terça-feira, 26 de abril de 2016

A jornada do herói na trajetória de Batman

Aproveitando o lançamento do filme Batman vs Superman: A Origem da Justiça (2016), o prelúdio para o aguardado filme da Liga da Justiça (2017), venho postar esse breve artigo agora sobre o Batman, pois anteriormente postei acerca do Superman. Enquanto no Mito do Superman, Umberto Eco analisou de forma bem mais profunda a semiótica acerca das histórias do Homem de Aço e sua relação com a cultura de massa e a sociedade, neste artigo A jornada do herói na trajetória de Batman (2007), escrito pela Ma. Luísa de Oliveira, o foco foi tratar do desenvolvimento do super-herói chamado Batman. 

Por mais que a autora também analise algumas questões de semiótica, ela o fez de forma mais sintética, além de procurar compreender o desenvolvimento do personagem Bruce Wayne a se tornar o Cavaleiro das Trevas, apontando algumas particularidades ao longo de três épocas distintas, o que revela a "jornada do herói", pela qual formou a nossa ideia atual sobre o Batman. E cujas algumas características são perceptíveis tanto no filme, quanto em outras produções contemporâneas do super-herói. 

As imagens aqui contidas, foram escolhidas por mim, para ilustrar o trabalho. 

Capa da revista Detective Comics, n. 27, de maio de 1939. Desenho de Bob Kane. Nessa edição, ocorreu a primeira aparição do Batman. 
INTRODUÇÃO

Diariamente, os meios de comunicação (televisão, jornais, revistas em quadrinhos) produzem e veiculam histórias que comovem grande parcela da população. Essas produções, em sintonia com o público, estão atreladas às demandas do mercado para garantir audiência e vendas. Os quadrinhos constituem uma importante fonte de criação e divulgação de personagens, que posteriormente são lançados em outros formatos como cinema e televisão.

Na década de 30, período entre as duas Grandes Guerras Mundiais, os super-heróis surgiram nos Estados Unidos. Houve uma profusão de personagens com características extraordinárias, idealizados para salvar a humanidade da ação das forças do mal.

Alguns personagens como Batman e Super-Homem continuam, ainda hoje, no imaginário do grande público. Suas trajetórias foram contadas e recontadas ao longo de mais de 60 anos.

Arte promocional para o filme Batman vs Superman (2016). Por mais que ambos os personagens existam há mais de 60 anos, e já tenham se encontrado várias e várias vezes nos quadrinhos e em desenhos animados, apenas em 2016, é que finalmente eles estiveram juntos no cinema. 
Pode-se considerar que os motivos abordados pelos meios de comunicação expressam necessidades coletivas em destaque no momento histórico em que elas se apresentam e inserem. Para Vergueiro (1998),

Enquanto meio de comunicação, elas [as histórias em quadrinhos] seguem a tendência geral da indústria cultural, de pasteurizar conteúdos, esconder individualidades locais e regionais, buscando atingir o máximo de pessoas possível. ... Em tese, pelo menos, quanto mais universais forem as problemáticas tratadas nesses meios, maiores as chances de seus produtos atingirem um amplo espectro da população”.

Nesse sentido, os personagens ganham evidência ao traduzirem temas universais que ressoam nos leitores, atendendo às necessidades de expressão dos conflitos constelados no momento histórico a que se referem.

Os analistas junguianos tradicionalmente se dedicaram ao estudo dos contos de fadas, por considerá-los uma das formas mais puras de expressão do inconsciente coletivo. Nessas histórias, aspectos individuais e culturais foram minimizados, possibilitando uma expressão mais clara das estruturas e processos psíquicos. A idéia central é que as histórias contadas e recontadas pela humanidade ao longo do tempo perdem características regionais, até a representação tornar-se cada vez mais coletiva, sobressaindo o núcleo de significado. As necessidades humanas mais fundamentais e os mecanismos utilizados para lidar com elas são expressos de maneira simbólica, capaz de tocar a sensibilidade humana.

Os meios de comunicação apresentam imagens arquetípicas manifestas na atualidade e impregnadas por aspectos culturais. Para Beebe (2001), a compreensão dessas imagens é importante na medida em que elas se referem à cultura na qual estão imersas as pessoas que recorrem à psicoterapia.

Por entender que a análise simbólica de produtos dos meios de comunicação pode lançar luz sobre dinâmicas consteladas na contemporaneidade, este artigo realiza a análise simbólica de Batman, uma imagem contemporânea do herói.

No âmbito da Psicologia Analítica, a aproximação dessa imagem remete ao arquétipo do herói & – motivador do processo de desenvolvimento da consciência.

O herói é o precursor arquetípico da humanidade em geral. O seu destino é o modelo que deve ser seguido e que, na humanidade, sempre o foi &– na verdade, com atrasos e intervalos, mas o suficiente para que os estágios do mito heróico façam parte dos constituintes do desenvolvimento da personalidade de cada indivíduo (Neumann, 1990, p. 107).

Além dos conceitos da Psicologia Analítica, esta análise da trajetória de Batman recorre às idéias de Campbell (2002), segundo as quais o herói deve realizar duas grandes tarefas: na primeira, ele se retira do mundo cotidiano para iniciar uma jornada pelo desconhecido, saindo do mundo externo para o mundo interno.

A primeira tarefa do herói consiste em retirar-se da cena mundana dos efeitos secundários e iniciar uma jornada pelas regiões causais da psique, onde residem efetivamente as dificuldades, para torná-las claras, erradicá-las em favor de si mesmo (isto é, combater os demônios infantis de sua cultura local) e penetrar no domínio da experiência e da assimilação direta e sem distorções, daquilo que C. G. Jung denominou “imagens arquetípicas” (Campbell, 2002, p. 27).

Cena de Batman Begins (2005). Nessa reinterpretação da origem do Batman, Bruce Wayne (Christian Bale), viaja a Ásia, e acaba chegando a Nanda Parbat, onde treina com a Liga das Sombras. 
Realizada a primeira tarefa, o herói “deve retornar ao nosso meio, transfigurado, e ensinar a lição de vida renovada que aprendeu” (Campbell, 2002, p. 28).

Assim, as grandes etapas do ciclo heróico foram identificadas, discriminando os temas em destaque em histórias em quadrinhos, séries e filmes em diferentes momentos da evolução do personagem. Para a consecução deste estudo, foram desenvolvidas as seguintes etapas:
  • revisão bibliográfica, dos seriados e longas-metragens para discernir, entre o material disponível, as histórias relevantes para a caracterização de Batman tal como ele se apresenta atualmente;
  • estudo e análise dos longas-metragens e das histórias em quadrinhos relevantes, com foco nas características do herói e nas tarefas realizadas no ciclo heróico;
  • identificação e análise das transformações ocorridas.
OS PERSONAGENS SERIADOS E AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS: DE YELLOW KID A BATMAN

Os quadrinhos com personagens seriados começaram a se desenvolver nos Estados Unidos. Em 1895, o primeiro personagem seriado & – Yellow Kid & –, um menino que usava um camisolão amarelo com frases cômicas e/ou sarcásticas, surgiu na imprensa norte-americana. Este personagem fez muito sucesso e possibilitou a percepção de que os leitores preferiam quando o texto era acompanhado por imagens. A camisola deu lugar aos baloons e Yellow Kid foi a base para o surgimento das histórias em quadrinhos com personagens seriados e periódicos tal como se apresentam hoje (Moya, 1997).

O Yellow Kid, personagem criado Richard F. Outcault, e cuja primeira aparição se deu no New York World, em 1895. O Yellow Kid é considerado por alguns como o primeiro personagem de histórias em quadrinhos. 
A partir deste precursor, surgiram vários outros personagens. Em 1911, foi a vez de Krazy Kat, seguido do Gato Félix e dos personagens de Walt Disney. O ano de 1929 foi considerado o início da Era de Ouro dos quadrinhos, com o aparecimento de três personagens que fizeram imenso sucesso: Tarzan, Buck Rogers e Dick Tracy. A década de 30 trouxe novos personagens envolvidos com os mesmos temas: a vida nas selvas, o espaço e o mundo do crime. São eles: Jungle Jim, Flash Gordon e X-9.

As primeiras tirinhas de Flash Gordon. Criado por Alex Raymond, e publicado no King Features Syndicate, em janeiro de 1934. 
Até esse momento, as histórias desses personagens eram publicadas em jornais, em tiras diárias e páginas dominicais. Em 1934, surgiram os primeiros gibis com a republicação das tiras em histórias completas. Neste mesmo ano, surgiu o Mandrake. Em 1936, foi a vez do Fantasma.

Reimpressão da primeira aparição de O Fantasma. Sunday Strip, maio de 1939. Criado por Lee Falk, em janeiro de 1936. Originalmente as tirinhas do personagem foram lançadas em preto e branco. 
O grande evento das histórias em quadrinhos viria a ocorrer em 1938, com a criação do Super-Homem. Lançado experimentalmente pela DC Comics, na Action Comics Magazine, este personagem conquistou a imaginação das crianças norte-americanas e rapidamente a revista dobrou a tiragem. Estava aberta uma nova frente nos quadrinhos: a era dos super-heróis.

Em maio de 1939, foi publicada, na Detective Comics, a primeira história do Batman, criada por Bob Kane.

AS ORIGENS DE BATMAN

As primeiras histórias de Batman foram desenhadas por Bob Kane e escritas por Bill Finger, mas esse empreendimento se mostrou grande demais para duas pessoas. Uma série de outros autores assinou histórias, sendo incontáveis os ghost writers1 envolvidos no processo de criação. No entanto, nenhum desses autores promoveu alterações significativas no núcleo da história, ou seja, a forma como Bruce Wayne se transformou em Batman.

A história básica de Batman pode ser assim resumida: aos 10 anos, Bruce foi ao cinema em companhia de seus pais. Quando procuravam um táxi para voltar para casa, foram abordados por ladrões. Bruce presenciou, nessa tentativa de assalto, o brutal assassinato de seu pai e sua mãe. Profundamente chocado, ele prometeu nunca esquecer esse evento e dedicar sua vida a fazer os criminosos pagarem por seus crimes. 

