quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Vinte de Novembro: história e conteúdo



 Vinte de Novembro: história e conteúdo


Oliveira Silveira


A evocação do dia Vinte de Novembro como data negra foi lançada nacionalmente em 1971 pelo Grupo Palmares, de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Mas quem lê o manifesto nacional do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNUCDR), divulgado em novembro de 1978 e designando a data como dia nacional da consciência negra, não encontra no texto nenhuma referência a essa iniciativa gaúcha ou ao trabalho continuado pelo grupo nos anos seguintes.

Resultante do MNUCDR, o Movimento Negro Unificado (MNU) (1978, p. 75 e 78), em livro sobre seus dez anos de luta contra o racismo, não vai nesse sentido além do que havia escrito a saudosa Lélia Gonzalez (1982, p. 31): "E é no início dos anos setenta que vamos ter (...) o alerta geral do Grupo Palmares, do Rio Grande do Sul, para o deslocamento das comemorações do treze de maio para o vinte de novembro..." Ou ainda, a mesma autora:

Graças ao empenho do MNU, ampliando e aprofundando a proposta do Grupo Palmares, o 20 de novembro transformou-se num ato político de afirmação da história do povo negro, justamente naquilo em que ele demonstrou sua capacidade de organização e de proposta de uma sociedade alternativa... (p. 57).

Interessante é que, por outro lado, a história do Vinte teve espaço e foi contada em outras publicações do MNU pelo mesmo componente do Grupo Palmares (Oliveira Silveira) ou com sua participação: revista do MNU, boletim do MNU-RS, jornal Nêgo, Jornal do MNU.

Surgindo em 18 de junho de 1978 como convergência de várias entidades, algumas das quais já celebravam o Novembro, o MNUCDR encontra a evocação do vinte de novembro com um longo caminho trilhado. Para enfocar primeiros passos, acompanhar trajetória, examinar contexto, potencial e significado, vai ser importante um flash-back, recuando no tempo uns sete anos ou mais.

Do Treze ao Vinte

Treze de maio traição.
liberdade sem asas
e fome sem pão.

Embora esses versos tenham sido escritos em 13 de maio de 1969 – Oliveira Silveira (1970, p. 9) –, o crítico mais veemente dessa data, da abolição e da lei chamada Áurea, era Jorge Antônio dos Santos. O grupinho de negros se reunia costumeiramente em alguns fins de tarde na Rua da Praia (oficialmente, dos Andradas), quase esquina com Marechal Floriano, em frente à Casa Masson. Eram vários esses pontos de encontro, havendo às vezes algum deslocamento por alguma razão. Pontos negros.

Na roda, tendência à unanimidade. O treze não satisfazia, não havia por que comemorá-lo. A abolição só havia abolido no papel; a lei não determinara medidas concretas, práticas, palpáveis em favor do negro. E sem o treze era preciso buscar outras datas, era preciso retomar a história do Brasil.

Nas conversas, a República, o Reino, o Estado, os quilombos de Palmares (Angola Janga) foi o que logo despontou na vista d'olhos sobre os fatos históricos. Antônio Carlos Cortes, Vilmar Nunes e o citado Jorge Antônio vinham de experiências no Grupo de Teatro Novo Floresta Aurora, na então quase-quase centenária Sociedade Floresta Aurora (de 1872, ou 1871).

Esse grupo, criado em dezembro de 1967 por iniciativa de Mauro Eli Leal Pare, apresentara o monólogo da paz "Contra a guerra" é juntamente com o Grupo de Teatro Marciliense (GTM), coordenado por Luiz Gonzaga Lucena no Clube Náutico Marcílio Dias (negro como o Floresta Aurora), ousara encenar no Teatro São Pedro o Orfeu da Conceição, de Vinícius de Moraes.

O fato é que esses três freqüentadores do ponto na Rua da Praia falavam em Arena conta Zumbi, de Gianfrancesco Guarnieri. E eram bem conhecidas as músicas "Estatuinha", de Edu Lobo, "Upa, neguinho", de Edu Lobo e Guarnieri, ou aquela que fala em Ganga Zumba e Zambi, composições integrantes da trilha nessa peça famosa.

Circulava na época o fascículo Zumbi, o n° 6 na série Grandes Personagens da Nossa História, da Abril Cultural. Essa publicação fortaleceu no freqüentador Oliveira Silveira a idéia de que Palmares fosse a passagem mais marcante na história do negro no Brasil. Um século de liberdade e luta contra o escravismo imposto pelo poder colonial português era coisa muito significativa e animadora. E lá estava o dia 20 de novembro de 1695, data da morte heróica de Zumbi, último rei e líder dos Palmares, marco assinalando também o final objetivo do Estado e país negro.

Não podia, porém, um fascículo (ele trazia copyright de 1969) ser considerado fonte absoluta de consulta, mas O quilombo dos Palmares, livro de Édison Carneiro publicado em 1947 pela Editora Brasiliense, de São Paulo, oferecia-se como a referência adequada e segura, parecendo ter sido base para a elaboração do fascículo. Confirmava o 20 de novembro como data da morte de Zumbi, o que foi corroborado mais adiante pela obra As guerras nos Palmares, do português Ernesto Ennes, editado em 1938 pela Companhia Editora Nacional, de São Paulo, numa coleção valiosa, a Brasiliana. Transcrevendo documentos, o autor inclui cartas alusivas à morte de Zumbi e aceita a informação de Domingos Jorge Velho dando conta de que ela ocorreu em 20 de novembro de 1695, conseguida por um terço comandado por André Furtado de Mendonça. Tinha-se uma data, e ela foi sugerida, como possibilidade de celebração em contraponto ao treze de maio, no momento em que se concretizou a idéia de formar um grupo.

Foram quatro os participantes da primeira reunião, iniciadores da agremiação ainda sem nome: Antônio Carlos Cortes, Ilmo da Silva, Oliveira Silveira e Vilmar Nunes. Um quinto, de nome Luiz Paulo, assistiu mas não quis fazer parte do trabalho. A idéia era um grupo cultural com espaço para estudos e para as artes, notadamente literatura e teatro. Afinal estavam bem presentes e atuantes os exemplos do Teatro Experimental do Negro (TEM), a militância de Abdias do Nascimento, os exemplos do poeta Solano Trindade e do Teatro Popular Brasileiro.

Era preciso conhecer mais a história, debater as questões raciais, sociais. Vinham do exterior instigações como capitalismo versus socialismo, negritude, independências africanas e movimentos negros
estadunidenses. A reunião foi por volta de 20/7/1971.

Já na próxima ou em alguma das reuniões seguintes ingressaram Anita Leocádia Prestes Abad e Nara Helena Medeiros Soares (falecida), também consideradas fundadoras. O local da primeira reunião foi a casa dos professores José Maria Vianna Rodrigues (falecido no ano anterior), Maria Aracy dos Santos Rodrigues, Julieta Maria Rodrigues, Oliveira Silveira e da menina Naiara Rodrigues Silveira, futura docente, e residência também da professora Jovelina Godoy Santana, guardiã de lições de vida (longa), situada na Rua Tomás Flores nº 303, bairro Bonfim. Ali haviam sido corroborados os estudos do vinte de novembro, e de Palmares, com a leitura do livro de Ernesto Ennes, num esquecido e mal folheado exemplar cedido ainda em vida pelo professor José Maria. Lembrado e retomado em momento oportuno, o volume passou a ser devidamente reconhecido como valioso. Casa de professores negros.

A segunda reunião e algumas das seguintes foram em casa de Antônio Carlos Cortes e seus familiares, no prédio da Loteria estadual sito à Rua da Praia, quase esquina com a Rua João Manuel. Foi onde e quando o trabalho nascente recebeu o nome de Grupo Palmares. Tinha sido combinado convidar outras pessoas, e algumas compareceram para conferir a proposta (na segunda ou em outras reuniões), mas não se integraram. Foi, por exemplo, o caso do ator Aírton Marques, vindo da experiência exitosa do Teatro Saci, grupo vencedor de um Festival Martins Pena em 1965, ano de sua fundação, presidido por Eloy Dias dos Angelos (militante histórico, advogado e jornalista), tendo como vice-presidente a professora Horacilda do Nascimento e contando, entre outros valores, com a excelente atriz Eni Maria das Neves. Em Orfeu do carnaval, 1969, Aírton encarnara Orfeu, enquanto Eurídice era representada por Marilene Paré. As negativas de gente do teatro, por motivos de cada pessoa, devem ter determinado o fato de o Palmares nunca ter realizado um trabalho próprio na área da dramaturgia.

A denominação Grupo Palmares nasceu do conjunto de participantes da segunda reunião devido às considerações de que Palmares parecia ser a passagem mais marcante na história do negro no Brasil ao representar todo um século de luta e liberdade conquistada e sendo também um contraponto à "liberdade" doada no treze de maio de 1888, etc. Outras propostas de nome praticamente não tiveram espaço.

Ao expor brevemente essas considerações já compartilhadas desde as reuniões informais do ponto na Rua da Praia, o componente que vinha estudando Palmares e tentando uma vista d'olhos sobre a história (Oliveira Silveira) – estudos impulsionados por aqueles encontros e diálogos – sugeriu a adoção e evocação do dia 20 de novembro, morte heróica de Zumbi e final de Palmares, justificando:

– não se sabia dia e mês em que começaram as fugas para os
Palmares (lá por 1595);

– não havia data do nascimento de Zumbi ou outras do tipo
marco inicial;

– Tiradentes também era homenageado na data de morte, 21 de
abril.

A homenagem a Palmares em 20 de novembro foi incluída pelo
grupo na programação elaborada para aquele ano.

O primeiro Vinte

Programando 1971, o grupo listou três atividades a serem desenvolvidas: homenagem a Luiz Gama em 21 de agosto, a José do Patrocínio em 9 de outubro (aniversário de nascimento) e a Palmares em 20 de novembro. A atividade Luiz Gama teria de ser em torno do dia 24, morte do poeta e abolicionista, porque a do nascimento já havia passado

– 21 de junho. Enfim, era a questão das datas ligada à idéia de que, além do vinte de novembro, várias outras deviam estar à disposição, importantes e significativas. Homenagem era a forma considerada mais ou menos atraente para motivar o estudo e disseminar as informações sobre fatos e vultos históricos.

Parece lícito dizer que estava delineada uma precária, mas deliberada ação política no sentido de apresentar, à comunidade negra e à sociedade em geral, alternativas de datas, fatos e nomes, em contestação ao oficialismo do 13 de maio, abolição formal da escravatura, princesa dona Isabel.

Com base no press-release enviado pelo grupo, o jornal Folha da Tarde de 23/8/1971, página 54, noticiou a homenagem a Luiz Gama como ocorrida dia 21. Foi, na verdade, transferida para início de setembro. A nota já anunciava o ato de outubro, sobre Patrocínio, e o de novembro, Palmares. Anita ainda não constava entre os cinco componentes citados pelo jornal. Nara então era a única mulher. Individual vinculado é, aqui, o designativo de matéria jornalística de um integrante do grupo publicada paralelamente ao evento, visando à ampliação e difusão através da imprensa.

Assim, o Correio do Povo de 22/8/1971 trouxe artigo de um componente (Oliveira) sob o título "Luiz Gama e as Trovas Burlescas". Já o ato em começos de setembro foi realizado na Sociedade Floresta Aurora com pequeno público. Rua Curupaiti, bairro Cristal, à época. Vida e obra de Luiz Gama; leitura e distribuição de texto mimeografado: seu poema "Quem sou eu?", o conhecido Bodarrada. Na grafia com z, o presente texto acompanha Ligia Fonseca Ferreira em seu excelente trabalho estudando e reeditando Luiz Gama (2000).

