terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Lembrança e legado de Eric Hobsbawn



Um historiador com poder de síntese incomparável. Um marxista crítico e inquieto, sem deixar jamais de acreditar na transformação social

Eric John Ernest Hobsbawm (1917-2012). Historiador e professor.
Por Martin Kettle e Dorothy Wedderburn, no The Guardian | Tradução: Daniela Frabasile e Hugo Albuquerque

Se Eric Hobsbawm tivesse morrido há 25 anos atrás, os obituários o descreveriam como o historiador marxista britânico mais notável e acabariam mais ou menos aí. Mas ao morrer agora, aos 95 anos, ele atingiu uma posição única na vida intelectual de seu país. Nos últimos anos, tornou-se o historiador britânico mais respeitado de qualquer tipo, reconhecido (se não aprovado) tanto pela esquerda quanto pela direita, e um dos poucos historiadores de qualquer era a desfrutar reconhecimento nacional e internacional genuíno.

Diferente de outros, Hobsbawm atingiu tal status sem voltar-se contra o marxismo ou Marx. Em seu 94º ano, ele publicou How to change the world [leia resenha em Outras Palavras], uma forte defesa da relevância contínua de Marx na sequência do colapso dos bancos de 2008-2010. Além disso, atingiu o auge de sua reputação em um momento em que as ideias e projetos socialistas, que tanto estimularam sua escrita por mais de meio século, estavam em desarranjo histórico – algo de que ele esteve muito consciente.

Em uma profissão conhecida por preocupações microscópicas, poucos historiadores envolveram-se num campo tão vasto, com tantos detalhes ou com tanta autoridade. Até o fim, Hobsbawm considerava-se essencialmente um historiador do século 19, mas seu entendimento desse e de outros séculos era amplo e cosmopolita.

O alcance de seu interesse pelo passado, e seu excepcional domínio dos temas pelos quais se embrenhava sempre espantaram a muitos, principalmente na série de quatro volumes A era das… na qual se destila a história do mundo capitalista de 1789 a 1991. “A capacidade de Hobsbawm de armazenar e recuperar detalhes atingiu agora a escala normalmente alcançada apenas por grandes arquivos com grandes equipes”, escreveu Neal Ascherson. Tanto por seu conhecimento de detalhes históricos quanto por seu extraordinário poder de síntese, tão bem colocados no projeto dos quatro volumes, ele foi incomparável.
Hobsbawm nasceu em Alexandria, um bom lugar para um historiador do império, em 1917, um bom ano para um comunista. Ele faz parte da segunda geração britânica de sua família, neto de um judeu polonês e marceneiro que foi para Londres nos anos 1870. Oito filhos, incluindo Leopold, pai de Eric, nasceram na Inglaterra e todos ganharam cidadania britânica quando nasceram (o tio de Hobsbawm, Harry, tornou-se o primeiro prefeito eleito pelo Partido Trabalhista em Paddington).

Mas Eric era um britânico com um background pouco comum. Outro tio, Sidney, foi para o Egito antes da Primeira Guerra Mundial e encontrou um emprego para Leopold numa agência de despachos marítimos. Lá, em 1914, Leopold Hobsbawm conheceu Nelly Gruen, uma jovem vienense de uma família de classe média, que tinha ganho uma viagem ao Egito como prêmio por ter terminado seus estudos. Os dois ficaram noivos, mas a eclosão da I Guerra Mundial os separou. O casal acabaria se casando na Suíça em 1916, voltando ao Egito para o nascimento de seu primeiro filho, Eric.

“Todo historiador tem sua história de vida, um ponto de vista privado para examinar o mundo”, ele disse em 1993, em uma palestra em Creighton, numa das várias ocasiões nos seus últimos anos em que tentou relacionar sua história de vida com sua escrita. “Meu ponto de vista foi construído a partir de uma infância em Viena nos anos de 1920, os anos em que Hitler ganhou força em Berlim, que determinaram minha visão política e meu interesse pela história; e na Inglaterra, especialmente em Cambridge nos anos 1930, quando confirmei as duas escolhas”.

Em 1919, a jovem família assentou-se em Viena, onde Eric frequentou a escola primária, período que ele mais tarde relembrou em 1995, em um documentário na televisão que mostrava fotos de um jovem Hobsbawm magro, usando shorts e meias até os joelhos. A política teve seu impacto mais ou menos nessa época. A primeira memória política de Eric é de Viena, em 1927, quando trabalhadores queimaram o Palácio da Justiça. A primeira conversa política de que ele se lembrava aconteceu em um sanatório, por volta desse ano. Duas mulheres judias estavam discutindo Leon Trotsky. “Diga o que você quiser”, uma disse a outra, “mas ele é um jovem judeu chamado Bronstein”.

