domingo, 30 de outubro de 2016

Os druidas

Os druidas

prof. Dr. João Lupi


1. O que hoje em dia se pode dizer sobre os druidas parece oscilar entre dois extremos: ou o quase nada, ou o excessivo. Entre os dois ficam mais hipóteses e interrogações do que conhecimentos válidos. O quase nada é constituído por: as poucas referências de escritores gregos e latinos, mormente o texto de Júlio César no De Bello Gallico que mal enche uma página; a perplexidade ou paradoxo de uma escrita ogâmica que existiu para não revelar os ensinamentos dos druidas; a estranheza que nos causa a afirmação de Estrabão de que todos os grupos celtas tinham seus druidas, quando só sabemos da existência deles na Gália e nas ilhas Britânicas. Se a esse muito pouco se acrescentar a crítica às opiniões do conquistador e dominador dos gauleses, então do texto de César fica mesmo quase nada.

O “excessivo” fica por conta de todas as idealizações que ingleses e franceses fizeram acerca dos druidas desde o século XVI, à procura de antepassados nobres e dignos que os colocassem a par com a civilização greco-romana – e com esse ideal imaginaram sacerdotes ecológicos, sábios de mistérios fantásticos, adivinhos quase profetas, conhecedores dos segredos da natureza, com poderes para fazer poções mágicas; e estes exageros deram lugar a uma tão ampla literatura sobre os druidas, com inúmeros livros imperdíveis que parece que mais nada há a dizer. Entre as interrogações que ficam pelo meio estão as narrativas dos monges irlandeses, que tão depressa cortam informações acerca dos druidas (para não ofender nem o cristianismo nem aqueles que ainda respeitavam as doutrinas tradicionais) como destacam o lado anti-cristão dos druidas para justificar o seu banimento.

Para resistir à tentação de não dizer nada – já que nada de novo parece que se pode dizer – só temos três débeis motivos: a pouca bibliografia em língua portuguesa sobre este tema, a necessidade de fazer um panorama tanto quanto possível atualizado dos conhecimentos disponíveis, e a possibilidade de algum ponto de vista interessante que possa surgir ao olhar este panorama – assim como uma linda paisagem, que pode ter sido admirada por milhões de pessoas, mas que nem por isso afasta quem nunca a olhou, e vai lá na esperança de descobrir o que os outros não perceberam. Porém, mesmo os estudiosos mais atentos e criteriosos que investigaram os druidas não escaparam à tentação de arriscar hipóteses e opiniões incertas, e por isso não vamos eliminá-las facilmente: num caso como este uma observação sugestiva e razoável vale como um estímulo para que outros a comprovem, ou a descartem – e é o risco que vamos correr.

2. Comecemos por uma visão rápida dos testemunhos clássicos e demos a prioridade aos gregos. Diodoro Sículo (entre séc. I a.C./ séc. I d. C., em Histórias V, 28, 6 e V, 31, 2-5) diz que os druidas eram filósofos e teólogos de nível superior, que à maneira dos pitagóricos acreditavam na reencarnação das almas, e que eram curandeiros e adivinhos respeitados. Estrabão, contemporâneo de Diodoro (Geografia IV, 4, 197, 4) cita os bardos, de quem Diodoro também falou, os adivinhos e os druidas, e destes diz que são fisiólogos (naturalistas) e mentores da filosofia ética.

Dion Crisóstomo (início do séc.II, nos Discursos 49) diz que os druidas se ocupavam com todo tipo de sabedoria e que não só eram conselheiros dos reis como em tudo os reis seguiam as suas normas e diretrizes. Diógenes Laércio (séc.III d. C., em Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, I, 1 e 6) inclui os druidas entre os sábios das outras civilizações – persas, babilônios, assírios, indianos e egípcios e deles diz que eram homens “ veneráveis (...) que expunham suas doutrinas por meio de enigmas, exortando os homens a reverenciar os deuses, a abster-se totalmente de más ações e a ser corajosos “ – mas compara-os neste ponto aos ginosofistas indianos (os sábios nus, geralmente se supõe que fossem os brâmanes, mas podiam ser ioguis).

