Este artigo foi escrito em 1783 pelo filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804), em resposta a uma pergunta de um pastor de sua cidade, a respeito do que seria o Iluminismo. Tal artigo fora publicado em 1784 pela revista Berlinischen Monatsschrift.
1. Definição do Iluminismo.
O iluminismo é a saída do homem de um estado de menoridade que deve ser imputado a ele próprio. Menoridade é a incapacidade de servir-se do próprio intelecto sem a guia de outro. Imputável a si próprios é esta menoridade se a causa dela não depende de um defeito da inteligência, mas da falta de decisão e da coragem de servir-se do próprio intelecto sem ser guiado por outro. Sapere aude!1 Tenha a coragem de servir-te da tua própria inteligência! – é, portanto, o lema do Iluminismo.
2. Dificuldade para o homem de sair do estado de menoridade.
A preguiça e a vileza são as causas pelas quais tão grande parte dos homens, depois que a natureza há muito tempo os liberou da heterodireção (naturaliter minorennes), ainda permanecem de bom grado em estado de menoridade por toda a vida; e esta é a razão pela qual é tão fácil que outros se erijam como seus tutores. É tão cômodo ser menor! Se eu tiver um livro que pensa por mim, um diretor espiritual que tem consciência por mim, um médico que decide por mim sobre a dieta que me convém etc., não terei mais necessidade de me preocupar por mim mesmo. Embora eu goze da possibilidade de pagar, não tenho necessidade de pensar: outros assumirão por mim essa enjoada tarefa. De modo que a estrondosa maioria dos homens (e com eles todo o belo sexo) considera a passagem ao estado de maioridade, além de difícil, também muito perigosa, e provêm já os tutores que assumem com muita benevolência o cuidado vigilante sobre eles. Depois de tê-los em um primeiro tempo tornado estúpidos como se fossem animais domésticos e ter cuidadosamente impedido que essas pacíficas criaturas ousassem mover um passo fora do andador de crianças em que os aprisionaram, em um segundo tempo mostram a eles o perigo que os ameaça caso tentassem caminhar sozinhos. Ora, este perigo não é assim tão grande como se lhes faz crer, pois ao preço de alguma queda eles por fim aprenderiam a caminhar: mas um exemplo deste gênero os torna em todo caso medrosos e em geral dissuade as pessoas de qualquer tentativa ulterior.
É, portanto, difícil para cada homem particular desembaraçar-se da menoridade que para ele se tornou quase uma segunda natureza. Ele chega até a amá-la e, no momento, é realmente incapaz de servir-se de seu próprio intelecto, pois nunca lhe foi permitido colocá-lo à prova. Regras e fórmulas, estes instrumentos mecânicos de um uso racional, ou melhor, de um abuso de suas disposições naturais, são os laços de uma menoridade eterna. Mesmo que deles conseguisse se soltar, mais não faria que um salto inseguro até mesmo sobre os mais pequenos buracos, pois não estaria treinado a tais movimentos livres. Portanto, apenas poucos conseguem, com a educação do próprio espírito, desembaraçar-se da menoridade e apesar de tudo caminhar com passo seguro.
Que, ao contrário, um público2 se ilumine por si próprio é coisa grandemente possível; ou melhor, se lhe for deixada a liberdade, é quase inevitável. Nesse caso, com efeito, se encontrarão sempre, até entre os tutores oficiais da grande multidão, alguns livres pensadores que, depois de terem sacudido de si o jugo da tutela, espalharão o sentimento da avaliação racional do próprio valor e da vocação de todo homem a pensar por si próprio. A este respeito há o fenômeno singular de que o público, que em um primeiro tempo foi colocado por aqueles sob tal jugo, os obrigue depois ele próprio a aí permanecerem, tão logo tenham a isso instigado aqueles de seus tutores que fossem eles próprios incapazes de qualquer esclarecimento. Semear preconceitos é tão perigoso exatamente porque terminam por recair sobre seus autores ou sobre os predecessores de seus autores. Por isso o público pode chegar ao esclarecimento apenas lentamente. Talvez uma revolução poderá, sim, determinar a liberação em relação a um despotismo pessoal e de uma opressão ávida de ganho ou de poder, mas nunca uma verdadeira reforma do modo de pensar. Ao contrário: novos preconceitos servirão da mesma forma que os antigos para colocar no andador a grande multidão de quem não pensa.