O assassinato de Thomas e Martha Wayne, após serem abordados numa ruela por um assaltante, o qual cometeu latrocínio, já foi retratado várias vezes nos quadrinhos, desenhos e filmes. Foi a partir dessa tragédia que Bruce teve a vida radicalmente alterada. 
Bruce afastou-se de sua vida rotineira para se preparar física e mentalmente para sua tarefa. Adulto, ele sentia falta de um disfarce e pensou nas suas metas: “criminosos são supersticiosos e covardes, então o meu disfarce deve ser capaz de levar o terror a seus corações. Eu devo me tornar uma criatura da noite, negra, terrível... Um... Um...” (Daniels, 1999, p. 35). Nesse momento, um enorme morcego invade a sala na qual Bruce se encontra, oferecendo a máscara que ele necessitava.

APRESENTAÇÃO DOS PERSONAGENS

Os Arqui-inimigos

Batman conta com uma extensa lista de arqui-inimigos. Os primeiros foram o Coringa e a Mulher-Gato, em Batman nº 1 (1940). Esses dois personagens têm em comum a ausência de história pregressa. Simplesmente, quando o Batman apareceu, eles estavam lá.

Os demais inimigos (Pingüim, Duas Caras, Espantalho, Cabeça de Ovo, Charada, etc.) contam com uma identidade original e algum acontecimento que os fez mudar, transformando-os em grandes vilões.

Os vilões mais conhecidos do Batman: Coringa, Arlequina, Charada, Mulher-Gato, Sr. Frio, Duas Caras, Pinguim, Bane, Cara de Barro, Crocodilo, Ra's al' Ghul, Hugo Strange, Victor Zsaz, Silêncio, Máscara Negra, Chapeleiro Maluco, Vaga-Lume, etc. 
Coringa e Mulher-Gato, objetos desta análise, eram os únicos que ninguém sabia exatamente quem eram e que acontecimentos os originaram. Ao longo dos anos, foram feitas tentativas de construção de uma história prévia. Algumas geraram resistência e insatisfação junto ao público, outras tiveram maior aceitação.

Coringa

Coringa é o primeiro e mais importante membro da galeria de arqui-inimigos de Batman. Ele está permanentemente arquitetando crimes e assassinatos. O crime perfeito, para ele, é aquele que pode promover gargalhadas. Seu principal alvo é o próprio Batman. Enquanto Batman é sério, circunspecto e austero, Coringa é expansivo, alegre e barulhento.

Primeira aparição do Coringa, em Batman n.1, de 25 de abril de 1940. O visual do personagem foi inspirado no visual do ator Conrad Veit, para o filme The Man Who Laughs (1928). 
O passado de Coringa é incerto. Alguns acham que ele sofreu um acidente numa indústria química que resultou em sua pele branca, seus cabelos verdes e seu sorriso permanente. Outros acreditam que ele foi um comediante frustrado e fracassado. Ele teria uma esposa, que morreu grávida e na miséria, pois Coringa era incapaz de se estabelecer profissionalmente.

Essas versões não exerceram um impacto definitivo. No contexto das histórias em quadrinhos, apenas o próprio Coringa pode saber o que aconteceu. Sabe-se, certamente, que ele é capaz de praticar todo tipo de crime, que matou Jason Todd (o segundo Robin) e Sarah Gordon, esposa do Comissário Gordon e que disparou o tiro que deixou Bárbara Gordon (a segunda Batgirl) paraplégica.

Cenas de Batman: A Piada Mortal (1988). Arte de Brian Bolland e roteiro de Allan Moore. Nessa história, o Coringa tentou matar Bárbara Gordon, a então Batgirl. No entanto, ela acabou sobrevivendo aos ferimentos, mas acabou ficando paraplégica. 
Mulher-Gato

A Mulher-Gato participa das histórias do Batman desde a primeira revista, lançada em 1940, na qual ela era simplesmente Cat. A partir da revista nº 2, ela passa a ser conhecida como Mulher-Gato (Catwoman).

Tal como o Coringa, houve algumas tentativas de retratar uma história pregressa e uma identidade original para a Mulher-Gato. Mas, contrariamente ao que aconteceu com o Coringa, uma das versões (a de 1987) obteve a adesão dos fãs.

Tirinhas com a primeira aparição de Selina Kyle, a Mulher-Gato. Batman n.1, abril de 1940. 
A Mulher-Gato é Selina Kyle, filha mais velha de uma família desestruturada. Após o suicídio de sua mãe, Selina e uma irmã viveram em instituições para menores abandonados, tendo sofrido toda sorte de maus-tratos. Aos 13 anos, ela fugiu e foi morar nas ruas, onde aprendeu a ser uma exímia ladra. Com o aparecimento de Batman e inspirada por ele, Selina, até então conhecida como Cat, passa a usar traje negro e se autodenominar Mulher-Gato.

Sua eficiência em roubos possibilitou que ela acumulasse muito dinheiro e começasse a freqüentar a alta sociedade de Gotham City. Foi nessa época que Selina namorou Bruce Wayne. A Mulher-Gato é a grande paixão de Batman.

Cena do arco Batman: Silêncio (2003), criado por Jeph Loeb. Em vários quadrinhos, animações e em alguns filmes e jogos, Batman e Mulher-Gato mantém um romance. 
Os Auxiliares

Alfred

Mordomo da família Wayne, Alfred ficou encarregado de cuidar de Bruce desde o assassinato de seus pais. Ele está entre os mais confiáveis e constantes aliados de Bruce e de Batman. Além dos cuidados cotidianos, Alfred possui profundos conhecimentos de Medicina, auxilia nas investigações e é excelente motorista. Ele zela pelos segredos de Bruce/Batman, cuida de suas feridas e lembra-lhe suas limitações (Miller e Mazzucchelli, 2002a). Apareceu pela primeira vez na revista Batman nº 16, em 1943.

Alfred Pennyworth, desenhado por Alex Ross, para a revista Batman 686, de março de 2009. 
Comissário Gordon

James Gordon sempre foi um policial correto, combatendo o crime e a corrupção do departamento de polícia. A retidão de seu caráter chamou a atenção de Batman, que desenvolveu com ele uma forte aliança, favorecendo sua ascensão ao cargo de comissário. As principais ocorrências policiais de Gotham City são comunicadas a Batman pelo Comissário Gordon.

Comissário James "Jim" Gordon no desenho Batman: The Animated Series (1992-1995). 
Batgirl

A Batgirl mais conhecida é Bárbara Gordon, filha adotiva do Comissário Gordon. Ela foi inspirada por Batman, mas contava com recursos próprios e se fazia presente em todos os confrontos importantes. Sua carreira como Batgirl foi interrompida abruptamente por um tiro do Coringa, que a deixou paraplégica. Em cadeira de rodas, Bárbara tornou-se especialista em computação, organizando e acessando uma imensa base de dados. A partir de então, ela se tornou o Oráculo, dedicando-se à investigação e orientação de novos combatentes do crime (Moore, 2002).

Bárbara Gordon ainda é a mais conhecida das Batgirls. Em algumas histórias os roteiristas adotam a vertente dela ter ficado paraplégica, usando a personagem como sua identidade de Oráculo; já outros roteiristas, descartam esse acidentes, e mantém Bárbara como a super-heroína. Inclusive, Batgirl possui sua própria série de quadrinhos. 
Robin

Dick Grayson e toda sua família eram trapezistas. Depois da morte de seus pais (assassinados por Duas Caras), ele se tornou pupilo de Batman. Jovem, hábil, atlético e inteligente, o menino-prodígio participa das aventuras de Batman desde 1940. Segundo Daniels (1999), Bob Kane decidiu criar Robin porque entendia que Batman estava encerrado em uma solidão insuportável. A capacidade lógica de Robin fez dele um excelente parceiro nas investigações da dupla dinâmica.

Capa de Detective Comics 38, abril de 1940. Nessa revista o Robin, Dick Grayson aparece pela primeira vez, já sendo conhecido como o "Menino Prodígio" (como ficou conhecido no Brasil, embora a tradução correta fosse "Garoto Maravilha"). A partir dos ano 80, Dick ao se aliar aos Jovens Titãs, assumiu a identidade do Asa Noturna (Nightwing). Até hoje o personagem do Dick Grasyon é retratado como o Asa Noturna, sendo que o atual Robin nos quadrinhos e animações, é o Damian Wayne. No entanto, Jason Todd e Tim Drake, também foram notórios Robin, além de ter versões femininas do personagem também. 
A AVENTURA DO HERÓI

A presente análise da trajetória de Batman foi organizada considerando três períodos: de 1939 a 1960, de 1970 a 1980 e de 1990 a 2000. A participação de muitos autores no processo de criação de enredos para Batman promoveu diversificações nos rumos da história, por meio de mudanças na apresentação, caracterização e rede de relações dos personagens. Mesmo que a origem de Batman não tenha sido significativamente alterada, foram e são realizadas revisões regulares que harmonizam a diversidade de histórias produzidas. No caso de Batman, a primeira grande revisão ocorreu na década de 1960. A definição dos três períodos analisados teve como critérios a ocorrência de grandes revisões e o surgimento de mudanças expressivas quanto ao sentido da jornada heróica.

1939-1960

O primeiro passo da jornada do herói é o chamado da aventura. Algum acontecimento tira o herói do cotidianamente conhecido. Segundo Campbell (2002, p. 66), “o chamado da aventura & – significa que o destino convocou o herói e transferiu-lhe o centro da gravidade do seio da sociedade para uma região desconhecida”.

A morte violenta dos pais de Bruce Wayne, quando ele contava 10 anos de idade, chamou-o para a jornada. Seu mundo foi transformado radicalmente. As referências familiares desapareceram e o pequeno Bruce foi lançado em uma realidade brutal. Nesse momento, ele prometeu não esquecer o que lhe acontecera, dedicando sua vida à luta contra o crime, num esforço para que sua história não se repetisse com outros.

Bruce Wayne atende imediatamente ao chamado. Abandona sua vida cotidiana para dedicar-se a sua missão. Ninguém sabe exatamente onde ele esteve durante um período de 12 anos. A população de Gotham City acredita que ele fez uma viagem ao exterior, mas a possibilidade mais verossímil é que ele tenha permanecido na cidade, escondido em uma caverna desconhecida, situada embaixo da mansão dos Wayne. Nesse local, Bruce realizou seu treinamento, desenvolvendo suas aptidões físicas e mentais (Miller e Mazzucchelli, 2002b).