Entre os cristãos helenísticos falaram dos druidas: Clemente de Alexandria (c.153-220, nos Stromata I, 15), Hipólito (c. 170-236 na Refutação das heresias I, 22), Orígenes (c.185-254 no Contra Celso I, 16) e ainda Cirilo de Alexandria (c.380-444 no Contra Juliano IV, 133). Hipólito e Clemente relacionam os druidas com as doutrinas pitagóricas e com a adivinhação e magia; são muito venerados pelos celtas, diz Hipólito porque sabem fazer certos cálculos com números e profetizar o futuro, e também praticam rituais mágicos; e Clemente (que era de Atenas) ao explicar como a filosofia grega teve sua origem entre os povos de outras culturas (bárbaros) afirma: “ E assim a filosofia, que é de qualidade tão elevada, floresceu na antiguidade entre os bárbaros, iluminando as nações, antes de chegar à Grécia; sua fileira inicial foi constituída pelos sábios egípcios, e pelos caldeus entre os assírios, e os druidas dos gauleses, e os samaneus da Bactriana, e os filósofos dos celtas, e os magos dos persas, que anunciaram o nascimento do Salvador, e chegaram à Judéia guiados por uma estrela, e os ginosofistas indianos (...).

Clemente lembra ainda que Pitágoras teria estudado com os gálatas e com os brâmanes. Orígenes, que foi aluno de Clemente cita os druidas da Gália (toûs galatoôn druidas) entre os povos antigos de elevada sabedoria, mas para criticar Celso (um romano do séc.II d. C.) que estimava os druidas acima dos judeus; o mesmo Orígenes no Comentário ao Livro de Ezequiel (apud. Ellis, 132) afirma que os druidas da Bretanha veneravam um deus único antes da chegada do cristianismo e que assim ensinavam o povo, e por isso os celtas estavam predispostos desde antigamente a receber o batismo.

Quanto a Cirilo sua obra foi escrita por volta de 435 para refutar a crítica do imperador Juliano aos cristãos (em Contra os Galileus) e a referência aos druidas é apenas de passagem. Entre as muitas observações que se podem fazer acerca destes escritos gregos é preciso notar antes de mais que as coincidências entre eles, como as listas de povos antigos de Clemente e de Diógenes, denotam a falta de conhecimento direto dos druidas e a presença de uma ou mais fontes comuns, mais antigas, que geralmente se crê sejam os escritos de Timagestes, e a História de Possidônio de Apaméia (c. 135-50 a . C.) de que não restam senão fragmentos esparsos; mas parece que Possidônio teria visitado a Gália, e que seu testemunho era bem fundamentado.

A segunda observação é que no conjunto estas afirmações constituem um acervo muito diminuto quando comparado com o imenso volume de obras em grego; no entanto são significativas, pois são notáveis certas opiniões comuns: já é de estranhar que os celtas sejam colocados a par com outros povos que criaram civilizações tidas como muito mais elaboradas, que tiveram amplo uso da escrita, impérios organizados, grandes cidades – como os indianos, assírios, e egípcios – o que nos leva a uma dupla interrogação: os druidas são citados devido à importância dos celtas, ou os celtas é que são citados pela fama dos seus druidas?

Mas os celtas não gozavam de tão boa reputação, portanto é mais provável que eles é que sejam citados devido à importância dos druidas. Mais: mesmo que todos eles falem do que ouviram dizer ou leram em Possidônio, Timagestes ou outro autor anterior a eles, alguma fama dos druidas deve ter permanecido para que não omitam a referência. Portanto colocá-los a par com os magos persas e os brâmanes é um indicador válido do respeito que eles gozavam entre os “civilizados”. Ressalte-se ainda a repetição da referência aos pitagóricos: deveria ser voz comum, não tanto pela matemática celta mas pela aura de ocultismo e mistério que os rodeava. Vejamos agora o que dizem os romanos.

