sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Quem foi o Tio Sam?

Tio Sam é um personagem fictício criado para simbolizar o sentimento patriótico dos Estados Unidos da América. Representado como um velho usando roupas com as cores da bandeira nacional, tendo um olhar sério e intimidador, Tio Sam surgiu ainda no século XIX, mas ficou mundialmente conhecido no XX por conta da campanha política de alistamento para a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). 

Tio Sam na revista Judge de 8 de junho de 1918, incentivando a luta na Primeira Guerra, e aparecendo como característico símbolo patriótico. 

A origem do Tio Sam

Antes de sua criação os EUA já possuíam outro personagem patriótico, sendo uma mulher chamada Colúmbia, a qual inicialmente representava as Treze Colônias Inglesas, mais tarde com a Revolução Americana (1775-1781), Colúmbia foi adaptada para se tornar uma referência ao conceito de "mãe pátria", passando a ser representada usando um vestido que emulava a bandeira dos Estados Unidos. Dessa forma, pelo restante do século XVIII, Miss Colúmbia era uma das personificações patrióticas dos EUA mais recorrentes. 

Quanto a origem do Tio Sam, essa é incerta, pois o personagem somente ganhou fama décadas depois. Uma primeira hipótese sugere que o nome adviria de uma gíria militar usada por soldados para se referir ao país, pois Uncle Sam e United States, possuem a mesma sigla. Essa ideia aparece brevemente no jornal Niles Weekly Register em 1810. 

A segunda hipótese é a mais famosa, a qual credita que Tio Sam seria inspirado em Samuel Wilson (1766-1854), o qual era dono de frigoríficos e armazéns, fornecendo suprimentos para o exército americano. Principalmente durante a Guerra de 1812, entre EUA e o Reino Unido. Nos barris de carne, estaria gravado as letras US, referência ao nome do país, sendo que os soldados diriam que US significaria "Uncle Sam". Embora não haja certeza de tais afirmações, em 2006, a casa onde ele morou em Mason, em Nova Hampshire, passou a ser conhecida como "casa do Tio Sam"

Uma terceira hipótese aponta o livro The Adventures of Uncle Sam, in Search After his Lost Honor (1816) de Frederick Augustus Fidfaddy. A obra é uma crítica social satírica as ações da polícia durante a Guerra de 1812, em que o protagonista chamado Tio Sam, está em busca de reencontrar sua honra perdida. 

Depois disso algumas menções sutis ao personagem apareciam em jornais e revistas, mas ele ainda não simbolizava o patriotismo dos Estados Unidos, sendo mais uma piada para se referir ao país. 

Tio Sam ganha um rival

Na década de 1830 surgiu o personagem do Irmão Jonathan, que passou a representar um típico morador da cidade grande da região da Nova Inglaterra (nordeste dos EUA). Inicialmente o personagem era uma referência satírica aos homens metidos a rico e serem elegantes, por isso ele utiliza casaca e cartola. Porém, alguns jornais o tornaram como uma crítica a burguesia. Outro uso também dado ao personagem foi de representar o empreendedor americano. Assim, nas décadas de 1840 e 1860, o Irmão Jonathan se tornou até mais popular do que o Tio Sam, pois o primeiro representava uma parcela do povo, o segundo representava o governo.

Representação do Irmão Jonathan em jornais da década de 1840. Ele foi rival do Tio Sam em popularidade e teria inspirado sua aparência também.  

A situação começou a mudar durante a época da Guerra Civil Americana (1861-1865), onde na Nova Inglaterra surgiram dois grupos políticos: os moderados chamados de "Jonathans" e os radicais chamados "Sams". Os primeiros apresentavam-se como oposição ao governo federal do presidente Abraham Lincoln e sua política para resolver a guerra civil, já os segundos apoiavam a luta armada como forma de evitar a cisão definitiva do país, já que os Estados Confederados reivindicaram a independência. 

