invenção da pólvora

A pólvora negra foi uma invenção por acaso a qual casou grande impacto no curso da História, permitindo a criação de explosivos, armas de fogo, máquinas e outros inventos que foram usados para fins militares, mas também para a exploração e expansão territorial, condição essa que alguns historiadores falam da Era da Pólvora (1200-1900). O presente texto não abordou esse período histórico, isso ficará para outra ocasião, por hora conheceremos como a pólvora foi descoberta. 

A alquimia chinesa

Séculos antes da alquimia se popularizar na Europa, os chineses já a praticavam, embora a alquimia deles em vários aspectos fosse diferente da europeia, mas ambas tinham em comum a busca de elementos mágicos, fazendo-se uso de minerais, metais, plantas, óleos, animais, líquidos, substâncias, gases etc. Por conta disso, os alquimistas chineses eram primitivos químicos experimentais, misturando ingredientes para criar poções e elixires supostamente mágicos. Inclusive vários alquimistas passaram anos tentando desenvolver o elixir da imortalidade que na Europa foi associado com a lenda da pedra filosofal. 

A alquimia chinesa remonta desde a Antiguidade, perdendo-se no tempo, embora que mitos falem que ela teria sido criada há milhares de anos. No entanto, essa alquimia era fortemente influenciada por preceitos religiosos advindos do Taoísmo e depois do Budismo. Alguns alquimistas eram monges e sacerdotes de carreira, que enxergavam nessa pseudociência outra forma de compreender a natureza e os mistérios do mundo, da vida e da morte, condição essa que a alquimia era tida como algo divino, uma criação dos deuses. (KELLY, 2004). 

Ilustração mostrando a descoberta da pólvora. Autoria desconhecida. 

Pela condição dos alquimistas chineses fazerem experimentos com várias substâncias em algum momento do século IX, ou talvez antes, alguns deles produziram a pólvora. No livro de receitas intitulado Shengzu Jidan Mijue, datado de 808, o autor informa sobre uma substância que misturava salitre, enxofre e uma erva não especificada. A tal substância foi nomeada de huoyao, que supostamente seria um emplastro para tratar queimaduras, o problema é que a mistura era um reagente incendiário. (NEEDHAM, 1986). 

Pode parecer estranho usar uma substância incendiária para tratar queimaduras, mas isso seguia o pensamento analógico da época, em que se utilizava algo parecido para tratamento. Tal concepção era comum na medicina tradicional chinesa (e até em outras medicinas arcaicas e mágicas), em que temos receitas de uso de dentes para tratar dor de dente, uso de pênis de cervos para fazer medicamentos para impotência sexual, uso de cabelos para tratar calvície, consumo de fígado para problemas hepáticos, coisas do tipo. 

A pólvora dos chineses

Enquanto ainda existem dúvidas de quem teria descoberto a pólvora e quando isso teria ocorrido, encontra-se registros de que no século X, experimentos usando a pólvora negra para fins militares, foram realizados. Os inventores chineses começaram a desenvolver novas armas, as chamadas armas de fogo, as quais compreendiam lanças de fogo, foguetes, canhões, bombas, minas etc. Todo esse armamento fazia uso da pólvora, cuja mistura foi sendo aperfeiçoada entre os séculos X e XIII. (NEEDHAM, 1986). 

Em tratados militares dos séculos XI e XII como o Wujing Zongyao, já se encontrava menções a algumas dessas armas de fogo e a produção de pólvora, formada por salitre (nitrato de potássio), enxofre e carvão. A depender do tipo de arma a quantidade de cada ingrediente era alterada para conceder maior ou menor efeito explosivo, emissão de fumaça e brilho. Ainda assim, observa-se que os chineses já em meados da Idade Média já tinham dominado a criação de pólvora. (KELLY, 2004). 

Um canhão chinês datado da Dinastia Yuan (1271-1368). 