Sobre o ato de homenagem a José do Patrocínio, o empresário e abolicionista, jornalista, intelectual negro do século 19, o mesmo de Luiz Gama, não estão sendo encontrados registros, mas consta que ele ocorreu de forma um tanto incompleta, parece que limitada a uma troca entre os componentes do grupo quanto aos dados coletados e talvez na mesma Sociedade Floresta Aurora. Matéria da Folha da Manhã (23 ou 24/6/1972?) o inclui entre as realizações do Grupo Palmares, concretizado em outubro de 1971.

A homenagem a Palmares ocorreu no dia 20 de novembro de 1971, um sábado à noite, no Clube Náutico Marcílio Dias, sociedade negra sita à Avenida Praia de Belas nº 2300, bairro Menino Deus, em Porto Alegre. O Marcílio, fundado em 4/7/1949, foi um importante espaço físico, social e cultural perdido nos anos 80. Público reduzido, conforme o esperado, mas considerado satisfatório. "Zumbi, a homenagem dos negros do teatro" foi o título da Folha da Tarde para a nota publicada dia 17. E nessa época de ditadura, em que os militares eram chamados de "gorilas", o teatro era muito visado. O grupo foi chamado à sede da Polícia Federal para, através de um de seus integrantes, apresentar a programação do ato e obter liberação da Censura no dia 18.

No evento, dia 20, usando técnica escolar, os participantes do grupo se espalharam no círculo, entre a assistência, e contaram a história de Palmares e seus quilombos com base nos estudos feitos, defendendo a opção pelo 20 de novembro, mais significativo e afirmativo na confrontação com o treze de maio. Anita já estava no grupo e Ilmo não participou, licenciado, vindo, na seqüência, a afastar-se totalmente. Mas assistiram ao ato Antônia Mariza, Helena Vitória e Leni. As três ingressariam mais adiante.

Como individual vinculado, expressão utilizada linhas atrás, um artigo de componente (Oliveira), encaminhado previamente, foi publicado no dia 21, domingo, no Correio do Povo, à página 23, sob o título "A epopéia dos Palmares", enfocando o aspecto histórico e citando o fascículo Zumbi junto aos livros de Édison Carneiro e Ernesto Ennes, além de algumas outras fontes. A abordagem literária de Palmares esteve presente em fragmentos poéticos de José Bonifácio, o Moço, Castro Alves e Solano Trindade, assim como na referência ao trecho de Jubiabá, de Jorge Amado. Parte mais interpretativa tratava da mensagem de Palmares, e um quadro cronológico registrava o auxílio de Anita Abad para sua elaboração.

A homenagem a Palmares em 20 de novembro de 1971 foi o primeiro
ato evocativo dessa data que, sete anos mais tarde, passaria a ser referida como dia nacional da consciência negra. A programação feita para 1971 precisou ter uma adenda. O repórter negro Lúcio Flávio Bastos iniciara em 19 de novembro no jornal Zero Hora uma série intitulada "Saiba por que Você é Racista", com matérias diárias. Ao final, o grupo achou oportuno promover uma palestra em que ele falasse a respeito da série, o que aconteceu no dia 4 de dezembro, também no Marcílio Dias.

Sobre a evocação do vinte de novembro, uma questão em destaque é o fato de muitas pessoas, militantes até, na causa negra, pensarem que tudo começou em 1978 com o MNUCDR. Informações no texto em curso talvez possam ajudar. Outra questão refere-se ao historiador branco gaúcho Décio Freitas.

O escritor e jornalista Márcio Barbosa (1996, p. 39), de São Paulo, oportunizava ao entrevistado (Oliveira Silveira) dizer se o livro de Décio Freitas sobre Palmares havia sido fonte de consulta para se chegar ao Vinte de Novembro. Preocupação similar revelava o historiador negro Flávio Gomes, do Rio de Janeiro, ao gravar em Porto Alegre, meados de 2003, informações do mesmo depoente.

Em 16/12/1975, à página 35, a simpática Folha da Manhã, de Porto Alegre, publicava matéria com declarações dos coordenadores do Grupo Palmares. A propósito, nessa época, após períodos em que se sucederam coordenação masculina e feminina, homem e mulher partilhavam a coordenação, no caso os componentes Oliveira e Helena Vitória dos Santos Machado – e não era ao influxo de debates por questões de gênero. Constou na FM:

Foi ao encontrar Décio Freitas que eles (os integrantes do Palmares) receberam um grande apoio para o trabalho que vinham desenvolvendo. Conta Silveira que a aproximação se deu quando ele pesquisava alguns aspectos do escravismo para um artigo a ser publicado em jornal. Encontrei o livro de Décio – Palmares – numa edição em espanhol. Logo observei que era a obra que tratava com mais profundidade o assunto. Depois o autor foi a uma de nossas palestras e nunca mais se desligou do Grupo. Em entendimentos com a editora Movimento em 1973 finalmente conseguimos editar o livro em português.

Caso de matéria em que o declarante ou entrevistado, após a leitura, se pergunta: eu falei assim, eu disse isso? eu bebi? No caso, a conclusão foi pela necessidade de melhor preparo, a fim de evitar declarações que pudessem levar a interpretações diferentes do que foi dito, ou que se pensou ter dito.

O historiador Décio Freitas compareceu ao ato de 20 de novembro de 1971 movido pela notícia na imprensa. Assistiu anonimamente, em completo silêncio. Só ao final dirigiu-se a um dos componentes do grupo (Oliveira), identificou-se e ofereceu um exemplar de Palmares – la guerrilla negra, editado naquele ano em Montevidéu por Editorial  Nuestra América. Voltava do exílio no Uruguai e não lhe convinha aparecer. Informou que a obra era resultado de estudos iniciados algum tempo atrás (1965). Assim Décio Freitas testemunhou o primeiro Vinte.

Só a partir daí é que o historiador e sua obra passaram a ser conhecidos do Grupo Palmares. E na semana seguinte apareceria matéria sobre ele na série já citada "Saiba por que Você é Racista", de Lúcio Flávio Bastos. Em agosto de 1971, quando seu livro em espanhol acabava de ser impresso em talleres gráficos uruguaios, o Grupo Palmares, formado em julho, já definira e anunciava na imprensa a celebração do dia 20 de novembro através da homenagem a Palmares. Esse anúncio ocorria em nota citada – Folha da Tarde, em 23/8/1971 –, decorrente das deliberações de julho: assinalar o 20 de novembro, destacando Palmares.

Quando a nota da Folha da Manhã, em 1975, diz que o historiador "nunca mais se desligou do Grupo", pode estar suscitando a necessidade de uma explicitação. É bom dizer, então, que Décio Freitas nunca esteve assim tão ligado ao grupo e nunca fez parte dele. O mencionado "apoio ao trabalho que vinham desenvolvendo" deve ser entendido, primeiro, como proveniente da qualidade da obra e melhor seria dizer reforço aos conteúdos já dominados pelo grupo em termos de história palmarina; e, em segundo lugar, o apoio deve ser visto como colaboração ao aceitar fazer palestras em eventos do grupo, três ao que consta, sendo duas em parceria com o Clube de Cultura, da comunidade judaica, essas em 1975.

Livro e autor, é bom repisar, só foram conhecidos no ato de 20 de novembro, em 1971. Quanto à edição do livro em português, é verdade que houve intermediação do Grupo Palmares. Depois de a obra ter sido utilizada como referência principal na parte histórica de matéria especial utilizada como forma de celebrar o Vinte de Novembro em 1972 através da imprensa, por iniciativa do grupo, o Palmares decidiu consultar e propor ao autor a edição em português. Um componente designado (Oliveira) reuniu-se com ele e o editor Carlos Jorge Appel, surgindo a edição brasileira em 1973 pelo Movimento, de Porto Alegre.

A programação do Vinte em 1973 incluiu palestra de Décio Freitas, motivada pela publicação da obra. Artigo assinado por componente (Oliveira, no esquema "individual vinculado") foi publicado como saudação à nova edição agora intitulada Palmares, a guerra dos escravos, como se tornou conhecida nas sucessivas edições continuadas em outras editoras. O grupo contribuiu, à sua maneira, para a promoção da obra, e se estabeleceram boas relações de amizade entre alguns componentes e o autor. Entre os componentes, o signatário deste relato.

Se Palmares, a guerra dos escravos era marcante não tanto pelos fatos narrados ou dados históricos abordados, em geral conhecidos já através de Ernesto Ennes e Édison Carneiro, mas pelo estilo cativante de Décio Freitas, a agudeza de sua análise e interpretação, passou a contar, desde a quinta edição, com um acréscimo especialmente importante: a biografia de Zumbi. São dados novos trazidos de Portugal pelo autor. O aprofundamento desse estudo sobre Zumbi dos Palmares – e sobre o Estado negro – afigura-se como um desafio à pesquisa.

Virada histórica e construção

A partir de meados de 1972, a formação do grupo contava com Antônia Mariza Carolino, Helena Vitória dos Santos Machado e Marli Carolino, além de Anita e Oliveira. Um dos principais locais de reunião passou a ser o bar da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que na época era URGS.
Anita Leocádia Prestes Abad, que em 1973 já não estava mais no grupo, Helena Vitória dos Santos Machado e, a partir de 1976, Marisa Souza da Silva foram integrantes cuja participação contribuiu decisivamente para o ajuste do trabalho ao contexto das lutas sociais. Uma cronologia pode demonstrar o esforço continuado, marcando o Vinte de Novembro ano a ano até a sua total implantação no País.

1971 – Primeiro ato evocativo do Vinte de Novembro, a homenagem a Palmares em 20/11 no Clube Náutico Marcílio Dias.

1972 – Sete páginas dedicadas a Palmares na revista ZH do jornal Zero Hora em 19/11. Histórico de Palmares, depoimento do grupo, redigido por Helena Vitória dos Santos Machado, poema de Solano Trindade com ilustração de Trindade Leal, um conto, capa e ilustração da artista plástica negra Magliani (Maria Lídia), além da ilustração de Batsow, imagens aproveitadas do fascículo Zumbi da Editora Abril e fotos. Material organizado e redigido pelo componente Oliveira e editado por Juarez Fonseca, de Zero Hora.

1973 – De 6 a 20/11, exposição Três pintores negros (Magliani, J. Altair e Paulo Chimendes), palestra de Décio Freitas e o espetáculo Do carnaval ao quilombo (música, texto). Local: Teatro de Câmara. Em 13 de maio fora publicada no Jornal do Brasil uma entrevista concedida pelo Grupo Palmares. Segundo informações, uma síntese da matéria apareceu no jornal francês Le Monde. Nesse e noutros anos, televisão e rádio ajudaram na difusão da proposta.

1974 – Divulgação de manifesto através do Jornal do Brasil, em matéria assinada por Alexandre Garcia (repórter também na entrevista de 13/5/1973). No texto, breve histórico de Palmares, sugestão expressa de reformulação dos livros didáticos quanto a Palmares "e outros movimentos negros" e indicação de bibliografia. No Rio de Janeiro, Maria Beatriz Nascimento (2002, p. 48), atenta, registrou.

1975 – Encontro Grupo Palmares e grupo Afro-Sul, de música e dança, no Clube de Cultura, associação judaica. A seguir, em 10 e 16 de dezembro, foram realizadas, em parceria com o clube, duas palestras de Décio Freitas.

