Da Idade Antiga até o começo da Idade Moderna, lendas sobre homens-cachorros foram reportadas por autores europeus, africanos e asiáticos. Em alguns casos os relatos eram copiados de outros autores, mas outro apresentavam novas informações e diferenças. Os tais homens-cachorros ora apareciam como um povo rústico, vivendo nu, morando em cavernas e praticando o canibalismo, mas em outros relatos eles usariam roupas, viveriam em casas, saberiam falar e entenderiam de agricultura e comércio. Tais estranhas criaturas foram normalmente reportadas vivendo na Índia, apesar que alguns relatos sugerissem que eles viveriam no Oriente Médio, no noroeste da África ou em ilhas.
O presente texto decidiu abordar essa curiosa lenda que perdurou por séculos, e até influenciou autores cristãos, muçulmanos e budistas a se referirem a personagens de suas religiões que tiveram contato com este povo bárbaro e exótico. Ou a condição de homens pertencentes a estas religiões terem sido amaldiçoados e se transformarem em homens-cães.
Existem vários autores que escreveram sobre os cinocéfalos, porém, mencionarei alguns dos mais conhecidos, para podermos ter noção das características básicas desta lenda e depois mencionarei autores medievais, para depois comentar alguns aspectos mais específicos.
Um cinocéfalo representado na Crônica de Nuremberg, 1493. |
Relatos antigos
a) Heródoto (485-425/420 a.C): o chamado "Pai da História" em seu relato sobre a Líbia, nação que vivia ao oeste do Egito e que hoje compreende a atual Líbia, no século V a.C, era considerada uma terra exótica e habitada por animais estranhos e até monstros. Enquanto outros autores relataram que os cinocéfalos viviam na Ásia, Heródoto escreveu que eles viveriam no norte da África.
“Seguindo para o ocidente, após esse rio [lago Tritonis], encontramos a região ocupada pelos Líbios lavradores; é montanhosa, coberta de florestas e cheia de animais selvagens. Na região ocupada pelos Líbios lavradores encontram-se serpentes de tamanho descomunal, leões, elefantes, ursos, áspides, asnos com chifres, cinocéfalos e acéfalos, que possuem, segundo afirmam os Líbios, olhos no peito. Vêem-se também ali homens e mulheres selvagens, e uma multidão de monstros fabulosos”. (HERÓDOTO, 2006, p. 384).
No relato de Heródoto, o historiador não entrou em detalhe sobre os cinocéfalos, apenas dizendo que eles seriam uma das raças bárbaras que viveriam na Líbia. Agora vejamos outro relato.
b) Ctésias de Cnido (V-IV a.C): este historiador e médico grego, viveu sob a guarda do rei Artaxerxes II da Pérsia. Durante os vários anos que serviu na corte persa, ele teve acesso as suas bibliotecas, redigindo livros sobre a história da Pérsia, Assíria e Índia. Dos autores antigos, o relato de Ctésias é o que mais possui detalhes sobre os cinocéfalos.
Em seu livro sobre a Índia, intitulado Indica, Ctésias diz que nas montanhas indianas viveriam os cinocéfalos, conhecidos localmente como kalystrioi. Eram seres humanoides com cabeça de cachorro e possuíam caudas (o relato de Ctésias é um dos poucos a afirmar a presença de caudas nestes seres), os quais usavam roupas feitas de peles de animais, eram de cor escura como os indianos, não sabiam falar, mas latiam e uivavam. No entanto, Ctésias diz que os cinocéfalos teriam algum grau de "civilidade", pois sabiam usar roupas e se comunicavam fazendo uso de linguagem de sinais, já que não falavam com os homens. O autor diz que essa raça era abundante nas montanhas indianas, havendo 120 mil deles, além de que eles teriam uma longa longevidade, podendo viver até os 200 anos.
Em seguida, Ctésia disse que os cinocéfalos sabiam caçar e conheciam a pecuária, criando cabras e ovelhas. A riqueza entre eles era medida de acordo com o tamanho do rebanho de cada família. No entanto, eles não cultivavam a terra, pois onde habitavam nas altas montanhas, o solo era pouco fértil. No entanto, eles comercializavam uma rara fruta que ali crescia, da qual se fazia corante. Com isso eles construíam jangadas e caixas, carregavam as frutas e desciam os rios até os reinos dos indianos e faziam escambo, trocando as frutas por pão, farinha, armas de ferro e roupas de tecidos, pois seus trajes eram feitos de fibras de couro, sendo bastante rústicos.