3. Condição essencial para o Iluminismo é a liberdade de fazer uso público da razão.
Todavia, para esse esclarecimento não é preciso mais que a liberdade; e precisamente a mais inofensiva de todas as liberdades, isto é, a de fazer uso público da própria razão em todos os campos. Mas em todos os lugares ouço gritar: não raciocineis! O oficial diz: não raciocineis, mas fazei exercícios militares! O intendente de finanças: não raciocineis, mas pagai! O clero: não raciocineis, mas acreditai! (Há apenas um único senhor no mundo3 que diz: raciocineis o quanto quiserdes e sobre tudo aquilo que quiserdes, mas obedecei!). Aqui existe, em todo lugar, limitação da liberdade.
a. Uso público e uso privado da razão.
Todavia, qual limitação é obstáculo para o Iluminismo, e qual não o é, ou melhor, até o favorece? Respondo: o uso público da própria razão deve ser livre em todo tempo, e apenas ele pode atuar o esclarecimento entre os homens; o uso privado da razão, ao contrário, pode muito freqüentemente sofrer estreitas limitações, sem que por isso o progresso do esclarecimento seja particularmente obstaculizado. Entendo por uso público da própria razão o uso que alguém faz dela, como estudioso, diante de todo o público dos leitores. Chamo, ao contrário, de uso privado da razão aquele que a um homem é lícito fazer dela em certa profissão ou função civil da qual é investido. Ora, para muitas operações que se referem ao interesse da comunidade é necessário certo mecanicismo, pelo qual alguns membros dela devem se comportar de modo puramente passivo em que mediante uma harmonia artificial o governo os induza a concorrer aos fins comuns ou ao menos a não contrastar com estes. Aqui, obviamente, não é permitido raciocinar, mas deve-se obedecer. Todavia, enquanto ao mesmo tempo estes membros da máquina governante se consideram como membros de toda a comunidade e, mais ainda, da sociedade cosmopolita, e são, portanto, na qualidade de estudiosos que com os escritos se dirigem a um público no sentido próprio da palavra, eles podem certamente raciocinar, sem com isso lesar a atividade à qual estão destinados como membros parcialmente passivos. Desse modo, seria bastante pernicioso que um oficial, ao qual foi dada uma ordem por seu superior, quisesse em serviço publicamente raciocinar sobre a oportunidade e a utilidade dessa ordem: ele deve obedecer. Mas é iníquo impedir que ele, na qualidade de estudioso, faça suas observações sobre erros cometidos nas operações de guerra e as submeta ao julgamento de seu público. O cidadão não pode se furtar a pagar os tributos que lhe são impostos; e uma crítica inoportuna de tais imposições, quando devem ser executadas por ele, pode até ser punida como escândalo (pois poderia induzir a desobediências generalizadas). Contudo, este não age contra o dever de cidadão se, como estudioso, manifestar abertamente seu pensamento sobre a inconveniência ou também sobre a injustiça destas imposições. Dessa forma, espera-se que um eclesiástico ensine o catecismo aos aprendizes e à sua comunidade religiosa segundo o credo da Igreja da qual depende, porque é com esta condição que ele foi assumido; mas, como estudioso, ele tem a plena liberdade e até a tarefa de comunicar ao público todos os pensamentos que um exame severo e bem intencionado lhe sugeriu a respeito dos defeitos daquele credo, e também suas propostas de reforma da religião e da Igreja. Nisso não há nada de que a consciência possa tornar-se culpada. Aquilo que ele ensina como parte de sua profissão, como funcionário da Igreja, ele de fato o expõe como algo em torno do qual não tem a liberdade de ensinar conforme suas próprias idéias, mas que tem a tarefa de ensinar segundo as instruções e em nome de um outro. Ele dirá: nossa Igreja ensina isto e aquilo, e estas são as provas de que ela se vale. Toda a utilidade prática que pode derivar para sua comunidade, ele portanto a tirará dos princípios que ele próprio não subscreveria com plena convicção, mas a cujo ensinamento pode em todo caso se empenhar porque não é de modo algum impossível que neles não se encontre alguma verdade, e em todo caso, ao menos, neles não se encontra nada que contradiga a religião interior. Se, ao contrário, acreditasse encontrar aí algo que a contradiga, ele não poderia exercitar sua função com consciência; deveria demitir-se. O uso que um ministro de ensino oficial faz da própria razão diante de sua comunidade religiosa é, portanto, apenas um uso privado; e isso porque aquela comunidade, por maior que seja, é sempre apenas uma reunião doméstica; e sob este aspecto ele, como padre, não está livre e não o pode sequer ser, pois exerce um cargo que lhe vem de outros. Ao contrário, como estudioso que fala com os escritos ao público propriamente dito, isto é, ao mundo e, portanto, como eclesiástico no uso público de sua própria razão, ele goza de uma liberdade ilimitada de valer-se de sua própria razão e de falar por si mesmo. Que os tutores do povo (nas coisas espirituais) devam por sua vez permanecer sempre na menoridade é um absurdo que tende a perpetuar os absurdos.