1976 – Lançamento do livreto Mini-história do negro brasileiro, na sociedade negra Nós os Democratas. Da tentativa de reformulação surgiu posteriormente História do negro brasileiro: uma síntese, outro livreto editado pela Prefeitura de Porto Alegre, através da SMEC, em 1986, assinado por Anita Abad e outros. Nesse ano, em novembro, semanas do negro em Campinas-SP com o Grupo Teatro Evolução e em São Paulo com o Cecan e o Cecab. No Rio de Janeiro, conferir ações do IPCN, por exemplo, entidade nova já atenta ao Vinte de Novembro. Meses antes, em 1976, o Grupo Palmares recebeu a visita de Orlando Fernandes, vice-presidente cultural do IPCN, e Carlos Alberto Medeiros, vice-presidente de relações publicas. O Vinte ganhava adesões.

1977 – Ato na Associação Satélite-Prontidão, sociedade negra, com exposição da minibiblioteca do Grupo Palmares e a presença do escritor negro paulista Oswaldo de Camargo, convidado especial. O grupo Nosso Teatro, depois Grupo Cultural Razão Negra, fez apresentação demonstrativa (não a caráter) de sua montagem para a dramatização de "Esperando o embaixador", conto de Oswaldo.

Além de assinalar o Vinte de Novembro, o Grupo Palmares realizou outras atividades, como visita, estudo e divulgação da Congada de Osório-RS em 1973, aproximação com sociedades negras (clubes), mural na sociedade Nós, os Democratas, interação e intercâmbio com outros grupos ou entidades. Motivado pelo exemplo de Porto Alegre, foi criado em 4/8/1974, em Rosário do Sul (RS), o Grupo Unionista Palmares – data de registro para a fundação ocorrida em 21/7. A partir de 20/11/ 2001, o nome mudou para Grupo Palmares de Rosário do Sul.

A primeira fase do Grupo Palmares, de Porto Alegre, encerrou em 3 de agosto de 1978. Viriam outras duas, mais adiante. Mas o Vinte de Novembro já estava implantado no País - já estava estabelecida a virada histórica e construído, ao longo de sete anos, um novo referencial para o povo negro e sua luta. Para o indivíduo negro, homem ou mulher, sua auto-estima, sua identidade. Criança ou adulto. Novo referencial para o Brasil, com atenções até do exterior, verificadas mais tarde.

E o Vinte de Novembro logo receberia a adesão importante do MNUCDR com o manifesto de 1978 e a denominação Dia Nacional da Consciência Negra. Receberia, na figura do rei e herói, o Festival Comunitário Negro Zumbi (Feconezu), para cidades do Estado de São Paulo. E estava, através da imagem de Zumbi ou explicitamente, como data negra, no grupo Tição (1977-1980), de Porto Alegre, em sua revista n° l, de março de 1978; na seção "Afro-Latino-América" do jornal ou revista Versus em outubro de 1978, São Paulo; na literatura negra, em Cadernos Negros n° l, São Paulo, o primeiro de uma grande série, e com versos de Cuti, Eduardo de Oliveira e Jamu Minka falando em Zumbi, em Éle Semog e José Carlos Limeira juntos em "O arco-íris negro", no Rio em 1978, ou em Abelardo Rodrigues de "Memória da noite", no mesmo ano em São Paulo. O Vinte de Novembro e seu espírito já estavam muito bem incorporados à vida e à luta.

O espírito do Vinte

O historiador negro mineiro Marcos Antônio Cardoso (2002, p. 47-48 e 66-67) faz justiça ao Grupo Palmares e sua iniciativa de marcar o 20 de novembro, destacando a atuação do grupo no conjunto de ações do movimento negro, objeto de sua preciosa dissertação.

Cumprida a primeira fase encerrada em 1978, o Grupo Palmares volta nos anos 80 como grupo de trabalho do MNU. Aparentava beirar o ineditismo esse fato de um grupo com história própria se dispor a funcionar como braço de uma nova organização, mas parece que tal experiência já havia sido tentada por outras entidades na formação do MNUCDR. O fato é que em 1981 formou-se o MNU-RS. Nele um novo grupo de trabalho, divergente, surge em 1983: o GT Lima Barreto, que chamava o grupo inicial de Grupão. Percebendo-se que no Grupão a maioria tinha sido integrante do Palmares, foi adotado o nome GT Palmares.

Mais adiante ocorre a desvinculação do GT Palmares em relação ao MNU e começa a terceira fase com o Grupo Palmares novamente autônomo. Como tal, o Palmares foi um dos criadores da Associação Negra de Cultura em 8/12/1987, mas teve outras ramificações: grupo Coisapreta, pelo menos até a divisão ocorrida nesse trabalho, e grupo Kuenda. Se no GT Palmares da segunda fase Ceres Santos foi um novo valor vindo do grupo Tição, também as ramificações ao final da terceira fase ficaram ligadas a nomes palmarinos: Oliveira na ANdeC, Hilton Machado (terceira fase) no Coisapreta, de onde saíram Helena Vitória dos Santos Machado e Marisa Souza da Silva para criar o trabalho cultural Kuenda.

O Grupo Palmares primou sempre por um detalhe: ser formado exclusivamente por negros. Com isso, a iniciativa, as idéias e a prática do Vinte se constituem criação inequivocamente negra, emergindo da própria comunidade negra e seguindo caminhos próprios, com suas próprias forças e fragilidades. A nominata consagra a importância do individual na composição de um grupo.

Grupo Palmares – Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. Fases – 1971 a 1978; GT Palmares do MNU e Autônoma na década de 80. A partir de 1988 ou 1989 dilui-se em ramificações. Iniciadores – Antônio Carlos Cortes, Ilmo da Silva, Oliveira Silveira, Vilmar Nunes, Anita Leocádia Prestes Abad e Nara Helena Medeiros Soares. Em novas formações – Antônia Mariza Carolino, Gilberto Alves Ramos, Helena Vitória dos Santos Machado, Margarida Maria Martimiano, Marisa Souza da Silva e Marli Carolino. Registre-se ainda a passagem, pelo grupo, de Irene Santos, Leni Souza, Luiz Augusto, Luiz Carlos Ribeiro, Maria Conceição Lopes Fontoura, Otalício Rodrigues dos Santos, Rui Rodrigues Moraes e Vera Daisy Barcellos. Na segunda fase (GT Palmares do MNU), Ceres Santos.

Na terceira (Autônoma, pós-MNU), Hilton Machado. Estiveram ligados de alguma forma ao trabalho Luiz Mário Tavares da Rosa e Maria da Graça Lopes Fontoura, além de um grupo de estudantes do ensino médio, entre os quais Eliane Silva (Nany) e Aírton Duarte. O Grupo Palmares contou, paralelamente, com o apoio de um círculo de colaboradores e simpatizantes negros. Aliados, em outros segmentos étnicoraciais, emprestaram também o seu apoio, ocasionalmente.

Ao aderir e adotar o Vinte de Novembro, o movimento negro, no caso de determinados grupos ou entidades, individualizou ressaltando a figura de Zumbi, na linha daquela historiografia que destaca o indivíduo, o herói singular, como se ele fizesse tudo sozinho. Individualismo, coisa tão cara ao sistema capitalista. Mas pode também ter sido positivo começar pela prática usual, corrente, mais familiar, para, então, encaminhar a visão transformadora. Já o Grupo Palmares sempre valorizou e destacou Zumbi como o herói nacional que é, mas preferiu sempre centrar a evocação no coletivo: 20 de novembro – Palmares, o momento maior (slogan em cartaz e convite em 1973). Ou então: Homenagem a Palmares em 20 de novembro, dia da morte heróica de Zumbi. Afinal, o Estado negro foi uma criação coletiva da negrada.

O Vinte de Novembro, em seu primeiro ato evocativo, de 1971, é um marco divisório no período pós-abolicionista, demarcando ao mesmo tempo o início de uma nova época, digamos contemporânea, a do que se convencionou chamar Movimento Negro. Reconhecendo o valor de ações precursoras de entidades, grupos e indivíduos vindas dos anos 60, teríamos a seguinte periodização:

1971-1978 – Fase da virada histórica, de novos rumos, de nova motivação. Grupo Palmares (RS), Cecan, Cecab, Grupo Teatro Evolução (SP), Ilê Aiyê (BA), Sinba, IPCN, Ceba, mais o Grupo de Trabalho André Rebouças, Granes Quilombo (RJ), citados como referência. Literatura negra (Oswaldo de Camargo), imprensa negra (A Árvore das Palavras, Sinba, Boletim do IPCN).

1978-1988 – Fase de articulação nacional, protestos, reivindicações, agitação política, artística, cultural. Instituições oficiais (assessorias, conselhos). Assembléia Nacional Constituinte. Intensifica-se a criação de semanas do negro. Memorial Zumbi. Correntes confessional cristã (Grucon, APNs) e político-partidária (grupos em partidos), a par da corrente ou filão-base que é o Movimento Negro propriamente dito. Antologias literárias, congressos, os Perfis da Literatura Negra, encontros, os negros na Bienal Nestlé de Literatura. MNUCDR e o nome Dia Nacional da Consciência Negra para o Vinte de Novembro, revista Tição nº l, secção "Afro-Latino-América" no Versus, Feconezu, Cadernos Negros n° l (Quilombo hoje assume a série mais adiante), livros de Abelardo Rodrigues, Cuti, João Carlos Limeira e Èle Semog são fatos que marcam bem o início desta fase, num ano "pleno de acontecimentos culturais sob o signo ao negrismo", como observa Oswaldo de Camargo (1988, p. 99). Jornegro, da Feabesp, também abre esta fase do movimento, encerrada no centenário da abolição.

1988 em diante – Fase de conquistas, a partir do espaço no texto da Constituição para o grupo étnico afro-brasileiro, remanescentes de quilombo e legitimação de suas terras, institucionalização, ONGs (organizações não-governamentais), Fundação Cultural Palmares. "Puxada de tapete" neoliberal atingindo em cheio a comunidade negra.

Os parlamentares, secretários de Estado e ministros negros. A cobrança da dívida social: reparações, políticas públicas de ação afirmativa buscando o concreto, o palpável, em tempos de crise aguda. Literatura negra brasileira traduzida e estudada no exterior (Alemanha, Estados Unidos). Obras culturais importantes como A mão afro-brasileira (Emanoel Araújo, organizador) e Negro brasileiro negro (organização de Joel Rufino dos Santos, Iphan). Produção acadêmica, Congresso Brasileiro de Pesquisadores Negros (Recife e São Carlos, SP, na UFSCar), eventos e publicações na área educacional.

O Vinte de Novembro sempre celebrado em semanas, eventos ao longo do mês de novembro, sendo até adotado como feriado em algumas cidades importantes, mais a idéia de feriado nacional, etc. São parciais as citações, não abrangem todas as áreas, são indicativas apenas. Norte-Nordeste. Sul-Sudeste, Centro-Oeste: negros agindo no País.

O espírito do Vinte teme o oficialismo, mas sabe que tudo é uma questão de savoir-faire, com o knowhow adequado, e espera que se faça a coisa certa. Do capitalismo conhece o poder de absorção, esvaziamento, reciclagem e uso a seu favor, dele capitalismo, vigente, globalizante, excludente, contingenciando as lutas negras. O espírito do Vinte é negro, popular e se aninha junto à família negra: homem negro, mulher negra, criança negra. Continuidade étnico-racial com identidade cultural negra e poder político. Uma fórmula, três princípios. No espírito do Vinte. Raça, cultura, poder – em três palavras.