Arte conceitual da Batcaverna, no jogo Batman: Arkham Origins (2013).
A caverna é um símbolo análogo ao do ventre da baleia, presente em numerosos mitos de origem, de renascimento e de iniciação. Região desconhecida, sombria, de limites inexplorados, a entrada na caverna é um caminho para dentro, uma interiorização, um retorno às origens, ao centro.

O caráter central da caverna faz com que ela seja o lugar do nascimento e da regeneração; também da iniciação, que é um novo nascimento. ... Entrar na caverna é, portanto, retornar à origem e, daí, subir ao céu, sair do cosmo” (Chevalier e Gheerbrant, 2002, p. 216).

Dessa descida, Bruce Wayne volta transformado. Sente-se pronto para cumprir sua tarefa, contudo, uma nova identidade é essencial. Um disfarce que possa torná-lo reconhecido como uma força eficaz contra o crime. O morcego que invadiu a sala de sua casa trouxe a imagem que necessitava. Este evento é um aceno sobrenatural que sintetiza os anseios de Bruce e aponta para a transformação final. A partir desse momento, ele é Batman.

Cena de Batman: Ano Um (1987). História de Frank Miller, arte de David Mazzuchelli, Richmond Lewis e Todd Klein. 
Esses dois símbolos intimamente relacionados & – a caverna e o morcego &– passam a fazer parte de Batman. A caverna é a morada do morcego, único mamífero capaz de voar. Ele é um animal noturno que vive em grutas e cavernas. De acordo com as ONG’s, International Bat Conservartion e Friends of Bats, existem cerca de 900 espécies de morcegos das quais apenas três se alimentam de sangue. As demais se alimentam de frutas e insetos, exercendo importante papel na polinização (Aprile, 2006).

Os aspectos positivos não são suficientes para evitar o caráter sinistro ligado ao morcego, pois o morcego

inclui-se no rol daqueles que vivem na escuridão, nas trevas, que se escondem do mundo diurno. Mora em grutas de difícil acesso ou em casas arruinadas. Como se não bastasse, passa o dia inteiro dependurado de cabeça para baixo. É mamífero e, contudo, voa. Parece criatura de um mundo que funcionaria às avessas do nosso” (Augras, 1995, p. 161).

Na Idade Média, para retratar o demônio eram-lhe atribuídas asas de morcego, contrastando com as asas resplandecentes dos anjos (Augras, 1995). Além disso, o morcego está associado à longevidade, “porque se supõe que ele próprio a possua, uma vez que vive nas cavernas & – que são uma passagem para o domínio dos Imortais & –, e ali se alimenta de concreções vivificantes” (Chevalier e Gheerbrant, 2002, p. 216).

Evolução do símbolo do Batman de 1940 a 2012. 
Nesse período, Batman foi confrontado com duas tarefas: tornar-se conhecido pelos bandidos e ser aceito pela população de Gotham City. Ele havia se preparado racional e intencionalmente para cumprir sua missão, contou com a colaboração de auxiliares eficazes e pôde, então, integrar-se à estrutura social na qual convivia, como um recurso do departamento de polícia.

Batman é um herói da ação. Seus atos são de coragem. Suas qualidades são persistência, determinação, disciplina. Ele desenvolve e maneja amplo arsenal de armas, é hábil na luta. Recebe o chamado, sofre uma transformação e retorna para colocar as habilidades desenvolvidas a serviço de sua cidade, sem que haja conflitos aparentes, com total desprendimento de sua vida pessoal. O Bem e o Mal estão bem definidos, não sendo necessária qualquer reflexão para identificá-los. Os sacrifícios pessoais não são avaliados. Batman tem uma missão e a cumpre.

Wahba (2004) propõe e analisa três tipos de heróis: o herói da razão, o herói da missão e o herói da complexidade. A caracterização do herói da razão é um retrato da organização de Batman:

O herói da razão é o herói do dever. Neste, os limites estão bem demarcados e são fixos, inquestionáveis. O mal está fora, combatê-lo se torna prioritário e o ato heróico está acima de qualquer relacionamento. ... A luta heróica é diária, a lógica, infalível; a ação guerreira ou mental segue coordenadas muito bem estabelecidas. ... Coragem significa aferrar-se às convicções e lutar por elas com bravura e decisão unívoca” (Wahba, 2004, p. 218).

Batman enfrentando detentos foragidos, em cena do jogo Batman: Arkham City (2011). 
Ao acompanhar a trajetória de Batman, percebe-se que o caminho a ser percorrido é aparentemente claro, pois diante dele surgem duas forças desconhecidas e irracionais, condensadas nos personagens Coringa e Mulher-Gato.

1970-1980

Nesse período, a história pessoal do personagem, com suas perdas e conflitos, começa a ganhar destaque. Batman relembra regularmente o momento traumático quando ele presenciou a morte de seus pais. Suas atividades como super-herói tornam-se um testemunho de suas perdas. A tristeza é o sentimento dominante, pois a cada batalha ele resgata o menino abandonado diante dos pais mortos.

À medida que os sentimentos tornam-se preponderantes, ele se aproxima da Mulher-Gato. O gato é um símbolo ambivalente, que transita entre a bondade e a maldade. No Egito Antigo, especialmente em Bubastis, na 22ª dinastia (945-715 a.C.), o gato era venerado como a deusa Bastet, protetora e benfeitora do homem. Esta deusa estava ligada ao canto, à música e à dança, considerada protetora das mulheres grávidas, do amor, da alegria e do prazer de viver. Posteriormente, os gatos foram associados a poderes demoníacos e ao feminino.

Von Franz (2000, p. 70) analisa a simbologia do gato:

Era voz corrente [na Idade Média] que algumas mulheres tinham o poder de introduzir suas almas em gatos pretos. Essas mulheres seriam bruxas, dedicadas não mais aos poderes da luz, mas aos poderes das trevas, ao demônio. A dissociação católica com relação aos instintos, à sexualidade e, falando de modo geral, ao elemento natural feminino, provavelmente tem muito a ver com esse desenvolvimento do gato como símbolo do feminino instintivo e destrutivo”.

A Mulher-Gato interpretada pela atriz Michelle Pfeiffer, no filme Batman: o retorno (1992). 
O gato foi visto também como meio, como mediador entre o Bem e o Mal, entre as esferas humanas e divinas, pois,

Como ele tem acesso a ambas as esferas e se sente à vontade nas duas, ele tem muita sabedoria profética a oferecer e pode ensinar-nos a manter em equilíbrio valores conflitantes. Como símbolo da consciência, o gato é uma entidade psíquica que conhece o caminho &– desde que aprendamos a confiar nele, respeitando-o, obedecendo-o e seguindo-o para onde quer que ele vá” (Von Franz, 2000, p. 72).

Compreendidos simbolicamente, o morcego e o gato partilham intimidade com alguns pares de opostos: o bem e o mal, o terrestre e o celeste.

Batman e a Mulher-Gato estão profundamente ligados. É como se eles tivessem sido feitos um para o outro, mas as correspondências simbólicas encontram resolução em atitudes opostas. Batman, em resposta à agressão que sofreu, defende a estrutura social tal e qual ela se apresenta, como se isto tornasse possível a recuperação da unidade perdida. A Mulher-Gato, por sua vez, volta-se contra essa organização em ataque aos seus agressores, que se enquadram no sistema, como se assim pudesse ter seus valores reconhecidos. O que fica fora do campo visual de ambos é que tanto os agressores dele quanto os dela são fruto de um mesmo desequilíbrio.


Batman e Mulher-Gato em cena das histórias de Batman: Arkham Unhinged (2011-2013). Originalmente a personagem era uma ladra de joias, não sendo necessariamente uma inimiga do Batman, embora em dados momentos cooperou com alguns de seus inimigos. Em si, a Mulher-Gato costuma atrapalhar o Morcego em suas investigações, como também irritá-lo e provocá-lo. A personagem já foi uma anti-heroína e atualmente é uma heroína em sua própria série.  
1990-2000

No período mais recente, Batman começa a prestar atenção em como sua ação engendra efeitos negativos no seu ambiente. O embate com o Coringa ganha destaque. A contraposição exercida pelo Coringa passa a ser compreendida no contexto do relacionamento com Batman. Enquanto Batman é controlado, dissimulado, silencioso, lógico, obscuro, o Coringa é impulsivo, aleatório, fantasioso, escancarado, colorido, alegre, musical.

O Coringa interpretado por Heath Ledger, no filme Batman: O Cavaleiro das Trevas (2008). A atuação de Ledger, lhe rendeu um Oscar póstumo, já que antes da estreia do filme, ele morreu de overdose. 
O Coringa é o contraponto de Batman. Todo e qualquer acessório que Batman cria é imediatamente assimilado pelo Coringa. Ao longo das histórias, esse embate é o mais vigoroso e o de mais difícil negociação.

O Coringa faz referência clara às cartas do baralho. No tarô, a carta coringa é o Louco. Ele não é numerado e está fora do jogo, porque “o louco está fora dos limites da razão, fora das normas da sociedade” (Chevalier e Gheerbrant, 2002, p. 560).

Cena do jogo Batman: Arkham Knight (2015). Aqui o Coringa tenta o Batman a quebrar seu juramento de não matar. 
Batman, como vários super-heróis (Homem-Aranha, Hulk, Wolverine), foi criado pela ciência e pelo conhecimento tecnológico. A apropriação do desenvolvimento tecnológico lança-os num caminho de ultrapassagem das limitações humanas. Eles se tornam superiores. A tecnologia é investida de autonomia. Conseqüentemente, as oposições encontradas são igualmente autônomas e radicais. Em Batman, há oposição entre dever e alegria de viver, masculino e feminino, razão e sensibilidade, luz e trevas. A sensibilidade está a serviço do crime.

