domingo, 30 de outubro de 2016

Os druidas

Os druidas

prof. Dr. João Lupi


1. O que hoje em dia se pode dizer sobre os druidas parece oscilar entre dois extremos: ou o quase nada, ou o excessivo. Entre os dois ficam mais hipóteses e interrogações do que conhecimentos válidos. O quase nada é constituído por: as poucas referências de escritores gregos e latinos, mormente o texto de Júlio César no De Bello Gallico que mal enche uma página; a perplexidade ou paradoxo de uma escrita ogâmica que existiu para não revelar os ensinamentos dos druidas; a estranheza que nos causa a afirmação de Estrabão de que todos os grupos celtas tinham seus druidas, quando só sabemos da existência deles na Gália e nas ilhas Britânicas. Se a esse muito pouco se acrescentar a crítica às opiniões do conquistador e dominador dos gauleses, então do texto de César fica mesmo quase nada.

O “excessivo” fica por conta de todas as idealizações que ingleses e franceses fizeram acerca dos druidas desde o século XVI, à procura de antepassados nobres e dignos que os colocassem a par com a civilização greco-romana – e com esse ideal imaginaram sacerdotes ecológicos, sábios de mistérios fantásticos, adivinhos quase profetas, conhecedores dos segredos da natureza, com poderes para fazer poções mágicas; e estes exageros deram lugar a uma tão ampla literatura sobre os druidas, com inúmeros livros imperdíveis que parece que mais nada há a dizer. Entre as interrogações que ficam pelo meio estão as narrativas dos monges irlandeses, que tão depressa cortam informações acerca dos druidas (para não ofender nem o cristianismo nem aqueles que ainda respeitavam as doutrinas tradicionais) como destacam o lado anti-cristão dos druidas para justificar o seu banimento.

Para resistir à tentação de não dizer nada – já que nada de novo parece que se pode dizer – só temos três débeis motivos: a pouca bibliografia em língua portuguesa sobre este tema, a necessidade de fazer um panorama tanto quanto possível atualizado dos conhecimentos disponíveis, e a possibilidade de algum ponto de vista interessante que possa surgir ao olhar este panorama – assim como uma linda paisagem, que pode ter sido admirada por milhões de pessoas, mas que nem por isso afasta quem nunca a olhou, e vai lá na esperança de descobrir o que os outros não perceberam. Porém, mesmo os estudiosos mais atentos e criteriosos que investigaram os druidas não escaparam à tentação de arriscar hipóteses e opiniões incertas, e por isso não vamos eliminá-las facilmente: num caso como este uma observação sugestiva e razoável vale como um estímulo para que outros a comprovem, ou a descartem – e é o risco que vamos correr.

2. Comecemos por uma visão rápida dos testemunhos clássicos e demos a prioridade aos gregos. Diodoro Sículo (entre séc. I a.C./ séc. I d. C., em Histórias V, 28, 6 e V, 31, 2-5) diz que os druidas eram filósofos e teólogos de nível superior, que à maneira dos pitagóricos acreditavam na reencarnação das almas, e que eram curandeiros e adivinhos respeitados. Estrabão, contemporâneo de Diodoro (Geografia IV, 4, 197, 4) cita os bardos, de quem Diodoro também falou, os adivinhos e os druidas, e destes diz que são fisiólogos (naturalistas) e mentores da filosofia ética.

Dion Crisóstomo (início do séc.II, nos Discursos 49) diz que os druidas se ocupavam com todo tipo de sabedoria e que não só eram conselheiros dos reis como em tudo os reis seguiam as suas normas e diretrizes. Diógenes Laércio (séc.III d. C., em Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, I, 1 e 6) inclui os druidas entre os sábios das outras civilizações – persas, babilônios, assírios, indianos e egípcios e deles diz que eram homens “ veneráveis (...) que expunham suas doutrinas por meio de enigmas, exortando os homens a reverenciar os deuses, a abster-se totalmente de más ações e a ser corajosos “ – mas compara-os neste ponto aos ginosofistas indianos (os sábios nus, geralmente se supõe que fossem os brâmanes, mas podiam ser ioguis).

Entre os cristãos helenísticos falaram dos druidas: Clemente de Alexandria (c.153-220, nos Stromata I, 15), Hipólito (c. 170-236 na Refutação das heresias I, 22), Orígenes (c.185-254 no Contra Celso I, 16) e ainda Cirilo de Alexandria (c.380-444 no Contra Juliano IV, 133). Hipólito e Clemente relacionam os druidas com as doutrinas pitagóricas e com a adivinhação e magia; são muito venerados pelos celtas, diz Hipólito porque sabem fazer certos cálculos com números e profetizar o futuro, e também praticam rituais mágicos; e Clemente (que era de Atenas) ao explicar como a filosofia grega teve sua origem entre os povos de outras culturas (bárbaros) afirma: “ E assim a filosofia, que é de qualidade tão elevada, floresceu na antiguidade entre os bárbaros, iluminando as nações, antes de chegar à Grécia; sua fileira inicial foi constituída pelos sábios egípcios, e pelos caldeus entre os assírios, e os druidas dos gauleses, e os samaneus da Bactriana, e os filósofos dos celtas, e os magos dos persas, que anunciaram o nascimento do Salvador, e chegaram à Judéia guiados por uma estrela, e os ginosofistas indianos (...).

Clemente lembra ainda que Pitágoras teria estudado com os gálatas e com os brâmanes. Orígenes, que foi aluno de Clemente cita os druidas da Gália (toûs galatoôn druidas) entre os povos antigos de elevada sabedoria, mas para criticar Celso (um romano do séc.II d. C.) que estimava os druidas acima dos judeus; o mesmo Orígenes no Comentário ao Livro de Ezequiel (apud. Ellis, 132) afirma que os druidas da Bretanha veneravam um deus único antes da chegada do cristianismo e que assim ensinavam o povo, e por isso os celtas estavam predispostos desde antigamente a receber o batismo.

Quanto a Cirilo sua obra foi escrita por volta de 435 para refutar a crítica do imperador Juliano aos cristãos (em Contra os Galileus) e a referência aos druidas é apenas de passagem. Entre as muitas observações que se podem fazer acerca destes escritos gregos é preciso notar antes de mais que as coincidências entre eles, como as listas de povos antigos de Clemente e de Diógenes, denotam a falta de conhecimento direto dos druidas e a presença de uma ou mais fontes comuns, mais antigas, que geralmente se crê sejam os escritos de Timagestes, e a História de Possidônio de Apaméia (c. 135-50 a . C.) de que não restam senão fragmentos esparsos; mas parece que Possidônio teria visitado a Gália, e que seu testemunho era bem fundamentado.

A segunda observação é que no conjunto estas afirmações constituem um acervo muito diminuto quando comparado com o imenso volume de obras em grego; no entanto são significativas, pois são notáveis certas opiniões comuns: já é de estranhar que os celtas sejam colocados a par com outros povos que criaram civilizações tidas como muito mais elaboradas, que tiveram amplo uso da escrita, impérios organizados, grandes cidades – como os indianos, assírios, e egípcios – o que nos leva a uma dupla interrogação: os druidas são citados devido à importância dos celtas, ou os celtas é que são citados pela fama dos seus druidas?

Mas os celtas não gozavam de tão boa reputação, portanto é mais provável que eles é que sejam citados devido à importância dos druidas. Mais: mesmo que todos eles falem do que ouviram dizer ou leram em Possidônio, Timagestes ou outro autor anterior a eles, alguma fama dos druidas deve ter permanecido para que não omitam a referência. Portanto colocá-los a par com os magos persas e os brâmanes é um indicador válido do respeito que eles gozavam entre os “civilizados”. Ressalte-se ainda a repetição da referência aos pitagóricos: deveria ser voz comum, não tanto pela matemática celta mas pela aura de ocultismo e mistério que os rodeava. Vejamos agora o que dizem os romanos.

Júlio César (c. 100-44 a.C.) é a referência dominante acerca dos celtas e dos druidas (De Bello Gallico ou A Guerra da Gália VI 4, 13, 14, 16, 18, 21): além de alguns dados sobre a religião – deuses, rituais, sacrifícios, moral – oferece informações sobre a organização dos druidas e suas funções: a eleição de um druida-mor, a reunião anual na floresta dos Carnutos, a função sacerdotal ou de presidência dos ritos, a de mestre da juventude, e a de juiz; fala também da isenção do serviço de guerra, da aprendizagem de longos poemas, e da recusa em colocar por escrito os seus ensinamentos; os druidas, diz César, são muito interessados nas coisas do mundo físico: astronomia e natureza.