Mas com o término da guerra e a vitória da União sobre a Confederação, Tio Sam voltou a ganhar prestígio nacional, novamente sendo associado como uma referência ao patriotismo, ao nacionalismo, ao dever de servir e proteger seu país. Inclusive por influência da vitória de Lincoln na guerra, mesmo que ele tenha sido assassinado por conta disso em 1865, Tio Sam nas décadas seguintes ganhou um visual, o qual combinava ideias do traje do Irmão Jonathan e possívelmente com a figura do presidente Lincoln, em que ambos tinham em comum usarem cartolas altas e barba sem bigode. Inclusive essa imagem foi usada numa caricatura já em 1870, como pode ser vista abaixo. 

Charge política de 1870 mostrando Tio Sam e Mãe Britânia debatendo o que fazer com a pequena Canadá. Autoria desconhecida. 

O desenvolvimento visual do Tio Sam

Se o personagem foi inspirado realmente em Abraham Lincoln ou apenas uma alteração do Irmão Jonathan, ainda há dúvidas quanto a isso, mas o fato é que a partir da década de 1870 ele começou a ser retratado em jornais, charges, pôsteres, gravuras, ilustrações, cartões postais, selos etc. O personagem passou a ser representado como um homem idoso de seus sessenta e poucos anos, alto e magro, usando calças de listras, casaca, cartola e botas (ou sapatos). A depender do artista ele tinha barba, cavanhaque ou barbicha.

Em termos comportamentais, as charges mostravam Tio Sam como um velho patriota e conservador, de olhar sério e pouco amigável. O personagem costumava nas décadas de 1890 e 1920 a aparecer em charges com críticas sociais a falta de patriotismo, imoralidades, vadiagem, imigração, disputas eleitorais, piadas do cotidiano, problemas do governo etc..

Tio Sam e o banqueiro J. P. Morgan numa paródia de Émile Renouf, 1881. Na época, criticava-se a dependência e sujeição do governo ao banco de Morgan. 

Além de também ser usado para representar o patriotismo, a política internacional expansionista, o recrutamento militar, acordos políticos etc., o personagem também foi usado em propagandas de produtos diversos, sempre mostrado como apreciador deles. O que revela a diversidade de aplicações dadas a essa representação icônica do governo americano. 

Tio Sam numa propaganda de café da A. J. Kasper Co, em 1900. 

Inclusive é famoso o uso de sua imagem em cartazes da Primeira Guerra Mundial, onde ele aparece convocando os americanos para se alistar e servir seu país. Cartaz esse influenciado pelo modelo britânico da época. A arte produzida por James Flagg se tornou mundialmente conhecida, sendo até considerada a representação mais famosa do personagem Tio Sam. 

Tio Sam num cartaz de recrutamento para Primeira Guerra. Arte de James Flagg, 1917. 

Depois da Grande Guerra, o personagem seguiu em alta nos jornais, revistas, pôsteres, cartões, charges e em desenhos animados até a época da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), após isso ele entrou em declínio, perdendo popularidade desde então, tornando-se cada vez mais uma sátira negativa aos problemas do governo americano, sendo visto como a representação de ideias retrógradas, de um patriotismo fanático e do ultraconservadorismo. 

Referências bibliográficas:

GERSON, Thomas. The Story of Uncle Sam: Godfather of America. New York, Uncle Sam Enterprises Inc, 1959. 


sábado, 21 de setembro de 2024

Guinefort: o cachorro que se tornou um santo popular

Uma curiosa, mas real história advinda da França medieval, diz respeito a um cachorro chamado Guinefort, que acabou se tornando um santo popular, por supostamente realizar milagres. A devoção ao cão foi tamanha, que a Igreja Católica teve que proibir a veneração ao animal, declarando se tratar de um ato de blasfêmia e ignorância, afinal, animais não podiam ser santificados, tampouco realizarem milagres. O presente texto contou alguns aspectos dessa peculiar devoção surgida nos tempos medievais. 

