Quem é brasileiro talvez já tenha ouvido expressões como "tá de bucho cheio", "bucho vazio", "santo do pau oco", "meia tigela" entre outras. Embora essas expressões possuam significado distinto do que eram originalmente, elas se originaram a partir do Ciclo do Ouro nas Minas Gerais ao longo do século XVIII. São termos associados ao trabalho dos escravos que atuavam nas minas, locais escuros, apertados e insalubres, onde tais homens trabalhavam várias horas por dia em condições degradantes para coletar ouro e outros minérios.
Bucho cheio e bucho vazio
A palavra bucho em português pode se referir a barriga ou estômago, logo tais expressões dizem respeito a alguém que está alimentado ou com fome. Porém, no período colonial nas minas, ambos os termos tinham outro significado. As minas brasileiras nos séculos XVIII e XIX eram fundamentalmente corredores, os quais iam sendo alargados caso os escravos encontrassem ouro, prata ou outros minérios.
Assim, por esses corredores existiam buracos chamados de "buchos", neles os mineradores depositavam os minérios encontrados como forma de indicar que havia algum veio deles naquela seção. Vale lembrar que não havia trilhos e carrinhos de mina, esses somente chegaram ao Brasil na segunda metade do século XIX, numa época em que a mineração aurífera tinha quase sumido.
Bucho em mina colonial. |
Meia tigela
Essa expressão hoje significa algo de baixo valor, insignificante. Inclusive pode ser usado como uma ofensa para se referir alguém sem caráter. Na época colonial e imperial o termo era empregado em referência a ração do escravos. Diariamente eles recebiam três refeições ao dia: café da manhã, almoço e jantar. Porém, dependendo do trabalho que o escravo prestasse, ele poderia ser punido, recebendo apenas metade da sua ração (meia tigela) ou até mesmo ser privado de uma das refeições, passando fome como forma de punição.
Nas minas os escravos vivenciavam essa mesma condição. Em alguns casos eles eram incentivados com uma tigela extra de comida para se empenhar em seu trabalho em encontrar ouro ou outro minério de valor. Assim, eles buscavam encher os buchos. Porém, caso não conseguissem encher os buchos, eles seriam considerados preguiçosos ou incompetentes, podendo serem punidos com meia tigela ou até ficarem com fome. Por conta disso também surgiu a expressão "negro de meia tigela" para se referir aos escravos tidos incompetentes.
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Dar no couro
Hoje essa expressão é usada para se referir um bom desempenho, para algo feito com eficiência. Inclusive em algumas localidades possui uma conotação sexual também. Na época colonial dar no couro era um termo usado no ofício de mineração. Em algumas minas o ouro residual era encontrado na forma de pó, podendo ficar preso nos cabelos, barbas e pele suadas dos escravos. Assim, para que eles não o roubasse, ao saírem da mina os escravos eram esfregados com uma manta de couro não curtido, a qual os pelos estão salientes, pois ajudaria a pegar o pó de ouro e outras sujeiras dos corpos dos escravos. Depois disso, essa mantas ou tiras eram golpeadas (dar no couro) para que soltassem as partículas de ouro.
O termo também na época da mineração poderia designar o trabalho árduo nas minas, o qual era insalubre, perigoso e desgastante. Assim, os escravos que passavam horas e horas dentro da terra, saíam esgotados de lá. Dessa forma, "dar no couro" seria uma gíria para se referir a aquele trabalho extenuante nas minas.
Santo do pau oco
O termo é usado para se referir a uma pessoa cínica ou hipócrita, que finge ser algo que não é. A expressão advém da época da mineração, em que os escravos para cumprir suas orações diárias, levavam consigo para dentro das minas pequenas imagens de santos. Essas imagens era deixadas em oratórios improvisados pelos túneis e câmaras.
Porém, alguns escravos decidiram usá-las para o contrabando. Assim, a estátua era feita oca, permitindo que a cabeça ou alguma parte dela fosse removida. Dessa forma, os escravos conseguiam coletar pequenas porções de ouro e esconder dentro dessas imagens, passando despercebido as olhares dos capatazes e supervisores, já que regularmente os escravos eram vistoriados para saber se não estariam escondendo ouro.
A prática de usar santos do pau oco não se restringiu aos mineradores, outros segmentos da sociedade também para contrabandear ouro e sonegar imposto, se valia dessa artimanha.
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Imagem de Nossa Senhora dos Anjos com um compartimento nas costas, um exemplo de santo do pau oco. |
Lavar a égua
A expressão lavar a égua refere-se a uma ação oportunista, em que alguém busca alguma vantagem indevida ou desonesta. O termo também remete ao período colonial. Outra forma de tentar contrabandear ouro, era escondendo pó de ouro nos cabelos, barba, unhas e na roupa. Alguns escravos que conseguiam sair da mina sem serem vistoriados, pegavam esse pó e esfregavam nos pelos e crinas de cavalos ou éguas. Deixavam o mesmo ali, mais tarde pediam para seus supervisores para ir banhar os animais, durante o banho eles removiam o pó de ouro escondido.
Apesar da curiosidade, não consistia numa prática recorrente, pois os escravos costumavam serem vistoriados ao saírem das minas e nem sempre havia cavalos ou éguas nas proximidades. Por conta disso, a prática do santo do pau oco era mais eficiente, já que por se tratar de um artefato religioso, os capatazes deixavam os escravos seguirem com ele.
Referência bibliográfica:
DO PRADO MENDES, Soélis Teixeira; LISBOA, Ana Luíza Barreto. Unidades fraseológicas religiosas no léxico de Ouro Preto (MG). Scripta, v. 28, n. 62, p. 284-315, 2024.
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