Eles não viveriam em casas, mas habitariam cavernas. Apesar deste aspecto primitivo, Ctésias diz que os cinocéfalos eram valentes e hábeis caçadores, mas pouco afeitos a guerra, pois eram um povo pacífico. O autor também diz que eles eram poucos afeitos a higiene; as mulheres tomavam banho apenas uma vez, na época da menstruação, e os homens não se banhavam com água, mas com leite de cabra, fazendo isso três vezes ao mês.
c) Diodoro Sículo (c. 90 - c. 30 a.C): foi um historiador grego, o qual pouco se sabe sobre sua vida, mas viajou pelo Egito e viveu em Roma. Sua única obra conhecida é Biblioteca Histórica. Neste livro o qual se encontra hoje incompleto, Diodoro escreveu sobre os romanos, gregos, egípcios, líbios, fenícios e outros povos e seres. No livro 3, capítulo 5, ele redigiu sobre os cinocéfalos, escrevendo:
"Os animais que levam o nome de cinocéfalos têm o corpo de homens
deformados e emitem um som semelhante ao choramingo de seres humanos. Esses
animais são muito selvagens e indomáveis, e suas sobrancelhas dão a eles uma
expressão um tanto ranzinza. A característica mais peculiar da fêmea é que ela
carrega o útero do lado de fora do corpo durante toda a sua existência". (DIODORO SICULO, tradução nossa).
A menção aos cinocéfalos na obra de Diodoro é curta, mas o interessante é que ele diz se tratarem de animais, não de seres humanoides como outros autores se referem. Além disso, o autor diz que a fêmea teria uma característica de marsupial, pois o útero ficaria do lado de fora, apesar de ele não entrar em detalhes. No entanto, Diodoro sugere em sua obra que os cinocéfalos habitariam em algum lugar da península Arábica.
d) Estrabão (63-24 a.C): foi um historiador e geógrafo grego, conhecido por ter escrito a coleção sobre história natural e geografia, intitulada Geografia. Infelizmente parte de sua obra não chegou até nós, tendo se perdido. No entanto, no livro 7, capítulo 3, Estrabão comentou sobre os cinocéfalos, mas em tom de crítica. Ele criticou os poetas Hesíodo e Ésquilo por falarem que existiriam homens com cabeça de cachorro. Aqui temos um dado interessante. Estrabão diferente de outros autores aqui citados, não estava concordando com eles, pelo contrário, ele dizia que essas histórias sobre cinocéfalos, acéfalos e outros monstros humanoides eram falsas, não correspondiam a realidade. Mas esses autores diziam que eram seres reais.
e) Plínio, o Velho (23-79 d.C): foi um erudito romano que escreveu sobre a natureza, tendo redigido uma enciclopédia intitulada História Natural. Assim como Heródoto que atribuiu os cinocéfalos como sendo habitantes da África, Plínio também fez o mesmo, mas alterando o lugar onde essa suposta estranha raça viveria. Enquanto Heródoto atribuiu a Líbia como morada deles, Plínio escreveu no livro VI, capítulo 35, que os homens de cabeça de cachorro, viveriam na Etiópia, próximo de Tergedus. No mesmo capítulo, mais adiante ele diz que naquela terra estranha havia um povo que se alimentava do leite dos cinocéfalos. Aqui saliento que o relato de Plínio, como de outros autores da época nem sempre era claro de ser lido, em muitos casos esses autores reuniam muitas informações num mesmo parágrafo.
Porém, enquanto no capítulo 35, Plínio apenas cita que os cinocéfalos habitariam em algum lugar da Etiópia, no livro VIII, capítulo 80, ele nos forneceu mais informações sobre essas criaturas humanoides. Nesse capítulo ele comentou brevemente sobre os macacos e escreveu que na Etiópia havia macacos com cabeça de cachorro, os quais seriam os cinocéfalos. Criatura que inclusive ele chegou a comparar aos sátiros (ou faunos) devido a terem parte dos corpos cobertos por pelos grossos. Adiante neste texto falarei desta questão dos "macacos com cara de cachorro".