Em 1929, seu pai morreu de um ataque cardíaco. Dois anos depois, sua mãe morreu de tuberculose. Eric tinha 14 anos, e seu tio Sidney assumiu a responsabilidade, e levou Eric e sua irmã Nancy para Berlim. Como um adolescente em Berlim na República Weimar, Eric inevitavelmente se politizou. Ele leu Marx pela primeira vez, e se tornou um comunista.

Ele sempre se lembrou do dia, em janeiro de 1933, quando, ao sair da estação Halensee S-Bahn voltando da escola para casa, viu uma manchete em um jornal anunciando que Hitler havia sido eleito chanceler. Por volta dessa época, juntou-se ao Socialist Schoolboys, que descreveu como “de fato parte do movimento comunista” e vendeu a publicação Schulkampf (“Luta Estudantil”). Ele manteve o mimeógrafo da organização sob sua cama e, dada sua facilidade posterior em escrever, provavelmente também redigiu também a maioria dos artigos. A família permaneceu em Berlim até 1933, quando Sidney Hobsbawm foi enviado para a Inglaterra por seus empregadores.

O garoto adolescente que foi morar com sua irmã em Edgware, em 1934, descreveu a si mesmo posteriormente como “completamente europeu e germanófono”. A escola, porém, “não era um problema” pois o sistema educacional inglês estava “muito atrás” do alemão. Um primo em Balham apresentou-o ao jazz pela primeira vez – o “som irrespondível”, ele chamava. O grande momento da conversa, ele escreveria uns 60 anos depois, foi quando ouviu pela primeira vez a banda Duque Ellington “em sua forma mais imperialista”. Atuou durante uma parte dos anos 1950 como crítico de jazz do New Statesman, e publicou uma edição especial, The Jazz Scene, sobre o assunto, em 1959, sob o pseudônimo de Francis Newton (muitos anos mais tarde, a obra foi relançada com Hobsbawm identificado como o autor).

Ao aprender a falar inglês corretamente, Eric tornou-se aluno na escola de gramática Marybone e ganhou, em 1936, uma bolsa de estudos para a King’s College, em Cambridge. Foi nessa época que uma frase ficou comum, entre seus amigos comunistas de Cambridge: “tem alguma coisa que o Hobsbawm não sabe?”. Ele tornou-se membro da legendária Cambridge Apostles. “Todos nós pensamos que a crise de 1930 era a crise final do capitalismo”, ele escreveu 40 anos depois. Mas, acrescentou, “não era”.

Quando a II Guerra Mundial teve início, Hobsbawm voluntariou-se, como muitos comunistas, para trabalho de inteligência. Mas suas ideias políticas, que nunca foram segredo, levaram à rejeição. Então ele tornou-se um escavador improvável na 560ª Companhia de Campo, que posteriormente descreveu como “uma unidade muito operária, tentando construir defesas notoriamente inadequadas contra invasões no litoral de East Anglia”. Essa também foi uma experiência formativa para o jovem prodígio intelectual, muitas vezes ausente. “Havia algo sublime sobre eles e a Inglaterra naquele tempo”, escreveu. “Aquela experiência na guerra converteu-me em um operário inglês. Eles não eram muito inteligentes, exceto os escoceses e galeses, mas eles eram pessoas muito, muito boas”.

Hobsbawm casou-se com sua primeira esposa, Muriel Seaman, em 1943. Depois da guerra, de volta a Cambridge, tomou outra decisão: abandonou um doutorado planejado sobre a reforma agrária no norte da África para fazer uma pesquisa sobre os socialistas fabianos. Foi uma escolha que abriu a porta tanto para uma vida de estudos sobre o século 19 quanto para uma preocupação igualmente duradora sobre os problemas da esquerda. Em 1947, ele conseguiu seu primeiro trabalho permanente, como professor conferencista de história no Birkbeck College, em Londres, onde permaneceu grande parte da sua vida como professor.