Representação moderna de Guinefort e a serpente que ele matou para salvar o bebê de seus donos. 
O relato sobre Guinefort

Guinefort teria sido um cachorro da raça galgo inglês que viveu nas terras de Lyon. O relato mais importante sobre sua história advém do monge dominicano de Étienne de Bourbon (1180-1261), o qual redigiu em 1250 o livro Tractatus de diversis materiis praedicabilibus (Tratado sobre as diversas matérias prejudiciais) que aborda sobre superstições, heresias, blasfêmias, entre outras práticas que ele julgava serem incompatíveis com o cristianismo como a adivinhação, o uso da magia, a idolatria etc. Assim, neste livro, no tópico 370, Étienne relatou sobre a história de um cachorro que era cultuado como santo em Lyon. 

Ele escreveu que o cão pertenceria a um nobre que vivia num castelo nas terras de Villars-les-Dombes, certo dia o animal estava guardando o bebê daquele senhor, quando uma cobra entrou no quarto. O cão lutou contra a serpente, durante o conflito o berço foi derrubado com a criança, mas o cachorro venceu a cobra, matando-o. Porém, a babá ao chegar ao quarto, deparou-se com a bagunça e o chão com a boca suja de sangue, ela gritou atraindo a atenção dos pais do bebê, o pai horrorizado com aquilo matou o cachorro. Porém, depois descobriram a criança dormindo ao lado do berço e o corpo da cobra num canto do quarto. O cão era inocente. 

A família desolada com aquilo, construiu um memorial para Guinefort nas terras do castelo. Os anos se passaram e aquela família caiu em ruína e o castelo foi destruído, entretanto, os camponeses ainda visitavam o local para irem ao túmulo do cachorro, tido como um mártir que fazia milagres. 

Nota-se pelo relato de Étienne de Bourbon que a história sobre Guinefort tem claramente características de lenda. Além de que o tema de serpentes atacando crianças em berços não era algo incomum, havendo relatos mitológicos e folclóricos sobre isso. Um dos mais famosos no caso europeu avém da mitologia grega, quando Héracles (Hércules) ainda bebê, foi atacado por duas serpentes, mas ele as matou, estrangulando-as com sua super-força. 

No quesito de um cachorro defendendo crianças e supostamente sendo morto porque as teria matado, não era um tema incomum. Temos o caso da história do Sabueso fiel, o cachorro Gelert do príncipe Gwynedd, o lobo do rei Gorlagon, entre outras narrativas advindas da literatura medieval ou originária de lendas. O que aponta que a crença em São Guinefort foi fruto de uma lenda baseada num tema em circulação naquele período, sobre histórias de cachorros que protegiam crianças. Porém, diferentes de outros exemplos aquela ganhou ares religiosos. 

A lenda de Guinefort. Ilustração para o Gesta Romanorum, fol. 16V, c. XV. 

O ritual macabro

Étienne continua seu relato dizendo que ouviu de mulheres da Diocese de Lyon informações sobre o culto a São Guinefort, ele relatou que ficou abismado com aquilo, pois inicialmente pensou que se trata-se de um santo que ele desconhecesse, mas depois disseram que era um cachorro. O monge prosseguiu seu relato escrevendo que as pessoas iam ao túmulo do animal para fazer orações, acender velas e até deixar oferendas. As mulheres com filhos doentes eram as que mais costumavam ir naquele lugar, pois a crendice dizia que o santo cão poderia curar seus filhos. 

Porém, nesta parte do relato Étienne de Bourbon emenda ele com a descrição de um rito macabro envolvendo uma mulher velha. Ele escreveu que as mães que levavam as crianças doentes, procuravam essa velha que vivia num povoado próximo, a qual conhecia os "ritos antigos", que envolviam fazer um ritual sinistro para os faunos que viviam nas árvores da floresta de Rimite, os quais seriam demônios responsáveis por fazer os bebês adoecerem, então a velha matrona ensinava o ritual para apaziguar aquelas criaturas, as quais dever-se-ia acender duas velas, colocar as roupas da criança em oferenda e deixar o bebê exposto diante de uma das árvores até que o processo estivesse concluído. Porém, Étienne relata que muitas crianças acabavam morrendo durante esse rito, mas os que sobreviviam, estavam supostamente curados, sendo lavados nove vezes num rio próximo dali. 