Relatos medievais
a) Paulo, o Diácono (c. 720-790): foi um monge beneditino, lembrando principalmente por sua crônica sobre a história dos Lombardos, intitulada Historia gentis Langobardorum. Nesta obra, no livro 1, capítulo 11, Paulo escreveu brevemente sobre uma batalha travada entre os francos e os lombardos, e estando os lombardos em desvantagem, eles tiveram a artimanha de lançar uma mentira, dizendo que como reforço, possuíam vários cinocéfalos, homens-cachorros que eram conhecidos por sua ferocidade, coragem e por bebere sangue dos inimigos. Segundo Paulo, a mentira deu certo, e a vantagem ficou ao lado dos lombardos. Entretanto, o autor não fornece mais informações a respeito desta raça.
b) Ratramo de Corbie (?-c.870): foi um monge beneditino e teólogo franco que viveu no Império Carolíngio, tendo escrito sobre a eucaristia, a predestinação e outros assuntos teológicos, além de escrever alguns sermões e epístolas. Porém, uma das suas obras mais curiosas é intitulada Epístola aos Cinocéfalos. Nesta breve epístola, Ratramo comenta se os cinocéfalos seriam seres reais ou lendas, mas ele chega a conclusão de que eles seriam reais, no entanto, ele se indaga se seles seriam animais ou alguma raça selvagem de homens, porém, ele diz que como os cinocéfalos usavam roupas, significava que tinham vergonha de sua nudez, logo, eles também foram atingidos pelo Pecado Original, então eram descendentes de Adão. Assim, tendo contastado que os cinocéfalos eram reais e tinham características humanas, Ratramo defendia que eles deveriam ser evangelizados, pois eram pagãos.
Pintura do Saltério de Kiev, c. 1397, representado cinocéfalos diante de Jesus Cristo. Tais seres eram pagãos e deveriam ser evangelizados. A ideia de Ratramo encontrou adeptos. |
c) Adão de Bremen (10??-108?): foi um clérigo e cronista germânico, secretário do bispo de Bremen. Pouco se sabe de sua vida, mas sua obra mais conhecida é uma crônica intitulada Gesta Hammaburgensis Ecclesiae Pontificum (Atos dos Bispos da Igreja de Hamburgo). Nesta crônica ele redigiu sobre assuntos de distintas épocas e lugares, e no livro 4, capítulo 19, ele comenta sobre os cinocéfalos, dizendo que leu a respeito deles, os quais seriam oriundos das amazonas. Adão escreveu que os filhos varões gerados por amazonas eram os cinocéfalos e estes homens com cabeça de cão, eram hostis e bárbaros, e viveriam no leste, nas terras dos russos, inclusive atuando como cães de guarda deste povo.
Embora haja outros autores que tenham mencionado os cinocéfalos, vamos encerrar por aqui a menção aos principais deles. Apesar que citaremos outros mais adiante, mas de forma mais sucinta. Agora vamos tratar de um estudo de caso, a lenda envolvendo um santo conhecido.
São Cristóvão, o cinocéfalo
Pouco se sabe sobre a vida de São Cristóvão, inclusive não se tem certeza se realmente ele existiu. De acordo com a Legenda Áurea, popular hagiografia medieval, Cristóvão era filho de um rei pagão em Canaã, sendo chamado de Reprobus. Ele era descrito como sendo arrogante e soberbo, negando-se a se converter ao cristianismo, mas em certa ocasião, ele decidiu ajudar uma criança a atravessar um rio, colocando-a sobre as costas. No entanto, a criança era muito pesada e Reprobus teve dificuldades para atravessar o rio, já que carregava o menino sobre os ombros, mas concluindo a tarefa, a criança se revelou ser Jesus Cristo. Com isso ele decidiu se tornar um cristão, adotando o nome de Cristóvão (aquele que carrega Cristo). Cristóvão teria passado a pregar sobre Jesus e isso revoltou o rei daquela região, mandando prender e executá-lo, o qual foi decapitado. Tempos depois ele foi tornado santo mártir.
Entretanto, existe uma outra história bem peculiar envolvendo esse misterioso santo que é associado como padroeiro dos viajantes. Em dado momento da Idade Média, surgiu a história de que São Cristóvão teria sido um cinocéfalo. Não se sabe exatamente como isso começou, mas os estudiosos tendem apontar algumas hipóteses, sendo a mais aceita que possa se tratar de um erro de tradução.