4. Criar obstáculos contra o progresso das luzes é um crime contra a natureza humana.
Contudo, uma sociedade de eclesiásticos, por exemplo, uma assembléia eclesial ou uma venerável “classe” (como ela se autodefine entre os holandeses), não teria por acaso o direito de obrigar-se por juramento a certo credo religioso imutável, para exercer de tal modo sobre cada um de seus membros e, por meio deles, sobre o povo uma tutela contínua e até para tornar eterna essa tutela? Eu digo que isso é de fato impossível. Tal contrato, dirigido a manter a humanidade para sempre longe de qualquer progresso ulterior no esclarecimento, é irritante e nulo de modo absoluto, mesmo que fosse sancionado pelo poder soberano, pelas Dietas imperiais e os mais solenes tratados de paz. Nenhuma época pode coletivamente empenhar-se com juramento a pôr a época sucessiva em uma condição que a coloque na impossibilidade de estender seus conhecimentos (sobretudo quando são tão necessários), de libertar-se dos erros e em geral de progredir no esclarecimento. Isso seria um crime contra a natureza humana, cuja originária destinação consiste justamente nesse progresso; e, portanto, as gerações sucessivas estão perfeitamente legitimadas a rejeitar tais convenções como não autorizadas e ímpias. A pedra-de-toque de tudo aquilo que se pode impor como lei a um povo está no quesito: um povo pode impor a si próprio tal lei? Isso sim seria uma coisa possível, por assim dizer, na espera de uma lei melhor e por breve tempo determinado, com o fim de introduzir certa ordem, mas com a condição de que entrementes se deixe livre todo cidadão, sobretudo o homem de Igreja, de fazer sobre os defeitos da instituição vigente suas observações publicamente, em sua qualidade de estudioso, isto é, mediante seus escritos; e isso enquanto a ordem constituída se mantiver sempre em vigor até que as novas visões nessa matéria não tenham alcançado no público tanta difusão e crédito que os cidadãos, com a união de seus votos (mesmo que não de todos), estejam em grau de apresentar ao soberano uma proposta dirigida a proteger as comunidades que estivessem de acordo para uma mudança para melhor da constituição religiosa segundo suas idéias, e sem prejuízo para as comunidades que, ao contrário, pretendessem permanecer na antiga constituição. Mas entrar em acordo para manter em vigor, mesmo que apenas pela duração da vida de um homem, uma constituição religiosa imutável que ninguém possa publicamente pôr em dúvida, e com isso anular por assim dizer uma fase cronológica do caminho da humanidade para sua melhora e tornar essa fase estéril e por isso mesmo talvez até danosa para a posteridade, não é absolutamente lícito. Um homem pode, de fato, por sua própria pessoa, e também em tal caso apenas por certo tempo, diferir de iluminar-se sobre aquilo que ele próprio é destinado a saber; mas renunciar a isso para si e, mais ainda, para a posteridade, significa violar e calcar aos pés os sagrados direitos da humanidade. Ora, aquilo que nem sequer um povo pode decidir a respeito de si próprio, menos ainda o pode um monarca a respeito do povo; com efeito, seu prestígio legislativo se funda precisamente sobre o fato de que em sua vontade ele resume a vontade geral do povo. Embora ele vigie para que toda verdadeira ou presumida melhora não contrarie a ordem civil, ele não pode de resto senão deixar seus súditos livres de fazer o que crêem necessário para a salvação de sua alma. [...] O monarca acarreta detrimento à sua própria majestade caso se intrometa nessas coisas, considerando que os escritos nos quais seus súditos colocam às claras suas idéias sejam passíveis de controle por parte do governo, tanto se ele faz isso invocando a própria intervenção autocrática e expondo-se à reprovação de que Caesar non est supra grammaticos,4 como, e com maior razão, se ele abaixa seu poder a ponto de sustentar o despotismo espiritual de algum tirano em seu Estado contra todos os outros seus súditos.
