domingo, 17 de maio de 2020

O herói contra o dragão, entre o Oriente e o Ocidente


O herói contra o dragão, entre o Oriente e o Ocidente


Fábio Fonseca



Imagem, palavra e memória

Na medida em que a sobrevivência de certos temas na arte permite estabelecer uma série de conexões entre os diversos lugares e períodos nos quais esses temas foram representados, também possibilita um estudo, a partir das obras de arte, sobre as sociedades nas quais parte da produção artística dialoga com algum desses temas. Essa sobrevivência se verifica no mito da luta do herói contra o dragão. Na cultura cristã esse mito é encontrado, entre outras representações literárias e visuais, na hagiografia de São Jorge, santo de origem oriental amplamente difundido entre a cristandade ocidental. A fé e a devoção a esse santo atravessou o oceano com a colonização das Américas, está presente na religiosidade do povo brasileiro e se manifesta em formas variadas, estabelecendo um processo de interconexão entre a arte e as esferas de produção cultural.

O objetivo desse texto é demonstrar a representação da luta do herói contra o dragão considerando seu deslocamento entre diferentes condições de espaço e tempo. Para isso são utilizadas obras produzidas em suportes, processos e técnicas diversas, com funções distintas e em lugares e épocas diferentes. Procura-se considerar os processos de transmissão dos temas, das formas, dos conteúdos, das tradições, considerando o que se mantém, as semelhanças, mas principalmente o que se modifica, o que se transforma, na medida em que estabelece uma permeabilidade com o ambiente ao qual se integra.

Inicialmente procura-se demonstrar como um tema mitológico da antiguidade foi incorporado pela cristandade e passou por um processo de expansão, quanto às formas de representação, verbal e visual, dos suportes utilizados e dos lugares alcançados. Em seguida, por meio desse tema, procura-se explicar como esse processo de expansão atuou na formação de um imaginário no ocidente, e sua contribuição com a produção cultural e artística brasileira.

Nesse texto parte-se da hipótese de que os temas sobrevivem na memória coletiva, conceito de Maurice Halbwachs (1877 – 1945). O sociólogo propõe que a memória dos indivíduos, ao se apoiar na memória coletiva, na memória de um grupo, provoca uma lembrança mais sólida dos acontecimentos vividos. Segundo, Halbwachs, a memória também se apoia na lembrança dos espaços, que são percebidos em comum por cada indivíduo de um grupo. O conceito de sobrevivência desenvolvido ao longo do trabalho é uma apropriação da leitura que Georges Didi-Huberman faz do conceito de nachleben de Aby Warburg (1866 – 1929). Segundo Didi-Huberman o tempo das imagens escapa das classificações estilísticas da narrativa da história da arte. As sobrevivências das imagens não estão submetidas ao modelo de transmissão que supõe a imitação do ideal. As imagens não cessam de sobreviver e o retorno na memória acontece de modo anacrônico, como imagens fora de seu tempo.1

A legenda de São Jorge e a mitologia antiga

Na tradição cristã a vitória de São Jorge sobre o dragão é uma alegoria da luta do bem contra o mal e está narrada na hagiografia do santo. A fonte iconográfica utilizada é o códice de São Jorge que se situa na Biblioteca Apostólica do Vaticano. A iluminura com a representação da luta está no fólio 17R (recto) (fig. 01).

O códice pertenceu ao cardeal franciscano Jacopo Stefaneschi. O autor das miniaturas foi chamado, no século XX, de Mestre do códice de São Jorge. Produzido em aproximadamente 1325 – 1330, a iluminura foi pintada com têmpera e ouro sobre pergaminho e tem as dimensões de 373 x 263 mm. Contém uma parte do sanctorale, uma história de São Jorge e os hinos escritos em honra do santo pelo cardeal. Tem dezoito iniciais historiadas e uma miniatura na parte inferior da página, que é a representação do momento da luta entre o santo e o dragão.

Iluminura do códice de São Jorge, 1325 – 1330.
Têmpera e ouro sobre pergaminho, 37,3 x 26,3 cm. Biblioteca Apostólica do Vaticano

Na miniatura, o santo montado em seu cavalo está no centro, voltado para o dragão à esquerda, que está na margem de um lago. À direita, atrás do santo, está a princesa em pé. Sobre uma elevação de terra, na margem direita da página, há uma cidade, representada como a Jerusalém Celestial, de onde o rei e seus súditos observam a disputa.