Étienne completa seu relato dizendo que aquilo tudo tratava-se de artimanhas de Satanás para iludir as pessoas, fazendo-as buscar a ajuda de demônios e agentes do Mal. Sabendo que isso ainda era realizado em Lyon, o monge relatou que visitou o local, mandou desenterrar os restos mortais do cachorro e destruí-los no o fogo, além de cortar as árvores usadas para aquele ritual e queimá-las também. Depois disso, ele convocou a população e os senhores daquelas terras, explicando aquela heresia e que fosse proibido por lei ir ali adorar aquele santo impostor e seus demônios. 

Um santo popular

A Igreja Católica reconhece três formas de canonização: a realização de milagres; o martírio em defesa da fé e a boa conduta cristã à serviço da fé. Por conta disso, temos pessoas que se tornaram santos porque realizaram milagres (no mínimo dois), morreram como mártires ou se dedicaram de forma justa e correta aos serviços da fé, como o caso de papas, bispos, padres, madres etc., que tiveram uma vida íntegra. 

Entretanto, os santos populares consistem em pessoas que não são reconhecidas oficialmente pela Igreja Católica, mas devido a supostos milagres, martírio e devoção, eles acabam atraindo a atenção da população que passa a venerá-los como se fossem santos oficiais. Na História temos muitos relatos disso, pois mesmo que a Igreja não reconhecessem aquelas pessoas, a população que estava mais próxima deles, e devido a uma série de fatores: carência emocional, desespero, crendices, ignorância, fanatismo etc., acabavam reconhecendo aqueles homens e mulheres como santos populares, e isso aconteceu com Guinefort. 

Bois de Saint-Guinefort, em Ain. Suposto lugar onde ficava o local original de adoração do santo cachorro. 

Embora Étienne de Bourbon tenha relatado que proibiu o culto ao santo cachorro, ainda assim, esse permaneceu. O dia 22 de agosto foi eleito como data de São Guinefort, o qual passou a ser o padroeiro das crianças enfermas, já que a lenda diz que o cachorro lutou contra uma serpente para proteger um bebê. O relato de Étienne de que o culto do cachorro estava ligado a um rito macabro envolvendo faunos, acabou sendo abandonado. Esse quesito sinistro foi removido da devoção do santo popular, e as pessoas realizavam orações a São Guinefort. 

A crença neste santo popular perdurou por séculos, embora não temos detalhes de como ela conseguiu resistir tanto assim. O historiador Jean-Claude Schmitt encontrou referências ao culto de Guinefort em pleno século XX, apontando a existência de capelas dedicadas ao cachorro, práticas para proteger crianças que estavam doentes, em que se dizia para orar a São Guinefort, inclusive ao entrevistar algumas pessoas mais idosas, elas falam que quando crianças e adolescentes lembravam-se de seus pais, tios e avós falarem sobre Guinefort. Neste sentido, Schmitt assinalou que a crença ao santo cachorro sobreviveu no catolicismo popular francês interiorano, conseguindo escapar da Inquisição e das proibições da Igreja. 

Todavia, o autor sublinha que existem outros santos populares chamados de Guinefort também, como um Guinefort da Itália e outro da Escócia, mas ambos eram humanos. Não se sabe quando a crença nesses santos populares se originou no medievo e se teria uma conexão entre si. 

Os cachorros no Catolicismo

Anteriormente vimos que havia lendas e contos sobre cachorros que protegiam crianças, narrativas essas contadas pela França, Inglaterra, Alemanha, Itália, entre outros lugares da Europa. Porém, no Catolicismo há casos de santos associados com cães, no caso, citarei três exemplos. 