5. A época atual é “de iluminismo”, e não uma época “iluminada”.
Se agora perguntarmos: nós, atualmente, vivemos em uma era iluminada? então a resposta é: não, e sim em uma era de iluminismo.Que na situação atual os homens tomados em massa já estejam em grau, ou que também possam ser colocados em grau de valer-se seguramente e bem de seu próprio intelecto nas coisas da religião, sem a guia de outros, é uma condição da qual ainda nos encontramos muito distantes. Mas que a eles, agora, esteja aberto o campo para trabalhar e emancipar-se para tal estado, e que os obstáculos à difusão do esclarecimento geral ou à saída da menoridade a eles próprios imputável pouco a pouco diminuam, disso temos, ao contrário, sinais evidentes. [...]
Um príncipe que não crê indigno de si dizer que considera seu dever não prescrever nada aos homens nas coisas de religião, mas deixá-los nisso em plena liberdade, e que, portanto, afasta de si também o nome orgulhoso da tolerância, é ele próprio iluminado e merece que o mundo e a posteridade reconheçam ser digno de elogio como aquele que por primeiro emancipou o gênero humano da menoridade, ao menos por parte do governo, e deixou livre cada um de valer-se de sua própria razão em tudo aquilo que é questão de consciência. [...] Este espírito de liberdade se estende também para o exterior, até o ponto em que ele deve lutar contra obstáculos exteriores suscitados por um governo que entende mal a si próprio. O governo, com efeito, tem em todo caso diante dos olhos um resplandecente exemplo que mostra que a paz pública e a concórdia da comunidade nada têm a temer da liberdade. Os homens se empenham por si mesmos para sair pouco a pouco da barbárie, contanto que não se recorra a instrumentos artificiais para nela mantê-los.
6. O Iluminismo deve se referir sobretudo às coisas de religião.
Coloquei particularmente nas coisas de religião o ponto culminante do esclarecimento, isto é, da saída dos homens de um estado de menoridade que deve ser imputado a eles próprios; em relação às artes e às ciências, com efeito, nossos regentes não têm nenhum interesse de exercitar a tutela sobre seus súditos. Além disso, a menoridade em coisas de religião é entre todas as formas de menoridade a mais danosa e também a mais humilhante. Mas o modo de pensar de um soberano que favorece aquele tipo de esclarecimento vai ainda além, pois ele vê que até em relação à legislação por ele estabelecida não se corre perigo em permitir aos súditos fazer uso público de sua razão e de expor publicamente ao mundo suas idéias sobre um melhor arranjo da própria legislação, até criticando de modo aberto a existente. [...]
7. Um paradoxo: uma liberdade civil maior põe maiores limites à liberdade do espírito do povo.
Todavia, também é verdade que apenas aquele que, iluminado ele próprio, não tem medo das sombras e ao mesmo tempo dispõe a garantia da paz pública de um exército numeroso e bem disciplinado, pode enunciar aquilo que uma república não pode arriscar-se a dizer: raciocinai o quanto quiserdes e sobre tudo aquilo que quiserdes; apenas obedecei! Revela-se aqui um estranho e inesperado curso das coisas humanas; como, de resto, em outros casos, considerando esse curso em tamanho grande, quase tudo nele parece paradoxal. Um maior grau de liberdade civil parece favorável à liberdade do espírito do povo, e todavia põe a ela limites intransponíveis; um grau menor de liberdade civil, ao contrário, oferece ao espírito o espaço para desenvolver-se com todas as suas forças. Portanto, se a natureza desenvolveu sob este duro invólucro o germe do qual ela toma o mais inteiro cuidado, isto é, a tendência e vocação para o livre pensamento, esta tendência e vocação gradualmente reage sobre o modo de sentir do povo (motivo pelo qual este, pouco a pouco, torna-se sempre mais capaz da liberdade de agir) e finalmente até sobre os princípios do governo, o qual percebe que é vantagem para si próprio tratar o homem, que doravante é mais que uma máquina,5 de modo conforme com a dignidade que ele tem.
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NOTA 1: Kant foi considerado um dos mais influentes filósofos da história moderna.
NOTA 2: Seus ensinamentos e teorias influenciaram outros filósofos, tais como: Hegel, Herder e Nietzsche.
NOTA 3: Ele nunca chegou a difundir muito os ensinamentos e teorias iluministas em sua cidade, devido a desaprovação do imperador Frederico II, o qual abominava tais idéias.
