Leonardo da Vinci e Michelangelo Buonaroti foram dois dos maiores artistas da Renascença, sendo contemporâneos e rivais. E o ápice dessa rivalidade ocorreu no ano de 1504, quando os dois receberam contratos do governo de Florença para realizar pinturas em um dos seus palácios. Na época, se existissem jornais, o assunto teria sido tema de capa, pois aquela disputa entre os dois gênios virou assunto comentado por semanas pelos florentinos, ainda mais, pelo fato de que publicamente Leonardo e Michelangelo já tinha trocado ironias e até ofensas no meio da rua. O presente texto conta um pouco dessa inusitada "batalha dos pintores".
Dois gênios:
Em 1504, Leonardo da Vinci contava com seus 51 anos, já era um pintor respeitado, apesar de ter a fama de ser teimoso e não cumprir com os prazos. Leonardo era então pintor, engenheiro, inventor, urbanista e anatomista, além de ter atuado como decorador também do palácio do Duque de Milão, seu então mecenas. Leonardo possuía uma vida agradável em Milão, apesar de ser criticado por sua falta de palavra com os prazos de suas obras, além de ter quebrado contratos várias vezes, e ser até inadimplente com seus clientes. Ainda assim, ele era considerado um mestre e já visto como grande artista.
Por sua vez, Michelangelo Buonarroti tinha seus 29 anos, já era renomado como pintor e escultor, tendo feito Pietá (1499) e Davi (1501-1504). Michelangelo era descrito como sendo antissocial, embora tivesse poucos amigos (a antissocialidade deveria ser por causa do fato de ele não gostar de ir a festas e bailes, mesmo que a negócios ou convite de seus mecenas), era de aspecto descuidado, o que tornou malfalado, inclusive sendo considerado como louco; bastante magro, alimentando-se pouco, além de usar roupas sujas e até velhas, não ligando para aparência, o que favoreceu opiniões negativas sobre ele. Porém, era descrito como caridoso e um mestre atencioso. Michelangelo também como Leonardo era viciado no trabalho, apesar de em geral ser mais responsável com os prazos, embora que alguns de seus projetos poderiam levar anos para ficarem concluídos.
Leonardo da Vinci e Michelangelo Bunarroti. |
A proposta:
Em 1503, o gonfaloneiro (magistrado) Piero Soderini enviou uma proposta para Leonardo, que vivia no Ducado de Milão, propondo que ele pintasse um mural na Sala do Grande Conselho ou Sala dos Quinhentos, no Palazzo Vecchio. A proposta solicitava que a pintura abordasse algum tema histórico de Florença, e naquela época em geral os temas históricos diziam respeito a história da guerra, sendo assim, o gonfaloneiro Soderini sugeriu a Batalha de Anghiari (1440), na qual o comandante florentino Giampaolo Orsini derrotou as tropas milanesas de Filippo Maria Visconti. Tal pintura que seria algo enorme, ficaria situada na parede direita a cadeira do gonfaloneiro, cuja parede media 18x7m, embora não se saiba qual teria sido o tamanho da pintura, pois Leonardo não era obrigado a preencher a parede toda. (ABRIL, 2011, p. 118).
Em outubro de 1503, Leonardo visitou Florença e recebeu as chaves da Sala do Grande Conselho e foi com dois assistentes, Rafael d'Antonio di Biagio e Fernando Spagnolo, averiguar o local e começar a planejar os esboços. De dezembro aos primeiros meses de 1504, os três retornaram mais algumas vezes e até chegaram a preparar a parede para receber os primeiros esboços, até então desenhados no papel; mas como Leonardo era um homem cheio de pedidos e ele tinha o costume de demorar mais do que o habitual para concluir suas pinturas, nada foi feito até o final de 1504. (ABRIL, 2011, p. 118).