Seu contemporâneo Cícero (106-43 a . C. em Sobre a adivinhação I, 41, 90) é o único que diz ter conhecido um druida: Divicíaco o Eduano, hóspede de seu irmão; mas pouco nos conta das conversas que teve com ele: apenas que sendo um bom conhecedor da natureza era o que os gregos chamam um fisiólogo, e que era áugure ou adivinho.

Plínio (c.23-79; na História Natural XVI 249) refere-se à magia dos druidas e aos conhecimentos deles sobre os céus e os astros e dá-nos uma descrição dos rituais do corte do visco no carvalho – é ele que nos fala das vestes brancas dos druidas neste ritual; Plínio estava interessado em saber e divulgar as propriedades medicinais das plantas e animais e descreve ainda o uso que os druidas faziam de outras ervas como selago, e samolo e explica detalhadamente os misteriosos ovos de serpente (XXIV 103-104; XXIX 52) mas mostra evidente desconfiança acerca da validade de tais usos e inclusive considera exagerado o fascínio que a Bretanha tinha pela magia (Britannia attonita celebrat tantis caerimoniis) parecia até que os bretões achavam que foi com os druidas que os magos persas aprenderam (XXX 13).

Pompônio Mela (séc. I d.C. em De Situ Orbis ou Geografia III 2, 18-19) considera que os druidas são grandes sábios e mestres que se dedicam ao estudo dos céus e dos astros. Seu contemporâneo Lucano (39-65 no poema Pharsalia I, 450-458) também se refere aos conhecimentos de astronomia, mas tal como Suetônio (69-140 em Claudius 25) reputa os rituais dos druidas desumanos e selvagens. Tácito (c. 56-120 nos Anais 14,30) narra a cena das mulheres enfrentando as legiões ao som das imprecações dos druidas que incitavam os celtas à batalha; e conta a destruição dos vencidos, que entretanto se dedicavam a superstições selvagens; ao falar das profecias dos druidas acerca do Império (Histórias IV 54) Tácito considera-as vãs superstições.

Os autores da História Augusta (século IV) Lamprídio (no capítulo de Alexandre Severo 59, 5) e Vopiscus nos capítulos sobre Numeriano 14, e Aureliano 43) citam a existência de mulheres druidas ( mulier Dryas, dryde mulier) das quais se contavam profecias. Ausonio (c. 310-395 em Commen. Professorum IV 7-10 e X 22-30) cita Febício, um homem “da estirpe“ dos druidas, natural da Armórica (Bretanha francesa) guarda do templo de Beleno, que foi professor em Bordéus. Amiano Marcelino (c. 330-400 em O Final do Império Romano XV 9) distingue os druidas (drasidae) dos adivinhos-profetas (euhagis) e dos bardos considerando os druidas como grandes intelectuais (ingeniis celsiores) aproxima-os dos pitagóricos e diz que se dedicam ao estudo das coisas mais sublimes e ocultas desprezando as coisas humanas comuns.

Após analisar detidamente os testemunhos dos romanos e de relacioná-los com o contexto histórico Kendrick (o. c. 98-99) é taxativo: até à época do Império os druidas gozavam de excelente reputação mas rapidamente a perderam, e aos olhos dos romanos eles se foram convertendo cada vez mais numa classe religiosa dedicada a superstições e feitiçarias. Mas Ellis (o. c. 60-61, 74, e 77) tem outra opinião: ele julga quase todos os escritores, tanto romanos como gregos (particularmente Estrabão) do tempo do Império favoráveis à política de ocupação e domínio, e suas críticas aos druidas seriam devidas mais à intenção de justificativa da conquista do que ao desprestígio dos druidas.

Mesmo assim, por mais que se deva relativizar os conhecimentos que os romanos tinham dos druidas há aspectos em que há uma tal coincidência, ou reforço de opiniões vindas de diversos lugares e épocas, que a margem de dúvidas se estreita; resumindo: os druidas eram intelectuais de alto valor, equiparáveis aos sábios de outros povos mais eruditos; seus conhecimentos mais ocultos tinham semelhanças com os dos pitagóricos; tinham especial sabedoria acerca da natureza em geral tanto da astronomia e cosmologia como dos reinos animal e vegetal; e exerciam funções jurídicas, e políticas além das pedagógicas.

Parece, pois que, aos olhos dos intelectuais seus contemporâneos podemos considerar os druidas como uma classe sacerdotal sociologicamente bem definida e com características ou traços que desenham um certo tipo ideal que pode ao menos ser tomado como ponto de partida razoavelmente seguro. Porém ao menos num aspecto os comentadores têm sérias dúvidas acerca da opinião clássica sobre os druidas: é no que toca a considerá-los “filósofos”. Vamos pois analisar os druidas apenas sob estas duas categorias: como classe social, e como fisiólogos.

3. Na organização social Estrabão diz (Geografia IV 4, 197-198), que todos os celtas têm três classes de homens que são especialmente venerados: bardos (bardoi), adivinhos (uáteis, vates) e druidas (druidai) . É a única afirmação disponível que estabelece a classe social dos druidas como própria de todos os celtas, pois os testemunhos da época só nos falam dos druidas dos gauleses – por vezes chamados de gálatas; das ilhas só sabemos da existência dos druidas por documentos posteriores ao seu declínio ou desaparecimento, e de todos os outros celtas nada sabemos; as fontes de informação – arqueologia, filologia, cultura popular, toponímia, e epigrafia –não oferecem muitos dados que esclareçam o que nos chegou dos textos apresentados, e os escritos do período cristão devem ser sujeitos a cuidadosa crítica; contudo diversos autores consideram a opinião de Estrabão verosímil(MCCANA 14 e 19; GUYONVARC’H 147; mas HUBY 604 discorda).

A reconstituição da organização e saber dos druidas opera pois sobre bases frágeis: os relatos gregos e romanos, completados com as informações dos monges britânicos e irlandeses, e a verosimilhança do alargamento de suposições dentro do quadro cultural geral ou de cada grupo celta. Podemos assim desenhar a estrutura básica da organização dos druidas como uma classe coesa, liderada por um druida principal, havendo regras para a sua eleição; tal procedimento supõe que os druidas da Gália mantinham entre si um estreito relacionamento, que havia algum tipo de normas de comportamento e de continuidade de doutrina que os unia, e que esse relacionamento se fortalecia a quando da reunião anual na floresta dos Carnutos, onde realizavam um conclave (reunião privada e exclusiva).

Há indícios, mas não a certeza, de que também na Irlanda existia um druida-mor – em A Vida Tripartida de São Patrício (II, 325, citado por JUBAINVILLE 79-80) fala-se de um chefe druida irlandês, mas pode ser um cargo eventual, ou uma citação espúria, sem confirmação. Acerca da vida privada dos druidas parece não haver dúvidas de que podiam casar, ter propriedades e manter atividades políticas; embora isentos do serviço militar acompanhavam os guerreiros e incitavam-nos à luta.

Mais discutida é a distribuição das três ordens, que segundo Estrabão eram exercidas por grupos distintos, mas outras fontes consideram que constituíam uma só ordem – a druídica – com funções distintas: a sacerdotal, a poética, e a divinatória. A favor desta opinião estão os testemunhos de que os druidas exerciam a profecia e a adivinhação, e que eram poetas compositores, declamadores e músicos.

Segundo esta hipótese a especialização e autonomia dos bardos e adivinhos teria se originado do progressivo declínio do reconhecimento social e do poder dos druidas; mesmo que se tenha em conta os reparos de Ellis o declínio se deu em virtude dos decretos imperiais: primeiro o de Augusto que os excluiu da cidadania romana, depois o decreto senatorial do tempo de Tibério que proibiu a sua existência, e finalmente o de Cláudio em 54 que aboliu por completo os druidas.

O que estranha é que três decretos sucessivos em pouco mais de cinquenta anos não impediram que três séculos depois ainda se falasse deles (Ausonio, Amiano Marcelino, e Cirilo de Alexandria) como de uma classe social e religiosa importante e respeitável. Porém é evidente que cada escritor, grego ou romano, dá uma opinião diversa sobre as três ordens, suas funções e seu relacionamento; esta confusão pode provir da variedade de fontes, das diferenças de tempo e de lugar, ou do próprio autor que distorceu informações.

