terça-feira, 21 de setembro de 2021

Paulo Freire, sua vida, sua obra

 Paulo Freire, sua vida, sua obra


Ana Maria de Araújo Freire


Obs: As imagens a seguir e os grifos foram escolhidos por mim, para ilustrar o texto da autora. 

Foi muito satisfatório o convite para realizar uma palestra sobre Paulo Freire e dessa forma comemorar a sua (de Paulo Freire) presença.

A coincidência de ser Recife a cidade escolhida para a realização de tal evento foi muito emocionante, pois trata-se da cidade natal de Paulo Freire, além de a data escolhida coincidir com a data de seu falecimento. Mais gratificante ainda, é saber que tudo isso vem ao encontro do interesse em conhecer a vida e a obra de Paulo Freire.

Mais ou menos há um ano, Paulo Freire sentiu angina1 e foi levado para o hospital, saindo de lá depois de um dia e meio, levando consigo um diagnóstico pouco animador, pois seu caso era sério, e teria que se submeter a um tratamento depois da angeoplastia2. Paulo Freire tinha parado de fumar há dezessete anos e dizia que a “única coisa” que ele odiava era o cigarro; tinha todo o sistema circulatório comprometido, há mais de dez anos os rins funcionavam com dificuldades, pois havia tido uma isquemia3 no cérebro, felizmente não houve seqüelas. Passa mais três dias em casa e depois vai para o hospital Albert Einsten de onde não saiu com vida.4

A vida e a obra de Paulo Freire confundem-se, pois não escreveu sobre coisas abstratas ou distantes; que ouviu falar. Escreveu sobre o óbvio, o cotidiano, sobre aquilo que se via(que ele via), que se observava(que ele observava), que se escutava(que ele escutava) e o que se sentia(o que ele sentia) todos os dias.

Para se recuperar a vida e a obra de Paulo Freire, deve-se, antes de mais nada, recuperar a sua história de vida, e como foi a sua vida.

Nasceu no Bairro da Casa Amarela, hoje Parmeneri, ou como Paulo Freire gostava de dizer “Estrada do Encanamento, 724”, no dia 19 de setembro de 1921. Seu pai foi Tenente da Polícia Militar de Pernambuco e sua mãe, como ela própria se designava: era de “prendas domésticas”5.

Paulo Freire tinha profunda atenção pela paciência, tolerância e capacidade de amar de seus pais. Sua mãe era católica e seu pai espírita kardecista e sempre tolerou (aceitou) que o catolicismo fosse ensinado e incentivado à Paulo Freire por parte de sua mãe. Ele dizia: “Eu aprendi o amor e a tolerância com meus pais” e foram, entre tantas, duas de suas maiores qualidades.

Quando relembrava de sua infância, dizia: “Eu aprendi a ler na sombra da mangueira no quintal dessa casa, meus pais, sobretudo minha mãe; ela pegava os pequenos gravetos, e escrevia palavras, escrevia frases de minha vida cotidiana, daquilo que eu estava presenciando, que eu estava vivendo”. Dessa maneira aprendeu, já na infância, que a vida deve ser tratada na sua concretude, que o ato de educar vem da solidez da própria vida.

O salário de seu pai era muito baixo. Viviam na mesma casa, além de Paulo e três irmãos, seus pais e a avó materna, que tinha outro filho, chamado Clodoválio, que havia ido para o Rio de Janeiro, sendo bem-sucedido como comerciante; mandava dinheiro todo mês para a mãe, que era repartido entre todos da casa.

Mas com a quebra da Bolsa, ou melhor, Capitalismo da Bolsa de Nova Iorque em 1930, seu tio (Clodoválio) foi à falência, e neste momento a família achou que indo para Jaboatão teria mais oportunidades e ficaria melhor.

No livro “Crônicas de Minha Vida” (Paulo Freire e A.M. Araújo), Paulo Freire descreve a sua infância, abertura e amor que recebia/existia neste ambiente  fraterno, em sua casa, e a dureza de sobreviver com o mínimo de condições financeiras que o seu pai podia oferecer; relata as viagens que seu pai fazia pelo sertão para trazer produtos para abastecer uma pequena venda, o que deveria servir para aumentar a renda da família, porém, praticamente nada era vendido.

A casa em que moravam também era desse seu tio Clodoválio, era uma casa amarela, não tinha parede até o teto; “meia parede” como se usa muito no Nordeste.

Com nove anos, Paulo Freire já tinha noção de “toda” situação em que se encontrava sua família, pois ouvia os pais “discutindo”, tentando achar uma maneira para trazer mais alegria para casa. “Um dia eles descobrem o que achavam que ia ser a salvação da família”

Paulo Freire com seus dez anos. Nessa época, ele começou a vender rapadura para ajudar a família. 

