Graças a popularidade dos mangás, animes e videogames, figuras do folclore japonês como os yokai se difundiram pelo mundo, sendo bastante representadas em diferentes narrativas, sendo até adaptadas para os padrões atuais. Entretanto, esses seres não seriam meros monstros de lendas, mas também possuíam e ainda possuem funções religiosas nas crenças populares do Budismo e do Xintoísmo. O texto a seguir apresenta o conceito de yokai e seus desdobramentos.
O conceito de yokai:
A palavra yokai engloba uma série de seres sobrenaturais como fantasmas, animais fantásticos, onis, monstros, entidades espirituais etc. Por conta dessa diversidade de seres, traduzir yokai como "fantasma", "demônio" e "monstro" é impreciso, pois há casos de yokais que possuem a forma humana e de animais; além de que nem todo yokai seja uma criatura maléfica. Sendo assim, os folcloristas hoje em dia preferem interpretar yokai como uma "criatura sobrenatural", já que o termo em si tenha um caráter mais de categoria (referir-se a um conjunto de seres) do que especificar algo em particular. (FOSTER, 2015).
Pintura retratando alguns yokais. Datação incerta, mas pertenceu ao Período Muromachi (1336-1573). |
Os yokais podem assumir a forma humana, de animais, de plantas, de objetos, de estruturas (geralmente casas e santuários) e até aparecerem personificados como elementos da natureza como o vento, a chuva, o fogo, raios e trovões. Vale ressalvar que alguns yokais podem mudar de forma também, o que revela como essas criaturas são ainda mais complexas. Nota-se como essa categoria abrange diferentes tipos de seres sobrenaturais como assinalado anteriormente.
Os yokais podem ser criaturas tolas, pequenas e fracas, mas também podem ser seres inteligentes, grandes e poderosos; alguns fazem uso de magia; outros yokais conseguem transitar entre o mundo dos vivos e dos espíritos. Não obstante, nem todo yokai é maléfico, pois alguns são apenas trapaceiros e brincalhões, e tem alguns que ajudam as pessoas também. (FOSTER, 2015).
Há yokais que existem na própria natureza, outros vieram do mundo espiritual e há casos de humanos que se tornaram yokais, porque foram amaldiçoados, reencarnaram ou sofreram alguma morte trágica ou cruel, lhes deixando cheios de sofrimento, ódio e rancor e eles se tornam yokais geralmente do tipo fantasma ou assombração. Em outro casos há yokais que podem ser filhos de humanos, ou seja, são meio-humanos (hanyo). E esses seres híbridos podem possuir alguns poderes yokai. (FOSTER, 2015).
Nure-onna é um tipo famoso de yokai no folclore japonês. |
Explanado de forma breve sobre o conceito de yokai, vejamos algumas subcategorias a ele associada, as quais expressam algumas particularidades específicas. Vale ressalvar também que excetuando-se os fantasmas (yusei) e os dragões (ryu), alguns folcloristas consideram que os bakemonos podem ser também tratados como yokais.
1) Bakemono ou obake:
A palavra bakemono significa "o que troca de forma", porém, hoje ela é usada até mesmo pelos próprios japoneses para se referir ao conceito de monstro e fantasma (aqui no sentido de assombração). Entretanto, os bakemonos não necessariamente possuem uma forma fantasmagórica, alguns são animais fantásticos, espíritos da natureza e até objetos possuídos (tsukumogami). (ROBERTS, 2009, p. 11).
Por exemplo, animais como a kitsune (uma raposa mítica), a kappa (um tipo de monstro aquático), o nekomata (gato de duas caudas), o bake-danuki (guaxinim mítico), tais seres são bakemonos, os quais inclusive podem mudar de forma (incluindo assumir forma humana) ou terem um aspecto mais monstruoso como no caso das kappas, que são criaturas travessas e maléficas que habitam rios e lagos. Mas a própria kitsune também pode agir de forma malvada, enganando, roubando, trapaceando e possuindo pessoas, agindo como espíritos obsessores.
Uma mulher confrontando uma kitsune de nove caudas. |
Além disso, a palavra bakemono possui etimologia associada com baku, termo usado para se referir a um tipo de assombração espiritual. O baku consiste num monstro quimérico, ou seja, seu corpo é formado por diferentes partes de animais, o qual aparece durante o sono e se alimenta dos sonhos, a manifestação do "devorador de sonhos". Quando um baku acomete uma pessoa ele causaria os pesadelos. Nesse ponto ele é associado a manifestação monstruosa do pesadelo, algo visto em outros folclores também. (ROBERTS, 2009, p. 12).
