O relógio ou nós? Uma visão da invenção do tempo social na percepção político-cultural de Edward P. Thompson
Me. Arthur Mazzucco Fabro
Introdução
Poucos
são os intelectuais que possuem uma trajetória de vida pessoal que se assemelhe
com suas produções acadêmicas, ou seja, que haja uma espécie de conexão entre
sua prática do dia-a-dia com a teoria produzida para a vida na Universidade. A
carreira de E.P. Thompson é singular em vários sentidos, todavia, é inegável
que seus afazeres fora dos centros universitários assumam um lugar de destaque
em sua biografia.
Com a
explosão da Segunda Guerra Mundial, Thompson luta na Itália contra o fascismo
de Mussolini, sendo que logo após funda, com outros grandes intelectuais
marxianos – Eric Hobbsbawn e Perry Anderson eram alguns dos nomes -, uns grupos
de estudos aonde viriam a refletir exaustivamente o legado de Marx, adicionando
a isso sua filiação ao Partido Comunista Britânico, temos no autor um
engajamento político que modificou sua vida. O anseio de Thompson na
Universidade de Leeds, uma das poucas ao qual se filiou, se concentrou em
ministrar aulas não acadêmicas para trabalhadores1, repassando sua visão histórico-materialista
do mundo a quem interessasse acompanha-lo em suas críticas aos sistemas
político e social do capitalismo moderno. Por esses motivos e muitos outros que
não caberiam neste ensaio, os trabalhos de Thompson devem ser apreciados
levando em conta sua história de vida, se não a análise de suas palavras não
irá fazer sentido algum.
“De
forma indelével, E. P. Thompson foi um dos maiores historiadores da segunda
metade do século XX. A sua ampla e polêmica produção historiográfica e a sua
intensa militância política espraiaram as suas ideias e a sua influência entre
os(as) historiadores(as) e cientistas sociais, notadamente aqueles(as)
vinculados(as) à tradição marxista heterodoxa”. (MULLER & MUNHOZ, 2010, p. 1).
Iniciando
nosso raciocínio sobre a “criação” do tempo, Thompson separa uma sessão de seu
Costumes em comum, que fora lançado em 1991, para discutir essa questão de
notável importância. Um dos pontos principais do nascimento do relógio se
encontra na disciplina de trabalho que ele acarreta. O argumento de Thompson se
liga muito a essa disciplina, pois, anteriormente, como ele demonstra não só em
Costumes em comum2, a classe trabalhadora inglesa não compartilhava dos mesmos
costumes e cultura que a burguesia e a nobreza dividiam entre si, muito pelo
contrário, havia uma resistência por parte desses indivíduos em se adequar
forçosamente a algumas mudanças, tendo o relógio sido uma dessas.
A
difusão dessa nova forma de disciplinar o trabalhador veio, então, com uma
série de protestos. Se levarmos em conta, como o autor, que os relógios
começaram a popularizar-se em meados do século XIV, o impacto que essa invenção
teve foi crucial para que a industrialização se firmasse. Com uma rotina de
trabalho comandada por ponteiros que definem exatamente o quanto trabalhar, a
dinâmica da disciplina expõe um de seus ápices, já que Thompson oferece
diversos exemplos de sociedades “primitivas” que sempre se guiaram pelos
eventos da natureza, mas as inovações de uma economia de mercado não podem
esperar que o trabalhador acorde com o amanhecer do Sol, o mercado não pode
correr esse risco.
“Essa
medição incorpora uma relação simples. Aqueles que são contratados experenciam
uma distinção entre o tempo do empregador e o seu “próprio” tempo. E o
empregador deve usar o tempo de sua mão-de-obra e cuidar para que não seja
desperdiçado: o que predomina não é a tarefa, mas o valor do tempo quando
reduzido a dinheiro. O tempo é agora moeda: ninguém passa o tempo, e sim o
gasta”. (THOMPSON, 1998, p.272).
As
referências a Marx se tornam óbvias nessa passagem. Além da disciplina para com
o trabalhador, o tempo adquire um status de valor no capitalismo, um valor que
foi inventado e transformado em moeda. Toda mão-de-obra contratada ao custo de
algum dinheiro traz consigo um relógio que serve como depósito: quanto mais se
gasta as horas, mais se ganha dinheiro. Essas complicações não só transformaram
as relações de trabalho, como também foram essenciais para mudanças no “tempo
social” dos homens e mulheres. Thompson anexa em sua argumentação um leque de
poemas, discursos e leis que faziam menção à, por exemplo, homens que
doavam/vendiam suas terras para a construção de relógios públicos e/ou sinos em
igrejas, com a intenção de que as pessoas daquelas comunidades soubessem qual
seria a hora do toque de recolher ou da missa, atribuindo cada vez mais à
contagem do tempo um sentido de reclusão para alguma atividade.
