Aproveitando o lançamento do filme Batman vs Superman:
A Origem da Justiça (2016), o prelúdio para o aguardado filme da Liga da Justiça (2017), venho postar esse breve artigo agora sobre o Batman, pois anteriormente postei acerca do Superman. Enquanto no Mito do Superman, Umberto Eco analisou de forma bem mais profunda a semiótica acerca das histórias do Homem de Aço e sua relação com a cultura de massa e a sociedade, neste artigo A jornada do herói na trajetória de Batman (2007), escrito pela Ma. Luísa de Oliveira, o foco foi tratar do desenvolvimento do super-herói chamado Batman.
Por mais que a autora também analise algumas questões de semiótica, ela o fez de forma mais sintética, além de procurar compreender o desenvolvimento do personagem Bruce Wayne a se tornar o Cavaleiro das Trevas, apontando algumas particularidades ao longo de três épocas distintas, o que revela a "jornada do herói", pela qual formou a nossa ideia atual sobre o Batman. E cujas algumas características são perceptíveis tanto no filme, quanto em outras produções contemporâneas do super-herói.
As imagens aqui contidas, foram escolhidas por mim, para ilustrar o trabalho.
Capa da revista Detective Comics, n. 27, de maio de 1939. Desenho de Bob Kane. Nessa edição, ocorreu a primeira aparição do Batman. |
INTRODUÇÃO
Diariamente,
os meios de comunicação (televisão, jornais, revistas em quadrinhos) produzem e
veiculam histórias que comovem grande parcela da população. Essas produções, em
sintonia com o público, estão atreladas às demandas do mercado para garantir
audiência e vendas. Os quadrinhos constituem uma importante fonte de criação e
divulgação de personagens, que posteriormente são lançados em outros formatos
como cinema e televisão.
Na
década de 30, período entre as duas Grandes Guerras Mundiais, os super-heróis
surgiram nos Estados Unidos. Houve uma profusão de personagens com
características extraordinárias, idealizados para salvar a humanidade da ação
das forças do mal.
Alguns
personagens como Batman e Super-Homem continuam, ainda hoje, no imaginário do
grande público. Suas trajetórias foram contadas e recontadas ao longo de mais
de 60 anos.
Pode-se
considerar que os motivos abordados pelos meios de comunicação expressam
necessidades coletivas em destaque no momento histórico em que elas se apresentam
e inserem. Para Vergueiro (1998),
“Enquanto
meio de comunicação, elas [as histórias em quadrinhos] seguem a tendência geral
da indústria cultural, de pasteurizar conteúdos, esconder individualidades
locais e regionais, buscando atingir o máximo de pessoas possível. ... Em tese,
pelo menos, quanto mais universais forem as problemáticas tratadas nesses
meios, maiores as chances de seus produtos atingirem um amplo espectro da
população”.
Nesse
sentido, os personagens ganham evidência ao traduzirem temas universais que
ressoam nos leitores, atendendo às necessidades de expressão dos conflitos
constelados no momento histórico a que se referem.
Os
analistas junguianos tradicionalmente se dedicaram ao estudo dos contos de
fadas, por considerá-los uma das formas mais puras de expressão do inconsciente
coletivo. Nessas histórias, aspectos individuais e culturais foram minimizados,
possibilitando uma expressão mais clara das estruturas e processos psíquicos. A
idéia central é que as histórias contadas e recontadas pela humanidade ao longo
do tempo perdem características regionais, até a representação tornar-se cada
vez mais coletiva, sobressaindo o núcleo de significado. As necessidades
humanas mais fundamentais e os mecanismos utilizados para lidar com elas são expressos
de maneira simbólica, capaz de tocar a sensibilidade humana.
Os
meios de comunicação apresentam imagens arquetípicas manifestas na atualidade e
impregnadas por aspectos culturais. Para Beebe (2001), a compreensão dessas
imagens é importante na medida em que elas se referem à cultura na qual estão
imersas as pessoas que recorrem à psicoterapia.
Por
entender que a análise simbólica de produtos dos meios de comunicação pode
lançar luz sobre dinâmicas consteladas na contemporaneidade, este artigo realiza
a análise simbólica de Batman, uma imagem contemporânea do herói.
No
âmbito da Psicologia Analítica, a aproximação dessa imagem remete ao arquétipo
do herói & – motivador do processo de desenvolvimento da consciência.
