segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

A invenção da pólvora

A pólvora negra foi uma invenção por acaso a qual casou grande impacto no curso da História, permitindo a criação de explosivos, armas de fogo, máquinas e outros inventos que foram usados para fins militares, mas também para a exploração e expansão territorial, condição essa que alguns historiadores falam da Era da Pólvora (1200-1900). O presente texto não abordou esse período histórico, isso ficará para outra ocasião, por hora conheceremos como a pólvora foi descoberta. 

A alquimia chinesa

Séculos antes da alquimia se popularizar na Europa, os chineses já a praticavam, embora a alquimia deles em vários aspectos fosse diferente da europeia, mas ambas tinham em comum a busca de elementos mágicos, fazendo-se uso de minerais, metais, plantas, óleos, animais, líquidos, substâncias, gases etc. Por conta disso, os alquimistas chineses eram primitivos químicos experimentais, misturando ingredientes para criar poções e elixires supostamente mágicos. Inclusive vários alquimistas passaram anos tentando desenvolver o elixir da imortalidade que na Europa foi associado com a lenda da pedra filosofal. 

A alquimia chinesa remonta desde a Antiguidade, perdendo-se no tempo, embora que mitos falem que ela teria sido criada há milhares de anos. No entanto, essa alquimia era fortemente influenciada por preceitos religiosos advindos do Taoísmo e depois do Budismo. Alguns alquimistas eram monges e sacerdotes de carreira, que enxergavam nessa pseudociência outra forma de compreender a natureza e os mistérios do mundo, da vida e da morte, condição essa que a alquimia era tida como algo divino, uma criação dos deuses. (KELLY, 2004). 

Ilustração mostrando a descoberta da pólvora. Autoria desconhecida. 

Pela condição dos alquimistas chineses fazerem experimentos com várias substâncias em algum momento do século IX, ou talvez antes, alguns deles produziram a pólvora. No livro de receitas intitulado Shengzu Jidan Mijue, datado de 808, o autor informa sobre uma substância que misturava salitre, enxofre e uma erva não especificada. A tal substância foi nomeada de huoyao, que supostamente seria um emplastro para tratar queimaduras, o problema é que a mistura era um reagente incendiário. (NEEDHAM, 1986). 

Pode parecer estranho usar uma substância incendiária para tratar queimaduras, mas isso seguia o pensamento analógico da época, em que se utilizava algo parecido para tratamento. Tal concepção era comum na medicina tradicional chinesa (e até em outras medicinas arcaicas e mágicas), em que temos receitas de uso de dentes para tratar dor de dente, uso de pênis de cervos para fazer medicamentos para impotência sexual, uso de cabelos para tratar calvície, consumo de fígado para problemas hepáticos, coisas do tipo. 

A pólvora dos chineses

Enquanto ainda existem dúvidas de quem teria descoberto a pólvora e quando isso teria ocorrido, encontra-se registros de que no século X, experimentos usando a pólvora negra para fins militares, foram realizados. Os inventores chineses começaram a desenvolver novas armas, as chamadas armas de fogo, as quais compreendiam lanças de fogo, foguetes, canhões, bombas, minas etc. Todo esse armamento fazia uso da pólvora, cuja mistura foi sendo aperfeiçoada entre os séculos X e XIII. (NEEDHAM, 1986). 

Em tratados militares dos séculos XI e XII como o Wujing Zongyao, já se encontrava menções a algumas dessas armas de fogo e a produção de pólvora, formada por salitre (nitrato de potássio), enxofre e carvão. A depender do tipo de arma a quantidade de cada ingrediente era alterada para conceder maior ou menor efeito explosivo, emissão de fumaça e brilho. Ainda assim, observa-se que os chineses já em meados da Idade Média já tinham dominado a criação de pólvora. (KELLY, 2004). 

Um canhão chinês datado da Dinastia Yuan (1271-1368). 

As invenções de armas de fogo proliferaram na China dos séculos XI ao XIV, inclusive alguns desses armamentos, especialmente os canhões e bombas foram usados em guerras no Japão, Vietnã e Tailândia. Além disso, algumas dessas armas, mas principalmente receitas de fabrico de pólvora, chegaram à Indonésia, Índia e a Pérsia. Condição essa que no século XIII, temos autores desses lugares explicando o fabrico de pólvora. 

