As imagens contidas nesse trabalho foram inseridas por mim, no intuito de ilustrar o texto do autor. Além disso tomei a liberdade também de fazer grifos pessoais no texto, os quais os destaquei em negrito.
O conceito de educação em João Amós Comenius
Edson Pereira Lopes*
João Amós Comenius foi o primeiro indivíduo a instituir a
educação como uma ciência sistemática, sendo esta uma das razões pelas quais
ficou conhecido como o “pai da pedagogia moderna”. Todavia, percebe-se que o
acesso dos pesquisadores brasileiros às obras primárias de Comenius em
português está restrito à Didática Magna, o que resulta em algumas
dificuldades para realizar a hermenêutica do pensamento comeniano. A maioria
dos pesquisadores de Comenius tem seu foco voltado para os métodos
educacionais, e assim ele é considerado apenas como pedagogo, o que contraria o
próprio Comenius, que afirmou não se considerar um pedagogo, mas um teólogo por
profissão e vocação.2
Retrato de João Amós Comênio, 1652. |
Talvez por esta razão é que encontramos raríssimos estudos
referindo-se a Comenius como teólogo, com exceção dos rápidos e esporádicos
comentários que aparecem em alguns poucos livros e dissertações. Com base no
exposto, o foco deste artigo é tríplice: 1) tornar as principais obras
literárias de Comenius um pouco mais conhecidas do público brasileiro; 2)
demonstrar a relevância do pensamento de Comenius para a atualidade; 3)
identificar o real conceito de educação no pensamento de Comenius.
1. SÍNTESE DA VIDA E PRINCIPAIS OBRAS DE COMENIUS
Jan Hus |
No contexto da expansão da Reforma Protestante está a
congregação dos Irmãos Morávios. Esse grupo remonta ao século 15 com Jan Hus
(1369-1415), que, além de líder religioso, foi reitor da Universidade de Praga.
Desde cedo os morávios descobriram que uma das formas fundamentais para
salvaguardar a unidade entre os Irmãos seria a educação, que se tornou,
tradicionalmente, um dos princípios mais relevantes desse movimento religioso. Tal ênfase fez com que as escolas dos Irmãos Morávios, inclusive a Universidade
de Praga (1348), fossem contadas entre as melhores da Europa na época de Hus e
também nos dias de Comenius. A maioria dos professores tinha o grau de mestre,
e era motivo de orgulho o fato de terem passado pela Universidade de Praga
autoridades como o matemático João Kepler e o pensador Giordano Bruno, que ali
também lecionaram.3 Os Irmãos Morávios demonstravam a dupla preocupação com a
teologia e a pedagogia. Foi com esta perspectiva que traduziram a Bíblia, do
hebraico e do grego, para sua língua materna, a célebre versão de Králice.4
João Amós Comenius nasceu em Nivnice, na cercania de Uherský
Brod, na Morávia, hoje República Tcheca, em 28 de março de 1592. Matriculou-se
na escola latina de Prerov, no ano de 1608, quando tinha 16 anos e se
sobressaiu como bom aluno e como um paradigma para os seus colegas. Terminados
os estudos na escola de Prerov, por recomendação de Lanecký, Comenius foi escolhido
para ser ordenado pastor e nomeado para prosseguir os estudos superiores na
universidade alemã de Herbon, em Nassau, que havia sido fundada em 1584.5
Enquanto esteve em Herbon, Comenius preocupou-se em preparar
um dicionário de sua língua materna, Bohemicae Thesaurus, cujo conteúdo
consistiu em apresentar o léxico completo de uma gramática exata das locuções
da língua tcheca.6 Em 1614, Comenius retornou a Praga e foi nomeado reitor da
escola de Prerov, principal centro da comunidade morávia. Notabilizou-se como
professor competente e distribuía o tempo escolar de modo a incluir ensino,
conversas, jogos, recreações e música, pois desejava que a escola fosse agradável
e atraente. Com estes princípios, cativou seus alunos e aboliu os castigos
corporais, tão em voga nas escolas de sua época.7
Em 26 de abril de 1616, foi ordenado pastor dos Irmãos
Morávios. Dois anos depois, em 1618, estabeleceu-se na cidade de Fulnek e
assumiu a responsabilidade pela escola da comunidade, desempenhando
satisfatoriamente a dupla função de pastor e educador.8
Selo da Igreja Moraviana. Em 1616 Comênio foi ordenado pastor da comunidade moraviana. |
Por ser Comenius um líder respeitado entre os Irmãos
Morávios, foi lavrado um mandado de prisão contra ele, o que o forçou a
abandonar a cidade de Fulnek e a deixar o seu cargo pastoral. Com ele 36.000
famílias saíram da Boêmia e da Morávia, com a finalidade de fugir do horror da
guerra. Foi neste contexto que surgiu uma de suas obras mais importantes, Labyrint
sueta a ráj srdce (O labirinto do mundo e o paraíso do coração),
escrita em 1623, durante sua estada em Brandeis. Essa obra serviu para consolar
os que haviam sobrevivido às vicissitudes da guerra e exortar as pessoas a não
buscarem a felicidade nas riquezas, prazeres e fama, pois a felicidade
consistia em ter comunhão e experiência com Cristo, para, então, ser uma nova
criatura.