Por essa razão os comentadores e intérpretes contemporâneos apresentam cada um uma distribuição diferente das três ordens, e Jubainville (o. c. 19-25) ainda indica outra: a divisão em druidas, gutuatri, e uati (adivinhos); os gutuatri estão atestados por alguns testemunhos, mas como ordem são pouco conhecidos. Do que não restam dúvidas é de que as três funções existiam, que ao menos em certas circunstâncias foram exercidas por personagens distintos, e que os druidas eram considerados muito superiores aos bardos e aos adivinhos. A evolução dos filidh na Irlanda parece confirmar esta hipótese: eles teriam surgido no seio da classe social dos druidas, foram ganhando importância como poetas e sábios – em letras e literatura – ao ponto de alguns deles já se equipararem aos druidas no início do período cristão, e tornaram-se seus herdeiros quando ingressaram nas fileiras do cristianismo e dos mosteiros.

4. A sabedoria dos druidas era, como se viu, famosa entre gregos e romanos: sacerdotes e teólogos, eram ainda fisiólogos e cosmólogos, poetas e adivinhos, políticos e pedagogos. Que eram sacerdotes encarregados de presidir os sacrifícios e o ritual, e portanto detentores dos conhecimentos acerca do simbolismo litúrgico, não há dúvida; como também não se duvida de que eram teólogos, criadores e intérpretes das doutrinas acerca da mitologia, das características dos deuses, das formas de prestar-lhes culto, de como as pessoas deviam comportar-se de acordo com normas éticas baseadas em princípios religiosos; também se reconhece geralmente que detinham habilidades no uso da linguagem como poetas e narradores, o que implicava a música, e certamente o domínio, entre os irlandeses, da escrita ogâmica, e a acreditar César, o uso do alfabeto grego entre os gauleses; é certo que conheciam as leis e os princípios de aplicá-las como juristas, juízes e conselheiros políticos.

Estas são qualificações que, com as reservas e detalhes de tempo e lugar, se aplicam aos dois grupos de druidas que razoavelmente se conhecem: gauleses e irlandeses, e, com menos certeza porque são muito menos conhecidos, aos outros celtas: bretões, cruthin (pictos) e galeses. Mas acerca das demais atribuições de sabedoria há sérias dúvidas. A primeira é sobre os conhecimentos matemáticos, que os aproximariam dos pitagóricos e fariam deles hábeis astrônomos. Porém os pitagóricos como escola autônoma na Grande Grécia desapareceram no século IV a . C. e não há indícios de que antes ou depois tivessem se difundido muito para o norte.

O nome “pitagórico“ significou muito mais um estudioso das ciências ocultas do que um teórico da matemática; ora o que seja “oculto“ é muito relativo e não é raro chamar-se “ciência oculta“ aquela da qual não sabemos nada porque não temos acesso a ela. Gregos e romanos pouco podiam saber dos conhecimentos dos druidas porque estes não os escreviam – de acordo com César, mas há reparos a fazer neste ponto – nem os revelavam fora do seu grupo étnico. Contentavam-se com ensinar ao povo os comportamentos religiosos e morais, e aos políticos as diretrizes de governo e a sua aplicação prática.

Outros saberes que detinham não revelavam, e esse conjunto de sabedoria impressionava gregos e romanos que os comparavam ao que de mais semelhante tinham conhecido: os pitagóricos. Não há indícios de que os druidas dominassem algum tipo de ciência matemática numérica aplicável à astronomia; o calendário dito de Coligny, no entender de Kendrick (o . c.115-120) e também de A . H. Allcroft e Lewis Spencer (citados por Ellis 273-274) não passa muito além dos conhecimentos de alguns povos ágrafos acerca do ciclo do sol e da lua e é muito mais romano do que celta; contudo Mac Cana o. c. 90 legenda 2) considera que “seu conteúdo é claramente independente do calendário romano”.

Contudo Ellis, que se apoia mais no estudo dos druidas insulares do que no dos druidas do continente, rebate estas reticências com alguns argumentos; o primeiro seria o fato de ter havido entre as populações de cultura megalítica anteriores aos celtas um conhecimento muito apurado dos ciclos solares e lunares, que está presente nos monumentos do tipo Stonehenge, e que os celtas teriam herdado – esta opinião teria forte respaldo nas hipóteses acerca da difusão da cultura celta, que concedem muito mais importância à herança pré-histórica dos celtas (com esta opinião concordam também MACCANA 64) ao ponto de ter havido quem defendesse a tese de que o druidismo é uma religião pré-céltica (Pokorny, em 1908, cit. HUBY, 611 n.13; ao que GUYONVARC’H 67 contesta negando terminantemente).

Brendan Lehane (1993, 195) diz: algumas particularidades da sabedoria irlandesa vêm do druidismo e têm suas raízes na religião megalítica, e na Europa Ocidental a Irlanda é “a única região que pode dizer que aprendeu com ela”. Outro argumento é o estudo da terminologia goidélica; de fato, no vocabulário gaulês e galês, não restaram nomes nativos referentes aos astros, o que deveria ter acontecido se a sua astronomia fosse muito desenvolvida – mas esses celtas foram muito romanizados, o que explicaria a perda da terminologia própria; mesmo no irlandês moderno não há vestígios de conhecimentos próprios que deixassem marcas no vocabulário; por exemplo: astrologia diz-se astralaíocht, zodíaco é stoidíaca, eclipse é éiclips, Saturno é chamado Sathurn, etc.

Ellis (o. c. 275-280) segue porém um caminho engenhoso: procurando no vocabulário manês (ilha de Man, entre a Irlanda e Gales) e escocês encontrou termos nativos, não romanizados e procurando no irlandês termos semelhantes trouxe à tona um vocabulário no qual, apesar da mudança de significados, se reconhecia a existência de uma antiga terminologia druídica acerca da astronomia. Por outro lado, se não há indícios de conhecimentos matemáticos elaborados e numéricos encontram-se jogos tradicionais (Ellis o.c. 270-271) galeses e irlandeses que implicam um saber matemático complexo a que poderíamos chamar de “percepção intuitiva de conjuntos“ que explicaria a capacidade de compreender e analisar ordenamentos complexos como os do zodíaco.

Há ainda outro argumento a favor da astronomia druídica que é a existência de astrônomos irlandeses atuantes na Europa continental nos séculos VIII e IX e que faziam uso, ao que parece, de conhecimentos herdados dos druidas. Entre eles conhecemos Fergal, monge irlandês, que foi bispo-abade de Salzburgo com o nome de Virgílio, e cujos escritos sobre astronomia e cosmografia foram reportados ao Papa Zacarias (741-752) por um escandalizado Bonifácio de Crediton; Fergal, que tinha a seu lado outro bispo irlandês de nome Dubdachrich, também astrônomo, defendia entre outras coisas inauditas a existência de um mundo subterrâneo habitado semelhante ao sublunar – crença característica dos druidas; outro astrônomo irlandês foi Dungal de Bangor que em 810 explicou os eclipses a Carlos Magno; e ainda Diciul que em 825 escreveu um tratado de geografia notável, e outro de astronomia – A Medição do Orbe Terrestre – do qual existe cópia na Biblioteca de Valenciennes, na França (o tratado foi publicado em 1907 e até hoje é quase desconhecido - cf. ELLIS o. c. 282-283).

Esta argumentação, por mais convincente que seja acerca de indícios do saber dos druidas sobre astronomia, não nos explica o que é que de fato os druidas sabiam como astrônomos, e continuamos supondo que de matemática não tinham conhecimentos avançados nem muito menos do tipo pitagórico. Um último dado para não relacionarmos druidas e pitagóricos vem de um ponto supostamente comum entre as suas doutrinas, que seria a metempsicose, ou transmigração das almas; esta hipótese não tem apoio nos ritos funerários celtas, que faziam o cadáver, ou a urna de cinzas, ser acompanhado de utensílios que lhes servissem na outra vida; ora quem crê que leva objetos não espera incarnar noutro corpo, mas permanecer em algum lugar do outro mundo.

Aliás a crença na reencarnação, em diversas modalidades, é muito comum em vários povos muito distantes dos pitagóricos; e embora seja certo que em lendas irlandesas há relatos de renascimentos eles não se comparam a nenhuma idéia geral de transmigração (cf. KENDRICK o .c. 110-113 com o que concorda ELLIS o . c. 199-210 e também JUBAINVILLE o . c. 97, 103, e 106 e MACCANA 122). Mas fica ainda a conotação de filósofos que, como vimos, era atribuída aos druidas pelos gregos (Diodoro, Estrabão, Clemente) e de modo menos explícito também pelos romanos.