Com o início da Guerra Fria, um macartismo acadêmico muito britânico fez com que a cátedra de Cambridge, que Hobsbawm sempre cobiçou, nunca se materializasse. Ele viajava de Cambridge para Londres, como um dos principais organizadores e animadores do Grupo de Historiadores do Partido Comunista, uma academia brilhante e radical que reuniu alguns dos mais proeminentes historiadores do pós-guerra. Entre seus membros, estavam Christopher Hill, Rodney Hilton, A. L. Morton, E. P. Thompson, John Saville e, mais tarde, Raphael Samuel. O que quer que o grupo tenha alcançado (e Hobsbawm escreveu uma dissertação sobre ele em 1978), a experiência certamente estabeleceu um núcleo para seus primeiros passos como grande escritor de História.

O primeiro livro de Hobsbawm, “Labour’s Turning Point” (1948) – uma coleção editada de documentos da era do socialismo Fabiano – pertence claramente à época de militância no Partido Comunista, assim como o seu engajamento no debate famoso sobre as consequências econômicas do início da Revolução Industrial, um tema sobre o qual ele e R. M. Hartwell teceram argumentos em sucessivos números da Economic History Review. A fundação do jornal Past and Present também pertence ao mesmo período. É até hoje o mais duradouro periódico do grupo de historiadores do PC britânico.

Hobsbawm nunca deixou o Partido Comunista e sempre pensou em si mesmo como parte de um movimento internacional comunista. Para muitos, este continua a ser o obstáculo insuperável para abraçar sua obra. Contudo, ele sempre manteve-se muito mais como um livre-pensador autorizado a permanecer dentro das fileiras do partido. Sobre a invasão da Hungria pela União Soviética, em 1956, um evento que dividiu o PC e provocou a saída de muitos intelectuais do partido, ele foi uma voz de protesto que, no entanto, permaneceu.

 Todavia, a exemplo de seu contemporâneo Christopher Hill, que deixou o PC naquele momento, a combinação, de alguma forma, do trauma político de 1956 e o início de um longo e feliz segundo casamento, provocou um período sustentado e frutífero de produção no campo da História, o que veio a estabelecer sua fama e reputação. Em 1959, ele publicou sua primeira grande obra, “Primitive Rebels”, um relato notavelmente original, especialmente para aqueles tempos, das sociedades secretas e das culturas milenares do Sul da Europa (ele ainda estava escrevendo sobre o assunto recentemente, em 2011). Voltou a esses temas uma década depois, em Captain Swing, um estudo detalhado do protesto rural do início do século 19 na Inglaterra, em co-autoria com George Rudé, e Bandidos, um esforço mais abrangente de síntese. Essas obras servem de lembretes de como Hobsbawm foi tanto uma ponte entre a historiografia europeia e a britânica e, também, um precursor do aumento notável do estudo da história social no pós-1968 britânico.

À essa altura, porém, Hobsbawm já havia publicado o primeiro dos trabalhos sobre os quais suas reputações popular e acadêmica iriam se assentar. Uma coleção de alguns dos seus ensaios mais importantes, Labouring Men, apareceu em 1964 (uma segunda coleção, Worlds of Labour, iria surgir 20 anos mais tarde). Mas foi Industry and Empire (1968), uma compilação convincente de muito do seu trabalho sobre a revolução industrial da Grã-Bretanha, que alcançou o mais alto reconhecimento – e, não à toa, raramente a obra encontra-se fora de catálogo.

Foi ainda mais influente, no longo prazo, a série a Era de…, que começou em 1962 com a A Era das Revoluções: 1789-1848. Ela foi sucedida por A Era do Capital: 1848-1875 (1975) e, depois, por A Era do Império: 1875-1914 (1987). Um quarto volume, A Era dos Extremos: 1914-1991, mais peculiar e especulativo, ainda que, sob alguns aspectos, mais notável e admirável do que as obras anteriores, ampliou a sequência em 1994.

Os quatro volumes incorporam todas as melhores qualidades de Hobsbawm – a varredura do tema e a compreensão estatística combinadas pelo ar de anedota, a atenção pelas nuances e o significado das palavras além de, sobretudo, um incomparável poder de síntese (não há lugar onde o capitalismo dos meados do século 19 esteja mais bem disposto do que o clássico sumário presente na primeira página do segundo volume). Os livros não foram concebidos como tetralogia, mas adquiriram, assim que surgiram, status individual e, ao mesmo tempo, cumulativo, de claśsico. Eles foram um exemplo, como diria o próprio Hobsbawm, “daquilo que os franceses chamam de ‘haute vulgarisation‘ [alta vulgarização]” (e ele não disse isso no sentido autodepreciativo). Os livros ornaram-se, nas palavras de um revisor, “parte da mobília dos ingleses bem-formados”.