“O
herói é o precursor arquetípico da humanidade em geral. O seu destino é o
modelo que deve ser seguido e que, na humanidade, sempre o foi &– na
verdade, com atrasos e intervalos, mas o suficiente para que os estágios do
mito heróico façam parte dos constituintes do desenvolvimento da personalidade
de cada indivíduo (Neumann, 1990, p. 107).
Além
dos conceitos da Psicologia Analítica, esta análise da trajetória de Batman
recorre às idéias de Campbell (2002), segundo as quais o herói deve realizar
duas grandes tarefas: na primeira, ele se retira do mundo cotidiano para
iniciar uma jornada pelo desconhecido, saindo do mundo externo para o mundo
interno.
“A
primeira tarefa do herói consiste em retirar-se da cena mundana dos efeitos
secundários e iniciar uma jornada pelas regiões causais da psique, onde residem
efetivamente as dificuldades, para torná-las claras, erradicá-las em favor de
si mesmo (isto é, combater os demônios infantis de sua cultura local) e
penetrar no domínio da experiência e da assimilação direta e sem distorções,
daquilo que C. G. Jung denominou “imagens arquetípicas” (Campbell, 2002, p.
27).
Cena de Batman Begins (2005). Nessa reinterpretação da origem do Batman, Bruce Wayne (Christian Bale), viaja a Ásia, e acaba chegando a Nanda Parbat, onde treina com a Liga das Sombras. |
Realizada
a primeira tarefa, o herói “deve retornar ao nosso meio, transfigurado, e
ensinar a lição de vida renovada que aprendeu” (Campbell, 2002, p. 28).
Assim,
as grandes etapas do ciclo heróico foram identificadas, discriminando os temas
em destaque em histórias em quadrinhos, séries e filmes em diferentes momentos
da evolução do personagem. Para a consecução deste estudo, foram desenvolvidas
as seguintes etapas:
- revisão
bibliográfica, dos seriados e longas-metragens para discernir, entre o
material disponível, as histórias relevantes para a caracterização de
Batman tal como ele se apresenta atualmente;
- estudo
e análise dos longas-metragens e das histórias em quadrinhos relevantes,
com foco nas características do herói e nas tarefas realizadas no ciclo
heróico;
- identificação e análise das transformações ocorridas.
OS PERSONAGENS SERIADOS E AS HISTÓRIAS EM
QUADRINHOS: DE YELLOW KID A BATMAN
Os
quadrinhos com personagens seriados começaram a se desenvolver nos Estados
Unidos. Em 1895, o primeiro personagem seriado & – Yellow Kid & –, um
menino que usava um camisolão amarelo com frases cômicas e/ou sarcásticas,
surgiu na imprensa norte-americana. Este personagem fez muito sucesso e
possibilitou a percepção de que os leitores preferiam quando o texto era
acompanhado por imagens. A camisola deu lugar aos baloons e
Yellow Kid foi a base para o surgimento das histórias em quadrinhos com
personagens seriados e periódicos tal como se apresentam hoje (Moya, 1997).
A
partir deste precursor, surgiram vários outros personagens. Em 1911, foi a vez
de Krazy Kat, seguido do Gato Félix e dos personagens de Walt Disney. O ano de
1929 foi considerado o início da Era de Ouro dos quadrinhos, com o aparecimento
de três personagens que fizeram imenso sucesso: Tarzan, Buck Rogers e Dick
Tracy. A década de 30 trouxe novos personagens envolvidos com os mesmos temas:
a vida nas selvas, o espaço e o mundo do crime. São eles: Jungle Jim, Flash
Gordon e X-9.
As primeiras tirinhas de Flash Gordon. Criado por Alex Raymond, e publicado no King Features Syndicate, em janeiro de 1934. |
Até
esse momento, as histórias desses personagens eram publicadas em jornais, em
tiras diárias e páginas dominicais. Em 1934, surgiram os primeiros gibis com a
republicação das tiras em histórias completas. Neste mesmo ano, surgiu o
Mandrake. Em 1936, foi a vez do Fantasma.
Reimpressão da primeira aparição de O Fantasma. Sunday Strip, maio de 1939. Criado por Lee Falk, em janeiro de 1936. Originalmente as tirinhas do personagem foram lançadas em preto e branco. |
O
grande evento das histórias em quadrinhos viria a ocorrer em 1938, com a
criação do Super-Homem. Lançado experimentalmente pela DC Comics,
na Action Comics Magazine, este personagem conquistou a imaginação
das crianças norte-americanas e rapidamente a revista dobrou a tiragem. Estava
aberta uma nova frente nos quadrinhos: a era dos super-heróis.