A lenda de Berthold, o Negro

No século XIV ou XV surgiu a lenda de que um monge franciscano que era inventor e alquimista chamado Berthold, teria inventado a pólvora e o canhão. Segundo a lenda, Berthold viveu na Alemanha no século XIV, tendo nascido em Friburgo, entretanto, diferentes versões da lenda falam que ele seria um monge ora franciscano ou beneditino, outras versões dizem que ele seria apenas um inventor, ou alquimista, ou professor universitário etc. (PARTINGTON, 1998). 

Estátua de Berthold, o Negro em Friburgo, na Alemanha. 

A forma como ele descobriu a pólvora teria sido de caráter acidental, mas por conta da fuligem gerada que o deixou sujo, ele ganhou o apelido de "negro", sendo chamado também de Berthold Schwarz em alemão ou Berthold Niger em latim. Embora que outros relatos apontem que ele não teria feito a descoberta acidentalmente, mas estivesse estudando antigas fórmulas aristotélicas e alquímicas. De qualquer forma, a fama de inventor da pólvora se espalhou por alguns países europeus, sendo referenciada em vários livros até mais ou menos o século XVI. 

Partington (1998) comentou que a pólvora já era mencionada em alguns escritos europeus ainda no século XIII por conta dos contatos com os árabes, mongóis e turcos. Todavia, somente no século seguinte os primeiros canhões chegaram ao continente europeu através dos turcos e bizantinos, havendo menções deles na Grécia, Itália, França e Alemanha, condição essa que teria inspirado a lenda de Berthold. 

Roger Bacon inventou a pólvora na Europa?

Mas Berthold Schwarz não teria sido o único suposto inventor europeu a ter criado a pólvora e as armas de fogo, no final do medievo surgiu também a versão de que o monge estudioso Roger Bacon teria sido o inventor da pólvora. Mas diferente de Berthold, Bacon foi uma pessoa que realmente existiu e tinha fama de ser grande estudioso. Inclusive hoje os historiadores consideram que a história dele possa ter servido de base para a criação da lenda de Berthold. (KELLY, 2004). 

Roger Bacon (1214-1294) foi um monge franciscano inglês que estudou em Oxford e Paris, tendo dedicado a vida às ciências, estudando filosofia natural, física, química, astronomia e geografia. Eventualmente ele acabou ingressando na alquimia também, na época tida como uma ciência. Bacon escreveu livros de teologia e científicos, sua maior obra é chamada literalmente Opus Majus (Maior Obra), uma coletânea de seus vários estudos, dividida em sete partes, abarcando mais de 800 páginas escritas. (NEEDHAM, 1986). 

Na sexta parte da Opus Majus, intitulada Sobre a Ciência Experimental (De scientia experimentalis), Bacon falou sobre um invento que ouviu falar, o qual seria a espécie de um pequeno artefato de fogo, referido por ele como "brinquedo de criança", que era acionado com o uso de uma faísca que ativava um pó preto feito de salitre, enxofre e carvão, que gerava um forte estrondo fumacento e com brilho. Pelo que parece, ele descreveu alguma bombinha ou até mesmo fogos de artifício. De qualquer forma, não se sabe como ele tomou conhecimento desse artefato, já que ele se refere ao mesmo de forma indireta, sem dar nome e nem define a pólvora, a qual ainda era pouco conhecida dos europeus naquela época. (NEEDHAM, 1986). 

Frontispício da Opus Majus em edição de 1750. 
 
Por conta da menção a pólvora mais tarde surgiu a teoria de que Roger Bacon teria sido o inventor dela. Isso foi difundido por estudiosos até a Idade Moderna, o problema é que Bacon até onde se sabe, não fez experimentos com a pólvora, além de citar a mesma brevemente em seu livro, dando mais atenção a temas sobre óptica e matemática. No entanto, além dele, Alberto Magno (c. 1193-1280), outro notório monge estudioso e alquimista da época, também supostamente teria sido o inventor da pólvora, por mencionar ela em um de seus estudos, mas hoje considera-se que ele tenha feito a menção a partir da obra de Bacon. (PARTINGTON, 1998). 

Referências bibliográficas: 

KELLY, Jack. Gunpowder. New York: Basic Books, 2004. 

NEEDHAM, Joseph. Science & Civilization in China, vol. 7: The Gunpowder Epic. Cambridge, Cambrdige University Press, 1986. 

PARTINGTON, J. R. A history of greek fire and gunpowder. Baltimore/London, The John Hopkins University Press, 1998. 

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