O gonfaloneiro Piero Soderini provavelmente irritado com o descaso de Leonardo em ter passado meses e nem começado a pintar o afresco, decidiu contratar outro pintor para pintar um segundo afresco, dessa vez, na parede oposta. O escolhido foi Michelangelo, que havia executado novas obras em Florença, Siena e Roma, e no ano de 1504, estava concluindo a escultura de Davi, além de ter concluído um baixo-relevo para a Igreja de Santa Maria del Fiori em Florença, e trabalhava numa pintura da Sagrada Família na ocasião, quando recebeu o convite para pintar a segunda batalha que deveria enfeitar o Salão do Grande Conselho. Na ocasião sugeriu-se a Batalha de Cascina (1364), um conflito travado entre Florença e Pisa. A parede onde o afresco seria pintado, possuía dimensões similares a parede que Leonardo deveria realizar sua pintura. (COLEÇÃO GÊNIOS DA ARTE, 2007a, p. 20).
Assim, quando Leonardo soube que teria que dividir espaço como seu rival Michelangelo Buonarroti, aquilo não agradou a ambos, pois, anteriormente quando se encontraram pelas ruas de Florença, eles já haviam trocado sarcasmos, pois Leonardo considerava Michelangelo um péssimo pintor, apesar de reconhecer que ele tivesse talento para a escultura, embora ele desdenha-se da aparência de Michelangelo e o fato de ele as vezes estar com as mãos e sapatos sujos por causa de sua oficina. Já Michelangelo considerava Leonardo um pintor, esnobe e invejoso, o qual não era tão mais famoso e agora tinha inveja de que o nome Michelangelo se sobressaia ante o nome Leonardo.
Todavia, infelizmente não temos relatos da época que narrem como teria sido tais encontros. Provavelmente Leonardo evitava de estar presente na Sala do Grande Conselho, quando soubesse que Michelangelo estaria ali fazendo suas medições e esboços, sendo possível que alguns casos ambos mandassem seus ajudantes fazer as medições e preparar as massas para as paredes receberem a pintura. Mas eventualmente eles teriam se encontrado em algumas ocasiões, apesar que o ano de 1504 passou e nenhum dos dois artistas concluíram suas pinturas, embora Leonardo estivesse mais avançado nesse quesito.
As duas pinturas:
Hoje em dia somente conhecemos alguns esboços que são cópias de outros pintores baseados nos esboços originais ou cópias dos originais, pois tais afrescos nunca foram concluídos. Ainda assim, antes de chegar ao motivo de não terem sido concluídos, se faz necessário comentar um pouco dos esboços conhecidos.
No caso da Batalha de Anghiari que estava sendo pintada por Leonardo, são conhecidos alguns esboços que mostram guerreiros lutando a pé e com espadas, mas também guerreiros lutando a cavalo. Outros dos esboços temos rascunhos dos cavalos e de alguns rostos dos guerreiros, os quais mostram suas feições bastante agressivas, com bocas gritando e caras ferozes. A ideia supõe-se que era mostrar toda a ação e violência do conflito.
Um dos esboços da Batalha de Anghiari feito por Leonardo da Vinci, talvez entre 1504 e 1505. Hoje guardado na Galeria da Academia de Veneza. |
Na época Leonardo estava interessado em cavalos, tendo feito vários desenhos desses e até projetado uma estátua equestre para o Duque de Milão. Em sua pintura da batalha, haveria cenas de cavaleiros em ferrenho conflito, empunhando suas espadas e lanças, disputando um estandarte, algo que inclusive um século depois influenciou o pintor Peter Paul Rubens a fazer uma homenagem a esta cena, criando sua própria versão do roubo do estandarte. (ABRIL, 2011, p. 121).
Informações da época apontam que Leonardo chegou a iniciar a pintura, aplicando uma técnica a óleo, experimental, pois seu gênio criativo o levava a fazer vários experimentos, mesmo que nem todos fossem exitosos. A tinta óleo por ele aplicada não reagiu bem ao material da parede, da massa e a temperatura ambiente, e o esboço começou a deteriorar-se após alguns meses, surgindo algumas rachaduras, aquilo teria irritado bastante Leonardo, o frustrando. (COLEÇÃO GÊNIOS DA ARTE, 2007b, 66).