Em 1628, os Irmãos Morávios conseguiram asilo na Polônia e
com a preocupação de reconstruir sua vida e a do povo theco, Comenius produziu vários
textos relativos à educação. Assim, entre 1630 e 1633 apareceram as suas obras
pedagógicas fundamentais: Didática tcheca, Informatorium skóly materké
(Guia da escola materna), Janua linguarum reserata (Porta aberta das
línguas) e Didática magna. No conjunto, os textos dirigiam-se tanto
aos alunos, que deviam aprender a aprender, como aos professores, que deviam aprender
a fazer e, conseqüentemente, a fundamentar a sua prática em uma teoria sólida.
Nesse período, Comenius empenhou-se vivamente na questão educacional, pois
compreendia que, por meio da educação, poderia ocorrer a paz entre os povos e
uma possível restauração da Boêmia.9
Frontispício do Didactica Opera. Nesse livro, Comênio traduziu seus trabalhos didáticos para o latim e os republicou em 1657. Na época, o latim ainda era a língua dos eruditos. |
Após vários anos de pacientes esforços e pesquisas, a Didática
tcheca foi traduzida pelo próprio Comenius para o latim com o título Didática
magna e publicada em sua forma integral em conjunto com outras obras
latinadas em 1657, em Amsterdã. Ao traduzi-la para o latim, Comenius objetivou
alcançar o maior número possível de leitores. Em 1642 deixou escrita a obra Via
lucis, publicada apenas em 1668, pouco antes da sua morte, que sintetizava
suas idéias pansóficas: escolas universais, métodos universais, livros
universais, idioma universal e, sobretudo, o colégio de sábios voltado para o
bem-estar da humanidade.10
Em 1642, ao manter contato com o Chanceler Oxenstiern, este
lhe solicitou que fizesse algo pela Suécia e pelo aprimoramento do estudo do
latim. Comenius escreveu a obra Methodus linguarum novissima (Novíssimo
método das línguas), em 1647, que seria sua principal contribuição
ao estudo dos idiomas. A preocupação de Comenius estava relacionada com o
estudo comparativo das línguas. Ele traçou regras para a arte de traduzir
textos e desaconselhou a tradução literal.
Em 1650, a convite do príncipe Sigismundo Rákoczy, começou a
dirigir uma escola em Sárospatak, Hungria. Ali permanece durante quatro anos e escreveu
a Orbis pictus (Mundo ilustrado ou sensível). Esse texto é a soma
de sua experiência de quarenta anos de trabalho pedagógico, constituindo-se numa
enciclopédia infantil que, por meio de gravuras, tem três objetivos: 1) reter a
noção aprendida; 2) estimular a inteligência infantil; 3) facilitar a
aprendizagem da leitura. Entretanto, Comenius sofreu incompreensão e decepção, pois
os professores húngaros não colaboraram com o seu método, por falta de vontade
e por não se sentirem com autoridade bastante para militar contra a preguiça e
a indisciplina dos alunos. Em 1654, deixou a Hungria e retornou à Polônia,
seguindo então para a Holanda.
Instalado em Amsterdã, sob a proteção da família De Geer e
no gozo de prestígio sem igual na sociedade holandesa, no fim de 1657 publicou
a Didática magna. Todavia, em 1670 adoeceu gravemente e, com a
idade de setenta e oito anos, ainda redigiu um resumo de seus princípios
pedagógicos, Spicilegium didactium (Didática especial),
a fim de torná-los acessíveis ao magistério inculto da época, não muito
afeito aos estudos de pedagogia. Faleceu no dia 15 de novembro de 1672, rodeado
por parentes e amigos, e foi sepultado numa pequena igreja em Naarden.