Ora a designação de filósofo não tinha na antiguidade a mesma qualificação que pode ter atualmente: por filósofo entendia-se ou um indivíduo que levava uma vida filosófica isto é, desapegada das coisas comuns, austera, sábia no sentido de saber se comportar com dignidade, numa espécie de aristocracia espiritual e intelectual; ou uma pessoa que se interessasse pelo saber como um todo, pela sofia; nem num caso nem no outro implicava necessariamente a filiação do filósofo a uma escola de filosofia (estóicos, platônicos, aristotélicos etc) nem sequer que fosse um profissional que conhecesse a fundo as doutrinas dos filósofos das escolas.

Esta é geralmente a opinião dos comentaristas e intérpretes contemporâneos, que não consideram os druidas como filósofos na acepção comum do termo (por ex.: GUYONVARC’H o. c. 112-113 e 146). O que os gregos e romanos queriam dizer quando chamavam os druidas de filósofos era provavelmente o que deles disse Kendrick (ib) : “Este é o verdadeiro segredo do antigo respeito que o mundo clássico mostrou pelos druidas: que a sua reputação não repousava na sua doutrina religiosa, nem na filosofia ou sabedoria, mas na habilidade em controlar a mente popular pela ação coletiva e coordenada como um corpo de pedagogos” o que lembra a frase de Diodoro Sículo (o. c.) “ os druidas mantêm todo o povo submetido a eles” e explica a seguir: porque o povo crê que “ eles sabem a língua dos deuses” ou seja: eles se tornaram indispensáveis para manter o bom relacionamento entre os homens e os deuses, e com isso a ordem do mundo.

5. De um pequeno ensaio como este, baseado em fontes bibliográficas e comentários, não se podem tirar muitas conclusões, nem esperar uma descoberta significativa, mas apenas algumas diretrizes para trabalhos mais específicos. A primeira é a necessidade de separar claramente o estudo dos druidas gauleses do estudo dos druidas irlandeses: enquanto dos primeiros temos sobretudo notícias através de gregos e romanos, dos celtas das ilhas e seus druidas temos a abundante literatura irlandesa que nos foi conservada pelos primeiros séculos cristãos, e de cujo estudo há certamente ainda muito a esperar.

Por outro lado, enquanto na Gália os decretos imperiais rapidamente tiraram os druidas de cena, na Irlanda não-romana os decretos não tiveram efeito e o cristianismo foi mais tolerante permitindo a sobrevivência dos druidas – embora um tanto escondidos, mas nem sempre. As fontes de informação sobre uns e outros obedecem a metodologias de análise muito diferentes, que no caso irlandês têm ainda a oportunidade de comparação com os escoceses, com os galeses e outros grupos britânicos menores como os maneses e córnicos.

No caso da literatura monástica irlandesa muito há a explorar e interpretar para conhecer os druidas; mas também não é impossível que algum dia se encontrem livros por eles redigidos, pois diversos escritos testemunham essa existência, desde as biografias de Patrício até um certo Ético de Ístria que diz ter consultado as bibliotecas da Hibérnia. Quanto à leitura das fontes gregas e romanas também esta não se esgotou: a lista completa dos textos não é fácil de encontrar, pois cada comentador acrescenta nomes a essa lista, e os originais sobre os quais os clássico se basearam - Possidônio, Timageste, o Mago de Aristóteles – ainda não foram encontrados, além de que há sempre novas interpretações em função do contexto, como vimos a propósito da divergência entre Ellis e Kendrick sobre a queda de prestígio dos druidas. Em resumo, o estudo dos druidas não só não acabou como há muito o que se dizer sobre eles – porém cada vez com mais cautela e método.

Bibliografia
Obras clássicas:
AMMIANUS MARCELLINUS. The Later Roman Empire. Trad. Walter Hamilton. Londres, Penguin, 1986.
CLEMENT OF ALEXANDRIA. The Stromata, or Miscellanies. Em Ante-Nicene Fathers, vol. 2. ed. Roberts, Alexander & Donaldson, James. Peabody, Hendrickson, 1995. (1885).
DIÔGENES LAÊRTIOS. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Trad. Mário da Gama Kury. Brasília, UnB, 1987, 2ª ed (1997).
HIPPOLYTUS. The Refutation of All Heresies. Trad. J. H. Mac Mahon em Ante-nicene Fathers, vol. 5, ed. Roberts, Alexander & Donaldson, James; Peabody, Hendrickson, 1995. (1886).
JÚLIO CÉSAR. Comentários sobre a Guerra Gálica (De Bello Gallico). Trad. Francisco Sotero dos Reis. Estudo de Otto Maria Carpeaux. Rio de Janeiro, Tecnoprint, sd.

Nota: quase todos os autores clássicos encontram-se em KENDRICK 212-221 (idioma original) e 73-103 (tradução e interpretação)

Comentários:
ELLIS, Peter Berresford. Druidas. El Espíritu del mundo celta. Trad. Javier Alonso López. Madrid, Oberon, 2001
JUBAINVILLE, Henri-Marie D‘ Arbois. Os Druidas. Os Deuses Celtas com Formas de Animais. Trad. Julia Vidili, coord. Eduardo Carvalho Monteiro. São Paulo, Madras, 2003 (1905).
KENDRICK, T. D. The Druids. Londres, Random House, 1996 (1927).
MARKALE, Jean. Le Druidisme. Paris, Payot, 1994, nova edição.

Consulta geral:
GREEN, Miranda. The Gods of the Celts. Godalming, Bramley Books, 1986.
GUYONVARC, H. Christian J. & ROUX, Françoise Le. La civilisation celtique. Paris, Payot, 1995 (1990)
HUBY, José. Christus. História das religiões. Trad. Antônio Pinto de Carvalho. São Paulo, Ed. Saraiva, 1956. Vol. II, cap.5: “A religião dos celtas”.
LEHANE, Brendan. Early Celtic Christianity. Nova Iorque, Barnes & Noble, 1993. (1968).
MAC CANA, Proinsias. Celtic Mythology. Nova Iorque, Barnes & Noble, 1996. (1968).
MARKALE, Jean. Le Christianisme Celtique et ses survivances populaires. Paris, Imago, 1983.


Fonte: LUPI, João. Os druidas. Brathair, vol. 4, n. 1, 2004, p. 70-79. 

domingo, 16 de outubro de 2016

O conceito de educação em João Amós Comenius

As imagens contidas nesse trabalho foram inseridas por mim, no intuito de ilustrar o texto do autor. Além disso tomei a liberdade também de fazer grifos pessoais no texto, os quais os destaquei em negrito. 

O conceito de educação em João Amós Comenius


Edson Pereira Lopes*


João Amós Comenius foi o primeiro indivíduo a instituir a educação como uma ciência sistemática, sendo esta uma das razões pelas quais ficou conhecido como o “pai da pedagogia moderna”. Todavia, percebe-se que o acesso dos pesquisadores brasileiros às obras primárias de Comenius em português está restrito à Didática Magna, o que resulta em algumas dificuldades para realizar a hermenêutica do pensamento comeniano. A maioria dos pesquisadores de Comenius tem seu foco voltado para os métodos educacionais, e assim ele é considerado apenas como pedagogo, o que contraria o próprio Comenius, que afirmou não se considerar um pedagogo, mas um teólogo por profissão e vocação.2
Retrato de João Amós Comênio, 1652. 
Talvez por esta razão é que encontramos raríssimos estudos referindo-se a Comenius como teólogo, com exceção dos rápidos e esporádicos comentários que aparecem em alguns poucos livros e dissertações. Com base no exposto, o foco deste artigo é tríplice: 1) tornar as principais obras literárias de Comenius um pouco mais conhecidas do público brasileiro; 2) demonstrar a relevância do pensamento de Comenius para a atualidade; 3) identificar o real conceito de educação no pensamento de Comenius.