O cavalo, as vestes azuis, mas principalmente o escudo com a cruz dos cavaleiros cruzados, identifica o santo com a aristocracia militar que combatia nas cruzadas na luta contra o islamismo. Com a ajuda de seu cavalo branco, o santo golpeia o dragão com sua lança. O dragão é representado nas margens de um lago, local onde o réptil vivia, segundo a lenda.

À direita, a princesa tem os cabelos curtos, usa um vestido longo e está com as mãos em sinal de oração. As linhas verticais formadas pelas roupas da princesa se direcionam para cima, onde está a cidade. Os muros e torres da cidade descrevem uma ascensão escalonada, cuja torre principal encimada por um coruchéu, elemento arquitetônico típico das construções góticas, projeta a cidade para um espaço celestial.

Observa-se que o movimento de ascensão iniciado com a prece da princesa corresponde a uma verticalidade que se direciona para cima, contrastando com a luta do santo com o dragão, que está estruturada horizontalmente. Limitada por uma margem ornamentada, a água é a parte baixa. A margem da iluminura é adornada com motivos vegetais e limita a extremidade esquerda do lago e a parte inferior da iluminura. À direita é representada com uma fluidez que se integra na paisagem.

A hagiografia de São Jorge foi compilada pelo dominicano Jacopo de Varazze em aproximadamente 1260 – 1264, aproximadamente sessenta anos antes da miniatura estudada. Sua legenda foi considerada apócrifa pelo concílio de Nicéia por haver discrepâncias entre os relatos dos martírios. Segundo Hilário Franco Júnior, o objetivo principal da compilação era fornecer uma material teologicamente correto e compreensível aos leigos que ouviriam a pregação. Os dominicanos e franciscanos, apesar de grande saber erudito, atuavam entre os leigos e recorriam mais às línguas vulgares que ao latim e às narrativas folclóricas que aos textos teológicos.2

Além da versão traduzida para o português por Hilário Franco Júnior e da versão traduzida para o francês pelo abade J.-B. M. Roze, disponível na página da internet da Abadia de São Bento de Port-Valais, na Suíça, foi consultada uma versão digitalizada da Encyclopédie Théologique, publicada em 1855, pelo Abade Migne, em Paris, disponibilizada na internet.

Segundo a Encyclopedie Théologique, a narrativa da luta de São Jorge contra um dragão é encontrada em grande parte das legendas apócrifas. Parece ser de origem oriental e foi transportada apenas no século XII para o Ocidente, onde a Legenda áurea contribuiu com sua difusão. Seria constituída de lembranças do paganismo modificadas pela piedade popular, que foram espalhadas, diversificadas e transmitidas pelos cantadores, pelos jograis e pelo clero.

A narrativa pode ser dividida em duas partes: a primeira que apresenta o santo, a ameaça do dragão à cidade de Silena, na Líbia, o combate do santo com o dragão e a conversão do rei e seu povo ao cristianismo; e a segunda na qual são narrados os martírios sofridos pelo santo. Segundo a legenda:

“O bem-aventurado Jorge passava casualmente por lá, e vendo-a chorar perguntou a razão. Ela respondeu: “Bom rapaz, monte depressa em seu cavalo e fuja, se não quiser morrer como eu”. Jorge: “Não tenha medo, minha filha, e diga-me o que toda aquela gente está esperando ver”. [...] Depois que a moça explicou tudo, Jorge disse: “Minha filha nada tema, porque, em nome de Cristo, vou ajudá-la”. [...]

Enquanto conversavam, o dragão pôs a cabeça para fora do lago e foi se aproximando. Toda trêmula, a moça falou: “Fuja, meu bom senhor, fuja depressa”. Jorge montou imediatamente em seu cavalo, protegeu-se com o sinal da cruz, e com audácia atacou o dragão que avançava em sua direção. Brandindo a lança com vigor, recomendou-se a Deus, atingiu o monstro com força, jogando-o ao chão, e disse à moça: “Coloque sem medo seu cinto no pescoço do dragão, minha filha”. Ela assim o fez e o dragão seguiu-a como um cãozinho muito manso”.3

Observa-se uma semelhança entre a descrição da cena da luta com a representação na iluminura. Essa semelhança nem sempre é encontrada nas representações do combate de São Jorge com o dragão.

Em algumas representações do santo, ele está montado no cavalo, que se posiciona sobre o dragão, não lateralmente a ele, e o evento é representado não nas margens de um lago, mas na frente de uma caverna, como se observa em algumas pinturas tanto no ocidente como no oriente. Como é o caso do ícone de Novgorod (fig. 02), situado no Museu Russo de São Petersburgo, aproximadamente do primeiro quarto do século XIV.