Fotografia do túmulo de João Comênio, em Naarden, Holanda. |
2. A IMPORTÂNCIA DO PENSAMENTO DE COMENIUS PARA A EDUCAÇÃO
ATUAL
No estudo da relevância do pensamento de Comenius para a
educação atual é necessário pontuar alguns princípios fundamentais. Uma das
razões pelas quais o pensamento de Comenius é pouco conhecido no Brasil está no
fato de que alguns interpretam suas propostas educacionais fora de seu contexto
histórico.11 Nesta forma de pensar, pode-se identificar a hermenêutica que
Éster Buffa12 faz de Comenius, pois, ao partir do princípio de que a educação é
um privilégio da burguesia, insere a célebre expressão de Comenius “ensinar
tudo a todos”, parecendo afirmar que o “tudo” se refere somente até certo grau
de educação, sendo que os graus mais elevados deveriam ser para um grupo
seleto, que seriam os doutores, educados para as decisões políticas e a
condução de outras pessoas. No mesmo contexto, ele declara que Comenius foi o
criador do livro-texto (didático), cujo objetivo era difundir tais idéias
político-educacionais.
Todavia, na análise de Comenius em seu contexto histórico,
percebem-se as suas reais intenções ao instituir o livro-texto na escola, cuja
finalidade era sistematizar e ordenar o ensino de maneira que um professor, por
meio do livro didático, pudesse ensinar até cem alunos ao mesmo tempo.13
Estas concepções só surgem quando se conhece Comenius
superficialmente. No momento em que o estudioso se fixa na análise e se debruça
sobre esse pensador, as dúvidas são revertidas em admiração e desejo de uma
pesquisa mais profunda a respeito de suas idéias.14 Constata-se, então, que os
princípios educacionais de Comenius foram avançados para sua época, e quão
atuais são suas propostas pedagógicas para o século 21. Algumas das propostas
educacionais de Comenius foram relevantes e avançadas para o século 17 e até
hoje se encontram ecos de tais concepções refletidos nas discussões
educacionais da modernidade.
2.1 Diálogo de Comenius e Paulo
Freire nas campanhas de Alfabetização
No estudo da concepção de Comenius a respeito do ser humano,
verificasse que ele acreditava que o homem somente pode ser compreendido tendo
como foco sua integralidade. Em outras palavras, o ser humano não pode ser fragmentado,
pois ele é, em sua concepção, um “micromundo”, na medida em que é visto à luz
das diferentes faces de sua existência: política, econômica, social,
psicológica e religiosa.15
Sua compreensão do “homem” permite que ele, à semelhança de
Paulo Freire, seja um dos idealizadores das campanhas de alfabetização cuja
concepção metodológica consiste em ensinar a partir das coisas reais
conhecidas. Esse princípio parece ser uma leitura bem próxima ao pressuposto de
Paulo Freire,16 ainda que Comenius pontue uma compreensão teocêntrica do homem e
Freire, uma concepção antropocêntrica. Para Freire, o homem não pode estar alienado
do seu contexto social, e sim ativo nas discussões de seu mundo. Daí, a base de
seu método educacional é permitir que o homem chegue a construir-se como pessoa
e transformar o mundo em que vive.17
Bohumila Araújo assinala o princípio de que é possível
estabelecer um diálogo entre Comenius e Paulo Freire:
"Paulo Freire, idealizador das campanhas de alfabetização
cuja concepção metodológica em ensinar a partir das coisas reais conhecidas se
aproxima tanto ao ideário comeniano, afirma que o diálogo é uma exigência
existencial. E, se o diálogo é o encontro em que se solidarizam o refletir e o
agir de seus sujeitos endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado, não
pode reduzir-se a um ato de depositar idéias de um sujeito no outro, nem
tampouco tornar-se simples troca de idéias a serem consumidas pelos
permutantes. Quando o nosso contemporâneo Paulo Freire declara que não há
diálogo se não existir um profundo amor ao mundo e aos homens, já que a
pronúncia do mundo é um ato de criação e recriação, Comenius parece lhe
responder em Consulta Geral sobre a Reforma das Coisas Humanas: “[...]