Surgido numa época em que eram internacionais as influências da negritude antilhano-africana, das independências na África, do socialismo europeu e dos movimentos negros estadunidenses, o Vinte de Novembro, com todo o seu potencial aglutinador, era e continua sendo motivação bem nacional. Afro-brasileira. Negra.

Seria, na verdade, o Vinte de Novembro uma data ou evento de maior âmbito e alcance, a par de sua origem brasileira? Referindo-se a um grande momento da história africano-americana e da humanidade, quando escravizados resistiram e se rebelaram contra os seus exploradores, criando na diáspora um território livre ao longo de todo um século, teria, então, o Vinte de Novembro essa maior amplitude?

Porto Alegre, 17 de outubro de 2003.

Referências bibliográficas
BARBOSA, Márcio. A verdade sobre o 20 de novembro – Dia Nacional da Consciência Negra. Revista Suingando, São Paulo, v. 1, n. 4, p. 39, 1996.
CAMARGO, Oswaldo de. O negro escrito. São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura/Assessoria de Cultura Afro-Brasileira, 1988. 216 p.
CARDOSO, Marcos Antônio. O movimento negro em Belo Horizonte: 1978-1998. Belo Horizonte: Mazza Ed., 2002. 240 p.
GAMA, Luiz. Primeiras trovas burlescas e outros poemas. Edição preparada por Ligia Fonseca Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 2000. (Coleção poetas do Brasil) .
GONZALEZ, Lélia; HASENBALG, Carlos. Lugar de negro. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1982. 116 p. (Coleção 2 Pontos, v. 3).
MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO. 1978-1988. 10 anos de luta contra o racismo. São Paulo: Confraria do Livro, 1998. 80 p.
SILVEIRA, Oliveira. Banzo saudade negra. Porto Alegre: Ed. do autor, 1970. 54 p.

NOTA: O texto original possui fotografias dos encontros e imagens dos jornais e panfletos, no entanto, não consegui copiá-los para cá.  
NOTA 2: O Dia Nacional da Consciência Negra e o Dia de Zumbi foram estabelicidos oficialmente pela Lei 12.519 de 10 de novembro de 2011, sendo sancionado pela presidente Dilma Rousseff.

domingo, 16 de novembro de 2014

O Barba Negra

Barba Negra, considerado o mais temível dos piratas, o "Demônio do Caribe", o mais famoso dos piratas da História durante a Idade de Ouro da Pirataria no Caribe, conhecido por sua severidade, crueldade, violência e aparência sombria. Assaltou dezenas de navios, fugiu inúmeras vezes de emboscadas feitas pela Marinha Inglesa. Realizou feitos lendários e memoráveis. No entanto, isso é o que as lendas e romances contam, mas qual é a verdade por trás do mito? Será que Edward Teach, o Barba Negra realmente foi tudo isso que contam? A proposta desse texto foi apresentar um pouco da vida de Edward Teach, assim como, tentar delinear o que se sabe de verídico e o que ainda é questionável. Logo, optei em não me aprofundar em algumas histórias lendárias sobre o personagem. 

As fontes:

Estudar os piratas do Caribe não é algo fácil, pois muito do que foi escrito sobre os mais famosos piratas como Barba Negra, Benjamin Hornigold, Calico Jack, Anne Bonny, Bartholomew Roberts, Capitão Kidd, Mary Read, Charles Vane, etc., é contestável de credibilidade, além do fato, de que muitas histórias se espalharam como boatos, e o problema dos boatos é que eles mentem, omitem ou distorcem fatos. 

Por outro lado, muitos desses homens não sabiam ler e nem escrever, então não deixaram nada escrito, e se deixaram, se desconhece. Logo, temos que confiar nos relatos de segundos sobre eles. Terceiro, a partir do século XIX a pirataria marítima começou a ser bastante romanceada pela literatura, logo, vários estereótipos e histórias fictícias sobre tais piratas começaram a surgir na literatura europeia. 

É evidente que hoje em dia dispomos de vários livros, artigos, monografias, dissertações e teses sobre a pirataria caribenha e a pirataria em outras épocas da História, das quais não consegui ter acesso, mas posso mencionar os títulos de algumas obras sobre a pirataria nas Américas, entre os séculos XVII e XVIII, para quem tiver interesse:  
  • The Republic of Pirates (1987) de Collin Woodard.
  • Pirates, privateers, and rebels raiders of the Caroline Coast (2000) de Lindley S. Butler.
  • The pirates of North Caroline (1960) de Hugh F. Ranklin. 
  • The Great Days of Piracy (1951) de Georges Woodbury.
  • Villains of all Nations: Atlantic Pirates in the Golden Age (2004) de Marcus Rediker. 
  • The Pirate Coast (1966) de Charles Belgrave.
  • The Pirates (1978) de Douglas Botting.
  • The history of pirates (2005) de Angus Konstam. 
  • Blackbeard o the Pirate (1974) de Robert E. Lee.
  • Pirates: 1660-1730 (1998) de Angus Konstam. 
  • Raiders and Rebels: The Golden Age of Piracy (1986) de Frank Sherry.
No entanto, comentarei brevemente sobre a principal e mais antiga fonte que temos sobre os piratas caribenhos. A obra mais antiga que se conhecesse sobre os piratas britânicos (de fato os mais famosos piratas desse tempo, eram de origem britânica) que atuaram no Caribe em fins do século XVII e idos do XVIII, foi publicada em 1724, por um homem chamado Charles Johnson. Seu livro foi intitulado Uma história geral dos roubos e crimes dos mais notáveis piratas (A general history of the robberies and murders of the most notorius pyrates).

O livro se tornou um verdadeiro sucesso, vendendo milhares de cópias em poucas semanas. Em 1726 uma segunda edição foi lançada e até o final do século, várias outras edições seriam lançadas. A obra foi escrita em estilo jornalístico sensacionalista, onde Charles Johnson embora enalteça alguns feitos dos piratas, ele os tratou como verdadeiros criminosos e marginais, mas isso acabou não dando certo, pois os piratas se tornaram uma espécie de "herói fora da lei".

A General History of the Pirates, como já mencionado acima, tem propósitos muito bem definidos, sendo um deles o de denegrir a imagem dos piratas, em um momento em que estes já não eram mais um instrumento útil às manobras políticas da Coroa inglesa. Este novo contexto demandou, assim, a marginalização dos piratas, que passaram a ser perseguidos e associados à corrupção e à devassidão moral. É este o momento em que se insere a obra atribuída a Daniel Defoe. Curioso é constatar que com o passar dos anos, esta narrativa, acabaria por despertar a simpatia de leitores e não leitores em relação a estes personagens, a quem homens do início do século XVIII pretenderam difamar”. (COSTA, 2014, p. 1676). 

“As histórias de piratas famosos narradas em A General History of the Pirates são narradas um tom bastante épico, se caracterizam por frases de efeito, manobras de escape e pela descrição de batalhas marcadas pela violência, por desafios à autoridade, demonstrações de coragem e de audácia por parte dos piratas. Estes são apenas alguns dos ingredientes que tornam sua leitura extremamente instigante e fazem com que os leitores acabem por se identificar com aqueles que deveriam ser combatidos”. (COSTA, 2014, p. 1677).

Todavia, surge um grande problema com essa fonte. No mesmo ano, encontramos a publicação de um livro similar, também atribuído a Charles Jonhson, mas cujo título era Uma história geral dos piratas: a partir de sua primeira ascensão e assentamento na ilha de Providence até o presente momento; com as ações notáveis e aventuras dos dois piratas femininos Mary Read e Anne Bonny... (A general history of the pyrates: from their first rise and settlement in the Island of Providence, to the present time; with the remarkable actions and adventures of the two female pyrates Mary Read and Anne Bonny...). 

Frontispício da primeira edição de Uma história geral dos piratas.

Na prática o conteúdo de ambas as obras era o mesmo, apenas mudava-se o título. Isso é um fato um tanto peculiar, que levou alguns historiadores a indagar a credibilidade da autoria de Charles Johnson. No entanto, por mais que a obra do senhor capitão Johnson seja o relato mais antigo que dispomos sobre o tema, hoje ela deve ser lida com cautela. A identidade de Charles Johnson ainda é algo debatido, pois não se sabe quem ao certo ele foi. Alguns sugerem que ele teria sido um escritor, outros dizem que ele teria sido um ex-pirata, devido ao nível de detalhes que ele confere em sua obra, os quais só seriam possíveis saber quem fosse do meio. 

Outros sugerem que Charles Johnson teria sido um pseudônimo do escritor e jornalista Daniel Defoe (1660-1731), conhecido por ter escrito Robinson Crusoe (1719). De fato, algumas das atuais edições de Uma história geral dos piratas, a autoria é creditada a Defoe. No caso do Brasil há duas edições desse livro, a primeira de 2003 é atribuída a Charles Johnson, e a segunda de 2008, consta o nome de Daniel Defoe. Sobre o assunto consultar o artigo Uma história dos piratas (2014) de Nicássio Martins da Costa, onde o autor debateu essa questão da variação de autoria no caso brasileiro. 

De qualquer forma, por mais que essa questão da autoria se apresente como problemática, além do fato do estilo sensacionalista e o desconhecimento das fontes que Johnson ou Defoe tenham utilizado, a obra ainda é bastante importante e principal fonte da época, por ter sido publicada poucos anos após a morte da maioria dos piratas que ela registra, o que a torna uma fonte recente aos acontecimentos que ela narrou, e por sua vez, garante certa integridade ao conteúdo, já que um século depois, se encontra romances sobre a pirataria, influenciando o imaginário das pessoas. 

Sendo assim, Uma história dos piratas independente se foi escrito por Johnson ou Defoe, foi uma das fontes usadas para este estudo, no qual optei em trabalhar com duas edições dela. A primeira, diz respeito a edição de 1724 na qual a autoria foi creditada a Charles Johnson, e a segunda diz respeito a edição brasileira de 2008, na qual consta o nome de Defoe. 

Mas além desse livro, existem outras fontes, como artigos de jornais, revistas, relatórios, cartas, depoimentos e circulares emetidas por autoridades coloniais. No entanto, tais fontes são ainda mais difíceis de serem encontradas, requerendo ao historiador ir visitar os arquivos. 

No que diz respeito aos jornais, vários dos importantes jornais ingleses e coloniais das Treze Colônias notificaram a morte do Barba Negra, assim como, outros crimes de pirataria na dos domínios ingleses. Já na região das Bahamas e do Caribe, não dispomos de jornais locais, mas é possível encontrar documentos dos governadores e outras autoridades coloniais que relatam os crimes de pirataria. 

Edward Teach:

Assim como vários outros piratas, suas biografias são cheias de lacunas, são incertas e em geral prezam pelos seus feitos já quando piratas. Os acontecimentos anteriores ao ingresso à vida de crimes, ou são ignorados ou desconhecidos. E no caso do Barba Negra isso não foi diferente. 

Edward Teach nasceu em data incerta na década de 1680, na cidade inglesa de Bristol. Se desconhece o nome de seu pai e de sua mãe, e de demais familiares. Não se sabe com que idade começou a trabalhar, mas sendo Bristol um importante porto na costa oeste inglesa, provavelmente ainda na adolescência passou a trabalhar no porto e até mesmo como marinheiro. 

Gravura de 1724 do livro Uma história geral dos piratas, retratando o Barba Negra. Possívelmente a imagem mais antiga conhecida sobre ele.