Assim
sendo, a história social de Thompson não se limita ao que comumente se rotula
como sendo uma história vista de baixo, e essa afirmação serve para engrandecer
ainda mais o autor, uma vez que, apesar de marxiano, o jeito que Thompson faz
História não se restringe a uma ou outra corrente de interpretação, podemos
encontrar uma variedade de estratégias que ele utiliza quando analisa
acontecimentos de acordo com o materialismo histórico dialético, por exemplo,
ou mesmo se utilizando de uma história das ideias para oferecer ao leitor um
estudo mais completo acerca daquilo que ele está abordando. O presente ensaio
tem por intenção contribuir singelamente (mas também criticamente) com as
discussões relacionadas a algumas obras de Thompson e, mais enfaticamente, ao
tema do tempo e da disciplina no capitalismo.
A metamorfose no tempo que mudou a relação com o trabalho
Com a invenção e,
principalmente, popularização dos relógios iniciando no século XIV, – lembrando
que a utilização dos relógios de Sol era bem anterior – é necessário que se
faça uma regressão na história para que essas mudanças sejam entendidas, e é
isso que Thompson, como um bom historiador, o faz. O autor comenta que nos
povos “primitivos” a medição do tempo era aliada às atividades domésticas e ao
ciclo de trabalho das famílias. Utilizando de um dos estudos do antropólogo
Evans-Pritchard, Thompson mobiliza que os nuer – tribo localizada no Sudão –
contavam seu tempo de acordo com as atividades relacionadas à criação do gado,
obtendo essa sucessão de tarefas a função de determinar o tempo gasto para o
trabalho, de forma simples e não muito calculada.
Já com
outra tribo, os nandi, que viviam no Quênia, observa-se uma evolução na noção
da contagem do tempo, sendo que a cada meia hora do dia os membros dessa tribo
lançam alguma atividade: “[...] às 5h30 da manhã os bois já foram para o pasto,
às 6h as ovelhas foram soltas, às 6h30 o sol nasceu, às 7h tornou-se quente, às
7h30 os bodes já foram para o pasto etc.” (THOMPSON, 1998, p.269). O valor
relevante desses relatos é também entendido por Thompson de forma com que a
história em si não possuí formas estáticas e repetitivas, cada sociedade, por
mais “primitiva” que seja considerada, assimilou a contagem do tempo de uma
maneira diferente, e é aí que está o desafio em estudá-las. Da mesma forma que
os nuer e os nandi calculavam o tempo de sua maneira específica, Pierre
Bourdieu relatou que os camponeses cabilas da Argélia tinham uma repulsa pelo
relógio, que chamavam de “a oficina do diabo”.
A
conveniência de se compilar o entendimento do tempo que esses povos possuem tem
cabimento quando acontece uma passagem que transformaria nossa relação com o
relógio: o surgimento da mão-de-obra assalariada. Os casos mencionados
anteriormente fazem sentido, e só poderiam ser dessa forma, pela formatação
familiar e, principalmente, por se tratarem de organizações sociais isoladas,
pois mesmo quando disserta sobre alguns pequenos artesões e/ou comerciantes,
Thompson já relata que existe algum tipo de disciplina do trabalho, nem que
seja entre o chefe de família e seus próprios filhos, isto é, a divisão de
trabalho, somada com o a troca da mão-de-obra por algum dinheiro, já transforma
a relação com o tempo:
“Mesmo
nesse caso, o tempo está começando a se transformar em dinheiro, o dinheiro do
empregador. Assim que se contrata a mão-de-obra real, é visível a transformação
da orientação pelas tarefas no trabalho de horário marcado. É verdade que a
regulação do tempo de trabalho pode ser feita independente de qualquer relógio
– e, na verdade, precede a difusão desse mecanismo. Ainda assim, na metade do
século XVII, os fazendeiros ricos calculavam as suas expectativas de
mão-de-obra contratada em “dias de trabalho” [...]”. (THOMPSON, 1998, p.272).
Com
base nesses episódios e na já modificada relação com o tempo, o desenrolar da
nossa história com o relógio começa a ganhar ares de cada vez mais
racionalidade, essa fortemente atrelada ao ganho do dinheiro e à disciplina.