Em
maio de 1939, foi publicada, na Detective Comics, a primeira
história do Batman, criada por Bob Kane.
AS ORIGENS DE BATMAN
As
primeiras histórias de Batman foram desenhadas por Bob Kane e escritas por Bill
Finger, mas esse empreendimento se mostrou grande demais para duas pessoas.
Uma série de outros autores assinou histórias, sendo incontáveis os ghost
writers1 envolvidos no
processo de criação. No entanto, nenhum desses autores promoveu alterações
significativas no núcleo da história, ou seja, a forma como Bruce Wayne se
transformou em Batman.
A
história básica de Batman pode ser assim resumida: aos 10 anos, Bruce foi ao
cinema em companhia de seus pais. Quando procuravam um táxi para voltar para
casa, foram abordados por ladrões. Bruce presenciou, nessa tentativa de
assalto, o brutal assassinato de seu pai e sua mãe. Profundamente chocado, ele
prometeu nunca esquecer esse evento e dedicar sua vida a fazer os criminosos
pagarem por seus crimes.
Bruce afastou-se de sua vida rotineira para se preparar
física e mentalmente para sua tarefa. Adulto, ele sentia falta de um disfarce e
pensou nas suas metas: “criminosos são supersticiosos e covardes, então o
meu disfarce deve ser capaz de levar o terror a seus corações. Eu devo me
tornar uma criatura da noite, negra, terrível... Um... Um...” (Daniels,
1999, p. 35). Nesse momento, um enorme morcego invade a sala na qual Bruce se
encontra, oferecendo a máscara que ele necessitava.
APRESENTAÇÃO DOS PERSONAGENS
Os Arqui-inimigos
Batman
conta com uma extensa lista de arqui-inimigos. Os primeiros foram o Coringa e a Mulher-Gato, em Batman nº 1 (1940). Esses dois
personagens têm em comum a ausência de história pregressa. Simplesmente, quando
o Batman apareceu, eles estavam lá.
Os
demais inimigos (Pingüim, Duas Caras, Espantalho, Cabeça de Ovo,
Charada, etc.) contam com uma
identidade original e algum acontecimento que os fez mudar, transformando-os em
grandes vilões.
Coringa
e Mulher-Gato, objetos desta análise, eram os únicos que ninguém sabia
exatamente quem eram e que acontecimentos os originaram. Ao longo dos anos,
foram feitas tentativas de construção de uma história prévia. Algumas geraram
resistência e insatisfação junto ao público, outras tiveram maior aceitação.
Coringa
Coringa
é o primeiro e mais importante membro da galeria de arqui-inimigos de Batman.
Ele está permanentemente arquitetando crimes e assassinatos. O crime perfeito,
para ele, é aquele que pode promover gargalhadas. Seu principal alvo é o
próprio Batman. Enquanto Batman é sério, circunspecto e austero, Coringa é
expansivo, alegre e barulhento.
Primeira aparição do Coringa, em Batman n.1, de 25 de abril de 1940. O visual do personagem foi inspirado no visual do ator Conrad Veit, para o filme The Man Who Laughs (1928). |
O
passado de Coringa é incerto. Alguns acham que ele sofreu um acidente numa
indústria química que resultou em sua pele branca, seus cabelos verdes e seu
sorriso permanente. Outros acreditam que ele foi um comediante frustrado e
fracassado. Ele teria uma esposa, que morreu grávida e na miséria, pois Coringa
era incapaz de se estabelecer profissionalmente.
Essas
versões não exerceram um impacto definitivo. No contexto das histórias em
quadrinhos, apenas o próprio Coringa pode saber o que aconteceu. Sabe-se,
certamente, que ele é capaz de praticar todo tipo de crime, que matou Jason Todd (o segundo Robin) e Sarah Gordon, esposa do Comissário Gordon e que disparou o tiro
que deixou Bárbara Gordon (a segunda
Batgirl) paraplégica.
Mulher-Gato
A
Mulher-Gato participa das histórias do Batman desde a primeira revista, lançada
em 1940, na qual ela era simplesmente Cat.