1.   SÍNTESE DA VIDA E PRINCIPAIS OBRAS DE COMENIUS

Jan Hus
No contexto da expansão da Reforma Protestante está a congregação dos Irmãos Morávios. Esse grupo remonta ao século 15 com Jan Hus (1369-1415), que, além de líder religioso, foi reitor da Universidade de Praga. Desde cedo os morávios descobriram que uma das formas fundamentais para salvaguardar a unidade entre os Irmãos seria a educação, que se tornou, tradicionalmente, um dos princípios mais relevantes desse movimento religioso. Tal ênfase fez com que as escolas dos Irmãos Morávios, inclusive a Universidade de Praga (1348), fossem contadas entre as melhores da Europa na época de Hus e também nos dias de Comenius. A maioria dos professores tinha o grau de mestre, e era motivo de orgulho o fato de terem passado pela Universidade de Praga autoridades como o matemático João Kepler e o pensador Giordano Bruno, que ali também lecionaram.3 Os Irmãos Morávios demonstravam a dupla preocupação com a teologia e a pedagogia. Foi com esta perspectiva que traduziram a Bíblia, do hebraico e do grego, para sua língua materna, a célebre versão de Králice.4

João Amós Comenius nasceu em Nivnice, na cercania de Uherský Brod, na Morávia, hoje República Tcheca, em 28 de março de 1592. Matriculou-se na escola latina de Prerov, no ano de 1608, quando tinha 16 anos e se sobressaiu como bom aluno e como um paradigma para os seus colegas. Terminados os estudos na escola de Prerov, por recomendação de Lanecký, Comenius foi escolhido para ser ordenado pastor e nomeado para prosseguir os estudos superiores na universidade alemã de Herbon, em Nassau, que havia sido fundada em 1584.5

Enquanto esteve em Herbon, Comenius preocupou-se em preparar um dicionário de sua língua materna, Bohemicae Thesaurus, cujo conteúdo consistiu em apresentar o léxico completo de uma gramática exata das locuções da língua tcheca.6 Em 1614, Comenius retornou a Praga e foi nomeado reitor da escola de Prerov, principal centro da comunidade morávia. Notabilizou-se como professor competente e distribuía o tempo escolar de modo a incluir ensino, conversas, jogos, recreações e música, pois desejava que a escola fosse agradável e atraente. Com estes princípios, cativou seus alunos e aboliu os castigos corporais, tão em voga nas escolas de sua época.7

Em 26 de abril de 1616, foi ordenado pastor dos Irmãos Morávios. Dois anos depois, em 1618, estabeleceu-se na cidade de Fulnek e assumiu a responsabilidade pela escola da comunidade, desempenhando satisfatoriamente a dupla função de pastor e educador.8

Selo da Igreja Moraviana. Em 1616 Comênio foi ordenado pastor da comunidade moraviana. 
Por ser Comenius um líder respeitado entre os Irmãos Morávios, foi lavrado um mandado de prisão contra ele, o que o forçou a abandonar a cidade de Fulnek e a deixar o seu cargo pastoral. Com ele 36.000 famílias saíram da Boêmia e da Morávia, com a finalidade de fugir do horror da guerra. Foi neste contexto que surgiu uma de suas obras mais importantes, Labyrint sueta a ráj srdce (O labirinto do mundo e o paraíso do coração), escrita em 1623, durante sua estada em Brandeis. Essa obra serviu para consolar os que haviam sobrevivido às vicissitudes da guerra e exortar as pessoas a não buscarem a felicidade nas riquezas, prazeres e fama, pois a felicidade consistia em ter comunhão e experiência com Cristo, para, então, ser uma nova criatura.

Em 1628, os Irmãos Morávios conseguiram asilo na Polônia e com a preocupação de reconstruir sua vida e a do povo theco, Comenius produziu vários textos relativos à educação. Assim, entre 1630 e 1633 apareceram as suas obras pedagógicas fundamentais: Didática tcheca, Informatorium skóly materké (Guia da escola materna), Janua linguarum reserata (Porta aberta das línguas) e Didática magna. No conjunto, os textos dirigiam-se tanto aos alunos, que deviam aprender a aprender, como aos professores, que deviam aprender a fazer e, conseqüentemente, a fundamentar a sua prática em uma teoria sólida. Nesse período, Comenius empenhou-se vivamente na questão educacional, pois compreendia que, por meio da educação, poderia ocorrer a paz entre os povos e uma possível restauração da Boêmia.9

Frontispício do Didactica Opera. Nesse livro, Comênio traduziu seus trabalhos didáticos para o latim e os republicou em 1657. Na época, o latim ainda era a língua dos eruditos. 
Após vários anos de pacientes esforços e pesquisas, a Didática tcheca foi traduzida pelo próprio Comenius para o latim com o título Didática magna e publicada em sua forma integral em conjunto com outras obras latinadas em 1657, em Amsterdã. Ao traduzi-la para o latim, Comenius objetivou alcançar o maior número possível de leitores. Em 1642 deixou escrita a obra Via lucis, publicada apenas em 1668, pouco antes da sua morte, que sintetizava suas idéias pansóficas: escolas universais, métodos universais, livros universais, idioma universal e, sobretudo, o colégio de sábios voltado para o bem-estar da humanidade.10

Em 1642, ao manter contato com o Chanceler Oxenstiern, este lhe solicitou que fizesse algo pela Suécia e pelo aprimoramento do estudo do latim. Comenius escreveu a obra Methodus linguarum novissima (Novíssimo método das línguas), em 1647, que seria sua principal contribuição ao estudo dos idiomas. A preocupação de Comenius estava relacionada com o estudo comparativo das línguas. Ele traçou regras para a arte de traduzir textos e desaconselhou a tradução literal.

Em 1650, a convite do príncipe Sigismundo Rákoczy, começou a dirigir uma escola em Sárospatak, Hungria. Ali permanece durante quatro anos e escreveu a Orbis pictus (Mundo ilustrado ou sensível). Esse texto é a soma de sua experiência de quarenta anos de trabalho pedagógico, constituindo-se numa enciclopédia infantil que, por meio de gravuras, tem três objetivos: 1) reter a noção aprendida; 2) estimular a inteligência infantil; 3) facilitar a aprendizagem da leitura. Entretanto, Comenius sofreu incompreensão e decepção, pois os professores húngaros não colaboraram com o seu método, por falta de vontade e por não se sentirem com autoridade bastante para militar contra a preguiça e a indisciplina dos alunos. Em 1654, deixou a Hungria e retornou à Polônia, seguindo então para a Holanda.

Instalado em Amsterdã, sob a proteção da família De Geer e no gozo de prestígio sem igual na sociedade holandesa, no fim de 1657 publicou a Didática magna. Todavia, em 1670 adoeceu gravemente e, com a idade de setenta e oito anos, ainda redigiu um resumo de seus princípios pedagógicos, Spicilegium didactium (Didática especial), a fim de torná-los acessíveis ao magistério inculto da época, não muito afeito aos estudos de pedagogia. Faleceu no dia 15 de novembro de 1672, rodeado por parentes e amigos, e foi sepultado numa pequena igreja em Naarden.

Fotografia do túmulo de João Comênio, em Naarden, Holanda. 
2. A IMPORTÂNCIA DO PENSAMENTO DE COMENIUS PARA A EDUCAÇÃO ATUAL

No estudo da relevância do pensamento de Comenius para a educação atual é necessário pontuar alguns princípios fundamentais. Uma das razões pelas quais o pensamento de Comenius é pouco conhecido no Brasil está no fato de que alguns interpretam suas propostas educacionais fora de seu contexto histórico.11 Nesta forma de pensar, pode-se identificar a hermenêutica que Éster Buffa12 faz de Comenius, pois, ao partir do princípio de que a educação é um privilégio da burguesia, insere a célebre expressão de Comenius “ensinar tudo a todos”, parecendo afirmar que o “tudo” se refere somente até certo grau de educação, sendo que os graus mais elevados deveriam ser para um grupo seleto, que seriam os doutores, educados para as decisões políticas e a condução de outras pessoas. No mesmo contexto, ele declara que Comenius foi o criador do livro-texto (didático), cujo objetivo era difundir tais idéias político-educacionais.

Todavia, na análise de Comenius em seu contexto histórico, percebem-se as suas reais intenções ao instituir o livro-texto na escola, cuja finalidade era sistematizar e ordenar o ensino de maneira que um professor, por meio do livro didático, pudesse ensinar até cem alunos ao mesmo tempo.13

Estas concepções só surgem quando se conhece Comenius superficialmente. No momento em que o estudioso se fixa na análise e se debruça sobre esse pensador, as dúvidas são revertidas em admiração e desejo de uma pesquisa mais profunda a respeito de suas idéias.14 Constata-se, então, que os princípios educacionais de Comenius foram avançados para sua época, e quão atuais são suas propostas pedagógicas para o século 21. Algumas das propostas educacionais de Comenius foram relevantes e avançadas para o século 17 e até hoje se encontram ecos de tais concepções refletidos nas discussões educacionais da modernidade.