Ícone de Novgorod, 1300 – 1325.
Têmpera sobre madeira, 89 x 63 cm. Museu Russo de São Petersburgo.

O ícone no centro representa a luta contra o dragão. Nas margens, em todo o entorno do centro, ocupando lugares menores, estão representadas cenas do martírio do santo. Na cena com o dragão, São Jorge, em seu cavalo branco, está no centro, acima, como se flutuasse sobre a terra, onde a princesa mantém o dragão domesticado com seu cinto. Diferente da iluminura no códice o dragão está em frente a uma gruta, não nas margens de um lago.

Essa forma de posicionar o santo sobre o dragão, não lateralmente a ele, mesmo em um combate terrestre, é mais encontrada nas representações artísticas e populares do santo. Também remete a representações de divindades pagãs da antiguidade. Como no mosaico encontrado no piso de uma construção em Palmira, na Síria, datada de 260 a.C. (fig. 03), no qual figura Belerofonte montado no Pégaso, matando a Quimera.



Considerando a adoção dos modelos da antiguidade pela cristandade e o processo de produção das imagens no ocidente medieval, que era feito a partir da reprodução de modelos, porque a iluminura do códice de São Jorge não segue esse modelo, se havia um a partir do qual algumas representações da luta do santo com o dragão se assemelhavam?

Na maioria das representações anteriores ao códice, o santo não figura na cena da luta. Também, como foi apontado anteriormente, segundo a Encyclopedie Théologique, a lenda ter sido acrescida da narrativa da luta no Ocidente apenas no século XII, indica que essa parte da narrativa não era totalmente difundida anteriormente. É possível, todavia, que essa versão circulasse antes entre as narrações orais, pela característica fluídica dessa forma de transmissão, e tenha passado posteriormente para a escrita. Por outro lado, mesmo que o artista conhecesse um modelo, deve se levar em conta o fato do códice ter sido produzido por um franciscano, que assim como o dominicano Jacopo de Varazze, tinha a preocupação em produzir um material teologicamente correto. Visavam uma aproximação com o mundo laico, tornar o conhecimento acessível ao mundo secular. Logo, a representação deveria ser compatível não apenas com a narrativa escrita, mas também se aproximar das histórias contadas oralmente, para que houvesse uma identificação com as versões populares.

Entre as diferenças encontradas pode se observar a posição do santo em relação ao dragão; enquanto na iluminura do códice de São Jorge o santo combate o dragão lateralmente, e ambos se situam sobre a terra. No ícone russo o santo não apenas figura, posicionado sobre o dragão, como está no ar, praticamente sem contato com a terra. O local no qual o dragão vivia; no códice, bem como na Legenda áurea, ele sai de um lago, no ícone ao invés da representação de um lago na parte inferior esquerda, há uma gruta. Deve-se considerar que esse tema foi transportado de maneira oral, logo apresenta variações quanto à forma e principalmente ao espaço onde ocorre a cena. Sua sobrevivência se dá por sua capacidade de adaptação, pela possibilidade de se modificar conforme se apresenta em condições locais e temporais distintas.

No oriente cristão as imagens funcionavam como objetos de culto e os ícones eram venerados por trazerem um testemunho da pessoa representada, seguindo na tradição da filosofia platônica4. No ocidente, as imagens tinham, principalmente, as funções de instruir, rememorar e emocionar. O culto não era prestado à própria imagem, mas à figura representada5. A iluminura foi pintada com a função principal de esclarecer o texto. De tornar visível a vitória de São Jorge sobre o dragão, como alegoria da vitória do cristianismo sobre o islã, do bem sobre o mal.

Quanto à representação da luta no códice, entendemos que a fidelidade com o texto da Legenda áurea está relacionada com a recepção da filosofia aristotélica feita pela escolástica. Para Platão existe um protótipo, no mundo ideal, do qual as imagens que vemos são derivadas. Segundo o filósofo, na memória há um conhecimento que são idéias das realidades que a alma conheceu antes de passar do plano espiritual para o plano material. Essa foi uma parte do pensamento recebido pela patrística, que passou para a idade média em seu início. Para Aristóteles as imagens formuladas na imaginação passaram pelos sentidos, assim, as coisas gravadas na memória são resultado das experiências sensoriais6. A imagem da cena da luta no códice se aproxima da representação de uma realidade terrena. Se contemporaneamente entendemos o dragão como uma criatura mítica, para os medievais era um animal real, pois era representado nos bestiários junto com animais reais. Logo, por mais que nunca tivessem visto um dragão, acreditavam na existência dessas criaturas.