A partir da revista nº 2, ela passa a ser conhecida como Mulher-Gato (Catwoman).
Tal
como o Coringa, houve algumas tentativas de retratar uma história pregressa e
uma identidade original para a Mulher-Gato. Mas, contrariamente ao que
aconteceu com o Coringa, uma das versões (a de 1987) obteve a adesão dos fãs.
Tirinhas com a primeira aparição de Selina Kyle, a Mulher-Gato. Batman n.1, abril de 1940. |
A
Mulher-Gato é Selina Kyle, filha
mais velha de uma família desestruturada. Após o suicídio de sua mãe, Selina e
uma irmã viveram em instituições para menores abandonados, tendo sofrido toda
sorte de maus-tratos. Aos 13 anos, ela fugiu e foi morar nas ruas, onde
aprendeu a ser uma exímia ladra. Com o aparecimento de Batman e inspirada por
ele, Selina, até então conhecida como Cat, passa a usar traje negro
e se autodenominar Mulher-Gato.
Sua
eficiência em roubos possibilitou que ela acumulasse muito dinheiro e começasse
a freqüentar a alta sociedade de Gotham
City. Foi nessa época que Selina namorou Bruce Wayne. A Mulher-Gato é a grande paixão de Batman.
Cena do arco Batman: Silêncio (2003), criado por Jeph Loeb. Em vários quadrinhos, animações e em alguns filmes e jogos, Batman e Mulher-Gato mantém um romance. |
Os Auxiliares
Alfred
Mordomo
da família Wayne, Alfred ficou encarregado de cuidar de Bruce desde o
assassinato de seus pais. Ele está entre os mais confiáveis e constantes
aliados de Bruce e de Batman. Além dos cuidados cotidianos, Alfred possui
profundos conhecimentos de Medicina, auxilia nas investigações e é excelente
motorista. Ele zela pelos segredos de Bruce/Batman, cuida de suas feridas e
lembra-lhe suas limitações (Miller e Mazzucchelli, 2002a). Apareceu pela
primeira vez na revista Batman nº 16, em 1943.
Alfred Pennyworth, desenhado por Alex Ross, para a revista Batman 686, de março de 2009. |
Comissário Gordon
James Gordon sempre foi um policial correto, combatendo o crime
e a corrupção do departamento de polícia. A retidão de seu caráter chamou a
atenção de Batman, que desenvolveu com ele uma forte aliança, favorecendo sua
ascensão ao cargo de comissário. As principais ocorrências policiais de Gotham
City são comunicadas a Batman pelo Comissário Gordon.
Comissário James "Jim" Gordon no desenho Batman: The Animated Series (1992-1995). |
Batgirl
A
Batgirl mais conhecida é Bárbara Gordon,
filha adotiva do Comissário Gordon. Ela foi inspirada por Batman, mas contava
com recursos próprios e se fazia presente em todos os confrontos importantes.
Sua carreira como Batgirl foi interrompida abruptamente por um tiro do Coringa,
que a deixou paraplégica. Em cadeira de rodas, Bárbara tornou-se especialista
em computação, organizando e acessando uma imensa base de dados. A partir de
então, ela se tornou o Oráculo, dedicando-se à investigação e orientação de
novos combatentes do crime (Moore, 2002).
Robin
Dick Grayson e toda sua família eram trapezistas. Depois da
morte de seus pais (assassinados por Duas Caras), ele se tornou pupilo de
Batman. Jovem, hábil, atlético e inteligente, o menino-prodígio participa das
aventuras de Batman desde 1940. Segundo Daniels (1999), Bob Kane decidiu criar Robin porque entendia que Batman
estava encerrado em uma solidão insuportável. A capacidade lógica de Robin fez
dele um excelente parceiro nas investigações da dupla dinâmica.
A AVENTURA DO HERÓI
A
presente análise da trajetória de Batman foi organizada considerando três
períodos: de 1939 a 1960, de 1970 a 1980 e de 1990 a 2000. A participação de
muitos autores no processo de criação de enredos para Batman promoveu
diversificações nos rumos da história, por meio de mudanças na apresentação,
caracterização e rede de relações dos personagens. Mesmo que a origem de Batman
não tenha sido significativamente alterada, foram e são realizadas revisões
regulares que harmonizam a diversidade de histórias produzidas. No caso de
Batman, a primeira grande revisão ocorreu na década de 1960. A definição dos
três períodos analisados teve como critérios a ocorrência de grandes revisões e
o surgimento de mudanças expressivas quanto ao sentido da jornada heróica.