Desde o surgimento do pêndulo e dos ponteiros dos minutos, os relógios foram se
tornando artefatos indispensáveis para os trabalhadores e seus empregadores,
dependendo dos dotes dos ferreiros que os construíam. Junto de todas essas
especializações, a produção de relógios aumentou muito, assim como sua
precisão, acarretando em alguns causos que Thompson traz como meio de ilustrar
o ambiente de uma época – fim do século XVIII e início do século XIX -, como
quando o contrabando de relógios começou a preocupar a “Companhia dos
Relojoeiros”, mas também ajudou para que os mais pobres conseguissem comprar o
objeto, que normalmente era fabricado em ouro ou prata; ora quando se iniciou
uma taxação em cima de cada relógio vendido, vinda do Ministro do Tesouro, que,
vislumbrado pela expectativa de bons ganhos, causou um descontentamento tanto
por parte dos relojoeiros quanto dos que consumiam os relógios, visto o alto
preço que era cobrado, acabando, no fim das contas, em extinguir tal imposto,
em decorrência da impossibilidade de contabilizar todos os relógios que estavam
circulando.
Essa
propagação do relógio em conjunto com a crescente industrialização da economia
provocou uma “irregularidade” nos padrões de trabalho. É claro que do ponto de
vista dos trabalhadores, antes preocupados somente com uma produção familiar,
alternada, onde o ócio fazia parte da sua produtividade, era de se estranhar a
nova rotina imposta pelas máquinas e, muito mais, por seus chefes que nunca
haviam visto tanta possibilidade de ficarem mais ricos. Esse estranhamento é
muito bem explorado em uma canção3 com impulsos melancólicos daquilo que os
trabalhadores ingleses da Sheffield do século XVIII adoravam, chamada “Santa
Segunda-Feira”, sem dúvidas era uma menção de resistência aos novos padrões de
trabalho impostos pelos donos das recém-chegadas máquinas, bem como uma
exaltação de seus costumes e cultura:
Quando
numa boa Santa Segunda-Feira, Sentados à beira do fogo da forja, Contando o que
se fez no domingo, Com alegria jovial conspiramos, Logo escuto a porta do
alçapão se erguer, Na escada está minha mulher: “Ao diabo, Jack, vou bater na
tua cara, Tu levas uma vida de bêbado irritante, Ficas aí sentado em vez de
trabalhar, Com o cântaro sobre o joelho; Maldito, tudo contigo é sorrateiro, E
eu a trabalhar para ti como uma escrava.”
A
“Santa Segunda-Feira” assume moldes de uma típica forma de resistência cultural
às regras que estavam vindo com o capitalismo industrial. Vadiar na
segunda-feira se tornava santo pelo costume nutrido durante muitos anos pelos
trabalhadores ingleses, em que Thompson retrata que esse hábito poderia ser
visto mais ou menos de forma universal em “[...] todos os lugares que existiam
indústrias de pequena escala, domésticas e fora da fábrica. Essa tradição era
geralmente encontrada nos poços das minas, e às vezes continuava na manufatura
e na indústria pesada.” (THOMPSON, 1998, p.283). O autor constatou que essa
tradição se perpetuou até o século XX na Inglaterra, adquirindo a segunda-feira
uma função de “reparar” os estragos causados por bebedeiras e outras
festividades do final de semana. Além de ser uma tradição dos trabalhadores, a
Santa Segunda-Feira pode ser entendida como uma afronta a cada vez mais rápida
contagem do tempo, já que os donos tanto dos pequenos quanto dos grandes
negócios não tinham a intenção de estender o descanso de seus empregados, e os empregados,
igualmente, de serem contrariados por terem que trabalhar na segunda-feira.
A peculiaridade dos ingleses
A noção do lazer ganha um aspecto fundamental quando
se aborda a peculiaridade dos ingleses no tocante de sua noção de tempo de
trabalho em consoante com o avançar do capitalismo, mas antes de abordá-la é
necessário, novamente, de mais uma alusão histórica dos fatos que desembocaram
nessa criação capitalista, admitindo que antes da Revolução Industrial o lazer
e/ou ócio não eram tomados como tal, assim como a contagem do tempo, ambos
foram sendo manufaturados.
Foi na
Inglaterra onde a industrialização teve seu berço e deu seus primeiros passos,
contudo, os acontecimentos da Revolução Gloriosa foram os que realmente fizeram
com que os ingleses experienciassem algo diferente da Revolução Francesa - como
é o exemplo mais utilizado para comparação - em correspondência às classes.