Batman começa a perceber que as oposições que encontra estão relacionadas às suas atitudes. Surge, então, um herói capaz de tirar seu uniforme e expor suas cicatrizes. Não se trata mais da revelação de complexos infantis, mas da aproximação às marcas engendradas por sua trajetória específica. O sentido e o significado da batalha ganham importância. Ele passa a avaliar, se seus atos heróicos estão alicerçados numa preocupação genuína com o outro ou se eles servem à necessidade de vingança. É possível perceber, então, uma relação diferente entre as forças do Bem e do Mal. Elas já não são tão definidas e de fácil identificação. Observação, análise e reflexão são necessárias.

Ben Affleck como Bruce Wayne, em Batman vs Superman (2016). A destruição gerada em Metrópoles, na luta entre Superman e Zod, leva Bruce a ser revoltar contra o Homem de Aço e a considerá-lo uma perigosa ameaça. 
Neste momento, a luta heróica de Batman está destinada mais à manutenção do equilíbrio entre essas forças do que à tentativa de destruição da oposição.

CONCLUSÕES

A análise dinâmica desse tipo de personagem permite uma aproximação dos temas psicológicos correntes na atualidade. A realização do ciclo heróico, tal como formulado por Joseph Campbell evidencia características arquetípicas do personagem Batman.

Considerando as etapas do processo de individuação, Batman está conscientizando e elaborando aspectos da sombra (Jung, 1981, 1998). Conteúdos reprimidos do inconsciente pessoal são resgatados, trazendo à tona a criança ferida. Há uma ampliação do contato com os próprios sentimentos e o conseqüente aprofundamento dos relacionamentos afetivos. Elementos não-desenvolvidos, qualidades mantidas inconscientes, ganham forma nas projeções identificadas no Coringa. A tensão entre opostos fica evidenciada, com menor tendência à unilateralidade. Esse processo de ampliação da consciência permite que Batman ultrapasse uma visão bidimensional da realidade e busque novas perspectivas, que o aproximam da complexidade humana.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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sexta-feira, 22 de abril de 2016

A Carta de Pero Vaz de Caminha: a fundação do Brasil

22 de abril de 1500, foi o dia que entrou na história portuguesa, como a data em que o Brasil foi descoberto. Embora as palavras descobrir, descoberta e descobrimento possuam sentido no contexto histórico e literário daquela época, hoje os historiadores questionam o emprego desse termo para o nosso contexto acerca do entendimento do que foi o "descobrimento do Brasil". 

De qualquer forma, eu prefiro usar as expressões "criação do Brasil" ou "fundação do Brasil" (mesmo que se demorou vários anos para que a colônia passasse a ser reconhecida oficialmente com o nome de Brasil), e para respaldar isso, dispomos do primeiro documento português que se conhece acerca do Brasil, a carta redigida pelo fidalgo Pero Vaz de Caminha (1450-1500), o qual foi incumbido de ser escrivão da futura feitoria de Calicute, quando este chegasse a Índia, em 1500. Caminha acabou não assumindo o posto de escrivão da nova feitoria, pois morreu em combate, segundo sugerem alguns relatos, vindo a falecer em dezembro de 1500. 

Entretanto, antes que a armada de Pedro Álvares Cabral (c. 1467/68 - c. 1520) chegasse a Índia; em abril de 1500, a expedição viajou a América do Sul, a fim de fazer o reconhecimento oficial das terras acordadas pela Coroa Portuguesa com a Coroa Espanhola, no Tratado de Tordesilhas (1494). Sabe-se que antes de Cabral realizar o reconhecimento oficial e tomar posse, outros navegantes já haviam avistado a costa brasileira, como o português Duarte Pacheco Pereira por volta de 1498, e os espanhóis Vincente Yánez Pinzón e Diogo de Lepe, ambos em 1499. 

Existem controvérsias se Duarte Pacheco realmente avistou o Brasil, mas sabe-se que Pinzón e Lepe avistaram a costa na altura do que hoje é Pernambuco. Mas pelo fato de serem terras portuguesas, eles não tinham autorização para investigá-las. Cabendo a Cabral fazer isso no ano seguinte, antes de ir para as Índias. 

Todavia, o texto a seguir não é de minha autoria, apenas realizei essa introdução, para depois deixar os leitores conferir a carta escrita por Caminha, a qual para alguns historiadores é a "certidão de nascimento e de batismo" do Brasil. 

A carta de Pero Vaz de Caminha possui uma importância magna para a história brasileira pelos seguintes motivos: foi o primeiro documento português o qual descreveu a geografia da costa brasileira (mesmo que limitada a uma pequena porção da costa, hoje referente a costa do estado da Bahia); foi o primeiro relato a comentar brevemente sobre a fauna e flora (mesmo que o autor não tenha entrado em detalhes acerca dos tipos e espécies); o primeiro relato que se tem sobre os indígenas "brasileiros", no qual Caminha relatou as seguintes impressões: a aparência deles (adornos, pinturas corporais, cortes de cabelo); suas armas, moradias, apetrechos, etc.; sobre sua suposta inocência quanto a nudez, daí não terem "vergonha" de andarem sem roupa; sobre seu desconhecimento de Deus, e possivelmente que não possuíssem fé; sobre sua ingenuidade e aparente atraso civilizatório. 

A carta também relata o primeiro contato oficial entre portugueses e os indígenas daquela parte do continente americano. Relata a primeira missa ocorrida na nova terra, além do levantamento e "chantada" da cruz e da bandeira com o brasão de armas da Coroa Portuguesa, o que mostra as cerimônias de reconhecimento e tomada de posse; sendo que a cruz não foi apenas para a missa, mas também era o "padrão", pelo qual os portugueses usavam para reconhecer as terras da sua Coroa. Relata o primeiro nome oficial daquela terra recém descoberta (ou "achada", como Caminha menciona). Relata a criação de nomes próprios para determinadas localidades como o Monte Pascoal, o rio Diogo Dias e a angra Porto Seguro

A carta também relata o contato entre os portugueses e indígenas ao longo de vários dias; como também se tornou o primeiro documento a comunicar o rei D. Manuel I, sobre o reconhecimento daquelas terras acordadas desde 1494, as quais passaram a serem chamadas de Ilha de Vera Cruz

Sendo assim, o Brasil nasceu em terras pagãs, mas foi batizado com nome cristão. 

Fac-símile da primeira página da Carta de Pero Vaz de Caminha, 1 de maio de 1500. 
Carta de Pero Vaz de Caminha

Senhor,

Posto que o Capitão-mor desta vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a nova do achamento desta vossa terra nova, que ora nesta navegação se achou, não deixarei também de dar disso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder, ainda que — para o bem contar e falar — o saiba pior que todos fazer.

Tome Vossa Alteza, porém, minha ignorância por boa vontade, e creia bem por certo que, para aformosear nem afear, não porei aqui mais do que aquilo que vi e me pareceu. Da marinhagem e singraduras do caminho não darei aqui conta a Vossa Alteza, porque o não saberei fazer, e os pilotos devem ter esse cuidado.

Portanto, Senhor, do que hei de falar começo e digo: A partida de Belém, como Vossa Alteza sabe, foi segunda-feira, 9 de março. Sábado, 14 do dito mês, entre as oito e nove horas, nos achamos entre as Canárias, mais perto da Grã-Canária, e ali andamos todo aquele dia em calma, à vista delas, obra de três a quatro léguas. E domingo, 22 do dito mês, às dez horas, pouco mais ou menos, houvemos vista das ilhas de Cabo Verde, ou melhor, da ilha de S. Nicolau, segundo o dito de Pero Escolar, piloto.

Na noite seguinte, segunda-feira, ao amanhecer, se perdeu da frota Vasco de Ataíde com sua nau, sem haver tempo forte nem contrário para que tal acontecesse. Fez o capitão suas diligências para o achar, a uma e outra parte, mas não apareceu mais! E assim seguimos nosso caminho, por este mar, de longo, até que, terça-feira das Oitavas de Páscoa, que foram 21 dias de abril, estando da dita Ilha obra de 660 ou 670 léguas, segundo os pilotos diziam, topamos alguns sinais de terra, os quais eram muita quantidade de ervas compridas, a que os mareantes chamam botelho, assim como outras a que dão o nome de rabo-de-asno.

E quarta-feira seguinte, pela manhã, topamos aves a que chamam fura-buxos. Neste dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra! Primeiramente dum grande monte, mui alto e redondo; e doutras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã [terra plana], com grandes arvoredos: ao monte alto o capitão pôs nome – o Monte Pascoal e à terra – a Terra da Vera Cruz. Mandou lançar o prumo.

Acharam vinte e cinco braças; e ao sol posto, obra de seis léguas da terra, surgimos âncoras, em dezenove braças — ancoragem limpa. Ali permanecemos toda aquela noite. E à quinta-feira, pela manhã, fizemos vela e seguimos em direitos à terra, indo os navios pequenos diante, por dezessete, dezesseis, quinze, catorze, treze, doze, dez e nove braças, até meia légua da terra, onde todos lançamos âncoras em frente à boca de um rio. E chegaríamos a esta ancoragem às dez horas pouco mais ou menos.

Dali avistamos homens que andavam pela praia, obra de sete ou oito, segundo disseram os navios pequenos, por chegarem primeiro. Então lançamos fora os batéis e esquifes [tipos de botes], e vieram logo todos os capitães das naus a esta nau do Capitão-mor, onde falaram entre si. E o Capitão-mor mandou em terra no batel a Nicolau Coelho para ver aquele rio.

E tanto que ele começou de ir para lá, acudiram pela praia homens, quando aos dois, quando aos três, de maneira que, ao chegar o batel à boca do rio, já ali havia dezoito ou vinte homens. Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas mãos traziam arcos com suas setas. Vinham todos rijos sobre o batel; e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os pousaram.

Ali não pôde deles haver fala, nem entendimento de proveito, por o mar quebrar na costa. Somente deu-lhes um barrete vermelho e uma carapuça de linho que levava na cabeça e um sombreiro preto. Um deles deu-lhe um sombreiro [cocar] de penas de ave, compridas, com uma copazinha de penas vermelhas e pardas como de papagaio; e outro deu-lhe um ramal grande de continhas brancas, miúdas, que querem parecer de aljaveira, as quais peças creio que o Capitão manda a Vossa Alteza, e com isto se volveu às naus por ser tarde e não poder haver deles mais fala, por causa do mar. Na noite seguinte, ventou tanto sueste com chuvaceiros que fez caçar as naus, e especialmente a capitânia [navio do capitão].