Júlio César (c. 100-44 a.C.) é a referência dominante acerca dos celtas e dos druidas (De Bello Gallico ou A Guerra da Gália VI 4, 13, 14, 16, 18, 21): além de alguns dados sobre a religião – deuses, rituais, sacrifícios, moral – oferece informações sobre a organização dos druidas e suas funções: a eleição de um druida-mor, a reunião anual na floresta dos Carnutos, a função sacerdotal ou de presidência dos ritos, a de mestre da juventude, e a de juiz; fala também da isenção do serviço de guerra, da aprendizagem de longos poemas, e da recusa em colocar por escrito os seus ensinamentos; os druidas, diz César, são muito interessados nas coisas do mundo físico: astronomia e natureza.

Seu contemporâneo Cícero (106-43 a . C. em Sobre a adivinhação I, 41, 90) é o único que diz ter conhecido um druida: Divicíaco o Eduano, hóspede de seu irmão; mas pouco nos conta das conversas que teve com ele: apenas que sendo um bom conhecedor da natureza era o que os gregos chamam um fisiólogo, e que era áugure ou adivinho.

Plínio (c.23-79; na História Natural XVI 249) refere-se à magia dos druidas e aos conhecimentos deles sobre os céus e os astros e dá-nos uma descrição dos rituais do corte do visco no carvalho – é ele que nos fala das vestes brancas dos druidas neste ritual; Plínio estava interessado em saber e divulgar as propriedades medicinais das plantas e animais e descreve ainda o uso que os druidas faziam de outras ervas como selago, e samolo e explica detalhadamente os misteriosos ovos de serpente (XXIV 103-104; XXIX 52) mas mostra evidente desconfiança acerca da validade de tais usos e inclusive considera exagerado o fascínio que a Bretanha tinha pela magia (Britannia attonita celebrat tantis caerimoniis) parecia até que os bretões achavam que foi com os druidas que os magos persas aprenderam (XXX 13).

Pompônio Mela (séc. I d.C. em De Situ Orbis ou Geografia III 2, 18-19) considera que os druidas são grandes sábios e mestres que se dedicam ao estudo dos céus e dos astros. Seu contemporâneo Lucano (39-65 no poema Pharsalia I, 450-458) também se refere aos conhecimentos de astronomia, mas tal como Suetônio (69-140 em Claudius 25) reputa os rituais dos druidas desumanos e selvagens. Tácito (c. 56-120 nos Anais 14,30) narra a cena das mulheres enfrentando as legiões ao som das imprecações dos druidas que incitavam os celtas à batalha; e conta a destruição dos vencidos, que entretanto se dedicavam a superstições selvagens; ao falar das profecias dos druidas acerca do Império (Histórias IV 54) Tácito considera-as vãs superstições.

Os autores da História Augusta (século IV) Lamprídio (no capítulo de Alexandre Severo 59, 5) e Vopiscus nos capítulos sobre Numeriano 14, e Aureliano 43) citam a existência de mulheres druidas ( mulier Dryas, dryde mulier) das quais se contavam profecias. Ausonio (c. 310-395 em Commen. Professorum IV 7-10 e X 22-30) cita Febício, um homem “da estirpe“ dos druidas, natural da Armórica (Bretanha francesa) guarda do templo de Beleno, que foi professor em Bordéus. Amiano Marcelino (c. 330-400 em O Final do Império Romano XV 9) distingue os druidas (drasidae) dos adivinhos-profetas (euhagis) e dos bardos considerando os druidas como grandes intelectuais (ingeniis celsiores) aproxima-os dos pitagóricos e diz que se dedicam ao estudo das coisas mais sublimes e ocultas desprezando as coisas humanas comuns.

Após analisar detidamente os testemunhos dos romanos e de relacioná-los com o contexto histórico Kendrick (o. c. 98-99) é taxativo: até à época do Império os druidas gozavam de excelente reputação mas rapidamente a perderam, e aos olhos dos romanos eles se foram convertendo cada vez mais numa classe religiosa dedicada a superstições e feitiçarias. Mas Ellis (o. c. 60-61, 74, e 77) tem outra opinião: ele julga quase todos os escritores, tanto romanos como gregos (particularmente Estrabão) do tempo do Império favoráveis à política de ocupação e domínio, e suas críticas aos druidas seriam devidas mais à intenção de justificativa da conquista do que ao desprestígio dos druidas.