Fonte: http://rgirola.sites.uol.com.br/Kant.htm
1. Definição do Iluminismo.
O iluminismo é a saída do homem de um estado de menoridade que deve ser imputado a ele próprio. Menoridade é a incapacidade de servir-se do próprio intelecto sem a guia de outro. Imputável a si próprios é esta menoridade se a causa dela não depende de um defeito da inteligência, mas da falta de decisão e da coragem de servir-se do próprio intelecto sem ser guiado por outro. Sapere aude!1 Tenha a coragem de servir-te da tua própria inteligência! – é, portanto, o lema do Iluminismo.
2. Dificuldade para o homem de sair do estado de menoridade.
A preguiça e a vileza são as causas pelas quais tão grande parte dos homens, depois que a natureza há muito tempo os liberou da heterodireção (naturaliter minorennes), ainda permanecem de bom grado em estado de menoridade por toda a vida; e esta é a razão pela qual é tão fácil que outros se erijam como seus tutores. É tão cômodo ser menor! Se eu tiver um livro que pensa por mim, um diretor espiritual que tem consciência por mim, um médico que decide por mim sobre a dieta que me convém etc., não terei mais necessidade de me preocupar por mim mesmo. Embora eu goze da possibilidade de pagar, não tenho necessidade de pensar: outros assumirão por mim essa enjoada tarefa. De modo que a estrondosa maioria dos homens (e com eles todo o belo sexo) considera a passagem ao estado de maioridade, além de difícil, também muito perigosa, e provêm já os tutores que assumem com muita benevolência o cuidado vigilante sobre eles. Depois de tê-los em um primeiro tempo tornado estúpidos como se fossem animais domésticos e ter cuidadosamente impedido que essas pacíficas criaturas ousassem mover um passo fora do andador de crianças em que os aprisionaram, em um segundo tempo mostram a eles o perigo que os ameaça caso tentassem caminhar sozinhos. Ora, este perigo não é assim tão grande como se lhes faz crer, pois ao preço de alguma queda eles por fim aprenderiam a caminhar: mas um exemplo deste gênero os torna em todo caso medrosos e em geral dissuade as pessoas de qualquer tentativa ulterior.
É, portanto, difícil para cada homem particular desembaraçar-se da menoridade que para ele se tornou quase uma segunda natureza. Ele chega até a amá-la e, no momento, é realmente incapaz de servir-se de seu próprio intelecto, pois nunca lhe foi permitido colocá-lo à prova. Regras e fórmulas, estes instrumentos mecânicos de um uso racional, ou melhor, de um abuso de suas disposições naturais, são os laços de uma menoridade eterna. Mesmo que deles conseguisse se soltar, mais não faria que um salto inseguro até mesmo sobre os mais pequenos buracos, pois não estaria treinado a tais movimentos livres. Portanto, apenas poucos conseguem, com a educação do próprio espírito, desembaraçar-se da menoridade e apesar de tudo caminhar com passo seguro.
Que, ao contrário, um público2 se ilumine por si próprio é coisa grandemente possível; ou melhor, se lhe for deixada a liberdade, é quase inevitável. Nesse caso, com efeito, se encontrarão sempre, até entre os tutores oficiais da grande multidão, alguns livres pensadores que, depois de terem sacudido de si o jugo da tutela, espalharão o sentimento da avaliação racional do próprio valor e da vocação de todo homem a pensar por si próprio. A este respeito há o fenômeno singular de que o público, que em um primeiro tempo foi colocado por aqueles sob tal jugo, os obrigue depois ele próprio a aí permanecerem, tão logo tenham a isso instigado aqueles de seus tutores que fossem eles próprios incapazes de qualquer esclarecimento. Semear preconceitos é tão perigoso exatamente porque terminam por recair sobre seus autores ou sobre os predecessores de seus autores. Por isso o público pode chegar ao esclarecimento apenas lentamente. Talvez uma revolução poderá, sim, determinar a liberação em relação a um despotismo pessoal e de uma opressão ávida de ganho ou de poder, mas nunca uma verdadeira reforma do modo de pensar. Ao contrário: novos preconceitos servirão da mesma forma que os antigos para colocar no andador a grande multidão de quem não pensa.
3. Condição essencial para o Iluminismo é a liberdade de fazer uso público da razão.
Todavia, para esse esclarecimento não é preciso mais que a liberdade; e precisamente a mais inofensiva de todas as liberdades, isto é, a de fazer uso público da própria razão em todos os campos. Mas em todos os lugares ouço gritar: não raciocineis! O oficial diz: não raciocineis, mas fazei exercícios militares! O intendente de finanças: não raciocineis, mas pagai! O clero: não raciocineis, mas acreditai! (Há apenas um único senhor no mundo3 que diz: raciocineis o quanto quiserdes e sobre tudo aquilo que quiserdes, mas obedecei!). Aqui existe, em todo lugar, limitação da liberdade.
a. Uso público e uso privado da razão.