E sexta pela manhã, às oito horas, pouco mais ou menos, por conselho dos pilotos, mandou o Capitão levantar âncoras e fazer vela; e fomos ao longo da costa, com os batéis e esquifes amarrados à popa na direção do norte, para ver se achávamos alguma abrigada e bom pouso, onde nos demorássemos, para tomar água e lenha. Não que nos minguasse, mas por aqui nos acertarmos. Quando fizemos vela, estariam já na praia assentados perto do rio obra de sessenta ou setenta homens que se haviam juntado ali poucos e poucos.

Fomos de longo, e mandou o Capitão aos navios pequenos que seguissem mais chegados à terra e, se achassem pouso seguro para as naus, que amainassem. E, velejando nós pela costa, obra de dez léguas do sítio donde tínhamos levantado ferro, acharam os ditos navios pequenos um recife com um porto dentro, muito bom e muito seguro, com uma mui larga entrada. E meteram-se dentro e amainaram [baixar as velas].

As naus arribaram sobre eles; e um pouco antes do sol posto amainaram também, obra de uma légua do recife, e ancoraram em onze braças. E estando Afonso Lopes, nosso piloto, em um daqueles navios pequenos, por mandado do Capitão, por ser homem vivo e destro para isso, meteu-se logo no esquife a sondar o porto dentro; e tomou dois daqueles homens da terra, mancebos e de bons corpos, que estavam numa almadia [canoa].

Um deles trazia um arco e seis ou sete setas; e na praia andavam muitos com seus arcos e setas; mas de nada lhes serviram. Trouxe-os logo, já de noite, ao Capitão, em cuja nau foram recebidos com muito prazer e festa. A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem-feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem estimam de cobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto. Ambos traziam os beiços de baixo furados e metidos neles seus ossos brancos e verdadeiros, de comprimento duma mão travessa, da grossura dum fuso de algodão, agudos na ponta como um furador.

Metemo-nos pela parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita como roque de xadrez, ali encaixado de tal sorte que não os molesta, nem os estorva no falar, no comer ou no beber. Os cabelos seus são corredios. E andavam tosquiados, de tosquia alta, mais que de sobrepente, de boa grandura e rapados até por cima das orelhas. E um deles trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte para detrás, uma espécie de cabeleira de penas de ave amarelas, que seria do comprimento de um coto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria o toutiço [nuca] e as orelhas.

E andava pegada aos cabelos, pena e pena, com uma confeição branda como cera (mas não o era), de maneira que a cabeleira ficava mui redonda e mui basta, e mui igual, e não fazia míngua mais lavagem para a levantar. O Capitão, quando eles vieram, estava sentado em uma cadeira, bem vestido, com um colar de ouro mui grande ao pescoço, e aos pés uma alcatifa [tipo de tapete] por estrado.

Sancho de Tovar, Simão de Miranda, Nicolau Coelho, Aires Correia, e nós outros que aqui na nau com ele vamos, sentados no chão, pela alcatifa. Acenderam-se tochas. Entraram. Mas não fizeram sinal de cortesia, nem de falar ao Capitão nem a ninguém. Porém um deles pôs olho no colar do Capitão, e começou de acenar com a mão para a terra e depois para o colar, como que nos dizendo que ali havia ouro.

Também olhou para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal como se lá também houvesse prata. Mostraram-lhes um papagaio pardo que o Capitão traz consigo; tomaram-no logo na mão e acenaram para a terra, como quem diz que os havia ali. Mostraram-lhes um carneiro: não fizeram caso. Mostraram-lhes uma galinha, quase tiveram medo dela: não lhe queriam pôr a mão; e depois a tomaram como que espantados.

Deram-lhes ali de comer: pão e peixe cozido, confeitos, fartéis [pastéis], mel e figos passados. Não quiseram comer quase nada daquilo; e, se alguma coisa provaram, logo a lançaram fora. Trouxeram-lhes vinho numa taça; mal lhe puseram a boca; não gostaram nada, nem quiseram mais. Trouxeram-lhes a água em uma albarrada. Não beberam. Mal a tomaram na boca, que lavaram, e logo a lançaram fora.

Viu um deles umas contas de rosário, brancas; acenou que lhas dessem, folgou muito com elas, e lançou-as ao pescoço. Depois tirou-as e enrolou-as no braço e acenava para a terra e de novo para as contas e para o colar do Capitão, como dizendo que dariam ouro por aquilo. Isto tomávamos nós assim por assim o desejarmos. Mas se ele queria dizer que levaria as contas e mais o colar, isto não o queríamos nós entender, porque não lhe havíamos de dar. E depois tornou as contas a quem lhes dera.

Então estiraram-se de costas na alcatifa [tapete], a dormir, sem buscarem maneira de cobrirem suas vergonhas, as quais não eram fanadas; e as cabeleiras delas estavam bem rapadas e feitas. O Capitão lhes mandou pôr por baixo das cabeças seus coxins [almofadas]; e o da cabeleira esforçava-se por não a quebrar.

E lançaram-lhes um manto por cima; e eles consentiram, quedaram-se e dormiram. Ao sábado pela manhã mandou o Capitão fazer vela, e fomos demandar a entrada, a qual era mui larga e alta de seis a sete braças. Entraram todas as naus dentro; e ancoraram em cinco ou seis braças – ancoragem dentro tão grande, tão formosa e tão segura, que podem abrigar-se nela mais de duzentos navios e naus. E tanto que as naus quedaram ancoradas, todos os capitães vieram a esta nau do Capitão-mor.

E daqui mandou o Capitão a Nicolau Coelho e Bartolomeu Dias que fossem em terra e levassem aqueles dois homens e os deixassem ir com seu arco e setas, e isto depois que fez dar a cada um sua camisa nova, sua carapuça vermelha e um rosário de contas brancas de osso, que eles levaram nos braços, seus cascavéis [bugigangas] e suas campainhas [pequenos sinos].

E mandou com eles, para lá ficar, um mancebo degredado [condenado a exílio], criado de D. João Telo, a que chamam Afonso Ribeiro, para lá andar com eles e saber de seu viver e maneiras. E a mim mandou que fosse com Nicolau Coelho. Fomos assim de frecha [ir de depressa] diretos à praia. Ali acudiram logo obra de duzentos homens, todos nus, e com arcos e setas nas mãos. Aqueles que nós levávamos acenaram-lhes que se afastassem e pousassem os arcos; e eles os pousaram, mas não se afastaram muito.

E mal pousaram os arcos, logo saíram os que nós levávamos, e o mancebo degredado com eles. E saídos não pararam mais; nem esperavam um pelo outro, mas antes corriam a quem mais corria. E passaram um rio que por ali corre, de água doce, de muita água que lhes dava pela braga; e outros muitos com eles. E foram assim correndo, além do rio, entre umas moitas de palmas onde estavam outros.

Ali pararam. Entretanto foi-se o degredado com um homem que, logo ao sair do batel, o agasalhou e o levou até lá. Mas logo tornaram a nós; e com ele vieram os outros que nós leváramos, os quais vinham já nus e sem carapuças. Então se começaram de chegar muitos. Entravam pela beira do mar para os batéis, até que mais não podiam; traziam cabaços de água, e tomavam alguns barris que nós levávamos: enchiam-nos de água e traziam-nos aos batéis. Não que eles de todos chegassem à borda do batel.

Mas junto a ele, lançavam os barris que nós tomávamos; e pediam que lhes dessem alguma coisa. Levava Nicolau Coelho cascavéis [bugigangas] e manilhas [tubos]. E a uns dava um cascavel, a outros uma manilha, de maneira que com aquele engodo quase nos queriam dar a mão. Davam-nos daqueles arcos e setas por sombreiros e carapuças de linho ou por qualquer coisa que homem lhes queria dar. Dali se partiram os outros dois mancebos, que os não vimos mais.

Muitos deles ou quase a maior parte dos que andavam ali traziam aqueles bicos de osso nos beiços. E alguns, que andavam sem eles, tinham os beiços furados e nos buracos uns espelhos de pau, que pareciam espelhos de borracha; outros traziam três daqueles bicos, a saber, um no meio e os dois nos cabos. Aí andavam outros, quartejados de cores, a saber, metade deles da sua própria cor, e metade de tintura preta, a modos de azulada; e outros quartejados de escaques.

Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos, compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha. Ali por então não houve mais fala ou entendimento com eles, por a barbaria deles ser tamanha, que se não entendia nem ouvia ninguém. Acenamos-lhes que se fossem; assim o fizeram e passaram-se além do rio.

Saíram três ou quatro homens nossos dos batéis, e encheram não sei quantos barris de água que nós levávamos e tornamo-nos às naus. Mas quando assim vínhamos, acenaram-nos que tornássemos. Tornamos e eles mandaram o degredado e não quiseram que ficasse lá com eles. Este levava uma bacia pequena e duas ou três carapuças vermelhas para lá as dar ao senhor, se o lá houvesse. Não cuidaram de lhe tomar nada, antes o mandaram com tudo.

Mas então Bartolomeu Dias o fez outra vez tornar, ordenando que lhes desse aquilo. E ele tornou e o deu, à vista de nós, àquele que da primeira vez agasalhara. Logo voltou e nós trouxemo-lo. Esse que o agasalhou era já de idade, e andava por louçainha todo cheio de penas, pegadas pelo corpo, que parecia asseteado [flechado] como S. Sebastião.

Outros traziam carapuças [cocares] de penas amarelas; outros, de vermelhas; e outros de verdes. E uma daquelas moças era toda tingida, de baixo a cima daquela tintura; e certo era tão bem-feita e tão redonda, e sua vergonha (que ela não tinha) tão graciosa, que a muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera vergonha, por não terem a sua como ela. Nenhum deles era fanado [depilado], mas, todos assim como nós.