Em data não precisada, viajou para o Caribe e as Bahamas, atuando como marinheiro. Defoe (2008, p. 51) e Johnson (1724, p. 70) assinalaram que Teach teria atuado também como corsário (marinheiro autorizado por uma carta de corso, a cometer crimes de pirataria) durante os conflitos entre ingleses e franceses ocorridos em fins do século XVII e começo do XVIII. Tais conflitos eram consequentes da disputa entre o império britânico e o império francês pelo controle das rotas de comércio, dos recursos, vilas, cidades e plantações na região caribenha, local de intensa movimentação mercantil. 

Teach teria passado vários anos trabalhando como marinheiro sem conseguir destacar-se em sua profissão, sem conseguir dinheiro e prestígio, algo que Defoe e Johnson sugeriram ter sido um dos motivos para que Edward se tornasse pirata.

“Mas outros marinheiros muitas vezes optavam por se tornar piratas porque o pagamento em um navio de guerra ou mercante era extremamente baixo — sobretudo considerando-se o trabalho árduo e a disciplina férrea que muitos marujos tinham de suportar. Além disso, muitos deles não estavam a bordo por escolha, e sim obrigados a servir contra a sua vontade — "aquela era a época do recrutamento militar forçado, em que os homens se escondiam nos fossos e nos pântanos para escapar dos grupos de marinheiros de rabicho, liderados por oficiais de laço no chapéu que arrebanhavam todos que encontravam"”. (KLEIN, 2006, p. 8).

E foi segundo esses autores que no final do ano de 1716, no Caribe, Edward Teach conheceu o pirata Benjamin Hornigold (?-1719), o qual já dispunha de respeitável fama e autoridade na região.

“Mas a história de Teach só começa realmente quando ele parte para New Providence, nas Bahamas — também um famoso ponto de encontro para todos os tipos de piratas —, onde conheceu o capitão Benjamin Hornigold. Este foi um dos piratas mais ferozes que já operaram na região. Ele impunha um enorme respeito aos outros piratas e era bastante estimado pelos Confrades da Costa. Para um lobo-do-mar jovem e empreendedor, Teach não poderia ter encontrado melhor instrutor. Do porto de Nassau, Hornigold e seu disposto e jovem aprendiz fizeram muitas viagens, durante as quais capturaram navios franceses e espanhóis”. (KLEIN, 2006, p. 112).

Hornigold foi o responsável por acolher Teach que na época teria mais de trinta anos, um dado interessante, pois se pensa que Barba Negra foi um pirata a sua vida toda, mas na realidade até onde se sabe, ele foi pirata por um tempo curto, cerca de dois ou três anos. Que por sua vez é um fato que põe em dúvida muitos dos feitos e viagens que ele teria feito. Afinal, nem metade do que se diz que ele fez, ele poderia ter o feito em dois anos. Estamos falando de viagens que duravam dias, semanas e meses. 

Tendo se tornado um dos subordinados de Hornigold, recebendo deste o controle de uma das chalupas que ele havia capturado, Teach ingressa na sua vida de crimes. 

Surge o Barba Negra:

“A barba era negra, que ele sofreu para deixar crescer até um comprimento extravagante; para cima, ela chegava até seus olhos. Ele estava acostumado a amarrá-la com fitas, em pequenas tranças, seguindo o costume de nossas perucas de cachos, e acomodando-as em volta das orelhas”. (KLEIN, 2006, p. 111). 

“A barba de Teach era grossa e negra, tomava todo o seu rosto e tinha um comprimento extravagante, quase até sua cintura. E não era só isso: ele começou a separá-la em tranças que amarrava com fitas de diferentes cores. A barba tornou-se sua marca registrada, que funcionava não apenas para aterrorizar sua tripulação e seus oponentes, como também lhe garantiu uma duradoura notoriedade. Charles Johnson comentou que Teach "assumiu o cognome de Barba Negra devido à quantidade de pelos que, como um meteoro aterrorizante, cobria todo o seu rosto e ameaçou mais a América do que qualquer cometa que tivesse aparecido por ali"”. (KLEIN, 2006, p. 116).

O Barba Negra segundo sua versão no jogo Assassin's Creed IV: Black Flag (2013).

Não sabemos com certeza quando Teach tornou-se pirata, ele já possuía a barba longa, ou a deixou crescer nos dois anos que atuou como pirata. Segundo Robert E. Lee em seu livro Blackbeard the Pirate, Teach deixou a barba começar a crescer em fins do ano de 1717. De qualquer forma, tal fato se tornou sua marca pessoal. 

Por mais que a barba e o bigode fossem um estilo, naquele tempo não era comum deixá-los crescer, os homens preferiam permanecer de rosto limpo, algo que vai de encontro a ideia dos piratas barbudos e cabeludos. Muitas das imagens que retratam piratas, os mostram de cara limpa, cavanhaque ou uma barba curta, todavia, não podemos confirmar se realmente eles eram daquele jeito ou passaram a vida daquela forma.

Segundo os relatos, ele teria deixado a barba crescer como forma de tornar sua imagem sombria e apavorante. Além disso, Charles Johnson fez menção que Teach usaria outros artifícios como fumaça, pavios e armas para tornar sua aparência mais assustadora.

“Além da sua barba, Teach também costumava usar (principalmente durante as batalhas) um dispositivo sobre seu ombro em que ele levava duas ou três pistolas, "pendendo em coldres como bolsas a tiracolo [sic], colocava pavios acesos sob seu chapéu que apareciam de cada lado do seu rosto, e seus olhos pareciam naturalmente ferozes e selvagens, tornando-o uma figura que a imaginação não podia deixar mais feroz e infernal". Os "pavios", que eram mantidos sob seu chapéu, eram provavelmente feitos de corda de cânhamo embebida em uma mistura de salitre com água de cal. Eles queimavam lentamente, mas a fumaça que provocavam e circundavam em anéis sua cabeça deviam causar um espetáculo extraordinário. Pouco espanta, portanto, que os marinheiros que tivessem a infelicidade de cruzar o caminho do Barba Negra (particularmente na batalha) pensassem que ele era o Diabo”. (KLEIN, 2006, p. 116-117). 

O Barba Negra em uma gravura de 1736. Nota-se as tranças em sua barba, a fumaça saindo dos pavios de seu chapéu, e os coldres das armas em seu casaco.

O uso de formas de tornar os piratas homens terríveis e temidos, fazia parte da "guerra psicológica", através da aparência atiçar o medo. Alguns piratas como Benito de Soto e Edward Low ficaram conhecidos pela crueldade que torturavam e executavam os prisioneiros. A fama de terríveis era algo favorável para eles, pois desmotivava que as pessoas os confrontassem. 

1717: Ano Um

Pelo fato de ter tido uma carreira como pirata bastante breve até onde se sabe, relatarei os principais acontecimentos ocorridos nos anos de 1717 e 1718, que marcam a época de sua atuação como criminoso. 

“Na primavera do ano de 1717, Teach e Hornigold zarparam da ilha de Providence para o continente da América, e pelo caminho capturaram uma chalupa procedente de Havana, com 120 barris de farinha de trigo, e também outra das Bermudas, comandada por Thurbar, de quem levaram apenas alguns galões de vinho, deixando-o depois seguir seu rumo. E também apreenderam um navio da ilha da Madeira com destino à Carolina do Sul, no qual fizeram pilhagens de valor considerável”. (DEFOE, 2008, p. 51). 

A Ilha da Nova Providência, localizada no arquipélago das Bahamas se tornou famosa no século XVIII por abrigar a suposta "República dos Piratas" no Caribe, cuja capital era em Nassau, no lado leste da ilha. A cidade se é que se pode chamá-la de cidade, consistiu num aglomerado desordenado de barracões, casas, tavernas, estalagens, prostíbulos e armazéns. Os piratas tomaram o controle da região no século XVIII, e seu governo prosperou entre os anos de 1715 e 1720, até ser destituído em 1725. Nassau se tornou um dos principais portos piratas das Bahamas, de onde muitos dos famosos piratas já mencionados aqui, passaram ou viveram brevemente ali. 

Localização da ilha Nova Providência e da capital Nassau, nas Bahamas.

A proximidade de Nassau da península da Flórida, contribuiu para que muitos piratas se aventurassem na região, e aproveitassem para seguir para o norte, assaltando navios ao longo da costa das Treze Colônias (atual costa leste dos Estados Unidos). Segundo Johnson (1724, p. 70-71) e Defoe (2008, p. 51), Barba Negra e Hornigold seguiram rumo ao norte, assaltando embarcações pela costa da Flórida até a Virgínia, então depois retornaram para as Bahamas, onde capturaram um navio que seguia da Guiné Francesa para Martinica (ilha caribenha). 

“A recompensa foi substancial. O navio negreiro Concord estava carregando não só jóias e objetos de prata, mas também uma grande quantidade de ouro em pó. Foi em torno dessa época que Hornigold — talvez percebendo que agora tinha dinheiro suficiente para se aposentar — decidiu abandonar a pirataria e se voltar para negócios mais honestos. Deu o Concord para seu pupilo, despediu-se dele e voltou para New Providence, onde comprou algumas terras e se dedicou à agricultura. Foi uma decisão sensata. A vida dos piratas nessas águas estava a cada dia se tornando menos lucrativa e mais perigosa”. (KLEIN, 2006, p. 114).

Nesse ponto a parceria de Hornigold e Teach encerrava-se. Após retornar a Nassau, no ano seguinte o governador das Bahamas, Woodes Rogers (c. 1639-1732), incumbido de combater a pirataria, seguiu para o reduto pirata em Nassau, comandando três navios de guerra. Na ocasião ele seguiu numa visita diplomática, pois foi autorizado pelo governo britânico e conceder o Ato de Clemência do Rei, o qual concedia a anistia aos piratas que se submetessem a autoridade do governo e passassem a cooperar com a Marinha Real. Os que se negavam a aceitar a anistia eram caçados como criminosos. Barba Negra e sua tripulação recusaram em aceitar o perdão real.

“Já no comando de sua embarcação da Guiné, Teach equipou-a com quarenta canhões, trocando o seu nome para Queen Ann’s Revenge. Vagueou pelas proximidades da ilha de São Vicente, capturando outro grande navio, o Great Allen, comandado por Christopher Taylor. Os piratas saquearam tudo o que lhes interessava, desembarcaram toda a tripulação na mencionada ilha, e em seguida o incendiaram”. (JOHNSON, 1724, p. 71). 

Assim surgia o famoso navio do Barba Negra, o Vingança da Rainha Ana. Originalmente tratava-se de uma embarcação inglesa que foi roubada pelos franceses e transformado em navio mercante e negreiro. Quando Barba Negra se apossou do Le Concord de Nantes, então nome francês do navio, ele o reformou para se tornar uma embarcação de guerra, instalando 40 canhões. O navio foi capturado em novembro de 1717, mas Barba Negra ficaria no comando dele por alguns meses, já que como será visto adiante, o Vingança da Rainha Ana acabou encalhando. 

Gravura de 1735, retratando o Vingança da Rainha Ana, o navio do Barba Negra.

“Em 5 de dezembro de 1717, avistando um navio mercante, o Margaret, próximo à costa de Crab Island, Barba Negra ordenou a seu comandante, o capitão Henry Bostock, que se unisse a ele a bordo do Queen Anne's Revenge. O Barba Negra então foi em frente, roubando a carga do Margaret, que consistia principalmente de gado; depois retirou os canhões e a munição do navio, e só então permitiu que o capitão retornasse e partisse com sua tripulação (menos dois homens que se juntaram a ele como piratas) sem que ninguém fosse ferido”. (KLEIN, 2006, p. 118).