São Jorge e a expansão da cristandade

O tema da luta do herói contra o dragão pode ser encontrado não apenas na hagiografia de São Jorge. Uma narrativa que apresenta uma relação com o tema é “Juvenal e o dragão”. A história se assemelha à narrativa de São Jorge, porém o tema ocorre na história narrada no folheto de cordel “A história de Juvenal e o dragão”, do pernambucano Leandro Gomes de Barros (1865-1918). A edição fac-similar utilizada está em domínio público, disponível em mídia digital , foi editada por João Martins de Athayde e está datada do ano de 1974.

A história narra as peripécias de Juvenal. Um rapaz pobre que herda três carneiros com a morte de seu pai deixa sua irmã aos cuidados do padrinho e parte. Logo troca os carneiros por três cachorros mágicos que o acompanham em sua busca por aventuras e o ajudam a vencer um dragão, libertando assim uma princesa de ser devorada pelo monstro. Ao desposar a princesa no final da história, Juvenal manda um cortejo buscar sua irmã e então finalmente seus cães, considerando sua missão terminada, transformam-se em pássaros e partem.

A gravura “Juvenal e o dragão” (fig. 04), de Gilvan Samico, foi elaborada a partir da epopeia narrada por Leandro Gomes de Barros. A luta do herói contra o dragão para libertar a princesa é o tema central da narrativa. Na gravura, um jovem luta contra uma serpente alada, com cauda de peixe, diante de um rochedo que divide a imagem horizontalmente entre o espaço do céu e o terrestre.

Juvenal e o Dragão, Gilvan Samico, 1962. Xilogravura, 45 x 51,5 cm. 
A luta ocorre na terra, no primeiro plano estão dois de seus cães e, no segundo plano, Juvenal combate o dragão enquanto seu outro cachorro está posicionado atrás do dragão, em oposição ao herói, à esquerda da gravura. No céu, sobre a cabeça de Juvenal, três pombas voam em formação triangular como se fossem sair da gravura à direita.

No centro, o dragão parece saltar de dentro da caverna, se projetando na direção de Juvenal, quase o tocando com sua língua, mas também parece se contorcer ao ser golpeado pelo jovem. Para as primeiras gerações cristãs, o dragão representa a incorporação do princípio do mal. É identificado com a serpente que vive nas águas. São bastante difundidas as representações nas quais o dragão é vencido pelo arcanjo Miguel, por São Jorge ou por Cristo7. As asas membranosas do dragão, grandes e coloridas, o sustentam no ar. As linhas que preenchem as áreas coloridas das asas geram pontos de convergência que impulsionam o movimento do dragão no ataque.

Contrastando com o dinamismo do dragão, Juvenal mantém a sobriedade e golpeia a criatura grande e ameaçadora com uma de suas facas. Com a mão direita, segura uma faca, ou talvez um chifre do dragão e, com a esquerda, golpeia o dragão com um facão, chamado de peixeira pelo sertanejo, também usado como arma. No entanto, Juvenal não é representado como um cangaceiro. Se aplicarmos a lógica medieval a essa narrativa, de divisão das atividades da sociedade entre os que rezam, os que guerreiam e os que trabalham, poderíamos situar Juvenal entre os que trabalham, identificado com os camponeses, não com o clero nem com as milícias, o que, contudo, não diminui sua fé, muito menos sua bravura.

Os cães não interferem na luta, mas, posicionados em torno do corpo do dragão, parecem prestar auxílio ao jovem. Por ser considerado um animal impuro no Antigo Testamento, o cachorro teve uma conotação negativa, mas, na arte cristã, por sua fidelidade, é relacionado à virtude teológica da fé8. Por serem três cães, fazem uma alusão à Trindade. Nos versos finais da narrativa escrita, os cães irão se transformar nas pombas que voam sobre a cabeça de Juvenal. Na arte cristã, a pomba aparece como símbolo do Espírito Santo9, e sua formação triangular parece reforçar o significado da Santíssima Trindade. Porém, na imagem, ela indica algo mais que uma passagem temporal. Situadas no espaço celeste sobre a cabeça de Juvenal, sugere um apoio Divino ao jovem.
Outra representação da história de São Jorge é a de Paolo Uccello (fig. 05), datada no ano de 1455. Na obra de Uccello, o cavaleiro, o dragão e a princesa ocupam o primeiro plano sobre a terra em frente à gruta.