E com isto nos tornamos e eles foram-se. À tarde saiu o Capitão-mor em seu batel com todos nós outros e com os outros capitães das naus em seus batéis a folgar pela baía, em frente da praia. Mas ninguém saiu em terra, porque o Capitão o não quis, sem embargo de ninguém nela estar. Somente saiu — ele com todos nós — em um ilhéu grande, que na baía está e que na baixa-mar [maré baixa] fica mui vazio. Porém é por toda a parte cercado de água, de sorte que ninguém lá pode ir, a não ser de barco ou a nado.

Ali folgou ele e todos nós outros, bem uma hora e meia. E alguns marinheiros, que ali andavam com um chinchorro [tipo de rede de pesca], pescaram peixe miúdo, não muito. Então volvemo-nos às naus, já bem de noite. Ao domingo de Pascoela pela manhã, determinou o Capitão de ir ouvir missa e pregação naquele ilhéu. Mandou a todos os capitães que se aprestassem nos batéis e fossem com ele. E assim foi feito.

Mandou naquele ilhéu armar um esperavel [tipo de tenda], e dentro dele um altar mui bem corregido. E ali com todos nós outros fizeram dizer missa, a qual foi dita pelo padre frei Henrique, em voz entoada, e oficiada com aquela mesma voz pelos outros padres e sacerdotes, que todos eram ali. A qual missa, segundo meu parecer, foi ouvida por todos com muito prazer e devoção.

Ali era com o Capitão a bandeira de Cristo, com que saiu de Belém, a qual esteve sempre levantada, da parte do Evangelho. Acabada a missa, desvestiu-se o padre e subiu a uma cadeira alta; e nós todos lançados por essa areia. E pregou uma solene e proveitosa pregação da história do Evangelho, ao fim da qual tratou da nossa vinda e do achamento desta terra, conformando-se com o sinal da Cruz, sob cuja obediência viemos, o que foi muito a propósito e fez muita devoção.

Enquanto estivemos à missa e à pregação, seria na praia outra tanta gente, pouco mais ou menos como a de ontem, com seus arcos e setas, a qual andava folgando. E olhando-nos, sentaram-se. E, depois de acabada a missa, assentados nós à pregação, levantaram-se muitos deles, tangeram corno ou buzina, e começaram a saltar e dançar um pedaço. E alguns deles se metiam em almadias [jangadas] — duas ou três que aí tinham — as quais não são feitas como as que eu já vi; somente são três traves, atadas entre si.

E ali se metiam quatro ou cinco, ou esses que queriam não se afastando quase nada da terra, senão enquanto podiam tomar pé. Acabada a pregação, voltou o Capitão, com todos nós, para os batéis, com nossa bandeira alta. Embarcamos e fomos todos em direção à terra para passarmos ao longo por onde eles estavam, indo, na dianteira, por ordem do Capitão, Bartolomeu Dias em seu esquife, com um pau de uma almadia que lhes o mar levara, para lhe dar; e nós todos, obra de tiro de pedra, atrás dele. Como viram o esquife de Bartolomeu Dias, chegaram-se logo todos à água, metendo-se nela até onde mais podiam.

Acenaram-lhes que pousassem os arcos; e muitos deles os iam logo pôr em terra; e outros não. Andava aí um que falava muito aos outros que se afastassem, mas não que a mim me parecesse que lhe tinham acatamento ou medo. Este que os assim andava afastando trazia seu arco e setas, e andava tinto de tintura vermelha pelos peitos, espáduas, quadris, coxas e pernas até baixo, mas os vazios com a barriga e estômago eram de sua própria cor. E a tintura era assim vermelha que a água a não comia nem desfazia, antes, quando saía da água, parecia mais vermelha.

Saiu um homem do esquife de Bartolomeu Dias e andava entre eles, sem implicarem nada com ele para fazer-lhe mal. Antes lhe davam cabaças de água, e acenavam aos do esquife que saíssem em terra. Com isto se volveu Bartolomeu Dias ao Capitão; e viemo-nos às naus, a comer, tangendo gaitas e trombetas, sem lhes dar mais opressão. E eles tornaram-se a assentar na praia e assim por então ficaram. Neste ilhéu, onde fomos ouvir missa e pregação, a água espraia muito, deixando muita areia e muito cascalho a descoberto.

Enquanto aí estávamos, foram alguns buscar marisco e apenas acharam alguns camarões grossos e curtos, entre os quais vinha um tão grande e tão grosso, como em nenhum tempo vi tamanho. Também acharam cascas de berbigões e amêijoas, mas não toparam com nenhuma peça inteira. E tanto que comemos, vieram logo todos os capitães a esta nau, por ordem do Capitão-mor, com os quais ele se apartou, e eu na companhia.

E perguntou a todos se nos parecia bem mandar a nova do achamento desta terra a Vossa Alteza pelo navio dos mantimentos, para a melhor a mandar descobrir e saber dela mais do que nós agora podíamos saber, por irmos de nossa viagem. E entre muitas falas que no caso se fizeram, foi por todos ou a maior parte dito que seria muito bem. E nisto concluíram. E tanto que a conclusão foi tomada, perguntou mais se lhes parecia bem tomar aqui por força um par destes homens para os mandar a Vossa Alteza, deixando aqui por eles outros dois destes degredados.

Sobre isto acordaram que não era necessário tomar por força homens, porque era geral costume dos que assim levavam por força para alguma parte dizerem que há ali de tudo quanto lhes perguntam; e que melhor e muito melhor informação da terra dariam dois homens destes degredados que aqui deixassem, do que eles dariam se os levassem, por ser gente que ninguém entende.

Nem eles tão cedo aprenderiam a falar para o saberem tão bem dizer que muito melhor estoutros o não digam, quando Vossa Alteza cá mandar. E que, portanto, não cuidassem de aqui tomar ninguém por força nem de fazer escândalo, para de todo mais os amansar e apacificar, senão somente deixar aqui os dois degredados, quando daqui partíssemos.

E assim, por melhor a todos parecer, ficou determinado. Acabado isto, disse o Capitão que fôssemos nos batéis em terra e ver-se-ia bem como era o rio, e também para folgarmos. Fomos todos nos batéis em terra, armados e a bandeira conosco. Eles andavam ali na praia, à boca do rio, para onde nós íamos; e, antes que chegássemos, pelo ensino que dantes tinham, puseram todos os arcos, e acenavam que saíssemos.

Mas, tanto que os batéis puseram as proas em terra, passaram-se logo todos além do rio, o qual não é mais largo que um jogo de mancal. E mal desembarcamos, alguns dos nossos passaram logo o rio, e meteram-se entre eles. Alguns aguardavam; outros afastavam-se. Era, porém, a coisa de maneira que todos andavam misturados. Eles ofereciam desses arcos com suas setas por sombreiros e carapuças de linho ou por qualquer coisa que lhes davam.

Passaram além tantos dos nossos, e andavam assim misturados com eles, que eles se esquivavam e afastavam-se. E deles alguns iam-se para cima onde outros estavam. Então o Capitão fez que dois homens o tomassem ao colo, passou o rio, e fez tornar a todos. A gente que ali estava não seria mais que a costumada. E tanto que o Capitão fez tornar a todos, vieram a ele alguns daqueles, não porque o conhecessem por Senhor, pois me parece que não entendem, nem tomavam disso conhecimento, mas porque a gente nossa passava já para aquém do rio.

Ali falavam e traziam muitos arcos e continhas daquelas já ditas, e resgatavam-nas por qualquer coisa, em tal maneira que os nossos trouxeram dali para as naus muitos arcos e setas e contas [rosários]. Então tornou-se o Capitão aquém do rio, e logo acudiram muitos à beira dele. Ali veríeis galantes, pintados de preto e vermelho, e quartejados, assim nos corpos, como nas pernas, que, certo, pareciam bem assim.

Também andavam, entre eles, quatro ou cinco mulheres moças, nuas como eles, que não pareciam mal. Entre elas andava uma com uma coxa, do joelho até o quadril, e a nádega, toda tinta daquela tintura preta; e o resto, tudo da sua própria cor. Outra trazia ambos os joelhos, com as curvas assim tintas, e também os colos dos pés; e suas vergonhas tão nuas e com tanta inocência descobertas, que nisso não havia nenhuma vergonha.

Também andava aí outra mulher moça com um menino ou menina ao colo, atado com um pano (não sei de quê) aos peitos, de modo que apenas as perninhas lhe apareciam. Mas as pernas da mãe e o resto não traziam pano algum. Depois andou o Capitão para cima ao longo do rio, que corre sempre chegado à praia. Ali esperou um velho, que trazia na mão uma pá de almadia [tora usada para fazer jangada].

Falava, enquanto o Capitão esteve com ele, perante nós todos, sem nunca ninguém o entender, nem ele a nós quantas coisas que lhe demandávamos acerca de ouro, que nós desejávamos saber se na terra havia. Trazia este velho o beiço tão furado, que lhe caberia pelo furo um grande dedo polegar, e metida nele uma pedra verde, ruim, que cerrava por fora esse buraco.

O Capitão lha fez tirar. E ele não sei que diabo falava e ia com ela direito ao Capitão, para lha meter na boca. Estivemos sobre isso rindo um pouco; e então enfadou-se o Capitão e deixou-o. E um dos nossos deu-lhe pela pedra um sombreiro velho, não por ela valer alguma coisa, mas por amostra. Depois houve-a o Capitão, segundo creio, para, com as outras coisas, a mandar a Vossa Alteza.

Andamos por aí vendo a ribeira, a qual é de muita água e muito boa. Ao longo dela há muitas palmas, não muito altas, em que há muito bons palmitos. Colhemos e comemos deles muitos. Então tornou-se o Capitão para baixo para a boca do rio, onde havíamos desembarcado. Além do rio, andavam muitos deles dançando e folgando, uns diante dos outros, sem se tomarem pelas mãos. E faziam-no bem.

Passou-se então além do rio Diogo Dias, almoxarife que foi de Sacavém, que é homem gracioso e de prazer; e levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se com eles a dançar, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam, e andavam com ele muito bem ao som da gaita. Depois de dançarem, fez-lhes ali, andando no chão, muitas voltas ligeiras, e salto real, de que eles se espantavam e riam e folgavam muito.