Ícone ortodoxo do século XVII, retratando São Cristóvão como um cinocéfalo. |
Cristóvão teria nascido em Canaã, cujo gentílico em latim era cananita, palavra que se parece como caninita, que remete a canis = cachorro. Além disso, em alguns relatos sobre o futuro santo, ele era descrito ora como um homem feio como um animal ou um feroz guerreiro. Tais características teriam influenciado na hora de se elaborar a fisionomia deste santo mártir, retratando-o como um homem-cachorro. Além disso, soma-se a condição de que as lendas sobre os cinocéfalos eram conhecidas naquele tempo, e no medievo, começou-se cada vez mais a associar a Ásia como local de morada daquela raça. Desta forma, surgiu a ideia de que São Cristóvão teria sido um cinocéfalo que converteu-se ao cristianismo, tendo recebido a forma humana para poder pregar e morreu como mártir.
Gkounis (2011, p. 107-110) comenta que embora o santo tenha supostamente vivido no século III, somente séculos depois foi que ele ganhou fama. Por exemplo, a Legenda Áurea foi escrita no século XIII, todavia, o dia litúrgico do santo foi oficializado no século XVI, condição essa que o autor diz que curiosamente nos países ortodoxos, encontra-se até o século XVIII, representações de ícones retratando São Cristóvão como cinocéfalo, representando-o ele assim no intuito de elucidar que ele foi alvo de um milagre, mas também evocando o simbolismo animal do cachorro, especialmente as ideias de que o santo era fiel e leal a Cristo.
Outras representações de São Cristóvão com cabeça de cachorro. |
O mistério por trás da lenda dos cinocéfalos
Definir a origem de um mito ou uma lenda na maior parte das vezes é algo impossível de ser feito, por se tratar de narrativas transmitidas, que eram compartilhadas pelas pessoas, com amigos, familiares, conhecidos ou viajantes, e dessa forma, essas narrativas iam se espalhando. No caso da lenda dos cinocéfalos, não é possível traçar uma origem para ela. Embora que alguns apontem Heródoto como sendo o autor mais antigo conhecido a mencioná-la, no entanto, ele ouviu ou leu essa história em algum lugar. Onde e quando foi isso? Não se sabe.
No entanto, alguns estudiosos entre mitólogos, folcloristas, historiadores, literatos, etc. tentaram buscar alguma evidência para a inspiração dessa lenda. Atualmente existem algumas hipóteses que sugerem isso, duas delas estão relacionadas com o Egito.
A primeira hipótese sugere que os antigos gregos e persas quando passaram a frequentar mais regularmente o Egito, viam as estátuas e representações dos deuses daquele país, e dois deuses em particular, Anúbis e Seth, possuem cabeças caninas. Dessa forma, diante destes dois deuses, poderia ter surgido a lenda dos cinocéfalos. Entretanto, há outra teoria ligada ao Egito, da qual falaremos a seguir.
Os deuses Anúbis e Seth poderiam ter inspirado a lenda dos cinocéfalos. |
Já a segunda hipótese associada com o Egito, diz respeito aos babuínos. No caso, eles consistem num tipo de primata de médio porte, natural da África, existindo cinco espécies. Todavia, uma das características que solta aos olhos é sua pelagem de tom mais claro, o focinho alongado e as nádegas vermelhas. No caso, nos interessa o fato do focinho, o qual lembra a cara de um cachorro (embora existam cães com focinho curto, no passado os de focinho longo e normal era os mais comuns).
Neste ponto, os estudiosos sobre cinocéfalos acreditam que o babuíno-anúbis (Papio anubis), que era um animal existente no Egito, Líbia e Etiópia naquela época, pode ter inspirado a lenda dos cinocéfalos. Sobre isso é preciso salientar que a ideia de que homens e macacos seriam seres próximos não é uma invenção de Charles Darwin no século XIX, alguns povos antigos já falavam disso. Por exemplo, Marco Polo escreveu que os pigmeus de Java, não seria uma raça de anões como diziam, mas seriam macacos, que tinham os pelos raspados, mas deixava-se uma espécie de barba e eles eram vendidos como sendo os tais pigmeus das lendas. Escritores gregos e romanos chegaram a confundir espécies de primatas como sendo homens-peludos ou homens-selvagens.
Um espécime de babuíno-anúbis (Papio anubis), o qual pode ter inspirado a lenda dos cinocéfalos. |
Mas voltando ao caso dos babuínos, algumas características deles chamam a atenção.
- Eles são primatas que vivem em bandos que podem passar de dezenas de indivíduos, o que facilmente seria confundido com a ideia de tribo. Pois geralmente os cinocéfalos são tratados como vivendo em tribos.