Todavia, qual limitação é obstáculo para o Iluminismo, e qual não o é, ou melhor, até o favorece? Respondo: o uso público da própria razão deve ser livre em todo tempo, e apenas ele pode atuar o esclarecimento entre os homens; o uso privado da razão, ao contrário, pode muito freqüentemente sofrer estreitas limitações, sem que por isso o progresso do esclarecimento seja particularmente obstaculizado. Entendo por uso público da própria razão o uso que alguém faz dela, como estudioso, diante de todo o público dos leitores. Chamo, ao contrário, de uso privado da razão aquele que a um homem é lícito fazer dela em certa profissão ou função civil da qual é investido. Ora, para muitas operações que se referem ao interesse da comunidade é necessário certo mecanicismo, pelo qual alguns membros dela devem se comportar de modo puramente passivo em que mediante uma harmonia artificial o governo os induza a concorrer aos fins comuns ou ao menos a não contrastar com estes. Aqui, obviamente, não é permitido raciocinar, mas deve-se obedecer. Todavia, enquanto ao mesmo tempo estes membros da máquina governante se consideram como membros de toda a comunidade e, mais ainda, da sociedade cosmopolita, e são, portanto, na qualidade de estudiosos que com os escritos se dirigem a um público no sentido próprio da palavra, eles podem certamente raciocinar, sem com isso lesar a atividade à qual estão destinados como membros parcialmente passivos. Desse modo, seria bastante pernicioso que um oficial, ao qual foi dada uma ordem por seu superior, quisesse em serviço publicamente raciocinar sobre a oportunidade e a utilidade dessa ordem: ele deve obedecer. Mas é iníquo impedir que ele, na qualidade de estudioso, faça suas observações sobre erros cometidos nas operações de guerra e as submeta ao julgamento de seu público. O cidadão não pode se furtar a pagar os tributos que lhe são impostos; e uma crítica inoportuna de tais imposições, quando devem ser executadas por ele, pode até ser punida como escândalo (pois poderia induzir a desobediências generalizadas). Contudo, este não age contra o dever de cidadão se, como estudioso, manifestar abertamente seu pensamento sobre a inconveniência ou também sobre a injustiça destas imposições. Dessa forma, espera-se que um eclesiástico ensine o catecismo aos aprendizes e à sua comunidade religiosa segundo o credo da Igreja da qual depende, porque é com esta condição que ele foi assumido; mas, como estudioso, ele tem a plena liberdade e até a tarefa de comunicar ao público todos os pensamentos que um exame severo e bem intencionado lhe sugeriu a respeito dos defeitos daquele credo, e também suas propostas de reforma da religião e da Igreja. Nisso não há nada de que a consciência possa tornar-se culpada. Aquilo que ele ensina como parte de sua profissão, como funcionário da Igreja, ele de fato o expõe como algo em torno do qual não tem a liberdade de ensinar conforme suas próprias idéias, mas que tem a tarefa de ensinar segundo as instruções e em nome de um outro. Ele dirá: nossa Igreja ensina isto e aquilo, e estas são as provas de que ela se vale. Toda a utilidade prática que pode derivar para sua comunidade, ele portanto a tirará dos princípios que ele próprio não subscreveria com plena convicção, mas a cujo ensinamento pode em todo caso se empenhar porque não é de modo algum impossível que neles não se encontre alguma verdade, e em todo caso, ao menos, neles não se encontra nada que contradiga a religião interior. Se, ao contrário, acreditasse encontrar aí algo que a contradiga, ele não poderia exercitar sua função com consciência; deveria demitir-se. O uso que um ministro de ensino oficial faz da própria razão diante de sua comunidade religiosa é, portanto, apenas um uso privado; e isso porque aquela comunidade, por maior que seja, é sempre apenas uma reunião doméstica; e sob este aspecto ele, como padre, não está livre e não o pode sequer ser, pois exerce um cargo que lhe vem de outros. Ao contrário, como estudioso que fala com os escritos ao público propriamente dito, isto é, ao mundo e, portanto, como eclesiástico no uso público de sua própria razão, ele goza de uma liberdade ilimitada de valer-se de sua própria razão e de falar por si mesmo. Que os tutores do povo (nas coisas espirituais) devam por sua vez permanecer sempre na menoridade é um absurdo que tende a perpetuar os absurdos.