1939-1960
O
primeiro passo da jornada do herói é o chamado da aventura. Algum acontecimento
tira o herói do cotidianamente conhecido. Segundo Campbell (2002, p. 66), “o
chamado da aventura & – significa que o destino convocou o herói e
transferiu-lhe o centro da gravidade do seio da sociedade para uma região
desconhecida”.
A
morte violenta dos pais de Bruce Wayne, quando ele contava 10 anos de idade,
chamou-o para a jornada. Seu mundo foi transformado radicalmente. As
referências familiares desapareceram e o pequeno Bruce foi lançado em uma
realidade brutal. Nesse momento, ele prometeu não esquecer o que lhe
acontecera, dedicando sua vida à luta contra o crime, num esforço para que sua
história não se repetisse com outros.
Bruce
Wayne atende imediatamente ao chamado. Abandona sua vida cotidiana para
dedicar-se a sua missão. Ninguém sabe exatamente onde ele esteve durante um
período de 12 anos. A população de Gotham City acredita que ele fez uma viagem
ao exterior, mas a possibilidade mais verossímil é que ele tenha permanecido na
cidade, escondido em uma caverna desconhecida, situada embaixo da mansão dos
Wayne. Nesse local, Bruce realizou seu treinamento, desenvolvendo suas aptidões
físicas e mentais (Miller e Mazzucchelli, 2002b).
Arte conceitual da Batcaverna, no jogo Batman: Arkham Origins (2013). |
A
caverna é um símbolo análogo ao do ventre da baleia, presente em numerosos
mitos de origem, de renascimento e de iniciação. Região desconhecida, sombria,
de limites inexplorados, a entrada na caverna é um caminho para dentro, uma
interiorização, um retorno às origens, ao centro.
“O
caráter central da caverna faz com que ela seja o lugar do nascimento e da
regeneração; também da iniciação, que é um novo nascimento. ... Entrar na
caverna é, portanto, retornar à origem e, daí, subir ao céu, sair do cosmo”
(Chevalier e Gheerbrant, 2002, p. 216).
Dessa
descida, Bruce Wayne volta transformado. Sente-se pronto para cumprir sua
tarefa, contudo, uma nova identidade é essencial. Um disfarce que possa
torná-lo reconhecido como uma força eficaz contra o crime. O morcego que
invadiu a sala de sua casa trouxe a imagem que necessitava. Este evento é um
aceno sobrenatural que sintetiza os anseios de Bruce e aponta para a
transformação final. A partir desse momento, ele é Batman.
Cena de Batman: Ano Um (1987). História de Frank Miller, arte de David Mazzuchelli, Richmond Lewis e Todd Klein. |
Esses
dois símbolos intimamente relacionados & – a caverna e o morcego &–
passam a fazer parte de Batman. A caverna é a morada do morcego, único mamífero
capaz de voar. Ele é um animal noturno que vive em grutas e cavernas. De acordo
com as ONG’s, International Bat Conservartion e Friends
of Bats, existem cerca de 900 espécies de morcegos das quais apenas três se
alimentam de sangue. As demais se alimentam de frutas e insetos, exercendo
importante papel na polinização (Aprile, 2006).
Os
aspectos positivos não são suficientes para evitar o caráter sinistro ligado ao
morcego, pois o morcego
“inclui-se
no rol daqueles que vivem na escuridão, nas trevas, que se escondem do mundo
diurno. Mora em grutas de difícil acesso ou em casas arruinadas. Como se não
bastasse, passa o dia inteiro dependurado de cabeça para baixo. É mamífero e,
contudo, voa. Parece criatura de um mundo que funcionaria às avessas do nosso”
(Augras, 1995, p. 161).
Na
Idade Média, para retratar o demônio eram-lhe atribuídas asas de morcego,
contrastando com as asas resplandecentes dos anjos (Augras, 1995). Além disso,
o morcego está associado à longevidade, “porque se supõe que ele próprio a
possua, uma vez que vive nas cavernas & – que são uma passagem para o
domínio dos Imortais & –, e ali se alimenta de concreções vivificantes”
(Chevalier e Gheerbrant, 2002, p. 216).