2.1 Diálogo de Comenius e Paulo Freire nas campanhas de Alfabetização

No estudo da concepção de Comenius a respeito do ser humano, verificasse que ele acreditava que o homem somente pode ser compreendido tendo como foco sua integralidade. Em outras palavras, o ser humano não pode ser fragmentado, pois ele é, em sua concepção, um “micromundo”, na medida em que é visto à luz das diferentes faces de sua existência: política, econômica, social, psicológica e religiosa.15

Sua compreensão do “homem” permite que ele, à semelhança de Paulo Freire, seja um dos idealizadores das campanhas de alfabetização cuja concepção metodológica consiste em ensinar a partir das coisas reais conhecidas. Esse princípio parece ser uma leitura bem próxima ao pressuposto de Paulo Freire,16 ainda que Comenius pontue uma compreensão teocêntrica do homem e Freire, uma concepção antropocêntrica. Para Freire, o homem não pode estar alienado do seu contexto social, e sim ativo nas discussões de seu mundo. Daí, a base de seu método educacional é permitir que o homem chegue a construir-se como pessoa e transformar o mundo em que vive.17

Bohumila Araújo assinala o princípio de que é possível estabelecer um diálogo entre Comenius e Paulo Freire:

"Paulo Freire, idealizador das campanhas de alfabetização cuja concepção metodológica em ensinar a partir das coisas reais conhecidas se aproxima tanto ao ideário comeniano, afirma que o diálogo é uma exigência existencial. E, se o diálogo é o encontro em que se solidarizam o refletir e o agir de seus sujeitos endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado, não pode reduzir-se a um ato de depositar idéias de um sujeito no outro, nem tampouco tornar-se simples troca de idéias a serem consumidas pelos permutantes. Quando o nosso contemporâneo Paulo Freire declara que não há diálogo se não existir um profundo amor ao mundo e aos homens, já que a pronúncia do mundo é um ato de criação e recriação, Comenius parece lhe responder em Consulta Geral sobre a Reforma das Coisas Humanas: “[...] europeus, asiáticos, africanos, americanos e os habitantes de quaisquer ilhas são todos povo de Deus, nascido do mesmo sangue, e todos devem amar-se como os ramos de uma árvore”. Mais adiante Comenius acrescenta: “Os nossos esforços devem conduzir a uma grande luz, uma grande verdade para todos, uma grande chama de amor, uma grande paz universal”. O diálogo pode prosseguir: de um lado, Freire opina que para haver diálogo, há de haver humildade: “a pronúncia do mundo, com que os homens o recriam permanentemente, não pode ser um ato arrogante”. Do outro lado, nas páginas iniciais da Didática magna, Comenius surpreende o leitor com as palavras de extrema despretensão: “Os que me conhecem de perto sabem que sou homem de inteligência medíocre e de limitada cultura [...]. Para finalizar o diálogo que se poderia estender por muitas páginas, vale a pena lembrar que Freire acha que o diálogo implica intensa fé nos homens, fé no seu poder de fazer e refazer. De criar e recriar. Fé na sua vocação de ser mais, que não é privilégio de alguns eleitos, mas direito dos homens [...]. A fé e a esperança, assim como o amor ao próximo, o amor que alimenta os princípios igualitários que Comenius professa com freqüência, são valores que não faltam no seu código de ações e representações e que, continuamente, reconstituem e atualizam a sua mensagem".18

Percebe-se que Comenius, mesmo tendo vivido no século 17 e tendo escrito para o seu mundo, ainda hoje encontra eco na educação moderna, a partir do pensamento de Paulo Freire, visto que ambos propunham conceber o homem como ser integral e ativo em seu contexto social e uma educação a partir do cotidiano.19

2.2 A influência de Comenius na psicologia do desenvolvimento mental de Piaget

Outro pensador que demonstra a atualidade do pensamento de Comenius é Jean Piaget, que inclusive prefaciou uma obra da Unesco, Páginas escogidas (1959), que contém uma coletânea de textos de Comenius. O título do prefácio é: La actualidad de Juan Amós Comenio (A atualidade de João Amós Comênio). No prefácio, Piaget pontua que Comenius foi além do seu tempo ao iniciar a discussão quanto ao conhecimento gradual da criança, proporcionando um ensino mais próximo da realidade infantil e, também, propondo que a criança a aprendesse a partir das coisas simples (concretas), passando para as complexas20.

Fica assim explicitada a importância de Comenius para a educação atual, tendo em vista que ele foi um dos primeiros a debater a respeito do desenvolvimento mental da criança. De certa maneira, o próprio Piaget declara que foi influenciado por Comenius na elaboração de suas propostas que tratam da evolução cognitiva da infância à idade adulta.21 Por conseguinte, a educação deve muito a esse pensador do século 17, que proporcionou ensino às crianças e mostrou que o seu desenvolvimento mental não era levado em conta.22

2.3 Comenius e a democratização do ensino da UNESCO

Um fator que demonstra a importância do pensamento de Comenius para a educação atual é sua preocupação com a democratização do ensino. Neste sentido, ele foi influenciado pela Reforma Protestante, que também propôs a democratização do ensino em países como a Alemanha e a Suíça. No estudo da educação com foco em Martinho Lutero, observa-se que seu interesse inicial em prover educação universal havia definhado e a população menos favorecida continuava analfabeta.23 É com Comenius, a partir do princípio pansófico, ou seja, “ensinar tudo a todos”, independentemente de sua nacionalidade e classe social, que algumas transformações começam ocorrer na área educacional.

Em sua concepção, tanto homens quanto mulheres deveriam ter acesso à educação.24 Comenius rompeu com a tradição daquele contexto e pontuou que o reconhecimento da dignidade e do direito à educação são inerentes a todos os membros da família, uma vez que todos são “imagem e semelhança de Deus”.25

Bohumila Araújo, a partir do princípio comeniano de que a dignidade e a educação são direitos inerentes a todos os membros da família, afirma:

"O espírito comeniano, na opinião da autora, está presente na Constituição da UNESCO, na Declaração dos Direitos Humanos e nos textos de vários projetos de leis e decretos, sobretudo na área da educação. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada a 10 de dezembro de 1948, pela Assembléia Geral das Nações Unidas (ONU), expressa os anseios da humanidade, saída do sofrimento da Segunda Guerra Mundial. O que se percebe é a preocupação de promover o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana, e isto comenianamente, nos moldes da fé cristã, sem discriminação racial, social, econômica ou religiosa".26

Ela está certa de que a preocupação em garantir oportunidade igual a todos levou Comenius a advogar a causa da democratização do ensino em suas obras pedagógicas, o que faz dele o percussor da UNESCO e da ONU,27 visto que ambas as instituições prescrevem o direito à educação e à manutenção da paz.28

2.4 Ecos do pensamento de Comenius na Lei de Diretrizes e Bases do Brasil (9394/96)

Além da importância do pensamento de Comenius conforme destacado acima, é mister explicitar princípios que apontam ecos do pensamento comeniano na LDB brasileira:

"As constantes referências a Comenius e ao seu ideário, a presença do seu pensamento no projeto da LDB, no Estatuto da Criança e do Adolescente, na Constituição Brasileira de 1988, sobretudo no que toca à democratização do ensino, dando oportunidade igual a todos, atestam as semelhanças surgidas das teias de relações de essência consideravelmente diferentes, trazendo incitamento à reflexão e abrindo perspectiva de caminhos e opções para solucionar alguns dos problemas mais urgentes do aqui e agora (hic et nunc). As unidades epocais se encontram comenianamente umas em relação com as outras, num permanente devenir na dinâmica da continuidade das idéias, temas das épocas, em constante interação sincrítica".29

2.5 A proposta de Comenius no uso de ilustrações e tecnologias nos métodos educacionais

Por fim, há necessidade de destacar que além da importância do pensamento de Comenius apontadas acima, há outros pesquisadores comenianos no Brasil30 que confirmam ser ele um dos primeiros responsáveis pela introdução de tecnologias aplicadas à educação,31 a partir do primeiro livro ilustrado dirigido à educação infantil.