E conquanto com aquilo muito os segurou e afagou, tomavam logo uma esquiveza como de animais monteses, e foram-se para cima. E então o Capitão passou o rio com todos nós outros, e fomos pela praia de longo, indo os batéis, assim, rente da terra. Fomos até uma lagoa grande de água doce, que está junto com a praia, porque toda aquela ribeira do mar é apaulada por cima e sai a água por muitos lugares. E depois de passarmos o rio, foram uns sete ou oito deles andar entre os marinheiros que se recolhiam aos batéis.

E levaram dali um tubarão, que Bartolomeu Dias matou, lhes levou e lançou na praia. Bastará dizer-vos que até aqui, como quer que eles um pouco se amansassem, logo duma mão para outra se esquivavam, como pardais, do cevadoiro. Homem não lhes ousa falar de rijo para não se esquivarem mais; e tudo se passa como eles querem, para os bem amansar. O Capitão ao velho, com quem falou, deu uma carapuça vermelha.

E com toda a fala que entre ambos se passou e com a carapuça que lhe deu, tanto que se apartou e começou de passar o rio, foi-se logo recatando e não quis mais tornar de lá para aquém. Os outros dois, que o Capitão teve nas naus, a que deu o que já disse, nunca mais aqui apareceram – do que tiro ser gente bestial, de pouco saber e por isso tão esquiva. Porém e com tudo isso andam muito bem curados e muito limpos.

E naquilo me parece ainda mais que são como aves ou alimárias monteses, às quais faz o ar melhor pena e melhor cabelo que às mansas, porque os corpos seus são tão limpos, tão gordos e tão formosos, que não pode mais ser. Isto me faz presumir que não têm casas nem moradas a que se acolham, e o ar, a que se criam, os faz tais. Nem nós ainda até agora vimos nenhuma casa ou maneira delas. Mandou o Capitão aquele degredado Afonso Ribeiro, que se fosse outra vez com eles. Ele foi e andou lá um bom pedaço, mas à tarde tornou-se, que o fizeram eles vir e não o quiseram lá consentir.

E deram-lhe arcos e setas; e não lhe tomaram nenhuma coisa do seu. Antes – disse ele – que um lhe tomara umas continhas amarelas, que levava, e fugia com elas, e ele se queixou e os outros foram logo após, e lhes tomaram e tornaram-lhes a dar; e então mandaram-no vir. Disse que não vira lá entre eles senão umas choupaninhas [ocas] de rama verde e de fetos muito grandes, como de Entre Douro e Minho. E assim nos tornamos às naus, já quase noite, a dormir.

À segunda-feira, depois de comer, saímos todos em terra a tomar água. Ali vieram então muitos, mas não tantos como as outras vezes. Já muito poucos traziam arcos. Estiveram assim um pouco afastados de nós; e depois pouco a pouco misturaram-se conosco. Abraçavam-nos e folgavam. E alguns deles se esquivavam logo. Ali davam alguns arcos por folhas de papel e por alguma carapucinha velha ou por qualquer coisa.

Em tal maneira isto se passou, que bem vinte ou trinta pessoas das nossas se foram com eles, onde outros muitos estavam com moças e mulheres. E trouxeram de lá muitos arcos e barretes de penas de aves, deles verdes e deles amarelos, dos quais, creio, o Capitão há de mandar amostra a Vossa Alteza. E, segundo diziam esses que lá foram, folgavam com eles. Neste dia os vimos mais de perto e mais à nossa vontade, por andarmos quase todos misturados.

Ali, alguns andavam daquelas tinturas quartejados; outros de metades; outros de tanta feição, como em panos de armar, e todos com os beiços furados, e muitos com os ossos neles, e outros sem ossos. Alguns traziam uns ouriços verdes, de árvores, que, na cor, queriam parecer de castanheiros, embora mais pequenos. E eram cheios duns grãos vermelhos pequenos, que, esmagando-os entre os dedos, faziam tintura muito vermelha, de que eles andavam tintos. E quanto mais se molhavam, tanto mais vermelhos ficavam.

Todos andam rapados até cima das orelhas; e assim as sobrancelhas e pestanas. Trazem todos as testas, de fonte a fonte, tintas da tintura preta, que parece uma fita preta, da largura de dois dedos. E o Capitão mandou aquele degredado Afonso Ribeiro e a outros dois degredados, que fossem lá andar entre eles; e assim a Diogo Dias, por ser homem ledo, com que eles folgavam. Aos degredados mandou que ficassem lá esta noite.

Foram-se lá todos, e andaram entre eles. E, segundo eles diziam, foram bem uma légua e meia a uma povoação, em que haveria nove ou dez casas, as quais eram tão compridas, cada uma, como esta nau capitânia. Eram de madeira, e das ilhargas de tábuas, e cobertas de palha, de razoada altura; todas duma só peça, sem nenhum repartimento, tinham dentro muitos esteios; e, de esteio a esteio, uma rede atada pelos cabos, alta, em que dormiam. Debaixo, para se aquentarem, faziam seus fogos. E tinha cada casa duas portas pequenas, uma num cabo, e outra no outro. Diziam que em cada casa se recolhiam trinta ou quarenta pessoas, e que assim os achavam; e que lhes davam de comer daquela vianda, que eles tinham, a saber, muito inhame e outras sementes, que na terra há e eles comem.

Mas, quando se fez tarde fizeram-nos logo tornar a todos e não quiseram que lá ficasse nenhum. Ainda, segundo diziam, queriam vir com eles. Resgataram lá por cascavéis e por outras coisinhas de pouco valor, que levavam, papagaios vermelhos, muito grandes e formosos, e dois verdes pequeninos e carapuças de penas verdes, e um pano de penas de muitas cores, maneira de tecido assaz formoso, segundo Vossa Alteza todas estas coisas verá, porque o Capitão vo-las há de mandar, segundo ele disse. E com isto vieram; e nós tornamo-nos às naus.

À terça-feira, depois de comer, fomos em terra dar guarda de lenha e lavar roupa. Estavam na praia, quando chegamos, obra de sessenta ou setenta sem arcos e sem nada. Tanto que chegamos, vieram logo para nós, sem se esquivarem. Depois acudiram muitos, que seriam bem duzentos, todos sem arcos; e misturaram-se todos tanto conosco que alguns nos ajudavam a acarretar lenha e a meter nos batéis.

E lutavam com os nossos e tomavam muito prazer. Enquanto cortávamos a lenha, faziam dois carpinteiros uma grande Cruz, dum pau, que ontem para isso se cortou. Muitos deles vinham ali estar com os carpinteiros. E creio que o faziam mais por verem a ferramenta de ferro com que a faziam, do que por verem a Cruz, porque eles não têm coisa que de ferro seja, e cortam sua madeira e paus com pedras feitas como cunhas, metidas em um pau entre duas talas, mui bem atadas e por tal maneira que andam fortes, segundo diziam os homens, que ontem a suas casas foram, porque lhas viram lá.

Era já a conversação deles conosco tanta, que quase nos estorvavam no que havíamos de fazer. O Capitão mandou a dois degredados e a Diogo Dias que fossem lá à aldeia (e a outras, se houvessem novas delas) e que, em toda a maneira, não viessem dormir às naus, ainda que eles os mandassem. E assim se foram. Enquanto andávamos nessa mata a cortar lenha, atravessavam alguns papagaios por essas árvores, deles verdes e outros pardos, grandes e pequenos, de maneira que me parece que haverá muitos nesta terra. Porém eu não veria mais que até nove ou dez.

Outras aves então não vimos, somente algumas pombas-seixas, e pareceram-me bastante maiores que as de Portugal. Alguns diziam que viram rolas; eu não as vi. Mas, segundo os arvoredos são mui muitos e grandes, e de infindas maneiras, não duvido que por esse sertão haja muitas aves! Cerca da noite nos volvemos para as naus com nossa lenha. Eu creio, Senhor, que ainda não dei conta aqui a Vossa Alteza da feição de seus arcos e setas.

Os arcos são pretos e compridos, as setas também compridas e os ferros delas de canas aparadas, segundo Vossa Alteza verá por alguns que – eu creio — o Capitão a Ele há de enviar.

À quarta-feira não fomos em terra, porque o Capitão andou todo o dia no navio dos mantimentos a despejá-lo e fazer levar às naus isso que cada uma podia levar. Eles acudiram à praia; muitos, segundo das naus vimos. No dizer de Sancho de Tovar, que lá foi, seriam obra de trezentos. Diogo Dias e Afonso Ribeiro, o degredado, aos quais o Capitão ontem mandou que em toda maneira lá dormissem, volveram-se, já de noite, por eles não quererem que lá ficassem.

Trouxeram papagaios verdes e outras aves pretas, quase como pegas, a não ser que tinham o bico branco e os rabos curtos. Quando Sancho de Tovar se recolheu à nau, queriam vir com ele alguns, mas ele não quis senão dois mancebos dispostos e homens de prol. Mandou-os essa noite mui bem pensar e curar.

Comeram toda a vianda que lhes deram; e mandou fazer-lhes cama de lençóis, segundo ele disse. Dormiram e folgaram aquela noite. E assim não houve mais este dia que para escrever seja. À quinta-feira, derradeiro de abril, comemos logo, quase pela manhã, e fomos em terra por mais lenha e água. E, em querendo o Capitão sair desta nau, chegou Sancho de Tovar com seus dois hóspedes.

E por ele ainda não ter comido, puseram-lhe toalhas. Trouxeram-lhe vianda e comeu. Aos hóspedes, sentaram cada um em sua cadeira. E de tudo o que lhes deram comeram mui bem, especialmente lacão [pernil] cozido, frio, e arroz. Não lhes deram vinho, por Sancho de Tovar dizer que o não bebiam bem. Acabado o comer, metemo-nos todos no batel e eles conosco. Deu um grumete [ajudante de marinheiro] a um deles uma armadura grande de porco montês, bem revolta.

Tanto que a tomou, meteu-a logo no beiço, e, porque se lhe não queria segurar, deram-lhe uma pequena de cera vermelha. E ele ajeitou-lhe seu adereço detrás para ficar segura, e meteu-a no beiço, assim revolta para cima. E vinha tão contente com ela, como se tivesse uma grande joia. E tanto que saímos em terra, foi-se logo com ela, e não apareceu mais aí. Andariam na praia, quando saímos, oito ou dez deles; e de aí a pouco começaram a vir mais.