Evolução do símbolo do Batman de 1940 a 2012. |
Nesse
período, Batman foi confrontado com duas tarefas: tornar-se conhecido pelos
bandidos e ser aceito pela população de Gotham City. Ele havia se preparado
racional e intencionalmente para cumprir sua missão, contou com a colaboração
de auxiliares eficazes e pôde, então, integrar-se à estrutura social na qual
convivia, como um recurso do departamento de polícia.
Batman
é um herói da ação. Seus atos são de coragem. Suas qualidades são persistência,
determinação, disciplina. Ele desenvolve e maneja amplo arsenal de armas, é
hábil na luta. Recebe o chamado, sofre uma transformação e retorna para colocar
as habilidades desenvolvidas a serviço de sua cidade, sem que haja conflitos
aparentes, com total desprendimento de sua vida pessoal. O Bem e o Mal estão
bem definidos, não sendo necessária qualquer reflexão para identificá-los. Os
sacrifícios pessoais não são avaliados. Batman tem uma missão e a cumpre.
Wahba
(2004) propõe e analisa três tipos de heróis: o herói da razão, o herói da
missão e o herói da complexidade. A caracterização do herói da razão é um
retrato da organização de Batman:
“O
herói da razão é o herói do dever. Neste, os limites estão bem demarcados e são
fixos, inquestionáveis. O mal está fora, combatê-lo se torna prioritário e o
ato heróico está acima de qualquer relacionamento. ... A luta heróica é diária,
a lógica, infalível; a ação guerreira ou mental segue coordenadas muito bem
estabelecidas. ... Coragem significa aferrar-se às convicções e lutar por elas
com bravura e decisão unívoca” (Wahba, 2004, p. 218).
Batman enfrentando detentos foragidos, em cena do jogo Batman: Arkham City (2011). |
Ao
acompanhar a trajetória de Batman, percebe-se que o caminho a ser percorrido é
aparentemente claro, pois diante dele surgem duas forças desconhecidas e
irracionais, condensadas nos personagens Coringa e Mulher-Gato.
1970-1980
Nesse
período, a história pessoal do personagem, com suas perdas e conflitos, começa
a ganhar destaque. Batman relembra regularmente o momento traumático quando ele
presenciou a morte de seus pais. Suas atividades como super-herói tornam-se um
testemunho de suas perdas. A tristeza é o sentimento dominante, pois a cada
batalha ele resgata o menino abandonado diante dos pais mortos.
À
medida que os sentimentos tornam-se preponderantes, ele se aproxima da
Mulher-Gato. O gato é um símbolo ambivalente, que transita entre a bondade e a
maldade. No Egito Antigo,
especialmente em Bubastis, na 22ª dinastia (945-715 a.C.), o gato era
venerado como a deusa Bastet,
protetora e benfeitora do homem. Esta deusa estava ligada ao canto, à música e
à dança, considerada protetora das mulheres grávidas, do amor, da alegria e do
prazer de viver. Posteriormente, os gatos foram associados a poderes demoníacos
e ao feminino.
Von
Franz (2000, p. 70) analisa a simbologia do gato:
“Era
voz corrente [na Idade Média] que algumas mulheres tinham o poder de introduzir
suas almas em gatos pretos. Essas mulheres seriam bruxas, dedicadas não mais
aos poderes da luz, mas aos poderes das trevas, ao demônio. A dissociação
católica com relação aos instintos, à sexualidade e, falando de modo geral, ao
elemento natural feminino, provavelmente tem muito a ver com esse
desenvolvimento do gato como símbolo do feminino instintivo e destrutivo”.
A Mulher-Gato interpretada pela atriz Michelle Pfeiffer, no filme Batman: o retorno (1992). |
O
gato foi visto também como meio, como mediador entre o Bem e o Mal, entre as
esferas humanas e divinas, pois,
“Como
ele tem acesso a ambas as esferas e se sente à vontade nas duas, ele tem muita
sabedoria profética a oferecer e pode ensinar-nos a manter em equilíbrio
valores conflitantes. Como símbolo da consciência, o gato é uma entidade
psíquica que conhece o caminho &– desde que aprendamos a confiar nele,
respeitando-o, obedecendo-o e seguindo-o para onde quer que ele vá” (Von
Franz, 2000, p. 72).
Compreendidos
simbolicamente, o morcego e o gato partilham intimidade com alguns pares de
opostos: o bem e o mal, o terrestre e o celeste.