4. Criar obstáculos contra o progresso das luzes é um crime contra a natureza humana.
Contudo, uma sociedade de eclesiásticos, por exemplo, uma assembléia eclesial ou uma venerável “classe” (como ela se autodefine entre os holandeses), não teria por acaso o direito de obrigar-se por juramento a certo credo religioso imutável, para exercer de tal modo sobre cada um de seus membros e, por meio deles, sobre o povo uma tutela contínua e até para tornar eterna essa tutela? Eu digo que isso é de fato impossível. Tal contrato, dirigido a manter a humanidade para sempre longe de qualquer progresso ulterior no esclarecimento, é irritante e nulo de modo absoluto, mesmo que fosse sancionado pelo poder soberano, pelas Dietas imperiais e os mais solenes tratados de paz. Nenhuma época pode coletivamente empenhar-se com juramento a pôr a época sucessiva em uma condição que a coloque na impossibilidade de estender seus conhecimentos (sobretudo quando são tão necessários), de libertar-se dos erros e em geral de progredir no esclarecimento. Isso seria um crime contra a natureza humana, cuja originária destinação consiste justamente nesse progresso; e, portanto, as gerações sucessivas estão perfeitamente legitimadas a rejeitar tais convenções como não autorizadas e ímpias. A pedra-de-toque de tudo aquilo que se pode impor como lei a um povo está no quesito: um povo pode impor a si próprio tal lei? Isso sim seria uma coisa possível, por assim dizer, na espera de uma lei melhor e por breve tempo determinado, com o fim de introduzir certa ordem, mas com a condição de que entrementes se deixe livre todo cidadão, sobretudo o homem de Igreja, de fazer sobre os defeitos da instituição vigente suas observações publicamente, em sua qualidade de estudioso, isto é, mediante seus escritos; e isso enquanto a ordem constituída se mantiver sempre em vigor até que as novas visões nessa matéria não tenham alcançado no público tanta difusão e crédito que os cidadãos, com a união de seus votos (mesmo que não de todos), estejam em grau de apresentar ao soberano uma proposta dirigida a proteger as comunidades que estivessem de acordo para uma mudança para melhor da constituição religiosa segundo suas idéias, e sem prejuízo para as comunidades que, ao contrário, pretendessem permanecer na antiga constituição. Mas entrar em acordo para manter em vigor, mesmo que apenas pela duração da vida de um homem, uma constituição religiosa imutável que ninguém possa publicamente pôr em dúvida, e com isso anular por assim dizer uma fase cronológica do caminho da humanidade para sua melhora e tornar essa fase estéril e por isso mesmo talvez até danosa para a posteridade, não é absolutamente lícito. Um homem pode, de fato, por sua própria pessoa, e também em tal caso apenas por certo tempo, diferir de iluminar-se sobre aquilo que ele próprio é destinado a saber; mas renunciar a isso para si e, mais ainda, para a posteridade, significa violar e calcar aos pés os sagrados direitos da humanidade. Ora, aquilo que nem sequer um povo pode decidir a respeito de si próprio, menos ainda o pode um monarca a respeito do povo; com efeito, seu prestígio legislativo se funda precisamente sobre o fato de que em sua vontade ele resume a vontade geral do povo. Embora ele vigie para que toda verdadeira ou presumida melhora não contrarie a ordem civil, ele não pode de resto senão deixar seus súditos livres de fazer o que crêem necessário para a salvação de sua alma. [...] O monarca acarreta detrimento à sua própria majestade caso se intrometa nessas coisas, considerando que os escritos nos quais seus súditos colocam às claras suas idéias sejam passíveis de controle por parte do governo, tanto se ele faz isso invocando a própria intervenção autocrática e expondo-se à reprovação de que Caesar non est supra grammaticos,4 como, e com maior razão, se ele abaixa seu poder a ponto de sustentar o despotismo espiritual de algum tirano em seu Estado contra todos os outros seus súditos.
5. A época atual é “de iluminismo”, e não uma época “iluminada”.
Se agora perguntarmos: nós, atualmente, vivemos em uma era iluminada? então a resposta é: não, e sim em uma era de iluminismo.Que na situação atual os homens tomados em massa já estejam em grau, ou que também possam ser colocados em grau de valer-se seguramente e bem de seu próprio intelecto nas coisas da religião, sem a guia de outros, é uma condição da qual ainda nos encontramos muito distantes. Mas que a eles, agora, esteja aberto o campo para trabalhar e emancipar-se para tal estado, e que os obstáculos à difusão do esclarecimento geral ou à saída da menoridade a eles próprios imputável pouco a pouco diminuam, disso temos, ao contrário, sinais evidentes. [...]