As invenções de armas de fogo proliferaram na China dos séculos XI ao XIV, inclusive alguns desses armamentos, especialmente os canhões e bombas foram usados em guerras no Japão, Vietnã e Tailândia. Além disso, algumas dessas armas, mas principalmente receitas de fabrico de pólvora, chegaram à Indonésia, Índia e a Pérsia. Condição essa que no século XIII, temos autores desses lugares explicando o fabrico de pólvora. 

A lenda de Berthold, o Negro

No século XIV ou XV surgiu a lenda de que um monge franciscano que era inventor e alquimista chamado Berthold, teria inventado a pólvora e o canhão. Segundo a lenda, Berthold viveu na Alemanha no século XIV, tendo nascido em Friburgo, entretanto, diferentes versões da lenda falam que ele seria um monge ora franciscano ou beneditino, outras versões dizem que ele seria apenas um inventor, ou alquimista, ou professor universitário etc. (PARTINGTON, 1998). 

Estátua de Berthold, o Negro em Friburgo, na Alemanha. 

A forma como ele descobriu a pólvora teria sido de caráter acidental, mas por conta da fuligem gerada que o deixou sujo, ele ganhou o apelido de "negro", sendo chamado também de Berthold Schwarz em alemão ou Berthold Niger em latim. Embora que outros relatos apontem que ele não teria feito a descoberta acidentalmente, mas estivesse estudando antigas fórmulas aristotélicas e alquímicas. De qualquer forma, a fama de inventor da pólvora se espalhou por alguns países europeus, sendo referenciada em vários livros até mais ou menos o século XVI. 

Partington (1998) comentou que a pólvora já era mencionada em alguns escritos europeus ainda no século XIII por conta dos contatos com os árabes, mongóis e turcos. Todavia, somente no século seguinte os primeiros canhões chegaram ao continente europeu através dos turcos e bizantinos, havendo menções deles na Grécia, Itália, França e Alemanha, condição essa que teria inspirado a lenda de Berthold. 

Roger Bacon inventou a pólvora na Europa?

Mas Berthold Schwarz não teria sido o único suposto inventor europeu a ter criado a pólvora e as armas de fogo, no final do medievo surgiu também a versão de que o monge estudioso Roger Bacon teria sido o inventor da pólvora. Mas diferente de Berthold, Bacon foi uma pessoa que realmente existiu e tinha fama de ser grande estudioso. Inclusive hoje os historiadores consideram que a história dele possa ter servido de base para a criação da lenda de Berthold. (KELLY, 2004). 

Roger Bacon (1214-1294) foi um monge franciscano inglês que estudou em Oxford e Paris, tendo dedicado a vida às ciências, estudando filosofia natural, física, química, astronomia e geografia. Eventualmente ele acabou ingressando na alquimia também, na época tida como uma ciência. Bacon escreveu livros de teologia e científicos, sua maior obra é chamada literalmente Opus Majus (Maior Obra), uma coletânea de seus vários estudos, dividida em sete partes, abarcando mais de 800 páginas escritas. (NEEDHAM, 1986). 

Na sexta parte da Opus Majus, intitulada Sobre a Ciência Experimental (De scientia experimentalis), Bacon falou sobre um invento que ouviu falar, o qual seria a espécie de um pequeno artefato de fogo, referido por ele como "brinquedo de criança", que era acionado com o uso de uma faísca que ativava um pó preto feito de salitre, enxofre e carvão, que gerava um forte estrondo fumacento e com brilho. Pelo que parece, ele descreveu alguma bombinha ou até mesmo fogos de artifício. De qualquer forma, não se sabe como ele tomou conhecimento desse artefato, já que ele se refere ao mesmo de forma indireta, sem dar nome e nem define a pólvora, a qual ainda era pouco conhecida dos europeus naquela época. (NEEDHAM, 1986). 

Frontispício da Opus Majus em edição de 1750. 
 