Já de posse de seu novo e armado navio, Barba Negra e sua tripulação prosseguiram o restante do ano cometendo outros assaltos, na viagem que seguia em direção ao continente, eles encontram um homem chamado major Stede Bonnet (1688-1718), conhecido por ser um mercador cortês e senhor de terras em Bridgetown, na ilha de Barbados. Por motivos não explicados, segundo consta em Uma história geral dos piratas, Bonnet já vinha atuando como pirata pelo menos desde 1716. Ficou conhecido como o "Pirata Cavalheiro".

“Esse major era um cavalheiro de ótima reputação na ilha de Barbados. Senhor de uma imensa fortuna, e tendo conhecido todas as vantagens de uma educação liberal, seria o último dos mortais a optar por um tal caminho na vida, a julgar por sua situação. Foi uma verdadeira surpresa para todos na ilha onde vivia a notícia de sua decisão. E como, antes de dar início a seus atos declarados de pirataria, todos, de um modo geral, o estimavam e honravam muito, posteriormente mais o lamentaram do que propriamente condenaram, atribuindo aqueles seus impulsos de sair praticando a pirataria apenas a alguma perturbação mental, que se evidenciou pouco antes de ele partir com seus maléficos objetivos. Diziam também que essa perturbação fora ocasionada por certas angústias que ele vivenciou ao conhecer a vida de casado. Seja como for, o major não estava qualificado para aquele tipo de atividade, e também não entendia nada de questões marítimas”. (DEFOE, 2008, p. 75). 

Gravura representando Stede Bonnet na edição de 1724, de Uma história geral dos piratas.

Stede Bonnet aceitou submeter seu navio Vingança (Revenge) ao encargo do Barba Negra, o qual posteriormente vendo que ele não era um bom pirata como afirmava ser, o retirou do comando do Vingança e o levou para trabalhar em um ofício menor no Vingança da Rainha Ana

Tocando o terror no Caribe:

Barba Negra e Bonnet executaram vários ataques juntos. Em março de 1718 foi capturado um navio chamado Adventure, capiteneado por David Harriot. A embarcação foi apreendida a sessenta quilômetros de Honduras. De lá, eles seguiram para a ilha de Turniff, onde descansaram por alguns dias, até que em abril voltaram a velejar. 

“No dia 9 de abril eles levantaram âncora de Turniff, depois de permanecerem ali por cerca de uma semana, e velejaram para a baía. Ali avistaram um navio e quatro chalupas, três das quais pertencentes a Jonathan Bernard, da Jamaica, e a outra ao capitão James. O navio procedia de Boston, chamava-se Protestant Caesar, e tinha o comando do capitão Wyar. Teach içou a sua bandeira negra e disparou um canhão, ao que o capitão Wyar e todos os seus homens imediatamente abandonaram o navio em um escaler, e foram para terra. O contramestre de Teach e mais oito homens de sua tripulação tomaram posse do navio de Wyar, e Richard se encarregou das chalupas, uma das quais foi incendiada, por ódio a seu dono. Também incendiaram o Protestant Caesar, depois de saqueá-lo, porque ele era de Boston, local onde alguns homens haviam sido enforcados por pirataria. E às três chalupas pertencentes a Bernard eles deram permissão para irem-se embora”. (DEFOE, 2008, p. 52).

O bucaneiro Barba Negra. Ralph Delahaye (1922).

Após assaltar tais navios, a pirataria prosseguiu pelas águas caribenhas a sul de Cuba. Turkill, as Grandes Caymans, Jamaica, etc., foram locais avistados pela pequena frota do Barba Negra (não sabemos quantos navios o acompanhavam, mas pelo menos duas chalupas seguiam ao lado do Vingança da Rainha Ana). 

O Bloqueio de Charleston:

Depois da rapina cometida no mar do Caribe, Barba Negra e sua tripulação seguiram de volta as Bahamas, retornando temporariamente a Nassau, e após alguns dias de descanso, seguiram para as Treze Colônias, indo saquear navios na baía de Charleston ou Charlestown, na Carolina do Sul.

“Fizeram uma parada de cinco ou seis dias ao largo da baía de Charles-Town. Ali capturaram um navio com destino a Londres, comandado por Robert Clark, assim que este zarpava para a Inglaterra, com alguns passageiros a bordo. No dia seguinte, apossaram-se de uma outra embarcação que saía de Charles-Town, e mais dois pesqueiros que se dirigiam para lá. E mais um brigue, com quatorze negros a bordo. Tudo isso diante da cidade, provocando um grande terror em toda a província da Carolina que, tendo pouco antes recebido a visita de Vane, outro famoso pirata, rendeu-se ao desespero, sem quaisquer condições de resistência”. (DEFOE, 2008, p. 53). 

Localização da baía de Charleston e outras localidades.

Durante os dias de saque pela baía, alguns piratas adoeceram, e o capitão temendo que a doença pudesse se alastrar pela tripulação, decidiu medicar os enfermos, mas descobriu que não havia medicamentos a bordo. A solução tomada por Teach foi chantagear as autoridades de Charleston para lhe enviar medicamentos. Ele ordenou que seus navios ancorassem na entrada da baía, de forma que ninguém entrasse e ninguém saísse. Além disso, nos assaltos cometidos nos dias anteriores, havia sido feito prisioneiros, e nove navios haviam sido capturados. Barba Negra ameaçou de executar os prisioneiros e queimar as embarcações se o governador de Charleston não lhe desse os medicamentos que ele precisava.

“Teach deteve consigo todos os navios e prisioneiros que capturara e, como estava precisando de medicamentos, resolveu exigir que o Governo da Província lhe entregasse uma caixa deles. Por isso enviou Richards, o capitão da chalupa Revenge, acompanhado de mais dois ou três piratas, com o sr. Marks — um dos que foram feitos prisioneiros no navio de Clark. Fizeram as suas exigências da forma mais insolente, ameaçando, caso não recebessem logo a caixa de medicamentos, e não se permitisse que os piratas-embaixadores retornassem sem se cometer qualquer violência contra eles, todos os prisioneiros seriam assassinados, suas cabeças enviadas ao governador, e também seriam incendiados todos os navios capturados por eles”. (DEFOE, 2008, p. 53).

Enquanto o senhor Marks negociava com o governador as exigências propostas pelo Barba Negra, Richards e os outros piratas passeavam pela cidade, sendo vistos com indignação, repulsa e medo. O governador aceitou a proposta e além de enviar uma caixa de medicamentos enviou um baú com cerca de 400 libras (Johnson, 1724, p. 72). Recebendo o dinheiro e os remédios, Teach ordenou que os reféns e os navios capturadores fossem liberados, no entanto, os deixou ir sem nenhum dinheiro ou pertences de valor. No caso dos navios, as mercadorias que lhe interessavam, foram completamente saqueadas. 

De acordo com Johnson, após sair lucrando com o bloqueio em Charleston, a frota de quatro embarcações seguiu para a Carolina do Norte, onde Barba Negra teria tramado sua vil traição contra sua própria tripulação. Não sabemos se realmente ela se procedeu como Johnson escreveu, mas se sabe que de fato ela ocorreu, pois registros ingleses mencionam tanto o bloqueio em Charleston, quanto a traição e posteriormente rendição de Barba Negra.

Traição e rendição?

“Agora, Teach já planejava desfazer a companhia, garantindo para si próprio e para os companheiros com quem tinha mais amizade, o dinheiro e a maior parte dos bens roubados, aplicando um golpe nos demais. Assim, sob a alegação de que precisava entrar no estreito de Topsail para fazer uma faxina, ele fez com que seu navio encalhasse. Depois, como se aquilo tivesse acontecido acidentalmente, deu ordens para que a chalupa de Hands viesse ajudá-lo, mandando-o seguir novamente, e ao fazer isso, levou a chalupa a se juntar à outra, na praia, e assim ambas se perderam. Feito isto, ele foi para o barco de apoio, com quarenta homens, e deixou lá o Revenge. Tomou então dezessete outros homens e os abandonou numa pequena ilha de areia deserta, a cerca de seis quilômetros do continente, sem quaisquer pássaros, animais ou vegetação para que pudessem subsistir, e onde teriam fatalmente morrido se o major Bonnet não aparecesse dois dias depois e os resgatasse dali”. (DEFOE, 2008, p. 54).

Deixando o estreito de Topsail, também conhecido como estuário de Beaufort, Barba Negra, Hands e a pequena tripulação, seguiram no quarto navio, o qual atuava como apoio, se dirigindo para encontrar o governador da Carolina do Norte, Charles Eden. O qual concedeu a Teach e seus nomes o perdão real em Bath Town. Também se chegou a deliberar se o navio Vingança da Rainha Ana seria dado oficialmente ao ex-pirata, mas Teach recusou, dizendo que a embarcação havia sido tomada dos espanhóis, e agora que jazia encalhada, seria bastante difícil retirá-la do local. 

Ele e sua tripulação passaram a residir em Bath Town por alguns meses, e segundo Johnson (1724, p. 75), nesse tempo, Barba Negra aproveitou para se casar com uma jovem de dezesseis anos, filha de um fazendeiro de Bath County. De acordo com Johnson a adolescente teria sido a décima quarta "esposa" do pirata, pois Barba Negra tinha fama de mulherengo e possuía várias "esposas". Não temos como confirmar se ele realmente foi casado oficialmente e chegou a ter essas "quatorze mulheres", e até mesmo quantos filhos bastardos ele teve, já que não se conhece o nome de tais mulheres e de nenhum de seus filhos. 

Johnson (1724, p. 76) ainda fez menção em dizer que Teach sujeitava sua nova esposa a estupros, onde ele convidava alguns de seus tripulantes para abusar de sua própria esposa, enquanto ele e os demais assistiam tudo. Não podemos comprovar a veracidade de tais fatos, além de lembrar que Johnson escreveu seu livro com uma linguagem sensacionalista. No entanto, é pouco provável que tais estupros tenham ocorrido, pois tendo ele e os demais passado alguns meses na região, sob observação do governador, seria demasiadamente arriscado e tolo, cometer crimes naquele momento. 

Em julho de 1718, abordo do Adventure, ele seguiu para o norte em direção a Filadélfia, mas no caminho recebeu a notícia que o governador daquela colônia, William Keith estava a caça de piratas, logo, temendo que ele e seus homens fossem presos, mesmo de posse da anistia, Teach deu meia volta e se dirigiu para o sul, em direção as Bermudas. Lá, eles abordaram dois navios franceses, acabaram dispensando o que estava sem carga, mas se apossaram do que carregava cacau e açúcar. 

Teach provavelmente nunca cogitou abandonar a vida de crimes, apenas procurou usar a lei da anistia a seu favor. Ele retornou para a Carolina do Norte, onde por sua vez, alegou que havia encontrado o navio a deriva, então se apossou de sua carga e ajudou a tripulação, a acolhendo. Parte da carga foi dada como presente ao governador, e depois Teach pedindo que o navio fosse mudado de lugar, alegando enviá-lo para conserto, devido a supostos furos, ele ordenou que a embarcação fosse incendiada. Assim pagou as provas de seu crime. 