europeus, asiáticos, africanos, americanos e os habitantes de quaisquer ilhas
são todos povo de Deus, nascido do mesmo sangue, e todos devem amar-se como os
ramos de uma árvore”. Mais adiante Comenius acrescenta: “Os nossos esforços
devem conduzir a uma grande luz, uma grande verdade para todos, uma grande
chama de amor, uma grande paz universal”. O diálogo pode prosseguir: de um
lado, Freire opina que para haver diálogo, há de haver humildade: “a pronúncia
do mundo, com que os homens o recriam permanentemente, não pode ser um ato
arrogante”. Do outro lado, nas páginas iniciais da Didática magna,
Comenius surpreende o leitor com as palavras de extrema despretensão: “Os que
me conhecem de perto sabem que sou homem de inteligência medíocre e de limitada
cultura [...]. Para finalizar o diálogo que se poderia estender por muitas
páginas, vale a pena lembrar que Freire acha que o diálogo implica intensa fé
nos homens, fé no seu poder de fazer e refazer. De criar e recriar. Fé na sua
vocação de ser mais, que não é privilégio de alguns eleitos, mas direito dos
homens [...]. A fé e a esperança, assim como o amor ao próximo, o amor que
alimenta os princípios igualitários que Comenius professa com freqüência, são
valores que não faltam no seu código de ações e representações e que,
continuamente, reconstituem e atualizam a sua mensagem".18
Percebe-se que Comenius, mesmo tendo vivido no século 17 e
tendo escrito para o seu mundo, ainda hoje encontra eco na educação moderna, a partir
do pensamento de Paulo Freire, visto que ambos propunham conceber o homem como
ser integral e ativo em seu contexto social e uma educação a partir do
cotidiano.19
2.2 A influência de Comenius na
psicologia do desenvolvimento mental de Piaget
Outro pensador que demonstra a atualidade do pensamento de
Comenius é Jean Piaget, que inclusive prefaciou uma obra da Unesco, Páginas
escogidas (1959), que contém uma coletânea de textos de Comenius. O
título do prefácio é: La actualidad de Juan Amós Comenio (A
atualidade de João Amós Comênio). No prefácio, Piaget pontua que
Comenius foi além do seu tempo ao iniciar a discussão quanto ao conhecimento
gradual da criança, proporcionando um ensino mais próximo da realidade infantil
e, também, propondo que a criança a aprendesse a partir das coisas simples
(concretas), passando para as complexas20.
Fica assim explicitada a importância de Comenius para a
educação atual, tendo em vista que ele foi um dos primeiros a debater a
respeito do desenvolvimento mental da criança. De certa maneira, o próprio Piaget
declara que foi influenciado por Comenius na elaboração de suas propostas que
tratam da evolução cognitiva da infância à idade adulta.21 Por conseguinte, a
educação deve muito a esse pensador do século 17, que proporcionou ensino às
crianças e mostrou que o seu desenvolvimento mental não era levado em conta.22
2.3 Comenius e a democratização
do ensino da UNESCO
Um fator que demonstra a importância do pensamento de
Comenius para a educação atual é sua preocupação com a democratização do
ensino. Neste sentido, ele foi influenciado pela Reforma Protestante, que
também propôs a democratização do ensino em países como a Alemanha e a Suíça.
No estudo da educação com foco em Martinho Lutero, observa-se que seu interesse
inicial em prover educação universal havia definhado e a população menos
favorecida continuava analfabeta.23 É com Comenius, a partir do princípio pansófico,
ou seja, “ensinar tudo a todos”, independentemente de sua nacionalidade e
classe social, que algumas transformações começam ocorrer na área educacional.
Em sua concepção, tanto homens quanto mulheres deveriam ter
acesso à educação.24 Comenius rompeu com a tradição daquele contexto e pontuou que
o reconhecimento da dignidade e do direito à educação são inerentes a todos os
membros da família, uma vez que todos são “imagem e semelhança de Deus”.25
Bohumila Araújo, a partir do princípio comeniano de que a
dignidade e a educação são direitos inerentes a todos os membros da família,
afirma:
"O espírito comeniano, na opinião da autora, está presente na
Constituição da UNESCO, na Declaração dos Direitos Humanos e nos textos de
vários projetos de leis e decretos, sobretudo na área da educação. A Declaração
Universal dos Direitos Humanos, aprovada a 10 de dezembro de 1948, pela
Assembléia Geral das Nações Unidas (ONU), expressa os anseios da humanidade,
saída do sofrimento da Segunda Guerra Mundial. O que se percebe é a preocupação
de promover o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da
família humana, e isto comenianamente, nos moldes da fé cristã, sem
discriminação racial, social, econômica ou religiosa".26
Ela está certa de que a preocupação em garantir oportunidade
igual a todos levou Comenius a advogar a causa da democratização do ensino em
suas obras pedagógicas, o que faz dele o percussor da UNESCO e da ONU,27 visto
que ambas as instituições prescrevem o direito à educação e à manutenção da
paz.28
2.4 Ecos do pensamento de
Comenius na Lei de Diretrizes e Bases do Brasil
(9394/96)
Além da importância do pensamento de Comenius conforme
destacado acima, é mister explicitar princípios que apontam ecos do pensamento
comeniano na LDB brasileira:
"As constantes referências a Comenius e ao seu ideário, a
presença do seu pensamento no projeto da LDB, no Estatuto da Criança e do
Adolescente, na Constituição Brasileira de 1988, sobretudo no que toca à
democratização do ensino, dando oportunidade igual a todos, atestam as
semelhanças surgidas das teias de relações de essência consideravelmente
diferentes, trazendo incitamento à reflexão e abrindo perspectiva de caminhos e
opções para solucionar alguns dos problemas mais urgentes do aqui e agora
(hic et nunc). As unidades epocais se encontram comenianamente umas
em relação com as outras, num permanente devenir na dinâmica da
continuidade das idéias, temas das épocas, em constante interação sincrítica".29
2.5 A proposta de Comenius no uso
de ilustrações e tecnologias nos métodos educacionais
Por fim, há necessidade de destacar que além da importância
do pensamento de Comenius apontadas acima, há outros pesquisadores comenianos
no Brasil30 que confirmam ser ele um dos primeiros responsáveis pela introdução
de tecnologias aplicadas à educação,31 a partir do primeiro livro ilustrado
dirigido à educação infantil.