Por conta da menção a pólvora mais tarde surgiu a teoria de que Roger Bacon teria sido o inventor dela. Isso foi difundido por estudiosos até a Idade Moderna, o problema é que Bacon até onde se sabe, não fez experimentos com a pólvora, além de citar a mesma brevemente em seu livro, dando mais atenção a temas sobre óptica e matemática. No entanto, além dele, Alberto Magno (c. 1193-1280), outro notório monge estudioso e alquimista da época, também supostamente teria sido o inventor da pólvora, por mencionar ela em um de seus estudos, mas hoje considera-se que ele tenha feito a menção a partir da obra de Bacon. (PARTINGTON, 1998). 

Referências bibliográficas: 

KELLY, Jack. Gunpowder. New York: Basic Books, 2004. 

NEEDHAM, Joseph. Science & Civilization in China, vol. 7: The Gunpowder Epic. Cambridge, Cambrdige University Press, 1986. 

PARTINGTON, J. R. A history of greek fire and gunpowder. Baltimore/London, The John Hopkins University Press, 1998. 

sábado, 4 de fevereiro de 2023

O Barão Vermelho e os primórdios da guerra aérea

O piloto Manfred von Richthofen ficou conhecido como Barão Vermelho, tornando-se o primeiro grande Ás da História, tendo derrubado mais de cem aviões nos primórdios da guerra aérea, durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). O presente texto contou um pouco da sua breve carreira como piloto de guerra e o uso de aviões para fins bélicos. 

Introdução

A história da aviação começa propriamente no século XVIII quando a invenção dos aeróstatos (balões e dirigíveis), embora que antes disso existam protótipos e experimentos de criar aeronaves, mas nada foi efetivo. Por sua vez, no XIX tivemos o desenvolvimento de planadores até chegar aos aviões primitivos. Vale ressalvar que os aviões desenvolvidos entre 1860 e 1900 a maioria foram testes infrutíferos, pois poucos realmente funcionavam, e menos ainda conseguia se manter no ar. Por conta disso, alguns historiadores costumam considerar que a era dos aviões somente começou no século XX, quando tivemos modelos eficazes. 

Entre 1895 e 1905 uma variedade de planadores foram desenvolvidos para diversos testes no intuito de construir modelos eficientes. Esses planadores não costumavam possuir motores, valendo-se de catapultas ou outras formas de serem rebocados ou arremessados, então usariam as próprias correntes de ar para poder se manter voando. Alguns protótipos chegaram a fazer uso de motores simples, mas possuíam dificuldades de estabilidade, velocidade e sobretudo para pousar. Os Irmãos Wright (Wilbur e Orville) se destacaram no desenvolvimento de planadores entre 1900 e 1905, por sua vez, na França, muitos inventores estavam indo além desses planadores, um deles que ganhou destaque foi o brasileiro Alberto Santos Dumont, que em 1906 realizou um voo avaliado pelo Aéro-Clube da França, abordo do 14 bis. 

O sucesso do voo experimental de Santos Dumont, impulsionou outros inventores como Henri Farman, Gabriel Voisin, Louis Blériot, entre outros, a aperfeiçoarem suas máquinas e de 1907 a 1909, os aviões monoplanos (duas asas) e biplanos (quatro asas) foram desenvolvidos massivamente a ponto de que nesse período se tornou comum, na França e Estados Unidos, exibições áreas, torneios de invenções, competições de voos mais longos e rápidos, até mesmo viagens de longa distância, como a travessia do Canal da Mancha em 1909

A partir de 1910 começaram a surgir fábricas de aviões e a se realizar corridas aéreas. Os modelos de aeronave haviam se aperfeiçoado bastante nos últimos seis anos, condição essa que alguns inventores decidiram fazer testes para criação de aviões com o intuito militar, assim surgiam os aviões de guerra. Na época Santos Dumont foi um dos aviadores e inventores de aviões que se posicionou contrário ao uso deles para fins de guerra, posicionamento que manteve até o fim da vida. 