Mesmo assim, por mais que se deva relativizar os conhecimentos que os romanos tinham dos druidas há aspectos em que há uma tal coincidência, ou reforço de opiniões vindas de diversos lugares e épocas, que a margem de dúvidas se estreita; resumindo: os druidas eram intelectuais de alto valor, equiparáveis aos sábios de outros povos mais eruditos; seus conhecimentos mais ocultos tinham semelhanças com os dos pitagóricos; tinham especial sabedoria acerca da natureza em geral tanto da astronomia e cosmologia como dos reinos animal e vegetal; e exerciam funções jurídicas, e políticas além das pedagógicas.

Parece, pois que, aos olhos dos intelectuais seus contemporâneos podemos considerar os druidas como uma classe sacerdotal sociologicamente bem definida e com características ou traços que desenham um certo tipo ideal que pode ao menos ser tomado como ponto de partida razoavelmente seguro. Porém ao menos num aspecto os comentadores têm sérias dúvidas acerca da opinião clássica sobre os druidas: é no que toca a considerá-los “filósofos”. Vamos pois analisar os druidas apenas sob estas duas categorias: como classe social, e como fisiólogos.

3. Na organização social Estrabão diz (Geografia IV 4, 197-198), que todos os celtas têm três classes de homens que são especialmente venerados: bardos (bardoi), adivinhos (uáteis, vates) e druidas (druidai) . É a única afirmação disponível que estabelece a classe social dos druidas como própria de todos os celtas, pois os testemunhos da época só nos falam dos druidas dos gauleses – por vezes chamados de gálatas; das ilhas só sabemos da existência dos druidas por documentos posteriores ao seu declínio ou desaparecimento, e de todos os outros celtas nada sabemos; as fontes de informação – arqueologia, filologia, cultura popular, toponímia, e epigrafia –não oferecem muitos dados que esclareçam o que nos chegou dos textos apresentados, e os escritos do período cristão devem ser sujeitos a cuidadosa crítica; contudo diversos autores consideram a opinião de Estrabão verosímil(MCCANA 14 e 19; GUYONVARC’H 147; mas HUBY 604 discorda).

A reconstituição da organização e saber dos druidas opera pois sobre bases frágeis: os relatos gregos e romanos, completados com as informações dos monges britânicos e irlandeses, e a verosimilhança do alargamento de suposições dentro do quadro cultural geral ou de cada grupo celta. Podemos assim desenhar a estrutura básica da organização dos druidas como uma classe coesa, liderada por um druida principal, havendo regras para a sua eleição; tal procedimento supõe que os druidas da Gália mantinham entre si um estreito relacionamento, que havia algum tipo de normas de comportamento e de continuidade de doutrina que os unia, e que esse relacionamento se fortalecia a quando da reunião anual na floresta dos Carnutos, onde realizavam um conclave (reunião privada e exclusiva).

Há indícios, mas não a certeza, de que também na Irlanda existia um druida-mor – em A Vida Tripartida de São Patrício (II, 325, citado por JUBAINVILLE 79-80) fala-se de um chefe druida irlandês, mas pode ser um cargo eventual, ou uma citação espúria, sem confirmação. Acerca da vida privada dos druidas parece não haver dúvidas de que podiam casar, ter propriedades e manter atividades políticas; embora isentos do serviço militar acompanhavam os guerreiros e incitavam-nos à luta.

Mais discutida é a distribuição das três ordens, que segundo Estrabão eram exercidas por grupos distintos, mas outras fontes consideram que constituíam uma só ordem – a druídica – com funções distintas: a sacerdotal, a poética, e a divinatória. A favor desta opinião estão os testemunhos de que os druidas exerciam a profecia e a adivinhação, e que eram poetas compositores, declamadores e músicos.