Nessa esteira de grandes acontecimentos que fazem parte da queda de Carlos I,
Thompson dialoga, em As peculiaridades dos ingleses, com aquilo que Perry
Anderson e Tom Nairn4 estavam indicando como características distintas da
Revolução Inglesa em comparação com a Francesa:
“1) No
caráter prematuro e incompleto da revolução do século XVII. Nos compromissos
decorrentes de 1688 e 1832, a burguesia industrial não conseguiu obter
hegemonia inconteste nem refazer as instituições dominantes da sociedade à sua
própria imagem. [...] 2) Porque a revolução do século XVII foi “impura”, e a
luta conduzida em termos religiosos, a burguesia, além de nunca ter
desenvolvido uma visão de mundo ou autoconhecimento coerente, satisfez-se com
uma “ideologia” do “empirismo”, que tem aparentemente caracterizado a cultura
intelectual inglesa até os dias de hoje [...] 3) Uma revolução burguesa
prematura deu origem a um movimento prematuro da classe trabalhadora, cujas
heroicas lutas durante a Revolução Industrial foram anuladas pela ausência de
crescimento teórico correspondente [...]”. (THOMPSON, 1978, p.80).
O
aparente pessimismo com que a Revolução foi vista por Perry Anderson e Tom
Nairn assume moldes claros se formos tentar entender a preocupação de Thompson
com o papel da burguesia e em como a formação de uma classe trabalhadora que
possivelmente não alcançou a “robustez” necessária para que sua agenda pudesse
ser levada em conta com mais intensidade, no entanto, Thompson não concordava com
a análise de seus colegas, onde arremata que essas três “características
distintas” da Revolução (e tantas outras), esmiuçadas com mais cuidado,
mostrariam outras peculiaridades diferentes das vistas pelos dois autores5. Em
Patrícios e plebeus, a necessária vinculação entre a gentry e os “trabalhadores
pobres” – nos termos do próprio Thompson – começa a ser vislumbrada. O autor
discute, em um primeiro momento, se existiria no século XVIII um paternalismo
presente na disputa entre as classes, o que ele debate também no sentido de que
não seria um patriarcalismo, mas essa batalha conceitual será deixada de lado,
uma vez que o interesse aqui está em desmistificar a real dinâmica entre os
patrícios e plebeus. Dessa forma, nota-se que o que importava mesmo, antes do
paternalismo entrar no jogo, era a relação com o dinheiro. A maioria dos cargos
no Governo e na Igreja eram passíveis de serem comprados e vendidos, tendo a
gentry sendo reconhecida mais pela quantidade de capital acumulado do que pelo
seu sangue.
“Direitos
de uso, privilégios, liberdades, serviços – tudo podia ser traduzido num
equivalente em dinheiro: votos, direitos de propriedade nos burgos, a imunidade
dos cargos da paróquia ou do serviço das milícias, a liberdade dos burgos, os
portões nas terras comunais. Este é o século em que o dinheiro “dá as cartas”,
em que as liberdade se tornam propriedades e os direitos de uso são reificados”.
(THOMPSON, 1998, pp.32-33).
O
paternalismo que teoricamente existia entre patrícios e plebeus mais parecia o
retrato de um passado distante, e mesmo sendo do passado, Thompson não concordava
que havia essa preocupação paternal tão intensa comumente aceita por outros historiadores,
na visão dele existia uma espécie paternalismo antes da industrialização – e
mesmo em cantões, aldeias, pequenos burgos, enfim, algumas localidades -, onde
a classe trabalhadora não tinha consciência de sua existência, melhor dizendo,
não existia classe trabalhadora, no entanto, uma filiação entre um mestre e
seus aprendizes poderia ser paternal pelas vantagens obtidas a ambos em adotar
esse modelo, mas não se configurava como aquele sentimento idealizado de que
ambos constituiriam uma relação social fraternal.
Nesse
sentido, Thompson logo se afasta da “tentação” de ir mais a fundo no assunto do
paternalismo, concentrando suas forças em destrinchar o que acontecia no século
XVIII entre gentry e trabalhadores, questionando a erosão das formas
“semi-livres” de trabalho. O fato é que a transição de um estilo de trabalhador
que antes da industrialização tinha algumas garantias (mesmo que “paternais”):
morava no próprio lugar onde trabalhava a maioria das vezes, detinha de
tradições fortemente amparadas por várias gerações etc.; para um trabalhador
“livre”, assalariado, que poderia transitar de um ofício para o outro, não foi
algo bem recebido e muito menos pacífico. Thompson lembra que os senhores, a
partir da vinda dessa nova modalidade de trabalho, não queriam mudar sua
vinculação de antes da industrialização, eles queriam aproveitar do melhor dos
“dois mundos”, tratando os trabalhadores com salários menores – graças à concorrência
– e ao mesmo tempo condicionando-os em expedientes de servidão.