O primeiro protótipo de avião militar surgiu ainda em 1909 com o Blériot XI, uma aeronave ainda feita de madeira, baseada no modelo usado por Louis Blériot para atravessar o Canal da Mancha. A ideia inicial era equipar esse avião com algumas bombas. O projeto foi sendo desenvolvido e interessou os italianos os quais em 1911 tinham entrado em guerra com os turcos, na chamada Guerra Ítalo-Turca (1911-1912), foi um conflito que durou um ano, mas serviu de laboratório para o desenvolvimento de aviões de guerra. 

Naquela época os aviões militares não possuíam armamento, eles carregavam poucas bombas, atuando como bombardeios. Sendo assim, o capitão Giolio Gavotti, em 1 de novembro de 1911, realizou manualmente o lançamento de pequenas bombas sobre um base turca em Trípoli, na Líbia. Foi o primeiro registro histórico de um bombardeio aéreo. Até o fim da guerra, outros bombardeios foram realizados. No entanto, o feito motivou o desenvolvimento de aviões de guerra na Itália, Alemanha, França e Estados Unidos. Condição essa que em 1913, os mexicanos fizeram uso de bombardeios para atacar bases dos rebeldes durante a guerra revolucionária. O uso de aviões de guerra era um caminho sem volta. 

Com o advento da Primeira Guerra Mundial, a Alemanha tratou de criar sua força aérea em 1914, chamada ainda de Fliegertruppe, equipada com aviões, dirigíveis e balões. Inicialmente tratava-se de uma força de reconhecimento, ainda não voltada para a guerra propriamente falando. A França e a Itália que já possuíam suas forças aéreas investiram no crescimento de seus veículos, pistas e no treinamento dos pilotos. Em 1914 os ataques aéreos ainda se resumiam a bombardeios, mas a realidade mudou no ano seguinte, quando surgiram os aviões equipados com metralhadoras, iniciando definitivamente a guerra aérea. O Vickers F.B.5 era um caça de origem britânica equipado com uma metralhadora Lewis de calibre .303. 

Manfred entra para a guerra

Manfred Albrecht von Richthofen nasceu em 1892, em Breslau, na Silésia, era o segundo de quatro filhos de Albrecht von Richthofen (1859-1920), um militar da cavalaria. Em 1901 a família mudou-se para a Polônia, onde Manfred cresceu. Já adolescente foi enviado junto ao seu irmão Lothar (1894-1922) para estudarem na Inglaterra, em Oxford. Os depois voltaram para a Alemanha e entraram na escola de oficiais da cavalaria, em 1911. 


Manfred von Richthofen usando uma medalha Pour le Mérite prussiana, em foto de 1917. 
Três anos depois eclodiu a guerra e os Richthofen foram enviados para essa, porém, devido a adoção da guerra de trincheira, a cavalaria se tornou uma força ineficaz, então os regimentos de cavalaria foram tirados da maior parte dos combates, com isso, os irmãos Richthofen foram designados a outras atividades secundárias, que não era ir para frente de batalha.

Todavia, em 1915, Manfred ao visitar um campo de pouso se encantou com os aviões que viu ali, decidindo tentar se tornar piloto. Ele solicitou transferência para a força aérea e essa foi aceita. Ele participou de expedições de reconhecimento em meados daquele ano, mas somente em outubro começou o curso de piloto, pois queria ir para a ação. Empolgado com a aviação, Manfred convenceu seu irmão Lothar a também pedir transferência, esse se interessou pela aviação e aceitou. Dessa forma os irmãos Richthofen se tornaram pilotos de caça. Nessa época Manfred conheceu o piloto Oswald Boelckle (1891-1916), o qual foi seu chefe e inspiração. 

Em março de 1916 Manfred foi designado como piloto de caça no Kampfgeschwader 2 (Esquadrão de Bombardeio 2), participando de missões de reconhecimento e bombardeio, nesse período os aviões abatidos por ele não foram contabilizados, pois caíram em locais que impossibilitavam confirmar a baixa, além disso, Manfred apresentou problemas para controlar o seu avião um Albatros C.III, a ideia de que ele teria sido um gênio da pilotagem aérea não é verdade. Manfred demorou alguns meses para poder aprender. Em 28 de outubro de 1916, Boelcke faleceu numa colisão aérea, o que abalou Manfred, pois ele viu o seu amigo morrer. 