- Os babuínos são territoriais, os machos tendem a serem violentos por conta disso e durante o cio. Eles também são onívoros. Tais características podem ter inspirado a ideia dos cinocéfalos serem criaturas selvagens e comedoras de carne.
- Outro aspecto é que alguns sons emitidos pelos babuínos lembram rosnados e latidos, o que também poderia ter servido de inspiração.
- Babuínos conseguem ficar sobre duas patas e darem alguns passos.
- Eles também se sentam para comer, são caçadores e coletores. Alguns relatos diziam que os cinocéfalos eram hábeis caçadores.
As hipóteses associadas com o Egito são bem interessantes, ainda mais quando lemos os relatos de alguns autores gregos e romanos, os quais atribuíam o lar dos cinocéfalos sendo na África, como a Líbia, segundo dito por Heródoto, ou na Etiópia como apontado por Plínio. Porém, essas hipóteses não esclarecem todo o mistério por trás dessas lendas. White (1993) lembra que existem relatos de origem indiana, chinesa, persa e de outros povos asiáticos que falam dos cinocéfalos, porém, não existem babuínos na Ásia, além disso, alguns destes povos não tinham contato com os egípcios.
Gordon White (1993, p. 71-73, 115) salienta que a presença de homens-cães em relatos indianos é quase inexistente, algo curioso, já que autores como Ctésias e vários outros durante o medievo e a modernidade, diziam que os cinocéfalos viveriam na Índia. No entanto, o autor sublinha que o termo Índia era usado desde a Idade Média de forma genérica, e tal emprego continuou até o século XVIII, fato esse que falava-se de Índias, como forma de se referir ao Extremo Oriente. Sendo assim, quando tais autores antigos se referiam a Índia, nem sempre eles estariam pensando necessariamente no atual país conhecido por este nome. Além disso, a Ásia para além do Oriente Médio, era pensada de forma exótica e fantástica pelos gregos, romanos e outros povos europeus, sendo o lar de vários monstros e povos estranhos. E no caso da Índia, há deuses zoomórficos e o culto a animais sagrados, algo visto também no Egito, e que pode ter inspirado esse imaginário dos monstros, transmitidos pelos gregos, romanos, bizantinos, árabes e persas.
White (1993, p. 72) informa que na Índia existe o termo svapaka, cuja tradução é complicada e pode ter gerado confusão entre os estrangeiros. A palavra svapaka pode ser traduzida como "alimentado por um cachorro", "nutrido por um cão" ou "cão que cozinha". Para White isso seria uma referência ao emprego de cães de caça. No entanto, haja vista que o termo tenha gerado a ideia de que se trataria de uma raça de cinocéfalos (svamukhas), onde se pensou que ao ser alimentado por cães, não teria correspondência a caça, mas a algum ser que daria comida as pessoas, até porque paka também significa cozinhar, o que sugeriria a ideia de cachorros que sabiam cozinhar, logo, não seria cães comuns.
Gordon White (1993, p. 73-77) cita outra hipótese para a confusão gerada com o termo svapaka. Ele menciona que no famoso poema épico Mahabaratha, há a menção aos Svapaka, como sendo um povo bruto, que viveria na floresta e eram conhecidos por sua selvageria e criariam muitos cães de caça. Eles federiam a cães e até usariam as peles deles e comeriam a carne dos animais. Tais ideias podem ter sido trocadas e informadas pelos estrangeiros como se tratando de uma raça de homens-cachorros e não um povo que criava cães.
White também cita outros estudos de caso com base na literatura indiana, envolvendo homens e cachorros, dessa vez referindo-se a narrativas que falavam de homens que foram amaldiçoados a serem transformados em cachorros, algo que inclusive lembraria algumas lendas referentes aos lobisomens. Entretanto, tais narrativas em nada teriam uma ligação direta com os cinocéfalos referidos pelos europeus.
Se por tal explicação encontramos pistas indianas sobre uma das possíveis influências para a lenda dos cinocéfalos, agora vejamos o que os chineses tem a nos informar.