Santo Domingos de Gusmão (1170-1241) é representado em algumas imagens ao lado de um cachorro segurando uma vela, referência a um sonho premonitório que sua mãe teve enquanto estava grávida dele. O cachorro passou a simbolizar a missão que Domingos como evangelizador. 

São Domingos de Gusmão ao lado de um cachorro.
Pintura de Claudio Coello, c. 1685. 

São Roque (c. 1295-1337), conhecido por curar muitas pessoas durante os anos de peste, certa vez ao contrair a doença, isolou-se numa floresta, sendo alimentado por um cachorro que lhe trazia diariamente um pão. Por conta disso, temos algumas imagens dele ao lado de um cachorro, inclusive São Roque é considerado protetor dos cães também. 

Imagem de São Roque ao lado de um cachorro. Autoria e datação desconhecidos. 

Porém, o terceiro exemplo é o mais emblemático de todos, diz respeito a São Cristóvão, o qual teria vivido no século III. De origem pagã acabou se convertendo mais tarde ao cristianismo, porém, sua fé estava vacilante até que certo dia ele encontrou um menino à beira de um rio, a criança estava sozinha e pediu ajuda para atravessar, pois não sabia nadar. Cristóvão que se chamava ainda Reprobus, colocou o menino nas costas e começou a cruzar o rio, mas a criança ficava cada vez mais pesada. Embora temendo que ambos pudessem se afogar, Cristóvão não voltou atrás e concluiu a travessia. Posteriormente, a criança se revelou ser uma manifestação de Jesus Cristo, e aquilo era um teste de fé. 

No entanto, em algum momento da Idade Média São Cristóvão foi associado aos cinocéfalos, uma raça fictícia de homens com cabeças de cães. Embora hoje sabe-se que se trata de uma lenda, por certo tempo acreditava-se que esse povo realmente existisse em alguma parte da Ásia. Assim, o santo foi associado aos cinocéfalos, ganhando representações com a cabeça de cachorro. Alguns estudiosos sugeriram que essa condição poderia ter inspirado o culto de Guinefort, mas essa não é uma hipótese conclusiva, pois se desconhece se as imagens de Cristóvão como homem-cão seriam conhecidas dos franceses, além de que ele não era um santo tão conhecido na França do século XIII. 

Representação de São Cristóvão como cinocéfalo. Autoria desconhecida, datado do século XVII. 

Fonte: 

De Supersticione: On St. Guinefort

Referências bibliográficas: 

RIST, R. The papacy, inquisition and Saint Guinefort the Holy Greyhound. Reinardus. Yearbook of the International Reynard Society, v. 30, n.1, p. 190-211, 2019. 

RUYMBEKE STEY, Marie-Madelene van. Saint Guinefort Addressing Thomas Aquina's Shadow. Journal of Jungian Scholary Studies, v. 3, n. 4, p. 1-8, 2007. 

Referência da internet:

O cão que virou santo proibido pela Igreja

Link relacionado: 

Os cinocéfalos: a lenda dos homens-cachorros

domingo, 15 de setembro de 2024

A primeira travessia aérea do Atlântico Sul (1922)

No ano de 1922 os portugueses Gago Coutinho e Sacadura Cabral realizaram o ousado voo de viajar de Lisboa ao Rio de Janeiro, atravessando o Oceano Atlântico, numa época que viagens aéreas transatlânticas eram experimentais. O presente texto apresenta alguns aspectos dessa façanha pioneira. 

Carlos Viegas Gago Coutinho (1869-1959) foi um oficial da Marinha, geógrafo, cartógrafo e historiador, o qual participou de várias expedições pela África, fazendo registros geográficos e cartográficos. No ano de 1907, Gago Coutinho estava em missão em Moçambique, onde conheceu o oficial a Marinha e piloto Artur de Sacadura Freira Cabral (1881-1924), o qual já se destacava naquele tempo por ser um piloto respeitado e instrutor de voo. Os dois se tornaram amigos e trabalharam juntos até 1910, passando a produzir equipamentos aéreos para ajudar na localização, como o sextante de bolha artificial

Gago Coutinho à direita e Sacadura Cabral a bordo do Lusitânia, em 1922. 