Em 23 de novembro de 1916, Manfred conquistou sua primeira grande vitória ao matar o piloto major Lanoe Hawker, considerado o "Boelcke britânico, segundo Manfred dizia. A partir desse feito, suas vitórias aéreas foram aumentando no ano seguinte, lhe rendendo uma medalha de honra, a Pour le Mérite. Por sua vez, seu irmão Lothar optou em demorar mais tempo no treinamento, apenas ingressando nos combates aéreos em 1917. 

Surge o Barão Vermelho 

Enquanto ganhava fama como ás da aviação, o que lhe rendeu uma medalha de honra, Richthofen decidiu que seus aviões, na época ele ainda usava um Albatros G.III, um bombardeio pesado e não tão rápido, fosse pintado de vermelho. A ideia era proposital para ser chamativa. Richthofen que estavam orgulhoso e arrogante de suas vitórias e fama crescente como piloto de caça, queria que todos soubessem quando ele estivesse presente, dessa forma, seus inimigos ao avistarem um avião vermelho saberiam que o Barão Vermelho estava ali e deveria ser temido. 

Ilustração mostrando o Albatros D.III vermelho de Manfred von Richthofen. 

Em 6 de julho de 1917, após já ter abatido mais de quarenta aviões, Richthofen foi atingido por um piloto inglês durante o combate contra um esquadrão de caças F.E.2. Richthofen por pouco não morreu na ocasião, tendo conseguido manobrar o avião de forma que realizasse uma aterrissagem forçada. Porém, ele ficou ferido, tendo que permanecer semanas no hospital. 

Richthofen teve sorte em sobreviver a aquele acidente aéreo, pois na Primeira Guerra os índices de mortandade dos pilotos passavam dos 70%, e o valor poderia ser maior dependendo da experiência de pilotagem dele, das condições climáticas e do cenário de batalha. Além disso é preciso salientar que esses aviões não tinham paraquedas, alguns eram feitos de madeira, o que significava que uma bala facilmente perfurava a fuselagem; ventos fortes poderiam desestabiliza a aeronave; a metralhadora costumava ser fixa, logo, os pilotos tinham que ficar de frente para o inimigo com o bico apontado para eles, o que aumentava as chances de ser atingido e até de colisão. 

No entanto, enquanto esteve em recuperação, seu esquadrão o Jagdstaffel 11 ou Jasta 11 que ele comandava na época, passou para a liderança de seu irmão Lothar, que havia se mostrado um piloto exímio tanto quanto o irmão, apesar de ser conhecido por ações mais agressivas, já que Manfred optava por ataques mais cautelosos. 

Após se recuperar dos ferimentos e estar liberado para voltar a pilotar, Richthofen mudou de avião adotando o triplano Fokker Dr. I, mandando pintá-lo também de vermelho. Esse modelo se tornou o mais famoso por ele usado, já que ele pilotou um desse até o fim da sua vida. 

Réplica de triplano Fokker Dr. I, avião usado pelo Barão Vermelho. 

Voltando ao serviço, Richthofen seguiu quebrando recordes, o Barão Vermelho havia voltado com fúria. Em 1918 ele era um militar famoso em todo o país, referido como Der Rote Kammpfflieger (o piloto de caça vermelho), inclusive sua fama foi usada pela propaganda de guerra, mas isso teve um preço duplo: seus inimigos passaram a ambicionar caçá-lo e derrubá-lo. Apesar desse risco, Richthofen não se acovardou e manteve o uso de aviões vermelhos. 