Após refletir sobre a vida de Comenius, suas principais
obras literárias e a relevância do seu pensamento para a educação atual, é
necessário focar a atenção no conceito de educação, considerada por ele como
remédio divino para a corrupção do gênero humano.32
3. A EDUCAÇÃO COMO REMÉDIO DIVINO PARA A CORRUPÇÃO DO GÊNERO
HUMANO
Um dos focos da Didática magna está na antropologia,
que é o coração da filosofia de Comenius.33 Ele reserva pelo menos seis
capítulos para discorrer a respeito desta temática e afirma que o homem é um microcosmo,
isto é, “a síntese do universo, que em si encerra implicitamente todas as
coisas que se veem esparsas por todo o macrocosmo”.34 Entretanto, na
antropologia comeniana não há espaço para o antropocentrismo. Ele concebe o ser
humano como o ápice da criação, pelo fato de Deus tê-lo colocado nesta condição
distintiva das demais criaturas35 ao criá-lo à sua “imagem e semelhança”, o que
faz dele a criatura apta para entender e aprender todas as coisas.36 Para o
autor da Didática magna, o homem nasceu com a capacidade de adquirir a
ciência das coisas e aprender as diversas formas do conhecimento porque isso é
resultado de sua criação por Deus.37
Em síntese, a antropologia-teológica comeniana apresenta o
homem como a “coroa da glória de Deus”, a síntese de todas as coisas, pois nele
foram “reunidos todos os elementos materiais, todas as formas e seus graus para
exprimir toda a arte da divina Sabedoria”.38 Ora, se todos os homens foram
criados por Deus conforme sua imagem e sua semelhança, infere-se que todos
devem ser igualmente educados. Ninguém, inclusive as mulheres39 e os pobres,40 deve
ser excluído, pois isso seria uma ofensa a Deus.41
Por causa da queda dos primeiros pais, Adão e Eva, registrada
no livro de Gênesis, o gênero humano “foi lançado na solidão da terra,
despojado das abundâncias do paraíso e o nosso corpo e alma ficaram expostos à
dor”.42 O homem deixou de ser paraíso de delícias do Criador e se tornou
“ingrato com aqueles bens com os quais Deus o havia suprido em abundância no
paraíso, para o corpo e para a alma”.43
Comenius tem uma clara concepção das conseqüências da queda
no gênero humano. Todavia, Deus usou de misericórdia e graça e não abandonou as
suas criaturas, a coroa da criação, na solidão, mas por meio do seu próprio sangue
as enxertou novamente no Paraíso de Deus.44 Assim, de novo verdejou o jardim
das delícias de Deus, expresso na Igreja.45 Todavia, a própria Igreja, a nova
plantação do Paraíso, degenerou-se a ponto de Deus lamentar a situação dessa
nova plantação.46
Como prova da degeneração ou da corrupção da Igreja,
Comenius apresenta os seguintes argumentos 47: 1) Tudo está revirado e confuso,
está destruído ou está ruindo. Em lugar da inteligência, reina a estupidez. Em
lugar da prudência ou da preocupação com as coisas eternas, preocupamo-nos com
as coisas transitórias e terrestres, mesmo tendo consciência de que tudo é
passageiro e a morte é iminente; 2) No lugar da sabedoria – cujo princípio fundamental
deveria ser viver melhor e de forma mais adequada, afastamo-nos de Deus; 3) Na
questão do amor – que deveria estar acima de tudo, há ódios recíprocos,
inimizades, guerras e morticínios, iniqüidade, injúrias, opressões, furtos e
assaltos. Por conseguinte, a corrupção do gênero humano se tornou uma realidade
que causa perplexidade aos olhos dos que examinam as condições humanas ou da
própria Igreja.4
A cura para a corrupção humana não está no engano dos homens,
mas em examinar a realidade e em reconhecer que o problema existe e necessita ser
tratado.49 Já que a Igreja de Deus, que seria outra forma possível para conter
a corrupção do homem, não cumpriu sua finalidade, pois também se corrompeu,
Deus em sua misericórdia criou caminhos, modos e meios para corrigir a
corrupção do gênero humano e dentre os meios criados, a educação foi o caminho
mais eficaz para tal correção: “As Santas Escrituras nos ensinam primordialmente
que não há caminho mais eficaz para corrigir a corrupção humana que a correta
educação da juventude”.50
A partir desse pressuposto, outras citações de Comenius na Didática
magna são fundamentais para a compreensão do seu conceito de educação, tendo
em vista que ele acrescenta cada vez mais valor à palavra educação e demonstra
como ela poderá alcançar o seu objetivo.