São Jorge e o Dragão, Paolo Ucello, 1458-1460. Óleo sobre madeira, 57 x 73 cm. Galeria Nacional de Londres. 
Observamos que a gravura de Samico se apresenta de forma homóloga à pintura do florentino. Tanto Juvenal como São Jorge enfrentam o dragão lateralmente, da esquerda para a direita, golpeando-o. Montado em seu cavalo branco, o santo rende o dragão com sua lança. Oposta ao dragão, transmitindo para o santo o apoio que Juvenal encontra em seus cães, a princesa participa do acontecimento como é descrito na lenda do santo, colocando seu cinto em torno do pescoço do dragão tornando-o manso. O movimento em espiral formado pelas nuvens posicionadas sobre o santo, em contraste com o resto do céu azul, confere um apoio celestial Divino ao ato de São Jorge, assim como as asas-brancas no céu apoiam Juvenal. A pintura de Uccello indica um período de busca de uma realidade natural na representação do espaço que é formulado no final da Idade Média.

A “história de Juvenal e o dragão” adquire uma função didática ao vincular a moral cristã na narrativa e reflete a preocupação da sociedade que, assim como os medievais, procura uma vida religiosa guiada pelas virtudes como caminho para a salvação de suas almas. O tema da luta contra o dragão para libertar a princesa na história de Juvenal, que corresponde ao tema de São Jorge, remete à oposição entre o bem e o mal, encontrada na hagiografia do santo e ambas tem o mesmo sentido moral.

As histórias se opõem na medida em que o santo era um nobre, um guerreiro, enquanto Juvenal é filho de um camponês pobre, mas que por meio de suas virtudes, e em nome de Deus, adquire reconhecimento e respeito da sociedade e busca seu caminho para a salvação. Diferente dos santos aristocratas, Juvenal é um herói com o qual os ouvintes podem se identificar, alguém que, além da sua coragem, tem apenas seus cachorros, que por serem mágicos remetem os acontecimentos a um plano metafísico, de crença no sagrado.

Sobrevivência e memória

A gravura “Juvenal e o dragão” reflete uma lembrança de Samico, da narrativa que ouvia na infância cantada por um empregado de sua casa. A narrativa também reflete a forte religiosidade do povo impregnada no tema, que sobrevive na memória dos grupos, das sociedades.

Em “A Arte da Memória”, Frances Yates demonstra como a arte de memorizar discursos, ou conteúdos, estimulou, no ocidente medieval, a formação de um sistema de imagens. Para a autora, a expansão no conjunto de novas imagens nos séculos XIII e XIV, está relacionada com o interesse da escolástica pela memória.

O poeta grego Simônides de Ceos propôs que para treinarmos a faculdade da memória deveríamos escolher lugares e formarmos imagens mentais a partir desses lugares, em seguida criar imagens das coisas que devem ser lembradas e colocá-las ordenadamente nesses lugares10. A formulação do poeta sobre o aperfeiçoamento da memória levou a um modo de construção de imagens inseridas em lugares ordenados e não permaneceu reservada aos seus contemporâneos. Ela ecoou por diversos momentos na arte da memória e na arte, passando por modificações conforme a época e a interpretação feita, mas manteve sua essência.

Os escolásticos Alberto Magno e Tomás de Aquino utilizaram a arte da memória visando ensinar os pregadores dominicanos a memorizar seus sermões e ensinar aos fiéis a se afastar do caminho do Inferno evitando os vícios, e buscar as virtudes como caminho para o Paraíso. Tais ensinamentos tiveram alcance além da memorização dos sermões, eram utilizados também para a decoração das paredes das igrejas, de modo que os fiéis, quando estivessem no local de culto recebendo os ensinamentos por meio dos sermões, pudessem também memorizar a oposição entre as virtudes o os vícios ao visualizar nos afrescos as imagens inseridas em lugares correspondentes ao bem e ao mal, criando imagens mentais11. Assim, as formulações do poeta grego para memorização, foram impregnadas de uma moral cristã, que foi passada para os fiéis, para os grupos religiosos.