Mas seu destino foi selado em 21 de abril de 1918, quando ele participava de uma missão no espaço aéreo da França, local onde travou várias batalhas. Naquele dia ele e seu esquadrão entraram em conflito com o Esquadrão 209 da Real Força Aérea do Reino Unido, naquela batalha Richthofen confrontou o piloto canadense Arthur "Roy" Brown (1893-1944). Durante a batalha após várias trocas de tiros e perseguições, Manfred von Richthofen foi alvejado no tórax, tendo perfurações nos pulmões e coração, morrendo imediatamente. A carreira avassaladora do temido Barão Vermelho havia chegado ao fim.

O avião de Richthofen foi confiscado por um esquadrão de australianos como troféu de guerra, por sua vez, seu corpo foi encaminhado para as tropas alemãs para poderem levá-lo a sua família. Por conta da guerra o corpo de Richthofen não foi levado para a Alemanha, tendo sido sepultado em Bertangles, perto de Amiens. Sua morte foi divulgada na Alemanha como a morte de um herói de guerra, já os ingleses e franceses celebravam o feito também, como tendo abatido até então um dos mais temidos pilotos de caça. 

Embora tenha falecido aos 25 anos, sua fama continuou. Manfred von Richthofen é ainda hoje considerado o maior ás da aviação da Primeira Guerra Mundial, tendo abatido 80 aviões confirmados e pelo menos mais 20 não confirmados. Seu irmão Lothar ainda continuou a lutar na guerra até o fim dessa, tendo conseguido 40 vitórias. 

NOTA: Embora o piloto Arthur "Roy" Brown seja creditado como o responsável por abater o Barão Vermelho, alguns historiadores militares levantaram hipóteses de que outro piloto teria sido o responsável por isso. 

NOTA 2: Richthofen foi condecorado em vida com vária medalhas, e recebeu algumas postumamente. 

NOTA 3: Durante a Segunda Guerra Mundial alguns esquadrões alemães foram nomeados em sua homenagem. 

NOTA 4: Von Richthofen era o título de seu pai, o qual era o Freiherr de Richthofen, porém, esse antigo título foi traduzido pelos ingleses e franceses como barão. Embora não tivesse uma equivalência nobiliárquica propriamente.

NOTA 5: Richthofen em 1917 por conta da propaganda de guerra foi incentivado a publicar suas memórias sobre a guerra, resultando numa autobiografia intitulada Der Rote Kemmpffieger, o apelido que recebeu na época. 

NOTA 6: Barão Vermelho é o nome de uma banda brasileira de rock surgida em 1981. Curiosamente Baron Rojo é o nome de uma banda espanhola de heavy metal que foi fundada em 1980. 

NOTA 7: Red Baron (1980) é o nome de um jogo de avião lançado para o Atari. Um remake aprimorado foi lançado em 1990 para computadores. 

NOTA 8: Um filme baseado na carreira de Richthofen, intitulado Red Baron foi lançado em 2008. 

NOTA 9: O mangá Hikotei Jidai (1992) de Hayao Miyazaki conta a história de um piloto de caça italiano que pilota um avião vermelho. A trama não possui conexão com o Barão Vermelho, mas a ideia de seu avião serviu de inspiração, inclusive o mangá se passa em 1920, época aproximada na qual o barão viveu. Esse mangá foi adaptado para filme sendo nomeado Porco Rosso (Kurenai no Buta), lançado ainda em 1992 pelo Studio Ghibli

NOTA 10: O número de aviões abatidos na Primeira Guerra não é exato, mas o que foi computado aponta para mais de mil aeronaves derrubadas, um número bastante grande para a época, ainda mais se considerarmos que foi a primeira guerra com batalhas aéreas. 

Referências bibliográficas:  

GIBBONS, Floyd. The Red Knight of Germany: the story of Baron von Richthofen. New York, Bantan Books, 1959. 

KILDUFF, Peter. Red Baron: the life and death of an ace. Ohio, David & Charles, 2008. 

MILLBROOKE, Anne Marie. Aviation History. S.l, Jeppsen Sanderson, 1999. 

WYNGARDEN, Gregn van. Early German Aces of World War 1. New York, Osprey, 2006.