Segundo esta hipótese a especialização e autonomia dos bardos e adivinhos teria se originado do progressivo declínio do reconhecimento social e do poder dos druidas; mesmo que se tenha em conta os reparos de Ellis o declínio se deu em virtude dos decretos imperiais: primeiro o de Augusto que os excluiu da cidadania romana, depois o decreto senatorial do tempo de Tibério que proibiu a sua existência, e finalmente o de Cláudio em 54 que aboliu por completo os druidas.

O que estranha é que três decretos sucessivos em pouco mais de cinquenta anos não impediram que três séculos depois ainda se falasse deles (Ausonio, Amiano Marcelino, e Cirilo de Alexandria) como de uma classe social e religiosa importante e respeitável. Porém é evidente que cada escritor, grego ou romano, dá uma opinião diversa sobre as três ordens, suas funções e seu relacionamento; esta confusão pode provir da variedade de fontes, das diferenças de tempo e de lugar, ou do próprio autor que distorceu informações.

Por essa razão os comentadores e intérpretes contemporâneos apresentam cada um uma distribuição diferente das três ordens, e Jubainville (o. c. 19-25) ainda indica outra: a divisão em druidas, gutuatri, e uati (adivinhos); os gutuatri estão atestados por alguns testemunhos, mas como ordem são pouco conhecidos. Do que não restam dúvidas é de que as três funções existiam, que ao menos em certas circunstâncias foram exercidas por personagens distintos, e que os druidas eram considerados muito superiores aos bardos e aos adivinhos. A evolução dos filidh na Irlanda parece confirmar esta hipótese: eles teriam surgido no seio da classe social dos druidas, foram ganhando importância como poetas e sábios – em letras e literatura – ao ponto de alguns deles já se equipararem aos druidas no início do período cristão, e tornaram-se seus herdeiros quando ingressaram nas fileiras do cristianismo e dos mosteiros.

4. A sabedoria dos druidas era, como se viu, famosa entre gregos e romanos: sacerdotes e teólogos, eram ainda fisiólogos e cosmólogos, poetas e adivinhos, políticos e pedagogos. Que eram sacerdotes encarregados de presidir os sacrifícios e o ritual, e portanto detentores dos conhecimentos acerca do simbolismo litúrgico, não há dúvida; como também não se duvida de que eram teólogos, criadores e intérpretes das doutrinas acerca da mitologia, das características dos deuses, das formas de prestar-lhes culto, de como as pessoas deviam comportar-se de acordo com normas éticas baseadas em princípios religiosos; também se reconhece geralmente que detinham habilidades no uso da linguagem como poetas e narradores, o que implicava a música, e certamente o domínio, entre os irlandeses, da escrita ogâmica, e a acreditar César, o uso do alfabeto grego entre os gauleses; é certo que conheciam as leis e os princípios de aplicá-las como juristas, juízes e conselheiros políticos.

Estas são qualificações que, com as reservas e detalhes de tempo e lugar, se aplicam aos dois grupos de druidas que razoavelmente se conhecem: gauleses e irlandeses, e, com menos certeza porque são muito menos conhecidos, aos outros celtas: bretões, cruthin (pictos) e galeses. Mas acerca das demais atribuições de sabedoria há sérias dúvidas. A primeira é sobre os conhecimentos matemáticos, que os aproximariam dos pitagóricos e fariam deles hábeis astrônomos. Porém os pitagóricos como escola autônoma na Grande Grécia desapareceram no século IV a . C. e não há indícios de que antes ou depois tivessem se difundido muito para o norte.

O nome “pitagórico“ significou muito mais um estudioso das ciências ocultas do que um teórico da matemática; ora o que seja “oculto“ é muito relativo e não é raro chamar-se “ciência oculta“ aquela da qual não sabemos nada porque não temos acesso a ela. Gregos e romanos pouco podiam saber dos conhecimentos dos druidas porque estes não os escreviam – de acordo com César, mas há reparos a fazer neste ponto – nem os revelavam fora do seu grupo étnico. Contentavam-se com ensinar ao povo os comportamentos religiosos e morais, e aos políticos as diretrizes de governo e a sua aplicação prática.