Representação de um baku, o devorador de sonhos. |
Existem outros bakemonos com aspectos mais específicos, um deles são os kodamas, espíritos da natureza que normalmente vivem em florestas, mas podem aparecer em montanhas também. Os kodamas estão associados a proteção da floresta, habitando em árvores, tocas e cavernas. Eles são associados com os elfos do folclore escandinavo e as dríades da mitologia grega. Por conta de seu papel como guardiões das matas, os kodamas recebiam oferendas e orações também. Em geral, são descritos como seres pacíficos e tímidos, pois raramente se manifestam diante dos humanos, não tendo uma forma definida, apesar que podem aparecer em forma de animais, pessoas e outros seres. Todavia, os kodamas como guardiões da floresta, eles podem punir aqueles que as destroem, derrubando árvores antigas, desmatando, queimando, caçando de forma irresponsável. (FOSTER, 2015, p. 198-199).
Kodamas como vistos no filme Princesa Mononoke (1997). |
Os tsukumogamis (objeto-espírito) são um tipo de bakemono bem específico, pois enquanto os outros citados são normalmente animais ou seres antropomórficos, essa classe se refere aos bakemonos que são objetos encantados ou possuídos. (FOSTER, 2015, p. 390). Existem vários termos específicos para nomear esses seres conforme os objetos que eles representam, por exemplo, bake-zori (sandálias de palha), ungaikyo (espelho), zorigami (relógio), furu-utsubo (jarra de saquê), kasa-obake (guarda-chuva ou sombrinha).
A manifestação de um tsukumogami pode ocorrer de distintas formas: um bakemono incorporou num objeto (possessão) ou a criatura aprisionou algum espírito num objeto; em alguns casos há yokais que usam seus poderes para animar os objetos, conjurando-os de magia animadora, tornando os objetos em tsukumogamis. Esses bakemonos podem ser usados para causar sustos, travessuras, mas também provocar acidentes e assombração. (FOSTER, 2015, p. 407-408).
No caso, não há uma representação exata desses seres, dependendo do artista eles podem aparecer como objetos comuns os quais flutuam, mas há representações que os mostram tendo olhos, rostos, cabelos, chifres, dentes, braços e pernas.
Um tsukumogami em forma de lanterna. Hokusai, entre 1826 e 1837. |
2) Oni:
Normalmente a palavra oni costuma ser traduzida como demônio ou monstro, de certa forma, tais traduções não estão erradas, pois, de fato, tratam-se de criaturas com aspectos monstruosos e que causam malefícios. No caso, a palavra oni advém de onu (invisível ou algo que não se enxerga). Sendo assim, de acordo com as crenças quando algo de ruim ocorria, punha-se a culpa nos onis, seres inicialmente considerados invisíveis, os quais agiam para prejudicar as pessoas, por conta disso haver orações e ritos para afastá-los e se proteger de suas ações. (PIGOTT, 1969, p. 62).
Com o advento da arte japonesa, essa ajudou a conceder características físicas aos onis, sendo esses retratados em forma humanoide, como criaturas robustas, brutas e feias, podendo possuir chifres, barba, presas e garras. Alguns apresentam faces antropomórficas como se fossem de urso, leão, lobo e boi. Ele também podem aparecer nas cores azul, verde, vermelho, cinza, preto, marrom. Os onis são representados como tendo grande força e até mesmo devorariam os seres humanos. (PIGOTT, 1969, p. 62).
Uma mulher ameaçada por um oni azul. Soga Shokaku, c. 1764. |
Por conta dessas características mais bestiais, hoje em dia folcloristas e estudiosos de outros países costumam associar os onis as figuras do ogro e do troll, os quais no folclore nortenho europeu apresentam funções similares, sendo criaturas que costumam causar dano ou até matarem as pessoas, sendo que essas bestas se esconderiam em florestas, cavernas ou debaixo de pontes.