“O capitão Teach, conhecido como Barba-Negra, passou três ou quatro meses percorrendo o rio, algumas vezes ancorando nas enseadas, outras velejando de um estreito a outro, comerciando com os barcos que encontrava o butim de que se apropriara, muitas vezes dando-lhes de presente os estoques e os mantimentos que tirara deles próprios. Isto é, sempre que se encontrava com humor propenso à generosidade. De outras vezes, ele se mostrava atrevido, apossando-se de tudo o que quisesse, sem nem dizer “Com a sua permissão”, sabendo que ninguém se atreveria a enviar-lhe depois a conta. Muitas vezes ele se divertia, indo a terra misturar-se aos fazendeiros, onde fazia farras por vários dias e noites. Era bem recebido por eles, mas não posso garantir se era por amizade ou medo. Às vezes ele se mostrava extremamente cortês, dando-lhes rum e açúcar de presente, em recompensa pelo que lhes havia tirado. Quanto às libertinagens (era o que se dizia), ele e os seus companheiros frequentemente tomavam as esposas e filhas dos fazendeiros, e não posso assumir a responsabilidade de afirmar se ele pagava ou não por elas ad valorem”. (DEFOE, 2008, p. 56). 

Pelo relato de Johnson ou Defoe, Barba Negra continuou com suas práticas criminosas, atuando na Carolina do Norte, chegando a estabelecer uma base na baía de Ocracoke. Ponto estratégico no qual lhe concedia uma vista privilegiada dos navios que ali passavam, seguindo sentido norte-sul. Todavia, seus atos criminosos começaram a se espalhar e a indignar a população local. Teach acreditava que estaria seguro tendo recebido do governador Charles Eden, o perdão real, então a população recorreu ao governador da Virgínia, Alexander Spotswood (c. 1676-1740). 

Alexander Spotswood em uma pintura de 1736. Foi governador da Virgínia de 1710 a 1722.

“Por isso, sob maior segredo possível, eles enviaram uma delegação à Virgínia para apresentar o assunto diante do governador daquela colônia, solicitando uma força armada das fragatas que lá se encontravam, para prender ou eliminar aquele pirata O governador conferenciou com os capitães das duas fragatas, a Pearl e a Lime, que há dez meses aproximadamente se encontravam estacionadas no rio James. Ficou combinado que algumas chalupas menores seriam contratadas pelo governador, e as fragatas lhes forneceriam os homens e as armas. Isto foi feito, ficando o comando delas com o sr. Robert Maynard, primeiro-tenente da Pearl, um oficial experiente e cavalheiro de grande bravura e resolução, como ficará demonstrado por seu valente comportamento nessa expedição. As chalupas foram bem equipadas com munição e armas de pequeno porte, porém não dispunham de nenhum canhão”. (DEFOE, 2008, p. 56-57). 

Além de convocar o sr. Robert Maynard e a tripulação dos navios Pearl e Lime, o governador Spotswood também redigiu também um carta de recompensas para aqueles que lhe trouxessem Barba Negra e seus homens, vivos ou mortos. O documento dizia o seguinte, segundo transcrito por Johnson:


PELO VICE-GOVERNADOR DE SUA MAJESTADE E COMANDANTE-EM-CHEFE DA

COLÔNIA E DOMÍNIO DA VIRGÍNIA


PROCLAMAÇÃO

Onde se publicam as recompensas pela prisão ou morte dos piratas.

Pela qual — por um Ato de Assembleia aprovado em uma sessão, realizada na capital, Williamsburg, no dia 11 de novembro do Quinto Ano do Reinado de Sua Majestade, e intitulado Ato Para Encorajar a Prisão e o Aniquilamento dos Piratas fica aprovado, entre outras questões, que toda pessoa, ou pessoas, a partir e após o décimo quarto dia de novembro do ano de Nosso Senhor de mil setecentos e dezoito, e antes do décimo quarto dia de novembro do ano de mil setecentos e dezenove; toda pessoa ou pessoas, pois, que prender — ou prenderem — qualquer pirata, ou piratas, em mar ou em terra, ou que em caso de resistência, venham a matar esse pirata, ou esses piratas, na localização entre os graus trinta e quatro e trinta e nove de latitude norte, e dentro dos limites de seiscentos quilômetros do continente da Virgínia, ou no âmbito das províncias da Virgínia, ou da Carolina do Norte, diante da convicção ou da devida prova da morte de todos e de cada um desses piratas, perante o governador e o Conselho, estarão capacitados a ter e a receber dos cofres públicos, pelas mãos do tesoureiro desta Colônia, as diversas recompensas a seguir relacionadas, e que são: para Edward Teach, comumente chamado capitão Teach, ou Barba-Negra, cem libras; para qualquer outro comandante de navio, chalupa ou qualquer outra embarcação pirata, quarenta libras; para todo imediato, comandante, timoneiro ou contramestre, mestre de equipagem, ou carpinteiro, vinte libras; para qualquer outro oficial inferior, quinze libras, e para todo pirata capturado a bordo de um navio, chalupa ou qualquer embarcação desse tipo, dez libras. 

E para qualquer pirata capturado em qualquer navio, chalupa ou embarcação pertencente a esta Colônia, ou à Carolina do Norte, dentro do prazo mencionado acima, e em qualquer localização, as mesmas recompensas serão pagas de acordo com a qualidade e a condição desses mesmos piratas. Pelo que, para o encorajamento de todos os que desejam servir à Sua majestade e ao seu país num empreendimento tão justo e honrável, qual seja o da supressão de um tipo de pessoas que podem ser verdadeiramente chamadas de Inimigos da Humanidade. 

Por tudo isso, achei apropriado — com a opinião e o consentimento do Conselho de Sua Majestade — expedir esta Proclamação, pela qual declaro que as referidas recompensas serão pontual e judiciosamente pagas, em moeda corrente da Virgínia, de acordo com as instruções do referido Ato. E ordeno efetivamente e determino que esta Proclamação seja publicada pelos oficiais municipais, em suas respectivas sedes administrativas, e por todos os prelados e leitores nas diversas igrejas e capelas por toda esta Colônia.

APRESENTADO EM NOSSA CÂMARA DO CONSELHO
EM WILLIAMSBURG NESTE DIA 24 DE NOVEMBRO DE 1718,
NO QUINTO ANO DE REINADO DE SUA MAJESTADE.
DEUS SALVE O REI.
A. SPOTSWOOD.
 

A morte do Barba Negra:

A operação para se caçar o Adventure e capturar ou executar Barba Negra e seus homens, foi planejada ao longo de semanas, embora durou poucas horas sua execução. Por mais que a carta de captura emitida pelo governador data-se de 24 de novembro, de acordo com Johnson (1724, p. 80), o tenente Robert Maynard (c. 1684-1751), designado para assumir o comando da operação, zarpou no dia 17 de novembro com quatro navios: o Lime, capitaneado pelo capitão Brando, o Pearl, sob comando do capitão Gordon; e duas chalupas, a Ranger, sob comando do senhor Hyde, e a Jane, capitaneada pelo próprio Maynard. Os quatro navios deixaram o porto em Hampton na Virgínia, se dirigindo para a Carolina do Norte. 

Localização da baía de Ocracoke.

Segundo o relato de Johnson os informantes de Teach o haviam avisado que o governador da Virgínia Alexander Spotswood pretendia enviar uma expedição para caçá-lo, mas Teach teria ignorado aquilo, achando que fosse mentira, de acordo com Johnson. Embora a expedição de Maynard tenha chegado no dia 21, devido o Adventure se encontrar ancorado em águas rasas, não havia possibilidade de abordá-lo, seria necessário aguardar a maré subir. De acordo com Uma história geral dos piratas, Barba Negra mesmo tendo avistado os quatro navios inimigos, aproveitou para ir a terra e festejar com um capitão de um navio mercante que estava ali perto. 

“De madrugada, as chalupas levantaram âncora (os dois navios de guerra eram pesados demais para prosseguir nessas águas) e partiram rumo ao Adventure. Maynard ordenou que um barco menor fosse à frente, mas, assim que ele se aproximou do navio do Barba Negra, enfrentou fogo pesado e teve de recuar rapidamente”. (KLEIN, 2006, p. 125). 

Barba Negra teria ordenado que as âncoras fossem erguidas e o Adventure fosse conduzido para um dos canais da baía, tal decisão foi tomada visando o fato que os dois navios de guerra, o Lime e o Pearl, não o conseguiriam seguir por ali, pois eram grandes e pesados, e acabariam encalhando nos bancos de areia. No entanto, as chalupas Ranger e Jane, continuariam a segui-los, trocando fogo entre si. E teria sido nesse momento que Barba Negra aos gritos dialogou com Robert Maynard. Johnson (1724, p. 82) transcreveu esse suposto diálogo, o qual segundo Klein (2006, p. 126), parece que Johnson teria o lido em um jornal, mas de qualquer forma não podemos garantir a veracidade da fonte.

““Malditos vilões, quem são vocês? De onde vêm?”, ao que o tenente respondeu: “Podes ver pela nossa bandeira que não somos piratas.” Barba-Negra propôs que ele viesse num escaler até o seu navio, para saber de quem se tratava. Porém Maynard respondeu: “Não posso desperdiçar o meu escaler, mas abordarei o teu navio o mais rápido que puder, e com a minha chalupa.” Ouvindo isso, Barba-Negra apanhou uma taça e fez um brinde a ele, proferindo as seguintes palavras: “Maldita seja a minha alma se eu me apiedar de ti, ou merecer alguma piedade de ti”. A isto, Maynard respondeu que não esperava piedade alguma de sua parte, e tampouco teria alguma por ele”. (DEFOE, 2008, p. 59-60). 

Após essa conversa, o Adventure continuou a seguir caminho pelo canal, sendo seguido pelo Ranger e o Jane, os quais foram acertados por uma chuva de tiros de canhão, vitimando vários dos homens em ambas as chalupas. O sr. Hyde e cinco de seus homens morreram na ocasião, além de que pelo menos nove outros ficaram feridos no Ranger, e pelo menos vinte se feriram no Jane. Devido ao fato do Ranger ter sofrido mais dano, esse acabou recuando, mas Maynard ordenou que o Jane continuasse em frente.

O Adventure acabou encalhando num banco de areia, então Maynard viu sua oportunidade de ouro. Ordenou que os homens se escondessem no porão, e mandou o timoneiro abordoar o Jane ao lado do Adventure. Quando este chegou próximo, Johnson (1724, p. 83) conta que Teach mandou que seus homens jogassem granadas feitas de garrafas recheadas com pedaços de metal, pregos e balas, e preenchida com pólvora. Um pavio era colocado na boca da garrafa, então era aceso e a garrafa arremessada. A explosão era pequena e gerava muita fumaça, mas os estilhaços a curta distância geralmente eram mortais. 

Mas pelo fato de grande parte da tripulação estava escondida, apenas alguns poucos se feriram. Então Barba Negra ordenou que seus homens pulassem para o navio inimigo e massacra-se sua tripulação. 

“Em seguida, oculto pela fumaça da explosão de uma das garrafas mencionadas, Barba-Negra penetrou no barco seguido de quatorze homens, sem que Maynard se desse conta logo. Entretanto, assim que a fumaça se foi dispersando, Maynard deu o sinal para seus homens subirem ao convés, e então eles atacaram os piratas com uma bravura inigualada numa ocasião daquelas”. (DEFOE, 2008, p. 61). 

A captura do pirata Barba Negra em 1718. Jean Leon Gerome Ferris (1920).

Os relatos sobre como procedeu a luta variam. Johnson (1724, p. 84) diz que inicialmente ambos sacaram suas armas e dispararam. Barba Negra errou o alvo, mas acabou sendo atingido. Mesmo ferido, os dois prosseguiram num combate de espadas, até que a espada de Maynard se partiu, e esse recuou para tentar recarregar sua arma de fogo, e quando Teach preparava para atacá-lo, um dos marinheiros o acertou no pescoço com uma espada. 