O primeiro casamento de Hobsbawm tinha terminado em 1951. Durante os anos 1950, ele teve outro relacionamento, que resultou no nascimento de seu primeiro filho, Joss Bennathan; mas a mãe do garonto não quis casar-se. Em 1962, ele casou-se de novo, agora com Marlene Schwartz, de ascendência austríaca. Mudaram-se para Hampstead e compraram uma segunda casa pequena em Gales. Tiveram dois filhos, Andrew e Julia.

Nos anos 1970, a fama crescente de Hobsbawm como historiador viu-se acompanhada pelo crescimento da sua fama como narrador de seu próprio tempo. Embora ele respeitasse, como historiador, a disciplina centralista do Partido Comunista, sua eminência intelectual deu-lhe uma independência que lhe permitiu conquistar o respeito de pensadores críticos ao comunismo, a exemplo de Isaiah Berlin. Isso também garantiu-lhe o considerável elogio de não ter nenhum de seus livros publicados na União Soviética. Armado e protegido, ele navegou sem medo por todo o campo da esquerda, das páginas mensais do Partido Comunista ao Marxism Today, uma publicação consideravelmente heterodoxa na qual tornou-se sumidade da casa.

Suas conversas com o comunista – e, agora, presidente – italiano Giorgio Napolitano datam daqueles anos e foram publicadas em A Estrada Italiana para o Socialismo. Mas sua mais influente contribuição política foi a crescente certeza de que o movimento proletário europeu perdera a capacidade de realizar a função transformadora que os marxistas primordiais lhe creditavam. Esses artigos revisionistas descompromissados foram organizados sob o título “The Forward March of Labour Halted” [A Marcha do Trabalho Interrompida].

Em 1983, quando Neil Kinnock tornou-se líder do Partido Trabalhista britânico, por conta de sua sorte eleitoral, a influência de Hobsbawm começou a se estender para além do Partido Comunista e para dentro do Trabalhista. Kinnock reconheceu publicamente sua dívida para com Hobsbawm e permitiu-se ser entrevistado pelo homem que descreveu como “meu marxista favorito”. Embora Hobsbawm tenha desaprovado firmemente muito daquilo que seria conhecido depois como “Novo Trabalhismo” – algo que via, entre coisas, como covardia histórica – ele foi, sem dúvida, o precursor intelectual mais influente do revisionismo iconoclasta do trabalhismo dos anos 1990.

Seu status foi sublinhado em 1998, quando o então primeiro-ministro Tony Blair concedeu-lhe a distinção de Companion of Honour, poucos meses depois de ter completado 80 anos. Na sua justificativa, o premiê disse que Hobsbawm continuava a publicar trabalhos que “localizam na História e na política problemas que reemergem, para perturbar a complacência da Europa”.

Nos últimos anos, Hobsbawm viu sua reputação crescer. Suas comemorações de aniversário de 80 e 90 anos foram premiadas com a presença da intelectualidade liberal e de esquerda da Grã-Bretanha. Ao longo dos últimos anos, ele continuou a publicar volumes de ensaios, incluindo On the History (1997) e Uncommon People (1998), trabalhos nos quais Dizzy Gillespie e Salvatore Giuliano colocaram-se lado a lado no índice de testemunhas das crescente curiosidade de Hobsbwm. Também são dessa época uma autobiografia muito bem-sucedida, Tempos Interessantes, publicada em 2002, e Globalização, Democracia e Terrorismo, de 2007.

Mais famoso no fim de sua vida do que provavelmente em qualquer outro período, ele manteve com regularidade suas palestras, comunicações e o papel como performer no Festival de Literatura de Hay, do qual tornou-se presidente aos 93 anos, após a morte de Lord Bingham de Cornhill. Um tombo, em 2010 reduziu severamente sua mobilidade, mas seu intelecto permaneceu intocado, assim como sua vida social e cultura, graças aos esforços, ao amor e à culinária de Marlene.

Que seus escritos tenham continuado a sensibilizar tantos públicos, no momento em que sua política foi, de certa forma, eclipsada, era o tipo de disjunção que exasperava os direitistas. Mas foi também o paradoxo em que seu intelecto sutiu e jamais complacente refestelou-se. Em seus últimos anos, ele gostava de citar E. M. Forster, segundo o qual o próprio Hobsbawm sabia “permanecer sempre num ângulo suave do universo”. Se o comentário diz mais sobre Hobsbawm ou sobre o universo era algo que ele gostava de debater, confiante na noção de que se tratava, em muitos sentidos de um aprendizado para ambos. Ele deixa Marlene e seus três filhos, sete netos e um bisneto.

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