No ano de 1911 Sacadura Cabral foi enviado para trabalhar em Angola, realizando medições geográficas e astronômicas, vindo a se reencontrar com Gago Coutinho em 1912, em que os dois trabalharam no sul de Angola. Posteriormente eles se separaram novamente, indo Sacadura Cabral trabalhar em Portugal, enquanto Gago Coutinho permaneceu em suas atividades pelo continente africano. Os dois amigos voltariam a se reencontrar em 1920 em Portugal. 

Naquele ano, eles decidiram empreender viagens aéreas de longa distância, o que resultou numa expedição de Lisboa à ilha de Madeira em 1921, uma viagem de 971 km, em que os dois voaram em companhia do oficial da Marinha Manuel Ortins de Bettencourt (1892-1969), que mais tarde foi feito general de armada e ministro da Marinha. Na ocasião desse voo eles testaram o sextante de bolha artificial e um "corretor de rumos", ambos aparelhos para ajudar na navegação aérea, os quais se mostraram inventos exitosos. 

Com o sucesso de voo entre Lisboa e a Madeira, para o ano seguinte os dois decidiram empreender uma viagem mais ousada, viajar de Portugal ao Brasil. Um percurso de mais de 5 mil km. Dessa vez, Ortins de Bettencourt não iria acompanhá-los, os dois viajaram sozinhos no avião Lusitânia, um hidroavião monomotor construído a partir do modelo F III-D da Fairey para aquela ocasião. Assim, a aeronave possuía mais espaço para combustível e teve sua estrutura reforçada. Sacadura Cabral acompanhou as modificações que perduraram ao longo de 1921. 

primeiro voo transatlântico foi realizado pelos ingleses John Alcock e Arthur Whitten Brock em 1919, voando do Canadá a Irlanda, num trajeto sem escalas, mas que a curvatura do planeta favorecia aquele percurso. Todavia, os portugueses estavam decididos também a realizar façanha similar ao atravessar o Atlântico de avião. 

A viagem de Lisboa para o Rio de Janeiro marcaria uma homenagem ao centenário da Independência do Brasil. Com isso, os dois pilotos deixaram Portugal, partindo de Lisboa a 30 de março de 1922, voando do próprio Rio Tejo. De lá eles seguiram viagem até Las Palmas nas Ilhas Canárias, onde pararam para descansar por alguns dias e fazerem ajustes nos tanques e motor, pois o avião estava consumindo mais combustível do que devia. Assim, eles só voltaram a viajar em 5 de abril, partindo para São Vicente em Cabo Verde. Ali tiveram nos problemas técnicos devido ao acúmulo de água nos flutuadores, o que os forçou a ficarem mais de dez dias parados. Somente em 17 de abril conseguiu retomar a viagem, partindo de Porto Praia.

O Lusitânia fotografado no rio Tejo, em 30 de março de 1922, data que a expedição teve início. 

O trajeto seguinte seria o mais longo, pois eles percorreram 1700 km sem nenhuma terra no caminho. Já voando próximo ao Arquipélago de São Pedro e São Paulo, em território brasileiro, fortes ventos os obrigaram a terem que pousar naquelas ilhas, mas isso acabou danificando a aeronave. Um dos flutuadores foi perdido durante o pouso no mar. O avião ficou incapacitado de voltar a voar. Parecia que seria o fim da viagem dele, pois aquele arquipélago é desabitado. Todavia, um navio português que passava ali perto os resgatou e os conduziu até a ilha de Fernando de Noronha. O Lusitânia não poderia mais continuar a viagem, então solicitaram outro avião. 