E parece-me que viriam, este dia, à praia quatrocentos ou quatrocentos e cinquenta. Traziam alguns deles arcos e setas, que todos trocaram por carapuças ou por qualquer coisa que lhes davam. Comiam conosco do que lhes dávamos. Bebiam alguns deles vinho; outros o não podiam beber. Mas parece-me, que se lho avezarem, o beberão de boa vontade. Andavam todos tão dispostos, tão bem-feitos e galantes com suas tinturas, que pareciam bem.

Acarretavam dessa lenha, quanta podiam, com mui boa vontade, e levavam-na aos batéis. Andavam já mais mansos e seguros entre nós, do que nós andávamos entre eles. Foi o Capitão com alguns de nós um pedaço por este arvoredo até uma ribeira grande e de muita água que, a nosso parecer, era esta mesma, que vem ter à praia, e em que nós tomamos água. Ali ficamos um pedaço, bebendo e folgando [divertindo-se], ao longo dela, entre esse arvoredo, que é tanto, tamanho, tão basto e de tantas plumagens, que homens as não podem contar. Há entre ele muitas palmas, de que colhemos muitos e bons palmitos.

Quando saímos do batel, disse o Capitão que seria bom irmos direitos à Cruz, que estava encostada a uma árvore, junto com o rio, para se erguer amanhã, que é sexta-feira, e que nos puséssemos todos de joelhos e a beijássemos para eles verem o acatamento que lhe tínhamos. E assim fizemos. A esses dez ou doze que aí estavam, acenaram-lhe que fizessem assim, e foram logo todos beijá-la. Parece-me gente de tal inocência que, se homem os entendesse e eles a nós, seriam logo cristãos, porque eles, segundo parece, não têm, nem entendem em nenhuma crença.

E, portanto, se os degredados, que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa intenção de Vossa Alteza, se hão de fazer cristãos e crer em nossa santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque, certo, esta gente é boa e de boa simplicidade. E imprimir-se-á ligeiramente neles qualquer cunho, que lhes quiserem dar.

E, pois Nosso Senhor, que lhes deu bons corpos e bons rostos, como a bons homens, por aqui nos trouxe, creio que não foi sem causa. Portanto Vossa Alteza, que tanto deseja acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da sua salvação. E prazerá a Deus que com pouco trabalho seja assim. Eles não lavram, nem criam. Não há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem qualquer outra alimária, que costumada seja ao viver dos homens.

Nem comem senão desse inhame, que aqui há muito, e dessa semente e frutos, que a terra e as árvores de si lançam. E com isto andam tais e tão rijos e tão nédios [lustroso], que o não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes comemos. Neste dia, enquanto ali andaram, dançaram e bailaram sempre com os nossos, ao som dum tamboril dos nossos, em maneira que são muito mais nossos amigos que nós seus. Se lhes homem acenava se queriam vir às naus, faziam-se logo prestes para isso, em tal maneira que, se a gente todos quisera convidar, todos vieram.

Porém não trouxemos esta noite às naus, senão quatro ou cinco, a saber: o Capitão-mor, dois; e Simão de Miranda, um, que trazia já por pajem; e Aires Gomes, outro, também por pajem. Um dos que o Capitão trouxe era um dos hóspedes, que lhe trouxeram da primeira vez, quando aqui chegamos, o qual veio hoje aqui, vestido na sua camisa, e com ele um seu irmão; e foram esta noite mui bem agasalhados, assim de vianda, como de cama, de colchões e lençóis, para os mais amansar.

E hoje, que é sexta-feira, primeiro dia de maio, pela manhã, saímos em terra, com nossa bandeira; e fomos desembarcar acima do rio contra o sul, onde nos pareceu que seria melhor chantar a Cruz, para melhor ser vista. Ali assinalou o Capitão o lugar, onde fizessem a cova para a chantar. Enquanto a ficaram fazendo, ele com todos nós outros fomos pela Cruz abaixo do rio, onde ela estava. Dali a trouxemos com esses religiosos e sacerdotes diante cantando, em maneira de procissão.

Eram já aí alguns deles, obra de setenta ou oitenta; e, quando nos viram assim vir, alguns se foram meter debaixo dela, para nos ajudar. Passamos o rio, ao longo da praia e fomo-la pôr onde havia de ficar, que será do rio obra de dois tiros de besta. Andando-se ali nisto, vieram bem cento e cinquenta ou mais. Chantada a Cruz, com as armas e a divisa de Vossa Alteza, que primeiramente lhe pregaram, armaram altar ao pé dela. Ali disse missa o padre frei Henrique, a qual foi cantada e oficiada por esses já ditos.

Ali estiveram conosco a ela obra de cinquenta ou sessenta deles, assentados todos de joelhos, assim como nós. E quando veio ao Evangelho, que nos erguemos todos em pé, com as mãos levantadas, eles se levantaram conosco e alçaram as mãos, ficando assim, até ser acabado; e então tornaram-se a assentar como nós. E quando levantaram a Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se puseram assim todos, como nós estávamos com as mãos levantadas, e em tal maneira sossegados, que, certifico a Vossa Alteza, nos fez muita devoção.

Estiveram assim conosco até acabada a comunhão, depois da qual comungaram esses religiosos e sacerdotes e o Capitão com alguns de nós outros. Alguns deles, por o sol ser grande, quando estávamos comungando, levantaram-se, e outros estiveram e ficaram. Um deles, homem de cinquenta ou cinquenta e cinco anos, continuou ali com aqueles que ficaram. Esse, estando nós assim, ajuntava estes, que ali ficaram, e ainda chamava outros. E andando assim entre eles falando, lhes acenou com o dedo para o altar e depois apontou o dedo para o Céu, como se lhes dissesse alguma coisa de bem; e nós assim o tomamos.

Acabada a missa, tirou o padre a vestimenta de cima e ficou em alva; e assim se subiu junto com altar, em uma cadeira. Ali nos pregou do Evangelho e dos Apóstolos, cujo dia hoje é, tratando, ao fim da pregação, deste vosso prosseguimento tão santo e virtuoso, o que nos aumentou a devoção. Esses, que à pregação sempre estiveram, quedaram-se como nós olhando para ele. E aquele, que digo, chamava alguns que viessem para ali.

Alguns vinham e outros iam-se. E, acabada a pregação, como Nicolau Coelho trouxesse muitas cruzes de estanho com crucifixos, que lhe ficaram ainda da outra vinda, houveram por bem que se lançasse a cada um a sua ao pescoço. Pelo que o padre frei Henrique se assentou ao pé da Cruz e ali, a um por um, lançava a sua atada em um fio ao pescoço, fazendo-lhe primeiro beijar e alevantar as mãos. Vinham a isso muitos; e lançaram-nas todas, que seriam obra de quarenta ou cinquenta.

Isto acabado – era já bem uma hora depois do meio-dia – viemos às naus a comer, trazendo o Capitão consigo aquele mesmo que fez aos outros aquela mostrança para o altar e para o Céu e um seu irmão com ele. Fez-lhe muita honra e deu-lhe uma camisa mourisca e ao outro uma camisa destoutras.

E, segundo que a mim e a todos pareceu, esta gente não lhes falece outra coisa para ser toda cristã, senão entender-nos, porque assim tomavam aquilo que nos viam fazer, como nós mesmos, por onde nos pareceu a todos que nenhuma idolatria, nem adoração têm.

E bem creio que, se Vossa Alteza aqui mandar quem entre eles mais devagar ande, que todos serão tornados ao desejo de Vossa Alteza. E por isso, se alguém vier, não deixe logo de vir clérigo para os batizar, porque já então terão mais conhecimento de nossa fé, pelos dois degredados, que aqui entre eles ficam, os quais, ambos, hoje também comungaram. Entre todos estes que hoje vieram, não veio mais que uma mulher moça, a qual esteve sempre à missa e a quem deram um pano com que se cobrisse. Puseram-lho a redor de si.

Porém, ao assentar, não fazia grande memória de o estender bem, para se cobrir. Assim, Senhor, a inocência desta gente é tal, que a de Adão não seria maior, quanto a vergonha. Ora veja Vossa Alteza se quem em tal inocência vive se converterá ou não, ensinando-lhes o que pertence à sua salvação. Acabado isto, fomos assim perante eles beijar a Cruz, despedimo-nos e viemos comer.

Creio, Senhor, que com estes dois degredados ficam mais dois grumetes, que esta noite se saíram desta nau no esquife, fugidos para terra. Não vieram mais. E cremos que ficarão aqui, porque de manhã, prazendo a Deus, fazemos daqui nossa partida.

Esta terra, Senhor, me parece que da ponta que mais contra o sul vimos até à outra ponta que contra o norte vem, de que nós deste porto houvemos vista, será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas por costa.

Tem, ao longo do mar, nalgumas partes, grandes barreiras, delas vermelhas, delas brancas; e a terra por cima toda chã e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta, é toda praia parma, muito chã e muito formosa.

Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque, a estender olhos, não podíamos ver senão terra com arvoredos, que nos parecia muito longa. Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem lho vimos.

Porém a terra em si é de muito bons ares, assim frios e temperados como os de Entre Douro e Minho, porque neste tempo de agora os achávamos como os de lá. Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem.

Porém o melhor fruto, que nela se pode fazer, me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar. E que aí não houvesse mais que ter aqui esta pousada para esta navegação de Calecute, bastaria. Quando mais disposição para se nela cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a saber, acrescentamento da nossa santa fé.

E nesta maneira, Senhor, dou aqui a Vossa Alteza do que nesta vossa terra vi. E, se algum pouco me alonguei, Ela me perdoe, que o desejo que tinha, de Vos tudo dizer, mo fez assim pôr pelo miúdo.

E, pois que, Senhor, é certo que, assim neste cargo que levo, como em outra qualquer coisa que de vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro – o que d'Ela receberei em muita mercê.

Beijo as mãos de Vossa Alteza.

Deste Porto Seguro, da Vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500.

Pero Vaz de Caminha