Nas cidades, enquanto a aparência das ruas e das construções não muda, o grupo tem a impressão de não mudar, a estabilidade das imagens gera uma sensação de continuidade em um grupo social. Para Halbwachs, uma das condições de unidade de um grupo é por estarem reunidos em um mesmo espaço. É no ambiente, na fonte dos estímulos sensoriais, onde criam suas relações sociais, assim a memória coletiva acontece em um contexto espacial. As religiões que estão fortemente instaladas sobre o solo, participam da memória dos grupos. As lembranças de um grupo religioso ocorrem pela visão de determinados lugares, localizações ou disposições de objetos. Os sentimentos experimentados pelos fiéis ao entrar em uma igreja, ou outro lugar santificado, possuem lembranças comuns com os estados de espíritos experimentados por outros fiéis, pensamentos e lembranças que se formaram em épocas anteriores, nesse mesmo lugar.12

Podemos considerar que as igrejas estão inseridas dentro do contexto espacial da cidade, mas também podemos imaginar cada igreja como um contexto espacial. Na infância Samico morava em Recife, uma cidade com grande quantidade de igrejas, com uma arquitetura imponente, monumental. Construções que impressionam pelas dimensões e pelos ornamentos, pelas imagens e objetos. Não apenas vivia em uma cidade com uma forte religiosidade, sua família era religiosa, frequentava uma igreja, um local propício para formar a unidade de um grupo.

Assim, o artista estava integrado a um grupo religioso, e sua memória participava da memória do grupo. Se a igreja, como contexto espacial, pode ser um elemento de estabilidade para a reconstrução de pensamentos e sentimentos, é provável que contribua com a formulação de uma série de pensamentos e sentimentos religiosos integrados por meio de uma rede social com as formas e conteúdos artísticos. Dessa maneira a arte reflete características do indivíduo que a produziu, mas também do ambiente no qual esse indivíduo se insere socialmente, como agente e como receptor.

Considerações finais

A análise das obras apresentadas permitiu entender o processo de sobrevivência das imagens segundo a proposta de Didi-Huberman. A investigação de conteúdos religiosos ocorreu por uma aproximação com o passado, gerando um movimento anacrônico no qual se insere o processo criativo. Um anacronismo que encontra imagens na memória e cria imagens fora do tempo. Nessa circulação entre passado e presente, ocorre uma repetição de temas e formas oriundos de um contexto religioso, mas que seguem reformulados, recontextualizados e ressignificados. Imagens onde se misturam várias temporalidades e apresentam uma heterogeneidade conforme o ambiente no qual se manifesta13.

A forma de transmissão oral da poesia medieval possibilitou a difusão e a circulação de histórias e formas literárias que carregavam um conteúdo moral cristão. Não há uma continuidade temporal entre as épicas medievais e as narradas pelos poetas populares nordestinos, contudo identifica-se a sobrevivência, das formas e dos temas medievais nas poesias populares do Nordeste brasileiro. Nesse sentido, a oralidade contribui com a transmissão dos temas, pois possibilita uma recepção coletiva e permite uma flexibilidade no uso.

Referências: 
1 DIDI-HUBERMAN, Georges. L’image survivante. Histoire de l’Art et temps des fantomes selon Aby Warburg. Paris: Les Éditions de Minuit, 2002.
2 FRANCO Jr, Hilário. Apresentação. In: VARAZZE, Jacopo de, Arcebispo de Gênova. Legenda Áurea: Vidas de Santos/Jacopo de Varazze. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2003. p. 11-13.
3 VARAZZE, Jacopo de, Arcebispo de Gênova. Legenda Áurea: Vidas de Santos. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2003. p. 366 – 367.
4 BELTING, Hans. Semelhança e Presença. A história da imagem antes da era da arte. Rio de Janeiro: Petrobrás/Ministério da Cultura, 2010. p. 187 – 188.
5 BASCHET, Jérôme. A civilização feudal. Do ano mil à colonização da América. São Paulo: Globo, 2006. p. 485.
6 YATES, Frances A. A Arte da Memória. Campinas: Editora da Unicamp, 2007. p. 56 – 58.
7 HEINZ-MOHR, Gerd. Dicionário dos símbolos: imagens e sinais da arte cristã. São Paulo: Paulus, 1994. p. 138.
8 Ibidem, p. 66 – 67.
9 Ibidem, p. 294.
10 YATES. op. cit. p. 17 – 18.
11 Ibidem, p. 80 – 84.
12 HALBWACHS. op. cit. p. 170 – 171.
13 DIDI-HUBERMAN. op. cit. p. 11 – 50


Fonte: FONSECA, Fábio. O herói contra o dragão, entre o Oriente e o Ocidente. 22o Encontro Nacional ANPAP: Ecossistemas estéticos, Belém, Pará, 2013, p. 3796-3810. 

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