Gago Coutinho e Sacadura Cabral ficaram de 19 de abril até 5 de maio em Fernando de Noronha, esperando a chegada do novo avião, o qual chegou em 6 de maio, sendo nomeado Pátria. A aeronave foi testada e revisada, então os dois pilotos decidiram em 11 de maio retomarem a jornada. Eles voaram até o Arquipélago de São Pedro e São Paulo, para continuar do lugar onde pararam, porém, uma pane no motor os forçou até que pousar no mar. Ali eles ficaram várias horas à deriva até serem resgatados por um navio inglês o Paris City. Parecia que aquela expedição estava dada ao fracasso: aquelas ilhas se mostravam um local de má sorte.

Eles novamente foram levados até Fernando de Noronha e solicitaram outro avião, o qual somente chegou em junho, sendo nomeado Santa Cruz a pedido da primeira-dama Mary Sayão Pessoa, então esposa do presidente brasileiro Epitácio Pessoa (1919-1922). O novo avião foi transportado para o arquipélago de São Pedro e São Paulo, a incógnita da jornada. Gago Coutinho e Sacadura Cabral seguiram de navio até lá, de onde levantaram voo a partir dali, dessa vez o o voo deu certo. 

O hidroavião Santa Cruz, utilizado na conclusão da expedição de Gago Coutinho e Sacadura Cabral em 1922. A aeronave encontra-se no Museu da Marinha de Lisboa. 

Eles fizeram escala em Recife, Salvador, Porto Seguro, Vitória para abastecer a aeronave, fazer reparos e descansarem, pois era um trajeto de mais de 2 mil km, mas finalmente chegaram ao Rio de Janeiro em 17 de junho, pousando em frente a ilha das Enxadas na Baía de Guanabara. A notícia da chegada dos pilotos portugueses foi uma sensação na capital brasileira e nas cidades por onde eles passaram. Além de ser noticiada em jornais de outros estados. Uma viagem que deveria durar poucas semanas, acabou se estendendo por setenta e nove dias, devido a problemas diversos, levando inclusive a troca de aviões. No entanto, o tempo de voo contabilizado foi de 62 horas e 26 minutos.

Após a conquista da missão, os pilotos Gago Coutinho e Sacadura Cabral decidiram voltar a Portugal de navio, zarpando o Foz do Douro. Ao chegarem em seu país, foram aclamados como heróis. 

Percurso do voo transatlântico de 1922 de Lisboa ao Rio de Janeiro. A viagem levou 79 dias devido a problemas técnicos e dois aviões terem quebrado. 

Sacadura Cabral em 1923 desenvolveu um projeto para dar a volta ao mundo de avião, entretanto, a Marinha e o governo Português não decidiram patrociná-lo, por considerar falta de meios para se fazer isso e ser algo bastante perigoso e inviável para época. Desgostoso, o piloto pediu demissão da Marinha em 1924, mas seu pedido foi negado, no entanto, lhe ofereceram cargo num projeto para se criar rotas comerciais. Sacadura Cabral faleceu num acidente aéreo em 15 de novembro de 1924, quando voava de Lisboa a Amsterdã

Já Gago Coutinho a partir de 1925 passou a se dedicar a história marítima, escrevendo vários livros a respeito sobre a história portuguesa no mar, tornou-se membro da Sociedade de Geografia de Lisboa, entrou para a maçonaria, escreveu matérias para alguns jornais e revistas e aposentou-se como almirante. Embora não tenha voltado a participar de novas expedições aéreas, Gago Coutinho seguiu apoiando-as, correspondendo-se com pilotos e construtores de aeronaves. 

Os portugueses João de Ribeiro de Barros e João Negrão em 1927 voaram de Gênova na Itália até Fernando de Noronha no Brasil. No mesmo ano o piloto estadunidense Charles Lindberg voou de Nova York a Paris no primeiro voo solitário pelo Atlântico. Alguns anos depois em 1932, Amelia Earhart se tornou a primeira mulher a voar sozinha através do Atlântico. Finalmente na década de 1940, se estabeleceram as rotas comerciais aéreas transatlânticas. 

Referência bibliográfica

CAMBESES JR, Manuel. A primeira travessia aérea do Atlântico Sul. Brasília, INCAER, 2008.