Os
“novos” trabalhadores, cada vez mais absorvendo as mudanças sociais e
econômicas, eram indisciplinados, faltavam ao trabalho, não cumpriam com os
combinados, brigavam com o relógio e desrespeitavam as novas regras impostas
por seus chefes e pela sociedade inglesa pós-Revolução Gloriosa. “Se os
poderosos ficavam tão afastados dos olhos públicos, dentro de seus parques e
mansões, também os plebeus, em muitas de suas atividades, ficavam afastados
deles. O domínio paternal efetivo não só requer autoridade temporal, mas também
autoridade espiritual e psíquica” (THOMPSON, 1998, p.50).
Os
patrícios precisavam dos plebeus para trabalhar em seus negócios e os plebeus
precisavam dos empregos e da mínima segurança oferecida pelos patrícios em seus
empregos. A relação entre essas duas classes era simbiótica no fim das contas,
tanto por meio do teatro que era praticado pelos patrícios e que resultava em
generosidades direcionadas aos pobres quanto nas diversas vezes que plebeus
desfrutavam de suas festanças – causadoras de faltas no trabalho e outros
problemas – em que patrícios poderiam interferir e não o faziam. A sociedade
inglesa do século XVIII não era a sociedade de “uma só classe”, como alguns
defendiam, pois existiam governantes e governados, muito ricos e muito pobres,
isto é, as classes estavam ali, mas a consciência de sua existência,
principalmente nos trabalhadores, talvez ainda não estivesse tão explícita.
“Mas a
presença política da plebe, “turba” ou “multidão” é manifesta. Ela colidiu com
a alta política em várias ocasiões críticas – os tumultos de Sacheverell, a
agitação do imposto de consumo, o imposto da cidra, as ebulições patrióticas e
chauvinistas que apoiaram a carreira do Pitt mais velho, mais tarde Wilkes e os
motins de Gordon, e ainda mais além. Mesmo quando a besta parecia estar
adormecida, as sensibilidades irritáveis de uma multidão libertária definiam,
no mais amplo sentido, os limites do que era politicamente possível”. (THOMPSON,
1998, p.57).
Após
essa breve explanação de alguns pontos importantes entre a relação das classes
presentes na Inglaterra que Thompson está analisando – onde não será
investigado com mais minucia as questões teóricas envolvendo tais atributos
presentes nessas disputas, como a importância do conceito de consciência de
classe ou mesmo da intensa discussão se haveria uma só classe, devido às
limitações desse ensaio – volta-se ao tema geral da invenção do tempo,
aplicando-se agora na função do lazer para os trabalhadores ingleses.
O
avanço da industrialização não só diversificou as formas de trabalho, como
também transformou a cidade enquanto espaço urbano. Com mais pessoas morando em
um mesmo espaço, exemplarmente nas cidades, o comércio foi alterado, as formas
de sociabilidade sofreram mutações, em suma, o lazer não se restringia mais às
“Santas Segundas-Feiras”. Aquela fração de tempo onde os trabalhadores
aproveitavam seu ócio não era mais a mesma daquele passado não tão distante,
assim como os ricos de igual forma remodelaram suas maneiras de usufruir do
lazer, transformando-o em um imenso teatro, no lugar em que se mostravam uns
para os outros, com seus objetos de luxo, regados a uma teatralidade que tinha
a função de diferenciá-los do “povo”. Os novos modelos de consumo advindos com
a agora sociedade capitalista-industrial reforçavam a diferença entre classes,
principalmente vindo de cima para baixo, tendo o status social mais importância
do que qualquer outra qualidade, mesmo que seja intensamente ensaiado, fazendo
parte daquele teatro maior característico da gentry inglesa.
Os
pobres, que Thompson comenta que não viam como irmãos daqueles poucos ricos,
desfrutavam de seu “tempo-livre” nos bailes, feiras, festivais, que eram
esperados com muita necessidade, pois consistiam naqueles momentos de
desenvoltura, de esquecer os dias de trabalho intensos, de seus patrões e da
vida difícil que levavam. No século XVIII, Thompson anota que houve um aumento
na “libertinagem” conferida ao lazer: as pessoas bebiam mais, ficavam mais
tempo em casa do que no trabalho, graças aos grandes feriados que não mais
seguiam o calendário da Igreja etc. Os patrícios, ao se depararem com o jeito
com o qual seus trabalhadores estavam aproveitando de seu lazer, muitas vezes
apoiavam tais festanças e igualmente não se intrometiam, a não ser que a
situação estivesse próxima de fugir do controle, como quando notavam alguma
espécie de mobilização organizada em protestos e/ou em algumas dessas
comemorações, obviamente indo contra seus interesses.