Batman
e a Mulher-Gato estão profundamente ligados. É como se eles tivessem sido
feitos um para o outro, mas as correspondências simbólicas encontram resolução
em atitudes opostas. Batman, em resposta à agressão que sofreu, defende a
estrutura social tal e qual ela se apresenta, como se isto tornasse possível a
recuperação da unidade perdida. A Mulher-Gato, por sua vez, volta-se contra
essa organização em ataque aos seus agressores, que se enquadram no sistema,
como se assim pudesse ter seus valores reconhecidos. O que fica fora do campo
visual de ambos é que tanto os agressores dele quanto os dela são fruto de um
mesmo desequilíbrio.
1990-2000
No
período mais recente, Batman começa a prestar atenção em como sua ação engendra
efeitos negativos no seu ambiente. O embate com o Coringa ganha destaque. A
contraposição exercida pelo Coringa passa a ser compreendida no contexto do
relacionamento com Batman. Enquanto Batman é controlado, dissimulado,
silencioso, lógico, obscuro, o Coringa é impulsivo, aleatório, fantasioso,
escancarado, colorido, alegre, musical.
O Coringa interpretado por Heath Ledger, no filme Batman: O Cavaleiro das Trevas (2008). A atuação de Ledger, lhe rendeu um Oscar póstumo, já que antes da estreia do filme, ele morreu de overdose. |
O
Coringa é o contraponto de Batman. Todo e qualquer acessório que Batman cria é
imediatamente assimilado pelo Coringa. Ao longo das histórias, esse embate é o
mais vigoroso e o de mais difícil negociação.
O
Coringa faz referência clara às cartas do baralho. No tarô, a carta coringa é o
Louco. Ele não é numerado e está fora do jogo, porque “o louco está fora dos
limites da razão, fora das normas da sociedade” (Chevalier e Gheerbrant,
2002, p. 560).
Cena do jogo Batman: Arkham Knight (2015). Aqui o Coringa tenta o Batman a quebrar seu juramento de não matar. |
Batman,
como vários super-heróis (Homem-Aranha,
Hulk, Wolverine), foi criado pela ciência e pelo conhecimento
tecnológico. A apropriação do desenvolvimento tecnológico lança-os num caminho
de ultrapassagem das limitações humanas. Eles se tornam superiores. A
tecnologia é investida de autonomia. Conseqüentemente, as oposições encontradas
são igualmente autônomas e radicais. Em Batman, há oposição entre dever e
alegria de viver, masculino e feminino, razão e sensibilidade, luz e trevas. A
sensibilidade está a serviço do crime.
Batman
começa a perceber que as oposições que encontra estão relacionadas às suas
atitudes. Surge, então, um herói capaz de tirar seu uniforme e expor suas
cicatrizes. Não se trata mais da revelação de complexos infantis, mas da
aproximação às marcas engendradas por sua trajetória específica. O sentido e o
significado da batalha ganham importância. Ele passa a avaliar, se seus atos
heróicos estão alicerçados numa preocupação genuína com o outro ou se eles
servem à necessidade de vingança. É possível perceber, então, uma relação
diferente entre as forças do Bem e do Mal. Elas já não são tão definidas e de
fácil identificação. Observação, análise e reflexão são necessárias.
Neste
momento, a luta heróica de Batman está destinada mais à manutenção do
equilíbrio entre essas forças do que à tentativa de destruição da oposição.
CONCLUSÕES
A
análise dinâmica desse tipo de personagem permite uma aproximação dos temas
psicológicos correntes na atualidade. A realização do ciclo heróico, tal como
formulado por Joseph Campbell evidencia características arquetípicas do
personagem Batman.
Considerando
as etapas do processo de individuação, Batman está conscientizando e elaborando
aspectos da sombra (Jung, 1981, 1998). Conteúdos reprimidos do inconsciente
pessoal são resgatados, trazendo à tona a criança ferida. Há uma ampliação do
contato com os próprios sentimentos e o conseqüente aprofundamento dos
relacionamentos afetivos. Elementos não-desenvolvidos, qualidades mantidas
inconscientes, ganham forma nas projeções identificadas no Coringa. A tensão
entre opostos fica evidenciada, com menor tendência à unilateralidade. Esse
processo de ampliação da consciência permite que Batman ultrapasse uma visão
bidimensional da realidade e busque novas perspectivas, que o aproximam da
complexidade humana.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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