No início da Didática magna Comenius demonstra os
seus objetivos:
"Nós ousamos prometer uma Didática Magna, ou seja, uma arte
universal de ensinar tudo a todos: de ensinar de modo certo, para obter
resultados; de ensinar de modo fácil, portanto, sem que docentes e discentes se
molestem ou enfadem, mas ao contrário, tenham grande alegria; de ensinar de
modo sólido, não superficialmente, de qualquer maneira, mas para conduzir à
verdadeira cultura, aos bons costumes, a uma piedade mais profunda [...]".51
Observa-se que o objetivo da Didática magna é
preconizar “uma arte universal de ensinar tudo a todos”, de modo correto, fácil
e de maneira que o ensino traga alegria ao homem e não enfado. Também vale
ressaltar, nas palavras de Comenius acima, que a educação somente alcançará o
seu real objetivo se produzir no homem três princípios fundamentais: a
verdadeira formação cultural ou ensino, os bons costumes ou moral e a mais
profunda piedade.
Ao criar o homem, Deus o dotou com uma mente infinita e
adicionou os órgãos dos sentidos que servem para ajudá-lo na questão do
conhecimento. É por intermédio desses órgãos que a mente chega a todos os
objetos externos, para que nada possa ficar oculto. Segue, assim, que “nada há
no mundo que um homem dotado de sentidos e razão não possa compreender”.52
Todavia, alguém poderia objetar quanto à razão pela qual
algumas pessoas, aparentemente, não conseguem aprender as coisas. Comenius
responderia que a mente humana, por natureza, tem a semente do conhecimento;
entretanto, deve ser despertada para tal fim: “Estão lâmpada, candeeiro, óleo e
pavio, e tudo o que é necessário: quem souber produzir a centelha, acolhê-la,
acender a luz poderá ver – belíssimo espetáculo – os maravilhosos tesouros da
divina sabedoria”.53
Todavia, deve-se ressaltar que para Comenius há duas razões
pelas quais a pessoa não aprende: 1) o pecado humano; 2) a falta de habilidade
do preceptor.54 A função da escola e do docente é despertar a inteligência dos
alunos. Para que ela seja uma “verdadeira oficina de homens”,55 é necessária a
consciência de que não só o ensino é relevante, mas também a moral. Esta é
compreendida como a arte de formar costumes56 e possui dezesseis cânones
fundamentais.57 No contexto da moral, os pais devem dar exemplos de
honestidade, serem perfeitos guardiões da disciplina familiar, manterem os filhos
longe das más companhias. Tendo em vista que os males são aprendidos com maior
facilidade,58 as amas e os preceptores devem ser exemplos de orientação e
cuidado aos jovens,59 já que a moral é parte integrante do ensino
transformador.
Além da moral, Comenius acrescenta à educação ou ao ensino a
piedade, definida por ele da seguinte forma:
"[...] é o nosso coração – impregnado pelo reto sentimento,
no que se refere à fé e à religião – saber buscar Deus em toda parte [...]