3) Yurei
O termo yurei ("espírito fraco" ou "espírito obscuro") costuma ser traduzido como fantasma ou alma penada, sendo ele um tipo de yokai. Os yureis normalmente são representados como sendo fantasmas de pessoas, mas há casos de serem também fantasmas de animais e outros yokais. No Japão, histórias sobre fantasmas (kaidan) são bastante populares, havendo centenas delas, e normalmente eles originam-se a partir de momentos trágicos e violentos: acidentes, assassinatos, suicídio, catástrofes etc. Em alguns casos os fantasmas também surgem porque a pessoa foi amaldiçoada ou morreu com muito rancor, tristeza e ódio. (FOSTER, 2015, p. 53-54).
Pintura de um yurei datada por volta de 1700. |
Tradicionalmente os yurei costumam serem representados usando roupas brancas, geralmente um kimono. Todavia, como os costumes mudaram, os yurei atuais aparecem usando vestes mais modernas. Eles também costumam serem retratados como não tendo pés, sendo um indicativo de estarem mortos. Antigamente também os retratavam sem os pés e mãos. Em alguns casos os yurei podem aparecer sem uma forma definida, surgindo como se fosse uma nuvem ou uma bola espectral nas cores azul, verde ou roxa, chamada hitodama.
Os yureis podem aparecer conservando sua fisionomia original, mas há casos que eles surgem de forma mais feia, podendo ter aspecto cadavérico e até feições monstruosas. Alguns yurei também podem praticar vários males, havendo necessidade de serem exorcizados, por conta disso, os monges budistas e sacerdotes xintoístas desenvolveram técnicas de exorcismo, orações e ritos para mantê-los afastados. (FOSTER, 2015, p. 55).
Embora fantasmas sejam associados em geral a histórias de terror, nem todo yurei é vingativo ou malvado, há aqueles que são bons, mais devido a algum problema não conseguiram seguir para a outra vida, então buscam a ajuda dos vivos para fazer isso. E há casos de alguma pessoa que se manifesta como fantasma para avisar ou ajudar alguém.
O folclore japonês possui diferentes termos para classificar os tipos de yurei, alguns mais comumente usados são:
- Onryo: fantasma vingativo, considerado bastante perigoso, pois ele pode atacar tanto aqueles que o feriram, quanto outras pessoas que não tem nenhuma culpa.
- Goryo: é a variação do onryo, mas está ligado a um fantasma de alguém que era nobre ou rico.
- Funayurei: fantasma de pessoa que morreu no mar.
- Zashiki-warashi: fantasma de criança.
- Ubume: fantasma de uma mãe que morreu no parto ou morreu deixando filhos pequenos.
- Fuyurei: fantasma flutuante que vagueia sem um propósito definido. Não necessariamente causam males.
- Jibakurei: fantasma que ficou preso nesse mundo por algum motivo específico, não necessariamente por conta de ódio, vingança e maldição.
- Ikiryo: consiste na projeção astral em que uma pessoa consegue projetar seu espírito e controlá-lo. O termo inclusive é traduzido como "fantasma vivo".
Representação clássica de um yurei com seu quimono branco. |
4) Ryu
A palavra ryu designa o dragão japonês, entretanto, existem vários tipos de dragões no folclore e na mitologia do Japão. Alguns são pequenas criaturas e outros podem ser monstros imensos. Alguns dragões podem assumir a forma humana. Todavia, a grosso modo todo dragão seria um yokai, entretanto, existem alguns dragões que são classificados como kamis (deuses) por conta de seu papel religioso. Entretanto, aqui os tratamos mais especificamente como sendo yokais por conta de serem criaturas sobrenaturais.
Os dragões japoneses são seres associados com a água, em especial o mar, mas eles também podem aparecer associados com montanhas, chuva, raios e trovões. Os dragões podem ser criaturas benevolentes e sábias, a ponto de serem cultuados como divindades, por isso existir templos e cerimônias dedicados aos deuses-dragão; porém, há outros que agem de forma mesquinha, invejosa e violenta, personificando as forças destrutivas da natureza.
Um dragão voando diante do Monte Fuji. Ogata Gekko, 1897. |
Referências bibliográficas:
FOSTER, Michael Dylan. The Book of Yokai: mysterious creatures of Japanese Folklore. Oakland, University California Press, 2015.
PIGOTT, Juliet. Japanese Mythology. London, The Hamlyn Publishing, 1969.
ROBERTS, Jeremy. Japanese Mythology A to Z. 2. ed. New York, Chelsea House, 2009.
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