Quando
o humor dos pobres explodia em rebeliões, os ricos senhores intervinham como
podiam, contudo, o interessante é notar que mesmo a Inglaterra estando na
vanguarda do capitalismo industrial, a peculiaridade dos ingleses não estava
somente localizada nisso, já que tudo que veio após esse período de
consolidação da indústria estabelecia-se em experiências novas para todos os
seus participantes. O século XVIII semeou na classe trabalhadora inglesa - em
seus mais diversos ofícios: artesões, mineiros, fazendeiros, donos de pequenas
lavouras, ferreiros etc. – uma vivência em um novo sistema econômico que
possibilitaria, já pelo início do século XIX, a formação da primeira classe
operária, organizada em manifestações contra seus patrões; em ataques contra a
aristocracia; participando de barganhas políticas para defenderem seus
interesses.
“Thompson
desenvolveu a tese de que as elites exerciam o controle e a dominação das
plebes por meio da hegemonia cultural. Para o autor, naquele contexto, as
plebes empregavam práticas defensivas alicerçadas em tradições fundadas no
direito consuetudinário. Dessa forma, buscavam impor à gentry obrigações
definidas pelos costumes. Ao estudar a resistência popular na Inglaterra ao
longo do século XVIII, Thompson descortina a existência de uma complexa trama
fundada em reciprocidades paternalistas por intermédio da qual a gentry exercia
o controle e a subordinação das plebes. Todavia, para ele, esse processo não
pressupunha a ausência de conflito, mas a sua delimitação dentro de parâmetros
aceitáveis para as elites inglesas. Dessa forma a hegemonia da gentry poderia
conter revoluções, mas não contestações ou rebeliões”. (MULLER & MUNHOZ,
2010, pp.10-11).
Com a
passagem do século XVIII para o século XIX, que contaram com uma diversidade de
acontecimentos, i.e. Revolução Francesa, a disciplina presente na sociedade
inglesa já enraizada pelo capitalismo industrial foi reforçada. Se com o salto
de uma produção doméstica para uma economia de produção em escala muito maior
já modificou o controle do tempo na sociedade, agora com o processo mais
bem-acabado, com outras Revoluções acontecendo, absorve um destaque maior a
ampliação do domínio moral da Igreja Católica, restringindo ainda mais o lazer
dos pobres. Durante o século XVIII já havia uma disputa entre ditames da Igreja
em confronto com aquilo praticado pelos trabalhadores em seu tempo de lazer,
todavia, a burguesia industrial ainda relevava esses ocorridos, porém, a
chegada dos ideais da Revolução Francesa em solo inglês provocou uma sensação
de tormento entre as classes mais ricas. A classe trabalhadora inglesa poderia
se irromper inflada por seus companheiros franceses, mas isso não poderia
acontecer, e aí é que a Igreja aparece como protagonista. Não só a Igreja, como
visto, ajudou a regular e disciplinar ainda mais a vida dos indivíduos, também
as autoridades policias reprimiram com mais intensidade.
As
pressões favoráveis ao aumento da disciplina e da ordem partiam das fábricas,
da religião e das autoridades, isto é, o trabalhador estava sendo obrigado de
todos os lados a se adequar a uma realidade forjada para o mantimento de um
sistema econômico estranho ao seu costume. O que os ricos não esperavam é que,
com mais repressão, mais a classe trabalhadora foi se organizando, lutando por
melhorias no trabalho, sendo algumas conquistas marcos no processo de relação
entre empregadores e empregados, tais como as férias e a regulação da jornada
de trabalho.