segui-lo por onde quer que tenha estado, frui-lo onde quer que seja encontrado".60
Nesse contexto, Comenius pontua que o modo de haurir a
piedade é por meio da meditação das Escrituras, da oração e da perseverança na
provação.61 Assim, o conhecimento e as ações humanas devem ter como objetivo
final o louvor e o amor a Deus. Todavia, por nem sempre se encontrar a piedade nos
corações humanos, Deus deixou três fontes de onde se pode extraí-la: das Escrituras
Sagradas, do mundo e de nós mesmos.62
No texto da Didática magna fica explicitado que a
Bíblia era o livro fundamental de Comenius63 e ela deveria exercer a primazia
em sua vida e em qualquer matriz curricular, tendo em vista ser ela suficiente
para toda forma de conhecimento.64 Para ele os autores não cristãos pouco
podiam contribuir para um adequado conhecimento das coisas. Ao contrário,
propunha aos cristãos de sua época que imitassem o cristianismo grego, que
proibiu o uso da literatura pagã entre seus membros e em suas escolas.65
No estudo de Comenius fica explícito que o ensino, a moral e
a piedade são indissociáveis e fundamentais para a compreensão do seu conceito
de educação66, pois ele não distingue seu pensamento pedagógico do teológico e
vice-versa, uma vez que seu objetivo é indicar que a finalidade da educação é
conduzir o homem a Deus e fazer dele “paraíso de delícias do Criador”.67
É com isso em mente que Comenius demonstra ser a educação o
meio eficaz para a cura da corrupção do gênero humano e que ela somente
cumprirá o seu objetivo de reconduzir o homem a Deus68 se estiver fundamentada
nos princípios do ensino qualitativo, nos bons costumes ou moral e na mais
profunda piedade69: “os três ornamentos da alma (ensino, moral e piedade) não
devem ser separados”.70 Percebe-se assim que, na concepção comeniana, não só a
piedade é importante. É fato que a finalidade do ensino é conduzir à piedade;
todavia, o caminho para a piedade é a moral e o ensino,71 de maneira que para
Comenius a piedade, os bons costumes e a instrução são princípios
indissociáveis e não pode haver entre eles valor maior para um ou para outro,
pois todos estão na mesma situação de igualdade.
Por entender que a educação atenta e prudente, fundamentada
no ensino, na moral e na piedade da juventude, seria o remédio divino para a
cura da corrupção do gênero humano, ele exorta os seus leitores, uma vez
conscientizados quanto à seriedade e à importância de sua obra, a não
qualificá-lo como temerário por ter ousado escrever e prometer na Didática
magna um único “método que ensine tudo a todos”.72 E é assim que, segundo
Cauly, surge pela primeira vez na Europa, uma ciência sistemática da educação,
isto é, a pedagogia:
A pedagogia de Comenius não teria provavelmente visto a luz
do dia sem esta fé na educação, enquanto meio de reconduzir os homens à verdade
[...] uma religião da educação, que recorre [...] à fé na sua capacidade de
salvar o homem das trevas onde parece estar imerso.73
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir daí, uma obra de tão grande valor não poderia ficar
restrita à Morávia ou a um determinado grupo religioso, mas deveria se tornar
acessível a todos os homens. Motivado, então, a escrever a Didática tcheca,
com o mesmo princípio traduziu-a do tcheco para o latim e denominou-a Didática
magna, a fim de que ela pudesse ser mais facilmente compreendida e
estivesse ao alcance de um público maior.74 Ele “colocava aquilo que o Senhor
lhe concedeu observar à disposição de todos”, para que se tornasse algo comum.75
Fica explicitado aqui que para Comenius a educação é oriunda da graça e misericórdia
de Deus e que serve como remédio divino para a cura do gênero humano, desde que
esteja fundamentada na indissociabilidade do ensino, da moral e da piedade.76
NOTAS:
* O autor é bacharel em teologia pelo Seminário Rev. José
Manoel da Conceição; mestre em Educação, Arte e História da Cultura pela
Universidade Presbiteriana Mackenzie; doutor em Ciências da Religião pela
Universidade Metodista de São Paulo, e professor da Escola Superior de Teologia
da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
1COMENIUS, J. A. Didática magna.
São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 26.
2 LOCHMAN, J. M. Acta comeniana. In: Comenius as theologian. Praga: Akademie ved Ceske Republiky,
1993, v. 10, p. 35.
3 LOPES, E. P. A inter-relação da teologia com a pedagogia no
pensamento de Comenius. São Paulo:
Mackenzie, 2006, p. 93.
4 COVELLO, S. Comenius: a construção
da pedagogia. São Paulo: Editora Comenius, 1999, p.
16.
5 CAULY, O. Comenius: o pai da
pedagogia moderna. Lisboa: Instituto Piaget, 1995, p.
43, 48.
6 LOPES, E. P. O
conceito de teologia e pedagogia na Didática Magna de Comenius. São Paulo: Editora Mackenzie, 2003, p. 77.
7 COVELLO, Comenius, p. 30.
8 COVELLO, Comenius, p. 30.
9 CAMBI, F. História da pedagogia. São Paulo: Unesp, 1999, p. 285.
10 Comenius não exerceu influência sobre os principais
educadores ingleses, o que indica que foi vã a sua presença naquele país.
11 CAPKOVÁ,
D. On the impact of J. A. Comenius on
the theory and pratices of education. In Symposium Comenianum. Praga, Press, 1984, p. 11.