White (1993, p. 140-142) conta que no capítulo 116 do livro Hou Han Shu (História do Último Han), narra o mito de P'an Hu, um cachorro colorido que pertencia ao imperador Kao-shin. Na época, as fronteiras sulistas eram invadidas e aterrorizada por bandidos liderados pelo general Wu. O imperador cansado dos fracassos de seus homens, ofereceu uma recompensa em ouro e a mão em casamento de sua filha caçula, para o homem que matasse Wu e lhe trouxesse a cabeça dele. Certo dia, o cão P'an Hu chegou a sala do trono, carregando uma cabeça humana, que se tratava do general traidor. O imperador e a corte ficaram surpresos, e o monarca não sabia como recompensar o fiel cachorro.
Porém, a princesa disse que o pai teria que cumprir com o prometido, então ele deu o dinheiro para ela e a casou com P'an Hu, eles viajaram para as províncias ocidentais, até uma montanha e ali passaram a viver. Três anos depois, o cão faleceu, mas do casamento com a princesa, eles tiveram seis filhos e seis filhas, os quais deram origem a um povo de bárbaros chamado Man-i, os quais viviam de forma rústica, mas usavam roupas coloridas, baseadas nas cores de seu antepassado. No caso, os Man-i não eram cinocéfalos, apesar de terem um pai cachorro. Além disso, eles viveriam da agricultura, pecuária e praticariam o comércio, mas estavam isentos de cobrança de tributos, por descenderem de uma princesa.
Para Gordon White, esse mito de P'an Hu que levou a origem de um povo bárbaro, pode ter influenciado outras histórias, inclusive relatos sobre os cinocéfalos, pois nos séculos XIII e XIV, viajantes europeus que visitaram a China, reportaram terem ouvido histórias sobre cinocéfalos vivendo naquele país ou na Mongólia. Para o autor, aqui novamente seria uma confusão de ideias, pois o tal povo "descendente de um cachorro", seria uma alusão aos bárbaros, como forma de se referir a eles como sendo selvagens e por isso teriam uma "origem bestial", não que eles estivessem dizendo que havia homens com cabeça de cachorro. Inclusive White (1993, p. 142-143) cita outro caso envolvendo o povo bárbaro que descendia de "Cão Jung", o qual diziam ser filho de um cachorro branco. Aqui nota-se que comparar os bárbaros com cães era uma forma chinesa para menosprezá-los. E de fato, ainda hoje em alguns países, uma pessoa ser chamada de cachorro/cachorra/cadela é um insulto.
Considerações finais
O imaginário medieval sobre maravilhas (mirabillia) foi rico e diverso, permeando povos da Europa, África e Ásia, por séculos. No entanto, a lenda dos cinocéfalos parece ter uma conexão mais com os europeus do que os africanos e asiáticos, apesar de que era nos continentes deles em que os cinocéfalos supostamente viveriam. Neste ponto, os europeus em muitos casos tratavam a África e a Ásia como terras exóticas e fantásticas, habitadas por estranhos povos e monstros, mas embora entre os povos europeus antigos, monstros habitariam aquele continente, mas a medida que eles tomavam conhecimento de outras civilizações e sociedades, o monstruoso passou a ser afastado, a ser visto no estrangeiro, no desconhecido, no estranho.
Gigantes, anões, dragões, amazonas, grifos, centauros, sereias, faunos, etc. os quais apareciam em mitos e lendas antigos, deixaram de povoar a Europa e foram sendo jogados para terras distantes, pois a Europa se tornara um território civilizado e cristão, e tais criaturas bestiais não poderiam viver ali (embora que tempos depois o folclore resgatou algumas dessas criaturas como duendes, gnomos, fadas, elfos, trolls, vampiros, lobisomens, etc.). Além disso, havia o fato de que elas não eram visíveis, logo, não deveriam ter existido ou não existiam, por isso, que deveriam agora habitar outros territórios, povoados por animais fantásticos e povos primitivos.
Os cinocéfalos foram tão populares que um santo católico, no caso, São Cristóvão tornou-se um cinocéfalo, o qual foi cristianizado, mostrando que até mesmo os monstros possuíam alma e poderiam ser salvos. Apesar que o "santo-cachorro" também tivesse um sentido simbólico por conta dessa aparência, sendo ele vítima de uma maldição gerada por seus pecados, recobrava a forma humana graças a sua conversão e a bendita misericórdia de Deus.
Além disso é preciso salientar que descrições de viajantes se tornaram populares entre os séculos XIV ao XVI, e dependendo para onde a pessoa viajou ou disse ter viajado, era comum ela citar que viu coisas fantásticas, seres exóticos, costumes estranhos e monstros. Em muitos casos, tais viajantes copiavam ideias de outros autores do período ou de autores mais antigos, especialmente para se referir a ideias populares os quais eles sabiam que estavam em evidência. O próprio Marco Polo foi acusado de ter inventado seu relato (de fato, ele fez isso em algumas partes, mas outras são baseadas em sua experiência e observação).