Por
fim, o lazer dos trabalhadores continuou sendo regrado; o relógio continuou
sendo o objeto que mais causava discórdias; o enfrentamento entre costumes e
culturas transformou toda uma sociedade, bem como criou a primeira classe
trabalhadora do mundo industrial, que mesmo com as inúmeras críticas recebidas
a partir de sua conduta – inclusive de Thompson – não deixou de ser a primeira
reunião de trabalhadores que tiveram a coragem de irem contra quem tinha muito
mais poder, seja ele econômico, jurídico, policial ou qualquer outro. As
manifestações, rebeliões, mortes, lutas e tudo o mais que a classe trabalhadora
inglesa experimentou influenciou toda uma construção de classe que veio após
ela. A visão de Thompson sobre a criação do tempo vai ao encontro do
capitalismo industrial, pois sem ele não seria necessário que contássemos ou
mesmo regulássemos os segundos, minutos e horas, já fazíamos isso sem o
relógio, sem as fábricas, sem o a distinção entre lazer, trabalho e vida, no
entanto, também não podemos nos prender em saudosismos do passado. Thompson
entende que o capitalismo também causou coisas gratificantes, como a própria
formulação da consciência de classe, induzida pela práxis dos trabalhadores em
suas vidas, o que poderia ter sido diferente se talvez se superasse tal modelo
que foi se constituindo, e não somente o enfrentamento por melhores escolhas
dentro do sistema, mas isso não acredito ser necessário discutir, pois talvez
estaríamos patinando sem sair do lugar, perdidos em teorias que pudessem ser
formuladas e não foram, ou, como conta a história, se Roma tivesse perdido as
guerras púnicas para Cartago, provavelmente nossos livros exaustariam os
cartagineses, a história sempre foi contada pelos vencedores. Thompson enfrenta
essa tese com muito louvor.
Considerações
finais
O
intuito principal desse ensaio foi o de construir um apanhado daquilo que
Edward P. Thompson escreveu sobre a “invenção do tempo” no capitalismo
industrial ascendente da Inglaterra. A quantidade de obras que o autor
disponibiliza que versam sobre o assunto é grande, sofisticada, repleta de
argumentações com um cunho autoral muito forte, característico de um
historiador marxiano dos bons. Inventamos o tempo porque somente utilizávamos
de meios para conta-lo com vieses de uma organização primitiva; sua invenção
foi necessária pelo desenvolvimento de um sistema econômico baseado no acúmulo
de capital, no expansionismo no lucro, na diversificação da mão-de-obra, na
explosão demográfica das cidades que acomodavam as grandes empresas etc.,
poderia ser citado mais uma infinidade de resultados do capitalismo, mas o
relógio foi singular por alguns motivos já demonstrados.
O
trabalhador inglês, principalmente dos séculos XVIII e XIX – que é o espaço de
tempo que Thompson mais se concentra quando fala desse tópico do tempo – foi o
primeiro a ter a “oportunidade” de ser disciplinado pelo modo com que produzia
seus bens. Os trabalhadores e as trabalhadoras tiveram uma mudança drástica em
suas vidas quando a industrialização estava precisando de massas e mais massas
para operarem as máquinas. Seus costumes, tradições e cultura foram reprimidos
pelas mais diversas autoridades, seja a Igreja, o Rei, seus chefes, a polícia,
em síntese, ser um trabalhador assalariado nada se parecia com a economia
doméstica de antes, onde cada um tinha uma flexibilidade no seu trabalho que
refletia na vida social. Thompson coteja uma infinidade de aspectos que foram
sendo desenvolvidos para que o capitalismo industrial prosperasse, levando a
Inglaterra para o topo dos países que mais acumulavam riquezas, só que essa
postura refletiu também em seu povo.
A classe
trabalhadora foi se configurando a partir de diferenças que, antes dos estágios
mais agressivos que o capitalismo foi alcançando, não eram tão imponente assim
- isso em relação à burguesia e a aristocracia –, fazendo parte de mesma
dinâmica de necessidade para a existência delas mesmas. O tempo foi sendo
manipulado não somente com a colocação de grandes relógios nas Igrejas ou com
seu modelo portátil nos bolsos dos trabalhadores; ele se transformou
rapidamente e em consequência da disciplina necessária para se trabalhar nas
novas fábricas, no mesmo momento que os ingleses foram geniais quando
multiplicaram sua produção com a invenção da indústria, as consequências dessa
inovação provocaram vários resultados que não puderam mais serem controlados,
que se infiltraram no modo de vida que era levado principalmente pelos
trabalhadores, obrigando-os a se adequarem ao modo de produção do capitalismo.
Aquilo
que Thompson aborda essencialmente em Costumes em comum vai ao encontro de
demonstrar que, apesar de sofrerem com o progresso do capitalismo, a classe
trabalhadora inglesa, peculiar por ser a primeira, não foi submissa e menos
ainda pouco combativa. Os trabalhadores se organizaram, praticaram ações muitas
vezes não pensadas ou que davam a impressão para tal, mas nunca houve a
sociedade de “uma só classe”. A formação da consciência de classe para Thompson
é clara: depende da experiência do dia-a-dia, das lutas enfrentadas pelo
reconhecimento de sua cultura. Abordar a invenção do tempo não pode ser
afastado totalmente do nascimento da luta de classes.