12 BUFFA, E. Educação e cidadania: quem educa o cidadão?
In: Educação e cidadania burguesa. São Paulo: Cortez, 1986.
13 Para maiores esclarecimentos sobre essa discussão, ver
LOPES, A
inter-relação da teologia com a pedagogia no pensamento de Comenius, p. 15-26.
14 COLOMBO, L. O
projeto de Comenius: um paradigma para o ciberespaço. A criação de um novo
espaço do saber com a tecnologia. São Paulo, 2002, Dissertação de Mestrado em
Educação, Arte e História da Cultura. Universidade Presbiteriana Mackenzie, p.
12.
15 COMENIUS, Didática
magna, p. 59.
16 FREIRE, Paulo. Pedagogia
do oprimido. 15ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1983, p. 45.
17 FREIRE, Paulo. Conscientización. Buenos Aires: Búsqueda, 1974, p. 42.
18 ARAÚJO, B. S. A atualidade do pensamento de Comenius. Salvador: Edufba, 1996, p. 133-
135.
19 FREIRE, Paulo. Política e educação. 4ª ed. São Paulo: Cortez, 2000, p. 27.
20 PIAGET, Jean. Páginas escogidas. In: La actualidad de Juan Amós Comenio. Buenos Aires: A.Z. Editora; Orcalc, Ediciones Unesco,
1959, p. 35, 39.
21 Ibid., p. 52.
22 LOPES, A
inter-relação da teologia com a pedagogia no pensamento de Comenius, p. 21.
23 TUTTLE, M.
Zinzendorf and the Moravians. In: Christian
history, v. 1, nº 1,
1982, p. 22, 23.
24 LOPES, O
conceito de teologia e pedagogia na Didática Magna de Comenius, p. 91.
25 COMENIUS, Didática
magna, p. 53.
26 ARAÚJO, A atualidade do pensamento de Comenius, p. 88.
27 LOPES, A
inter-relação da teologia com a pedagogia no pensamento de Comenius, p. 22.
28 Para esclarecimento, ler o artigo 26 da Declaração
Universal dos Direitos Humanos. Disponível em www.dhnet.org.br/direitos/deconu/textos/íntegra.
Acesso em 17/02/2008.
29 ARAÚJO, A
atualidade do pensamento de Comenius, p.
133.
30 CUNHA, A. A. A contribuição de Comenius para a pedagogia
moderna. Trabalho de Gradução Interdisciplinar, Universidade Presbiteriana
Mackenzie, 2007.
31 COLOMBO, O projeto de Comenius, p. 12.
32 COMENIUS, Didática
magna, p. 15, 19, 23, 27, 29.
33 KAVKÁ, F. Korespondence
J. A. Komenkého. Praha: Karolnum, 1892, p. 247.
34 COMENIUS, Didática
magna, p. 59.
35 Ibid., p. 41, 42.
36 Ibid., p. 60.
37 Ibid., p. 58.
38 Ibid., p. 21, 22.
39 Ibid., p. 91.
40 Ibid., p. 90.
41 Ibid., p. 89.
42 Ibid., p. 22.
43 Ibid.
44 Ibid., p. 23.
45 Ibid.
46 Idem, p. 24.
47 Ibid.
48 Ibid.
49 Ibid., p. 25.
50 Ibid., p. 27.
51 Ibid., p. 13.
52 Ibid., p. 60.
53 Ibid., p. 61.
54 Ibid., p. 62.
55 Ibid., p. 103.
56 Ibid., p. 263-270.
57 Para discussão mais aprofundada, ler LOPES, A inter-relação da teologia com a pedagogia no
pensamento de Comenius, p. 172-176.
58 Ibid., p. 269.
59 Ibid., p. 268.
60 Ibid., p. 270.
61 Ibid., p. 273.
62 Ibid., p. 272.
63 Para discussão mais aprofundada, ler LOPES, A inter-relação da teologia com a pedagogia no
pensamento de Comenius, p. 140-157.
64 Ibid., p. 142.
65 Ibid., p. 141.
66 COMENIUS, Didática
magna, p. 97.
67 Ibid., p. 26.
68 Ibid., p. 29.
69 Ibid., p. 11, 97, 98.
70 Ibid., p. 97.
71 Ibid., p. 11.
72 Ibid., p. 15.
73 CAULY, Comenius, p. 43, 45.
74 COMENIUS, Didática
magna, p. 18.
75 Ibid., p. 16.
76 Ibid., p. 143.
Fonte: LOPES, Edson Pereira. O conceito de educação em João Amós Comenius. In: Fides Reformata XII, n. 2, 2008, p. 49-63.
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