Aqui temos o fabuloso e o maravilhoso como elementos para se referir ao outro, algo visto entre os gregos, romanos, árabes, persas, indianos, chineses, entre outros povos. Os próprios europeus quando começam a explorar as Américas (ou Índias Ocidentais), nos primeiros dois séculos, se referem a feras, monstros, cidades maravilhosas e tribos canibais. Isso tudo era reflexo do imaginário sobre o outro, o estrangeiro, o distante. Desta forma, a lenda dos cinocéfalos provavelmente foi uma invenção europeia baseada em elementos mitológicos e lendários advindos da África e da Ásia.
NOTA: O geógrafo grego, Megástenes (c. 350 - c. 290 a.C), o qual atuou como embaixador na Índia, para o rei Seleuco I Nicator, viajou por aquela terra e escreveu um livro chamado Indika. Em seu relato ele menciona brevemente os cinocéfalos, porém, pela descrição e informações que ele utilizou, hoje considera-se que ele tenha as copiado de Ctésias. Além disso, em vários outros momentos ele cita poucos monstros vivendo na Índia, mas descreve bastante os animais e localidades, inclusive é creditado a ele o nome Taprobana para se referir ao Sri Lanka.
NOTA 2: O Liber monstrorum de diversis generibus, datado do século VIII e de autoria anônima, cita brevemente os cinocéfalos, dizendo que eles viveriam na Índia.
NOTA 3: Um relato sobre o reino de Preste João, datado do século XII, diz que nas Índias haveria vários tipos de monstros, incluindo cinocéfalos.
NOTA 4: Em 1766 o famoso naturalista sueco, Carlos Lineu nomeou uma das espécies de babuíno com o nome de Papio cynochepalus. Utilizando a hipótese de que os cinocéfalos seriam baseados nestes animais.
NOTA 5: A lenda do lobisomem não necessariamente apresenta paralelo com a dos cinocéfalos, ambas desde a Antiguidade já mostravam diferenças. Os lobisomens eram homens amaldiçoados e que transformavam-se em lobos, mas os cinocéfalos eram um povo bárbaro. E embora haja menções a lobisomens na Grécia e Roma Antiga, somente na Idade Moderna é que tais lendas se popularizaram pela Europa. Surgindo termos e narrativas em diferentes países.
Fontes:
ADAM of Bremen. History of the Archbishops of Hamburg-Bremen. Translated with an introduction and notes by Francis J. Tschan. New York, Columbia University Press, 1959.
DIODORUS Siculus. Bibliotheca historica. Disponível em: http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/Diodorus_Siculus/home.html.
HERÓDOTO de Halicarnasso. Histórias. S.l, Editora EbooksBrasil, 2006.
NICHOLS, Andrew. The complete fragments of Ctesias of Cnidus: translatation and commentary with an introduction. Dissertation of Doctor of Philosophy, University of Flordia, 2008.
PAUL the Diacon. History of Langobards. Disponível em: https://web.archive.org/web/20070212074645/http://www.northvegr.org/lore/langobard/index.php.
PLINY, the Elder. The Natural History. Disponível em: http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus%3Atext%3A1999.02.0137%3Abook%3D8%3Achapter%3D80.
POLO, Marco. O Livro das Maravilhas: a descrição do mundo. Tradução de Elói Braga Júnior. Porto Alegre, L&PM Pocket, 2009.
RATRAMMI. Epistola de Cynochepalis. Disponível em: https://www.documentacatholicaomnia.eu/02m/0800-0868,_Ratramnus_Corbeiensis,_Epistola_De_Cynocephalis,_MLT.pdf.
STRABO. Geography. Disponível em: http://www.perseus.tufts.edu/hopper/text?doc=Perseus:text:1999.01.0198:book=7:chapter=3&highlight=dog.
Referências bibliográficas:
GKOUNIS, Spyridon. A "monster" in holy grounds: Saint Christopher the Cynochepalus in the Taxiarches Churchs at melies of Pelies in Greece. Troianalexandrina, v. 11, 2011, p. 105-114.
WHITE, David Gordon. Myths of Dog-Man. Chicago, The University Chicago Press, 1993.
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