Por conseguinte, esse ensaio tentou adotar uma maneira mais “livre” de estudar o legado de Thompson. O tempo é uma parte importante de sua reflexão acerca da formação da classe trabalhadora inglesa, e o esforço foi de conversar com o autor nos pontos mais nodais de sua discussão e, quando necessário, ir mais a fundo em matérias que mereciam mais destaque. A conclusão que se chega – se é que a história nos deixa finalizar alguma coisa por completo – é a de que o lazer, o trabalho e a disciplina, tomados como os componentes mais básicos da vida de um trabalhador, sofreram mutações em decorrência do capitalismo, mas por mais óbvia que seja essa constatação, a peculiaridade que ocorreu na Inglaterra foi crucial para que esse sistema se tornasse hegemônico, e não só em questões de como lidar com o mercado e a produção, como também em como a cultura, o ócio, os espaços urbanos, a noção de Estado, política, etc. foram totalmente transfiguradas.
NOTAS
1 “Thompson nunca se estabeleceu no mundo universitário e acadêmico. Atuou como professor e pesquisador associado a uma universidade em poucas ocasiões. Permaneceu um livre pesquisador, contudo, a depender de bolsas, patrocínios ou eventuais financiamentos para os seus estudos.” (MULLER & MUNHOZ, 2010, p.2).
2 A maioria das publicações de Thompson lida com o conflito entre política, cultura, economia, costumes etc. entre as classes. Citando algumas: A formação da classe operária inglesa (primeiro volume publicado em 1963); A miséria da teoria e Senhores e caçadores.
3 Tal canção se chama The jovial cutlers, e mostrava uma faceta das muitas tensões domésticas entre os maridos e mulheres.
4 Tanto Perry Anderson quanto Tom Nairn estavam na direção da revista New Left Review por volta de 1962. Thompson também fez parte do corpo editorial da New Left e ajudou a fundá-la. “Ainda em 1957, foi criada, por um grupo de estudantes de Oxford, a revista Universities and Left Review. Em dezembro de 1959, houve o lançamento do projeto de fusão das duas revistas, New Reasoner e Universities and Left Review, dando origem à New Left Review, a partir do início de 1960. Participavam do grupo muitos jovens intelectuais que, posteriormente, ganhariam notoriedade e destaque como Ralph Milliband, Raymond Williams, Peter Worsley, Doris Lessing, Raphael Samuel, Stuart Hall e Dorothy e Edward Thompson. Desde o início, o grupo majoritário da New Left Review sustentava que era imprescindível, para o desenvolvimento do socialismo na Grã-Bretanha, a mudança radical na consciência política do movimento operário inglês. ” (MULLER & MUNHOZ, 2010, p.4)
5 Segue uma passagem
de uma das considerações de Thompson em relação a Anderson e Nairn: “O tema da
argumentação de nosso autores é: a tragédia da nossa história foi o fato de o
marxismo ter passado em branco pela classe trabalhadora britânica. A culpa é
colocada sobre a insularidade e o conservadorismo sociológico dos sindicatos
britânicos e sobre a omissão dos intelectuais britânicos. Um modelo simples de
objetividade-subjetividade é empregado. Por meio dele, os sindicalistas são
vistos como cegos, práxis instintiva, e os intelectuais, como a encarnação de
uma consciência política articulada. [...] Se, no entanto, inserirmos este
modelo em um contexto político particular, ele não funciona tão bem assim. Em
qualquer momento entre 1890 e os dias de hoje, encontramos uma tradição
minoritária muito substantiva, associada à esquerda organizada, influenciando
alguns dos principais sindicatos. Encontraremos uma sistemática formação
marxista de base – SDF, Nclc, Partido Comunista - [...] Nem um desses grupos
vagamente definidos ajusta-se à caracterização de Anderson do fabianismo [...]”
(THOMPSON, 1998, p.133-134).
Referências
MULLER,
R.; MUNHOZ, S. Edward Palmer Thompson In: LOPES, Marco Antonio e MUNHOZ, Sidnei
(orgs.). Historiadores do nosso tempo. S. Paulo: Alameda 2010, p. 31-52.
THOMPSON,
E. P. Costumes em Comum. S. Paulo: Cia. das Letras, 1998.
THOMPSON,
E. P. A Miséria da Teoria e outros Ensaios. Nova York: Montlhy Review Press,
1978 (tradução de Alexandre Fortes e Antonio Luigi Negro).
Fonte: FABRO, Arthir Mazzucco. O relógio ou nós? Uma visão da invenção do tempo social na percepção político-cultural de Edward P. Thompson. Revista Em Debate (UFSC), vol. 17, 2017, p. 55-69.
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