Quanto a Michelangelo, até onde se sabe, ele não teria iniciado a pintura na parede. O esboço mais famoso da sua Batalha de Cascina é uma cena um tanto inusitada. Enquanto Leonardo focava em seus cavaleiros para contrastar a robustez de corpos equinos com as faces enrugadas e agressivas de seus soldados, Michelangelo pelo que se conhece de seus esboços quis também destacar as formas físicas, e como ele era expert nisso, algo visto principalmente em suas estátuas e mais tarde em outras pinturas, Michelangelo escolheu uma cena relatada nos livros da época que falam que os soldados florentinos após uma longa marcha num dia quente e por uma estrada empoeirada, decidiram banhar-se num rio e na ocasião foram surpreendidos pelo soldados de Pisa.
Esboço de Aristotele da Sangallo, discípulo de Michelangelo, baseado no esboço original de seu mestre. |
Na imagem acima vemos uma das cenas imaginadas por Michelangelo, onde os soldados florentinos, enquanto banhavam-se em um rio, tinham que vestir-se as pressas e pegar suas armas para confrontar os soldados de Pisa que os cercaram. Provavelmente a ideia de Michelangelo de retratar tão peculiar momento fosse apenas para ele destacar seu talento em retratar a musculatura de corpos masculinos, algo visto em suas esculturas como comentado. Aqui ele mostrava toda a robustez dos guerreiros florentinos. Todavia, essa pintura nunca chegou a ser pintada na parede, apenas foi copiada de um cartão de esboço que um de seus discípulos teve acesso. (COLEÇÃO GÊNIOS DA ARTE, 2007a, p. 21).
Uma batalha perdida:
Entre 1505 e 1506, Leonardo frustrado com os danos causados a sua pintura, e provavelmente já impaciente e sendo cobrado pelos atrasos de outros projetos, decidiu abandonar tudo e voltou para Milão. De acordo com Vasari, o esboço ainda continuou pintado na parede direita da Sala do Grande Conselho por vários anos até ser apagado para dar espaço para novas pinturas, já que o trabalho de Leonardo ficou inconcluído. (COLEÇÃO GÊNIOS DA ARTE, 2007b, p. 66).
Com Michelangelo a situação foi um pouco pior. Se por um lado, Leonardo já estava a mais de dois anos sem concluir seu trabalho, mesmo tendo já iniciado a pintura, por sua vez, Michelangelo nem ao menos começou seu trabalho. Era o começo de 1505 quando ele desistiu de continuar com aquele projeto e seguiu para Roma, pois havia recebido o convite do papa Júlio II para realizar dois projetos para esse: o primeiro seria esculpir em mármore o túmulo papal, e o segundo foi pintar o teto da Capela Sistina, ambos os projetos lhe tomaram vários anos de trabalho, e foram concluídos entre 1513 e 1514, aumentando ainda mais o renome de Michelangelo.
Dessa forma, ambos gênios da pintura desistiram de pintar os dois temas das batalhas florentinas, abandonando as propostas, e tendo deixado o governo de Florença a ver navios. Se por um lado isso foi ruim para a imagem de Leonardo e Michelangelo, por outro, os projetos que eles conseguiram em 1505 e 1506 ajudaram a apagar aquele momento problemático em Florença, sem contar que infelizmente nunca poderemos ter noção de como teria ficado ambas as pinturas se os dois tivessem as concluído. Além disso, a história do porque do longo atraso de iniciar as pinturas, também está cheia de lacunas, embora saibamos que os dois artistas eram homens atarefados, que executavam vários trabalhos de vez, ainda assim, é estranho o fator de terem levados meses para iniciar os desenhos, lembrando que Michelangelo nem teria chegado a começar a pintar de fato. (COLEÇÃO GÊNIOS DA ARTE, 2007a, p. 22).
E assim, a batalha dos pintores em Florença de 1504-1505 foi um capítulo inusitado da história da arte renascentista, onde dois gênios com seus egos inflamados tiveram a oportunidade de provocar e tentar mostrar ao rival quem seria o melhor, mas eles acabaram desistindo.
Referências bibliográficas:
ABRIL. Leonardo da Vinci. Tradução de José Ruy Gandra. São Paulo, Abril, 2011.
COLEÇÃO Gênios da Arte. Leonardo. Tradução de Mathias Abreu Lima Filho. Barueri, Girassol, 2007b.
COLEÇÃO Gênios da Arte. Michelangelo. Tradução de Mathias Abreu Lima Filho. Barueri, Girassol, 2007a.
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