Após refletir sobre a vida de Comenius, suas principais obras literárias e a relevância do seu pensamento para a educação atual, é necessário focar a atenção no conceito de educação, considerada por ele como remédio divino para a corrupção do gênero humano.32

3. A EDUCAÇÃO COMO REMÉDIO DIVINO PARA A CORRUPÇÃO DO GÊNERO HUMANO

Um dos focos da Didática magna está na antropologia, que é o coração da filosofia de Comenius.33 Ele reserva pelo menos seis capítulos para discorrer a respeito desta temática e afirma que o homem é um microcosmo, isto é, “a síntese do universo, que em si encerra implicitamente todas as coisas que se veem esparsas por todo o macrocosmo”.34 Entretanto, na antropologia comeniana não há espaço para o antropocentrismo. Ele concebe o ser humano como o ápice da criação, pelo fato de Deus tê-lo colocado nesta condição distintiva das demais criaturas35 ao criá-lo à sua “imagem e semelhança”, o que faz dele a criatura apta para entender e aprender todas as coisas.36 Para o autor da Didática magna, o homem nasceu com a capacidade de adquirir a ciência das coisas e aprender as diversas formas do conhecimento porque isso é resultado de sua criação por Deus.37

Em síntese, a antropologia-teológica comeniana apresenta o homem como a “coroa da glória de Deus”, a síntese de todas as coisas, pois nele foram “reunidos todos os elementos materiais, todas as formas e seus graus para exprimir toda a arte da divina Sabedoria”.38 Ora, se todos os homens foram criados por Deus conforme sua imagem e sua semelhança, infere-se que todos devem ser igualmente educados. Ninguém, inclusive as mulheres39 e os pobres,40 deve ser excluído, pois isso seria uma ofensa a Deus.41

Por causa da queda dos primeiros pais, Adão e Eva, registrada no livro de Gênesis, o gênero humano “foi lançado na solidão da terra, despojado das abundâncias do paraíso e o nosso corpo e alma ficaram expostos à dor”.42 O homem deixou de ser paraíso de delícias do Criador e se tornou “ingrato com aqueles bens com os quais Deus o havia suprido em abundância no paraíso, para o corpo e para a alma”.43

Comenius tem uma clara concepção das conseqüências da queda no gênero humano. Todavia, Deus usou de misericórdia e graça e não abandonou as suas criaturas, a coroa da criação, na solidão, mas por meio do seu próprio sangue as enxertou novamente no Paraíso de Deus.44 Assim, de novo verdejou o jardim das delícias de Deus, expresso na Igreja.45 Todavia, a própria Igreja, a nova plantação do Paraíso, degenerou-se a ponto de Deus lamentar a situação dessa nova plantação.46

Como prova da degeneração ou da corrupção da Igreja, Comenius apresenta os seguintes argumentos 47: 1) Tudo está revirado e confuso, está destruído ou está ruindo. Em lugar da inteligência, reina a estupidez. Em lugar da prudência ou da preocupação com as coisas eternas, preocupamo-nos com as coisas transitórias e terrestres, mesmo tendo consciência de que tudo é passageiro e a morte é iminente; 2) No lugar da sabedoria – cujo princípio fundamental deveria ser viver melhor e de forma mais adequada, afastamo-nos de Deus; 3) Na questão do amor – que deveria estar acima de tudo, há ódios recíprocos, inimizades, guerras e morticínios, iniqüidade, injúrias, opressões, furtos e assaltos. Por conseguinte, a corrupção do gênero humano se tornou uma realidade que causa perplexidade aos olhos dos que examinam as condições humanas ou da própria Igreja.4

A cura para a corrupção humana não está no engano dos homens, mas em examinar a realidade e em reconhecer que o problema existe e necessita ser tratado.49 Já que a Igreja de Deus, que seria outra forma possível para conter a corrupção do homem, não cumpriu sua finalidade, pois também se corrompeu, Deus em sua misericórdia criou caminhos, modos e meios para corrigir a corrupção do gênero humano e dentre os meios criados, a educação foi o caminho mais eficaz para tal correção: “As Santas Escrituras nos ensinam primordialmente que não há caminho mais eficaz para corrigir a corrupção humana que a correta educação da juventude”.50

A partir desse pressuposto, outras citações de Comenius na Didática magna são fundamentais para a compreensão do seu conceito de educação, tendo em vista que ele acrescenta cada vez mais valor à palavra educação e demonstra como ela poderá alcançar o seu objetivo.

No início da Didática magna Comenius demonstra os seus objetivos:

"Nós ousamos prometer uma Didática Magna, ou seja, uma arte universal de ensinar tudo a todos: de ensinar de modo certo, para obter resultados; de ensinar de modo fácil, portanto, sem que docentes e discentes se molestem ou enfadem, mas ao contrário, tenham grande alegria; de ensinar de modo sólido, não superficialmente, de qualquer maneira, mas para conduzir à verdadeira cultura, aos bons costumes, a uma piedade mais profunda [...]".51

Observa-se que o objetivo da Didática magna é preconizar “uma arte universal de ensinar tudo a todos”, de modo correto, fácil e de maneira que o ensino traga alegria ao homem e não enfado. Também vale ressaltar, nas palavras de Comenius acima, que a educação somente alcançará o seu real objetivo se produzir no homem três princípios fundamentais: a verdadeira formação cultural ou ensino, os bons costumes ou moral e a mais profunda piedade.

Ao criar o homem, Deus o dotou com uma mente infinita e adicionou os órgãos dos sentidos que servem para ajudá-lo na questão do conhecimento. É por intermédio desses órgãos que a mente chega a todos os objetos externos, para que nada possa ficar oculto. Segue, assim, que “nada há no mundo que um homem dotado de sentidos e razão não possa compreender”.52

Todavia, alguém poderia objetar quanto à razão pela qual algumas pessoas, aparentemente, não conseguem aprender as coisas. Comenius responderia que a mente humana, por natureza, tem a semente do conhecimento; entretanto, deve ser despertada para tal fim: “Estão lâmpada, candeeiro, óleo e pavio, e tudo o que é necessário: quem souber produzir a centelha, acolhê-la, acender a luz poderá ver – belíssimo espetáculo – os maravilhosos tesouros da divina sabedoria”.53

Todavia, deve-se ressaltar que para Comenius há duas razões pelas quais a pessoa não aprende: 1) o pecado humano; 2) a falta de habilidade do preceptor.54 A função da escola e do docente é despertar a inteligência dos alunos. Para que ela seja uma “verdadeira oficina de homens”,55 é necessária a consciência de que não só o ensino é relevante, mas também a moral. Esta é compreendida como a arte de formar costumes56 e possui dezesseis cânones fundamentais.57 No contexto da moral, os pais devem dar exemplos de honestidade, serem perfeitos guardiões da disciplina familiar, manterem os filhos longe das más companhias. Tendo em vista que os males são aprendidos com maior facilidade,58 as amas e os preceptores devem ser exemplos de orientação e cuidado aos jovens,59 já que a moral é parte integrante do ensino transformador.

Além da moral, Comenius acrescenta à educação ou ao ensino a piedade, definida por ele da seguinte forma:

"[...] é o nosso coração – impregnado pelo reto sentimento, no que se refere à fé e à religião – saber buscar Deus em toda parte [...] segui-lo por onde quer que tenha estado, frui-lo onde quer que seja encontrado".60

Nesse contexto, Comenius pontua que o modo de haurir a piedade é por meio da meditação das Escrituras, da oração e da perseverança na provação.61 Assim, o conhecimento e as ações humanas devem ter como objetivo final o louvor e o amor a Deus. Todavia, por nem sempre se encontrar a piedade nos corações humanos, Deus deixou três fontes de onde se pode extraí-la: das Escrituras Sagradas, do mundo e de nós mesmos.62

No texto da Didática magna fica explicitado que a Bíblia era o livro fundamental de Comenius63 e ela deveria exercer a primazia em sua vida e em qualquer matriz curricular, tendo em vista ser ela suficiente para toda forma de conhecimento.64 Para ele os autores não cristãos pouco podiam contribuir para um adequado conhecimento das coisas. Ao contrário, propunha aos cristãos de sua época que imitassem o cristianismo grego, que proibiu o uso da literatura pagã entre seus membros e em suas escolas.65

No estudo de Comenius fica explícito que o ensino, a moral e a piedade são indissociáveis e fundamentais para a compreensão do seu conceito de educação66, pois ele não distingue seu pensamento pedagógico do teológico e vice-versa, uma vez que seu objetivo é indicar que a finalidade da educação é conduzir o homem a Deus e fazer dele “paraíso de delícias do Criador”.67

É com isso em mente que Comenius demonstra ser a educação o meio eficaz para a cura da corrupção do gênero humano e que ela somente cumprirá o seu objetivo de reconduzir o homem a Deus68 se estiver fundamentada nos princípios do ensino qualitativo, nos bons costumes ou moral e na mais profunda piedade69: “os três ornamentos da alma (ensino, moral e piedade) não devem ser separados”.70 Percebe-se assim que, na concepção comeniana, não só a piedade é importante. É fato que a finalidade do ensino é conduzir à piedade; todavia, o caminho para a piedade é a moral e o ensino,71 de maneira que para Comenius a piedade, os bons costumes e a instrução são princípios indissociáveis e não pode haver entre eles valor maior para um ou para outro, pois todos estão na mesma situação de igualdade.