Outros saberes que detinham não revelavam, e esse conjunto de sabedoria impressionava gregos e romanos que os comparavam ao que de mais semelhante tinham conhecido: os pitagóricos. Não há indícios de que os druidas dominassem algum tipo de ciência matemática numérica aplicável à astronomia; o calendário dito de Coligny, no entender de Kendrick (o . c.115-120) e também de A . H. Allcroft e Lewis Spencer (citados por Ellis 273-274) não passa muito além dos conhecimentos de alguns povos ágrafos acerca do ciclo do sol e da lua e é muito mais romano do que celta; contudo Mac Cana o. c. 90 legenda 2) considera que “seu conteúdo é claramente independente do calendário romano”.

Contudo Ellis, que se apoia mais no estudo dos druidas insulares do que no dos druidas do continente, rebate estas reticências com alguns argumentos; o primeiro seria o fato de ter havido entre as populações de cultura megalítica anteriores aos celtas um conhecimento muito apurado dos ciclos solares e lunares, que está presente nos monumentos do tipo Stonehenge, e que os celtas teriam herdado – esta opinião teria forte respaldo nas hipóteses acerca da difusão da cultura celta, que concedem muito mais importância à herança pré-histórica dos celtas (com esta opinião concordam também MACCANA 64) ao ponto de ter havido quem defendesse a tese de que o druidismo é uma religião pré-céltica (Pokorny, em 1908, cit. HUBY, 611 n.13; ao que GUYONVARC’H 67 contesta negando terminantemente).

Brendan Lehane (1993, 195) diz: algumas particularidades da sabedoria irlandesa vêm do druidismo e têm suas raízes na religião megalítica, e na Europa Ocidental a Irlanda é “a única região que pode dizer que aprendeu com ela”. Outro argumento é o estudo da terminologia goidélica; de fato, no vocabulário gaulês e galês, não restaram nomes nativos referentes aos astros, o que deveria ter acontecido se a sua astronomia fosse muito desenvolvida – mas esses celtas foram muito romanizados, o que explicaria a perda da terminologia própria; mesmo no irlandês moderno não há vestígios de conhecimentos próprios que deixassem marcas no vocabulário; por exemplo: astrologia diz-se astralaíocht, zodíaco é stoidíaca, eclipse é éiclips, Saturno é chamado Sathurn, etc.

Ellis (o. c. 275-280) segue porém um caminho engenhoso: procurando no vocabulário manês (ilha de Man, entre a Irlanda e Gales) e escocês encontrou termos nativos, não romanizados e procurando no irlandês termos semelhantes trouxe à tona um vocabulário no qual, apesar da mudança de significados, se reconhecia a existência de uma antiga terminologia druídica acerca da astronomia. Por outro lado, se não há indícios de conhecimentos matemáticos elaborados e numéricos encontram-se jogos tradicionais (Ellis o.c. 270-271) galeses e irlandeses que implicam um saber matemático complexo a que poderíamos chamar de “percepção intuitiva de conjuntos“ que explicaria a capacidade de compreender e analisar ordenamentos complexos como os do zodíaco.

Há ainda outro argumento a favor da astronomia druídica que é a existência de astrônomos irlandeses atuantes na Europa continental nos séculos VIII e IX e que faziam uso, ao que parece, de conhecimentos herdados dos druidas. Entre eles conhecemos Fergal, monge irlandês, que foi bispo-abade de Salzburgo com o nome de Virgílio, e cujos escritos sobre astronomia e cosmografia foram reportados ao Papa Zacarias (741-752) por um escandalizado Bonifácio de Crediton; Fergal, que tinha a seu lado outro bispo irlandês de nome Dubdachrich, também astrônomo, defendia entre outras coisas inauditas a existência de um mundo subterrâneo habitado semelhante ao sublunar – crença característica dos druidas; outro astrônomo irlandês foi Dungal de Bangor que em 810 explicou os eclipses a Carlos Magno; e ainda Diciul que em 825 escreveu um tratado de geografia notável, e outro de astronomia – A Medição do Orbe Terrestre – do qual existe cópia na Biblioteca de Valenciennes, na França (o tratado foi publicado em 1907 e até hoje é quase desconhecido - cf. ELLIS o. c. 282-283).