Um príncipe que não crê indigno de si dizer que considera seu dever não prescrever nada aos homens nas coisas de religião, mas deixá-los nisso em plena liberdade, e que, portanto, afasta de si também o nome orgulhoso da tolerância, é ele próprio iluminado e merece que o mundo e a posteridade reconheçam ser digno de elogio como aquele que por primeiro emancipou o gênero humano da menoridade, ao menos por parte do governo, e deixou livre cada um de valer-se de sua própria razão em tudo aquilo que é questão de consciência. [...] Este espírito de liberdade se estende também para o exterior, até o ponto em que ele deve lutar contra obstáculos exteriores suscitados por um governo que entende mal a si próprio. O governo, com efeito, tem em todo caso diante dos olhos um resplandecente exemplo que mostra que a paz pública e a concórdia da comunidade nada têm a temer da liberdade. Os homens se empenham por si mesmos para sair pouco a pouco da barbárie, contanto que não se recorra a instrumentos artificiais para nela mantê-los.
6. O Iluminismo deve se referir sobretudo às coisas de religião.
Coloquei particularmente nas coisas de religião o ponto culminante do esclarecimento, isto é, da saída dos homens de um estado de menoridade que deve ser imputado a eles próprios; em relação às artes e às ciências, com efeito, nossos regentes não têm nenhum interesse de exercitar a tutela sobre seus súditos. Além disso, a menoridade em coisas de religião é entre todas as formas de menoridade a mais danosa e também a mais humilhante. Mas o modo de pensar de um soberano que favorece aquele tipo de esclarecimento vai ainda além, pois ele vê que até em relação à legislação por ele estabelecida não se corre perigo em permitir aos súditos fazer uso público de sua razão e de expor publicamente ao mundo suas idéias sobre um melhor arranjo da própria legislação, até criticando de modo aberto a existente. [...]
7. Um paradoxo: uma liberdade civil maior põe maiores limites à liberdade do espírito do povo.
Todavia, também é verdade que apenas aquele que, iluminado ele próprio, não tem medo das sombras e ao mesmo tempo dispõe a garantia da paz pública de um exército numeroso e bem disciplinado, pode enunciar aquilo que uma república não pode arriscar-se a dizer: raciocinai o quanto quiserdes e sobre tudo aquilo que quiserdes; apenas obedecei! Revela-se aqui um estranho e inesperado curso das coisas humanas; como, de resto, em outros casos, considerando esse curso em tamanho grande, quase tudo nele parece paradoxal. Um maior grau de liberdade civil parece favorável à liberdade do espírito do povo, e todavia põe a ela limites intransponíveis; um grau menor de liberdade civil, ao contrário, oferece ao espírito o espaço para desenvolver-se com todas as suas forças. Portanto, se a natureza desenvolveu sob este duro invólucro o germe do qual ela toma o mais inteiro cuidado, isto é, a tendência e vocação para o livre pensamento, esta tendência e vocação gradualmente reage sobre o modo de sentir do povo (motivo pelo qual este, pouco a pouco, torna-se sempre mais capaz da liberdade de agir) e finalmente até sobre os princípios do governo, o qual percebe que é vantagem para si próprio tratar o homem, que doravante é mais que uma máquina,5 de modo conforme com a dignidade que ele tem.
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1 “Tem a coragem de saber!”: Horácio, Epístolas I, 2, 40).
2A expressão “o público” tinha no séc. XVIII três possíveis acepções. Significava, em contraposição ao indivíduo, a totalidade das pessoas reunidas em um certo lugar ou espaço (província ou Estado), ou o público dos leitores de um determinado escritor, e ainda o conjunto das pessoas que pertencem a uma época histórica.
3Alusão a Frederico II da Prússia (1740-1786).
4“O imperador não tem autoridade sobre os gramáticos”.
NOTA 1: Kant foi considerado um dos mais influentes filósofos da história moderna.
NOTA 2: Seus ensinamentos e teorias influenciaram outros filósofos, tais como: Hegel, Herder e Nietzsche.
NOTA 3: Ele nunca chegou a difundir muito os ensinamentos e teorias iluministas em sua cidade, devido a desaprovação do imperador Frederico II, o qual abominava tais idéias.
Fonte: http://rgirola.sites.uol.com.br/Kant.htm
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