Por entender que a educação atenta e prudente, fundamentada no ensino, na moral e na piedade da juventude, seria o remédio divino para a cura da corrupção do gênero humano, ele exorta os seus leitores, uma vez conscientizados quanto à seriedade e à importância de sua obra, a não qualificá-lo como temerário por ter ousado escrever e prometer na Didática magna um único “método que ensine tudo a todos”.72 E é assim que, segundo Cauly, surge pela primeira vez na Europa, uma ciência sistemática da educação, isto é, a pedagogia:

A pedagogia de Comenius não teria provavelmente visto a luz do dia sem esta fé na educação, enquanto meio de reconduzir os homens à verdade [...] uma religião da educação, que recorre [...] à fé na sua capacidade de salvar o homem das trevas onde parece estar imerso.73

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir daí, uma obra de tão grande valor não poderia ficar restrita à Morávia ou a um determinado grupo religioso, mas deveria se tornar acessível a todos os homens. Motivado, então, a escrever a Didática tcheca, com o mesmo princípio traduziu-a do tcheco para o latim e denominou-a Didática magna, a fim de que ela pudesse ser mais facilmente compreendida e estivesse ao alcance de um público maior.74 Ele “colocava aquilo que o Senhor lhe concedeu observar à disposição de todos”, para que se tornasse algo comum.75 Fica explicitado aqui que para Comenius a educação é oriunda da graça e misericórdia de Deus e que serve como remédio divino para a cura do gênero humano, desde que esteja fundamentada na indissociabilidade do ensino, da moral e da piedade.76

NOTAS: 
* O autor é bacharel em teologia pelo Seminário Rev. José Manoel da Conceição; mestre em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie; doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo, e professor da Escola Superior de Teologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
1COMENIUS, J. A. Didática magna. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 26.
2 LOCHMAN, J. M. Acta comeniana. In: Comenius as theologian. Praga: Akademie ved Ceske Republiky, 1993, v. 10, p. 35.
3 LOPES, E. P. A inter-relação da teologia com a pedagogia no pensamento de Comenius. São Paulo: Mackenzie, 2006, p. 93.
4 COVELLO, S. Comenius: a construção da pedagogia. São Paulo: Editora Comenius, 1999, p. 16.
5 CAULY, O. Comenius: o pai da pedagogia moderna. Lisboa: Instituto Piaget, 1995, p. 43, 48.
6 LOPES, E. P. O conceito de teologia e pedagogia na Didática Magna de Comenius. São Paulo: Editora Mackenzie, 2003, p. 77.
7 COVELLO, Comenius, p. 30.
8 COVELLO, Comenius, p. 30.
9 CAMBI, F. História da pedagogia. São Paulo: Unesp, 1999, p. 285.
10 Comenius não exerceu influência sobre os principais educadores ingleses, o que indica que foi vã a sua presença naquele país.
11 CAPKOVÁ, D. On the impact of J. A. Comenius on the theory and pratices of education. In Symposium Comenianum. Praga, Press, 1984, p. 11.
12 BUFFA, E. Educação e cidadania: quem educa o cidadão? In: Educação e cidadania burguesa. São Paulo: Cortez, 1986.
13 Para maiores esclarecimentos sobre essa discussão, ver LOPES, A inter-relação da teologia com a pedagogia no pensamento de Comenius, p. 15-26.
14 COLOMBO, L. O projeto de Comenius: um paradigma para o ciberespaço. A criação de um novo espaço do saber com a tecnologia. São Paulo, 2002, Dissertação de Mestrado em Educação, Arte e História da Cultura. Universidade Presbiteriana Mackenzie, p. 12.
15 COMENIUS, Didática magna, p. 59.
16 FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 15ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983, p. 45.
17 FREIRE, Paulo. Conscientización. Buenos Aires: Búsqueda, 1974, p. 42.
18 ARAÚJO, B. S. A atualidade do pensamento de Comenius. Salvador: Edufba, 1996, p. 133-
135.
19 FREIRE, Paulo. Política e educação. 4ª ed. São Paulo: Cortez, 2000, p. 27.
20 PIAGET, Jean. Páginas escogidas. In: La actualidad de Juan Amós Comenio. Buenos Aires: A.Z. Editora; Orcalc, Ediciones Unesco, 1959, p. 35, 39.
21 Ibid., p. 52.
22 LOPES, A inter-relação da teologia com a pedagogia no pensamento de Comenius, p. 21.
23 TUTTLE, M. Zinzendorf and the Moravians. In: Christian history, v. 1, nº 1, 1982, p. 22, 23.
24 LOPES, O conceito de teologia e pedagogia na Didática Magna de Comenius, p. 91.
25 COMENIUS, Didática magna, p. 53.
26 ARAÚJO, A atualidade do pensamento de Comenius, p. 88.
27 LOPES, A inter-relação da teologia com a pedagogia no pensamento de Comenius, p. 22.
28 Para esclarecimento, ler o artigo 26 da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em www.dhnet.org.br/direitos/deconu/textos/íntegra. Acesso em 17/02/2008.
29 ARAÚJO, A atualidade do pensamento de Comenius, p. 133.
30 CUNHA, A. A. A contribuição de Comenius para a pedagogia moderna. Trabalho de Gradução Interdisciplinar, Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2007.
31 COLOMBO, O projeto de Comenius, p. 12.
32 COMENIUS, Didática magna, p. 15, 19, 23, 27, 29.
33 KAVKÁ, F. Korespondence J. A. Komenkého. Praha: Karolnum, 1892, p. 247.
34 COMENIUS, Didática magna, p. 59.
35 Ibid., p. 41, 42.
36 Ibid., p. 60.
37 Ibid., p. 58.
38 Ibid., p. 21, 22.
39 Ibid., p. 91.
40 Ibid., p. 90.
41 Ibid., p. 89.
42 Ibid., p. 22.
43 Ibid.
44 Ibid., p. 23.
45 Ibid.
46 Idem, p. 24.
47 Ibid.
48 Ibid.
49 Ibid., p. 25.
50 Ibid., p. 27.
51 Ibid., p. 13.
52 Ibid., p. 60.
53 Ibid., p. 61.
54 Ibid., p. 62.
55 Ibid., p. 103.
56 Ibid., p. 263-270.
57 Para discussão mais aprofundada, ler LOPES, A inter-relação da teologia com a pedagogia no
pensamento de Comenius, p. 172-176.
58 Ibid., p. 269.
59 Ibid., p. 268.
60 Ibid., p. 270.
61 Ibid., p. 273.
62 Ibid., p. 272.
63 Para discussão mais aprofundada, ler LOPES, A inter-relação da teologia com a pedagogia no
pensamento de Comenius, p. 140-157.
64 Ibid., p. 142.
65 Ibid., p. 141.
66 COMENIUS, Didática magna, p. 97.
67 Ibid., p. 26.
68 Ibid., p. 29.
69 Ibid., p. 11, 97, 98.
70 Ibid., p. 97.
71 Ibid., p. 11.
72 Ibid., p. 15.
73 CAULY, Comenius, p. 43, 45.
74 COMENIUS, Didática magna, p. 18.
75 Ibid., p. 16.
76 Ibid., p. 143.

Fonte: LOPES, Edson Pereira. O conceito de educação em João Amós Comenius. In: Fides Reformata XII, n. 2, 2008, p. 49-63.