Esta argumentação, por mais convincente que seja acerca de indícios do saber dos druidas sobre astronomia, não nos explica o que é que de fato os druidas sabiam como astrônomos, e continuamos supondo que de matemática não tinham conhecimentos avançados nem muito menos do tipo pitagórico. Um último dado para não relacionarmos druidas e pitagóricos vem de um ponto supostamente comum entre as suas doutrinas, que seria a metempsicose, ou transmigração das almas; esta hipótese não tem apoio nos ritos funerários celtas, que faziam o cadáver, ou a urna de cinzas, ser acompanhado de utensílios que lhes servissem na outra vida; ora quem crê que leva objetos não espera incarnar noutro corpo, mas permanecer em algum lugar do outro mundo.

Aliás a crença na reencarnação, em diversas modalidades, é muito comum em vários povos muito distantes dos pitagóricos; e embora seja certo que em lendas irlandesas há relatos de renascimentos eles não se comparam a nenhuma idéia geral de transmigração (cf. KENDRICK o .c. 110-113 com o que concorda ELLIS o . c. 199-210 e também JUBAINVILLE o . c. 97, 103, e 106 e MACCANA 122). Mas fica ainda a conotação de filósofos que, como vimos, era atribuída aos druidas pelos gregos (Diodoro, Estrabão, Clemente) e de modo menos explícito também pelos romanos.

Ora a designação de filósofo não tinha na antiguidade a mesma qualificação que pode ter atualmente: por filósofo entendia-se ou um indivíduo que levava uma vida filosófica isto é, desapegada das coisas comuns, austera, sábia no sentido de saber se comportar com dignidade, numa espécie de aristocracia espiritual e intelectual; ou uma pessoa que se interessasse pelo saber como um todo, pela sofia; nem num caso nem no outro implicava necessariamente a filiação do filósofo a uma escola de filosofia (estóicos, platônicos, aristotélicos etc) nem sequer que fosse um profissional que conhecesse a fundo as doutrinas dos filósofos das escolas.

Esta é geralmente a opinião dos comentaristas e intérpretes contemporâneos, que não consideram os druidas como filósofos na acepção comum do termo (por ex.: GUYONVARC’H o. c. 112-113 e 146). O que os gregos e romanos queriam dizer quando chamavam os druidas de filósofos era provavelmente o que deles disse Kendrick (ib) : “Este é o verdadeiro segredo do antigo respeito que o mundo clássico mostrou pelos druidas: que a sua reputação não repousava na sua doutrina religiosa, nem na filosofia ou sabedoria, mas na habilidade em controlar a mente popular pela ação coletiva e coordenada como um corpo de pedagogos” o que lembra a frase de Diodoro Sículo (o. c.) “ os druidas mantêm todo o povo submetido a eles” e explica a seguir: porque o povo crê que “ eles sabem a língua dos deuses” ou seja: eles se tornaram indispensáveis para manter o bom relacionamento entre os homens e os deuses, e com isso a ordem do mundo.

5. De um pequeno ensaio como este, baseado em fontes bibliográficas e comentários, não se podem tirar muitas conclusões, nem esperar uma descoberta significativa, mas apenas algumas diretrizes para trabalhos mais específicos. A primeira é a necessidade de separar claramente o estudo dos druidas gauleses do estudo dos druidas irlandeses: enquanto dos primeiros temos sobretudo notícias através de gregos e romanos, dos celtas das ilhas e seus druidas temos a abundante literatura irlandesa que nos foi conservada pelos primeiros séculos cristãos, e de cujo estudo há certamente ainda muito a esperar.