Todavia, o relato de Johnson é épico, pois Barba Negra embora tenha morrido na ocasião de fato, Johnson relata que foi uma batalha épica. Alvejado por uma bala e ferido no pescoço, ainda assim o grande Barba Negra lutou bravamente até a última das suas forças. 

“Agora, todos lutavam ardentemente num corpo a corpo, de um lado o tenente com doze homens; do outro, Barba-Negra e os seus quatorze piratas, até o mar ao redor da embarcação se tingir completamente de sangue. Barba-Negra levou um tiro de Maynard, mas mesmo assim se manteve firme e prosseguiu lutando furiosamente. Recebeu ao todo vinte e cinco ferimentos, cinco dos quais a bala. No final, quando engatilhava uma outra arma, depois de tantas que havia usado, ele tombou morto. Até então, oito dos seus quatorze companheiros já haviam morrido, e os outros, já gravemente atingidos, pularam no mar e suplicaram por clemência. E isto lhes foi concedido, embora aquela prorrogação de suas vidas não fosse além de uns poucos dias, apenas. A chalupa Ranger chegou e foi combater os piratas que haviam permanecido no barco de Barba-Negra, lutando com a mesma bravura, até que eles também pediram clemência”. (DEFOE, 2008, p. 61). 

Segundo Klein (2006, p. 127) os supostos cinco tiros que o Barba Negra recebeu no peito e os vinte cortes de espada, teria sido algo proveniente do relato do próprio Robert Maynard, algo que chegou a ser mencionado no jornal Boston News Letter de 2 de fevereiro e 2 de março de 1719. O qual trouxe uma matéria que falava obre a morte do infame pirata. No entanto, não podemos corroborar a veracidade dos fatos, pois por si só já apresentam ser surreais, embora exista casos de pessoas que mesmo tendo sido baleadas várias vezes, milagrosamente conseguiram continuar a lutar e até a sobreviver. No entanto, no caso do Barba Negra, esse ao tombar ao chão, sua cabeça foi decapitada. 

Gravura retratando a cabeça do Barba Negra pendurada no mastro da vela da chalupa Jane, capitaneada por Robert Maynard. Ilustração feita por Charles Elles para o livro The Pirates Own Book (1837).

“Embora o Barba Negra estivesse morto, isso não foi o fim da batalha, pois os piratas remanescentes montaram uma forte defesa. Na verdade, quando a Ranger emparelhou com a Jane, diz-se que o convés desta estava cheio de sangue, com cadáveres de marinheiros e piratas jazendo em toda parte do navio. Desconhece-se o número exato de mortes de cada lado. O capitão Brand relatou que um total de onze marinheiros foram mortos e mais de vinte foram feridos, enquanto o número de piratas abatidos foi algo entre nove e doze, o número final não foi conhecido, pois vários deles pularam no mar”. (KLEIN, 2006, p. 127).

“E ali se acabou a vida daquele homem brutal, que era dotado de muita coragem, e que poderia ter passado pelo mundo como um herói caso se houvesse empregado em uma boa causa. Seu aniquilamento, que foi da maior importância para as colônias, deveu-se inteiramente à conduta e à bravura do tenente Maynard e de seus homens. Eles poderiam tê-lo morto ao custo de muito menos vidas, caso pudessem contar com um navio bem equipado com canhões”. (DEFOE, 2008, p. 61). 

Considerações finais:

Johnson (1724, p. 85-86) prossegue seu relato dizendo que ao se revistar o Adventure foram descobertas cartas endereçadas a Teach, ao governador Charles Eden, um secretário, um coletor de impostos e alguns comerciantes de Nova York. É sabido que Teach possuía sua fonte de informantes, compradores, revendedores e comparsas. Ao tomar nota dos assuntos ilícitos entre o governador da Carolina do Norte e o pirata Barba Negra, Johnson conta que Maynard ao retornar a Bath Town tratou de confiscar o açúcar dado por Teach ao governador e ao secretário sr. Knight. 

Robert Maynard ainda continuou a carregar a cabeça do Barba Negra em seu navio, exibindo-o como troféu. Maynard tornaria-se famoso por ter conseguido derrotar e por fim ao terrível Barba Negra. 

Charles Johnson prossegue seu relato após a morte de Teach, comentando algumas características do pirata, como sua barba negra, sua aparência sombria, suas várias mulheres, sua violência, etc., elementos já mencionados anteriormente neste texto, no entanto, ele encerra o capítulo dando o nome dos piratas que estiveram presentes no conflito final ou que se tomou notícia:

Os nomes dos piratas mortos na batalha, são os seguintes:

Edward Teach, comandante.
Philip Morton, artilheiro.
Garrat Gibbons, contramestre.
Owen Roberts, carpinteiro.
Thomas Miller, intendente.
John Husk
Joseph Curtice
Joseph Brooks (1)
Nath. Jackson

Todos os demais, com exceção dos dois últimos, foram feridos e mais tarde foram enforcados na Virgínia.

John Carnes
Joseph Brooks (2)
James Blake
John Gills
Thomas Gates
James White
Richard Stiles
Caesar
Joseph Philips
James Robbins
John Martin
Edward Salter
Stephen Daniel
Richard Greensail
Israel Hands, perdoado.
Samuel Odell, absolvido.

Johnson encerra o relato dizendo que a carga do Adventure foi confiscada e vendida, além disso, o próprio navio também foi desencalhado e revendido. E no fim, Maynard e seus homens receberam a recompensa oferecida pelo governador Alexander Spotswood. 

No caso do governador Charles Eden, as acusações de manter parceria com Barba Negra não levaram em nada, embora ele guardou uma desavença principalmente com o capitão Brando, que atuou no confisco do açúcar em seu armazém. Nem ao menos um inquérito foi instaurado para se investigar um possível envolvimento do governador da Carolina do Norte. Já o secretário Tobias Knight, também não chegou a ser investigado, e faleceu pouco tempo depois.

Quanto a Stede Bonnet, esse após ter se separado de Barba Negra em julho de 1718, seguiu por conta própria abordo do Vingança, acabou aceitando o perdão real, mas continuou a praticar pirataria. Bonnet e sua tripulação foram capturados em 3 de outubro, no Cape Fear River, pelo coronel William Rhet, a serviço do governador da Carolina do Sul. Sendo levados para Charleston, onde aguardaram julgamento. Bonnet foi enforcado em 10 de dezembro de 1718. 

Já Benjamin Hornigold, o tutor e parceiro de Barba Negra, morreu em 1719, durante uma tempestade no Caribe ao sul de Cuba, em local incerto. Hornigold após ter recebido o perdão real pelo governador Woodes Rogers, aceitou em trabalhar para ele, como caçador de piratas, chegou a procurar por Barba Negra, Stede Bonnet, Calico Jack entre outros. Foi visto como um grande traidor. 

Barba Negra por mais que tenha vivido uma curta carreira como pirata, foi o suficiente para fazer fama. É evidente que os jornais sensacionalistas, os boatos, as histórias aumentadas, as lendas e os romances contribuíram para construir sua lenda, mas se ele possuía pretensões de se tornar um mito, ele o conseguiu. Quase 300 anos após a sua morte, ele é considerado o mais famoso dos piratas, o "Demônio do Caribe". 

A bandeira pirata do Barba Negra. Retratando um demônio com uma lança e uma ampulheta, um coração e três círculos.

NOTA: Charles Johnson contou que Israel Hands em certa ocasião em 1718, teria sido ferido por um tiro em um dos joelhos, disparo feito por Teach, o qual lhe deixou manco pelo resto da vida. Devido ao ferimento, Hands desistiu de continuar na tripulação Teach, mas meses depois foi capturado, mas apelou pelo perdão, tendo o recebido. Johnson encerra o relato dizendo que em 1724, Hands foi visto em Londres, mendigando. 
NOTA 2: Johnson também conta uma história de que a tripulação de 25 homens abordo do Adventure, poucos dias antes serem capturados, teriam reparado em um misterioso homem, que parecia ter surgido do nada. No dia 22 de novembro de 1718, quando se deu início ao conflito, o tal "vigésimo sexto" tripulante havia sumido. De acordo com Johnson, os homens teria dito que se tratava do Diabo. 
NOTA 3: Não se sabe ao certo porque Teach nomeou seu navio com o nome de Vingança da Rainha Ana, mas os historiadores sugerem que se deva a Guerra da Rainha Ana (1702-1713) conflito travado na América do Norte, entre ingleses, indígenas, franceses e espanhóis. Foi motivada a partir da Guerra de Sucessão Espanhola (1702-1714), tendo ocorrido no mesmo período. A rainha Ana da Grã-Bretanha envolveu-se na disputa pelo trono espanhol, assim como, o fez os franceses, alemãs e holandeses. O pretendente que os ingleses apoiavam, acabou perdendo. 
NOTA 4: Em 1996 uma equipe de mergulhadores descobriu o Vingança da Rainha Ana. Em 2011 uma nova expedição recolheu cinco canhões e outros objetos do naufrágio.
NOTA 5: Barba Negra é o vilão no filme Piratas do Caribe: Navegando em Águas Misteriosas (Pirates of the Caribbean: On Stranger Tides) de 2011. O pirata foi interpretado por Ian McShane. Na história Barba Negra procura pela Fonte da Juventude. Tal filme foi baseado no romance On Stranger Tides (1987) de Tim Powers.
NOTA 6: Barba Negra é um dos principais piratas que aparecem no jogo e livro Assassin's Creed IV: Black Flag (2013). Inclusive aspectos da sua vida são retratados na história do jogo/livro. 
NOTA 7: Barba Negra e seu navio Vingança da Rainha Ana aparecem no livro Percy Jackson: O Mar de Monstros (2006), escrito por Rick Riordan. 
NOTA 8: Edward Teach já apareceu em várias séreis de TV, filmes e livros, mas algumas que podem ser mencionadas são: Blackbeard (2005), série da BBC; Blackbeard (2006), série do Hallmark Channel; Crossbones (2014), série baseada no livro The Republic of Pirates (2007) de Collin Woodward. No cinema, o filme Blackbeard the Pirate (1952) ainda é o mais famoso. 
NOTA 9: No manga/anime One Piece o personagem Marshall D. Teach, é conhecido pela alcunha de Barba Negra. 
NOTA 10: No livro Peter Pan (1911) é informado que o Capitão Gancho trabalhou com o Barba Negra. 

Referências Bibliográficas:
JOHNSON, Charles. A general hystory of the pyrates. London, impresso por T. Warner, 1724. 
DEFOE, Daniel. Uma história dos piratas. Seleção e edição de Luciano Figueiredo. Rio de Janeiro, Zahar, 2008.
KLEIN, Shelley. Os piratas mais pervesos da história. Tradução de Magda Lopes. São Paulo, Editora Planeta do Brasil, 2007. 
COSTA, Nicássio Martins da. Uma história dos piratas: o princípio da construção do estereótipo do pirata caribenho que povoa o imaginário popular contemporâneo. I Encontro de Pesquisas Históricas (EPHIS) - PUORS, 2014. p. 1669-1682. 

Referências da Internet:
LEE, Robert E. Blackbeard the pirate. Disponível em: http://ncpedia.org/biography/blackbeard-the-pirate
BOURNE JR, Joel K. Blackbeard's Shipwreck. Disponível em: http://ngm.nationalgeographic.com/2006/07/blackbeard-shipwreck/bourne-text

Links relacionados: 
A história por trás de Assassin's Creed

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