Por outro lado, enquanto na Gália os decretos imperiais rapidamente tiraram os druidas de cena, na Irlanda não-romana os decretos não tiveram efeito e o cristianismo foi mais tolerante permitindo a sobrevivência dos druidas – embora um tanto escondidos, mas nem sempre. As fontes de informação sobre uns e outros obedecem a metodologias de análise muito diferentes, que no caso irlandês têm ainda a oportunidade de comparação com os escoceses, com os galeses e outros grupos britânicos menores como os maneses e córnicos.

No caso da literatura monástica irlandesa muito há a explorar e interpretar para conhecer os druidas; mas também não é impossível que algum dia se encontrem livros por eles redigidos, pois diversos escritos testemunham essa existência, desde as biografias de Patrício até um certo Ético de Ístria que diz ter consultado as bibliotecas da Hibérnia. Quanto à leitura das fontes gregas e romanas também esta não se esgotou: a lista completa dos textos não é fácil de encontrar, pois cada comentador acrescenta nomes a essa lista, e os originais sobre os quais os clássico se basearam - Possidônio, Timageste, o Mago de Aristóteles – ainda não foram encontrados, além de que há sempre novas interpretações em função do contexto, como vimos a propósito da divergência entre Ellis e Kendrick sobre a queda de prestígio dos druidas. Em resumo, o estudo dos druidas não só não acabou como há muito o que se dizer sobre eles – porém cada vez com mais cautela e método.

Bibliografia
Obras clássicas:
AMMIANUS MARCELLINUS. The Later Roman Empire. Trad. Walter Hamilton. Londres, Penguin, 1986.
CLEMENT OF ALEXANDRIA. The Stromata, or Miscellanies. Em Ante-Nicene Fathers, vol. 2. ed. Roberts, Alexander & Donaldson, James. Peabody, Hendrickson, 1995. (1885).
DIÔGENES LAÊRTIOS. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres. Trad. Mário da Gama Kury. Brasília, UnB, 1987, 2ª ed (1997).
HIPPOLYTUS. The Refutation of All Heresies. Trad. J. H. Mac Mahon em Ante-nicene Fathers, vol. 5, ed. Roberts, Alexander & Donaldson, James; Peabody, Hendrickson, 1995. (1886).
JÚLIO CÉSAR. Comentários sobre a Guerra Gálica (De Bello Gallico). Trad. Francisco Sotero dos Reis. Estudo de Otto Maria Carpeaux. Rio de Janeiro, Tecnoprint, sd.

Nota: quase todos os autores clássicos encontram-se em KENDRICK 212-221 (idioma original) e 73-103 (tradução e interpretação)

Comentários:
ELLIS, Peter Berresford. Druidas. El Espíritu del mundo celta. Trad. Javier Alonso López. Madrid, Oberon, 2001
JUBAINVILLE, Henri-Marie D‘ Arbois. Os Druidas. Os Deuses Celtas com Formas de Animais. Trad. Julia Vidili, coord. Eduardo Carvalho Monteiro. São Paulo, Madras, 2003 (1905).
KENDRICK, T. D. The Druids. Londres, Random House, 1996 (1927).
MARKALE, Jean. Le Druidisme. Paris, Payot, 1994, nova edição.

Consulta geral:
GREEN, Miranda. The Gods of the Celts. Godalming, Bramley Books, 1986.
GUYONVARC, H. Christian J. & ROUX, Françoise Le. La civilisation celtique. Paris, Payot, 1995 (1990)
HUBY, José. Christus. História das religiões. Trad. Antônio Pinto de Carvalho. São Paulo, Ed. Saraiva, 1956. Vol. II, cap.5: “A religião dos celtas”.
LEHANE, Brendan. Early Celtic Christianity. Nova Iorque, Barnes & Noble, 1993. (1968).
MAC CANA, Proinsias. Celtic Mythology. Nova Iorque, Barnes & Noble, 1996. (1968).
MARKALE, Jean. Le Christianisme Celtique et ses survivances populaires. Paris, Imago, 1983.


Fonte: LUPI, João. Os druidas. Brathair, vol. 4, n. 1, 2004, p. 70-79. 

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