“Seu” Joaquim ia buscar rapadura na zona açucareira para vender em Recife (Paulo Freire descrevia esses momentos com muito sofrimento). O Brasil nessa época encontrava-se em um grau de dificuldade muito grande, tanto para aqueles de classe média, alta e principalmente os de classe baixa, onde se incluía a família de Paulo Freire.

Depois da “jornada de trabalho” de seu pai, Paulo Freire fazia o mesmo trajeto para também tentar vender rapadura, escondido de seu pai, para que ele não se sentisse humilhado. Seu pai “dizia” “intocada pilha de rapaduras”, Paulo Freire tinha pouco mais de dez anos de vida nessa época de tantas dificuldades.

Quando mudaram para Jaboatão, Paulo Freire disse: “Foi o segundo exílio”. “Tive três exílios que me fizeram sofrer, o exílio de sair do útero de minha mãe, o exílio de ter ido para Jaboatão e o exílio político que me fez ficar dezesseis anos fora do País”.

A pobreza toma conta da família, Paulo Freire perde o pai aos treze anos e diz ironicamente: “Morando no Morro da Saúde em Jaboatão!”

Nessa época, para dar continuidade aos estudos feitos com sua mãe, fez o “primário” numa escola particular, que se chamava “Escola Eunice Vasconcelos”, completando seus estudos (primários) em Jaboatão.

Está escrito em uma das notas da “Pedagogia da Esperança” da importância deste tempo vivido por Paulo Freire em Jaboatão, “Jaboatão foi um espaço/tempo de aprendizagens, de dificuldades e de alegrias vividas intensamente, eles ensinavam a harmonizar o equilíbrio entre o ter e o não ter, o ser e o não ser, o poder e o não poder, o querer e o não querer... Forja-se assim Paulo Freire na Disciplina Esperança”.

Por este tempo, havia poucas escolas secundárias oficiais em Jaboatão e as poucas que tinham, sem grau de qualidade particulares. Fez o primeiro ano secundário no colégio “14 de Julho” que funcionava no bairro São José em Recife, que na realidade não tinha licença oficial para funcionar, era o prolongamento do colégio “Francês Chateaubriand”, ficava na Rua da Harmonia, 150, Casa Amarela, era onde se realizavam os exames finais, este colégio já não existe mais. Terminado este primeiro ano, sua mãe lhe diz: “Olha Paulo, não temos mais possibilidades de pagar qualquer coisa que seja para você estudar”. Tinha dezesseis anos de idade, quando havia terminado, o que se chamava na época, primeiro ano fundamental, portanto, estava bem atrasado nos estudos em função das dificuldades financeiras que se encontrava a família.

Sua mãe viajava quase todos os dias, de Jaboatão à Recife procurando escolas, ia à colégios e escolas, a resposta era sempre a mesma “não temos a possibilidade de oferecer o ensino gratuito”, por este tempo não existia a “bolsa de estudos”. O “tempo” era de dificuldades.

Um dia sua mãe toma uma decisão e diz: “Não retornarei mais a Recife porque o bilhete do trem é muito dinheiro para tirar do orçamento”. Nos dias atuais cerca de um real, e continua “não tenho mais para tirar do orçamento”. Vivia da pequena pensão; seu pai já estava morto; e de bordados que fazia para vender. Bordava enxovais, “para as moças ricas de Jaboatão e Recife”, como dizia Paulo Freire.

Algo muito especial aconteceu neste dia que iluminou Paulo Freire e ele diz: “Minha mãe, eu lhe peço mais uma vez, a última vez, vá a Recife procurar”. Ela veio no fim da tarde, como era de costume, ele foi esperá-la na estação ferroviária de Jaboatão e ela lhe diz: “Encontrei uma escola para você estudar; olha, o doutor Aluízo disse que tinha uma única condição: que você fosse estudioso e ele me perguntou: ‘ele quer estudar mesmo?’” Então sua mãe respondeu “Quer”.

Foi este homem (Dr. Aluízio)6 com seu coração enorme, sua generosidade imensa, fazia do colégio “Osvaldo Cruz” em Recife uma escola privada “dele”, por outro lado uma escola pública, onde nunca negou estudo a quem lhe fosse pedir.

Aos dezesseis, quase dezessete anos, Paulo Freire vai estudar neste colégio para fazer o segundo ano de ginásio.7

Um dia Paulo Freire vai até o diretor do colégio e diz “Doutor Aluízio, eu estou aqui há mais de três anos estudando, só recebendo e eu gostaria de dar alguma coisa”. Dr. Aluízio tinha um “tic”, dizia “Olha aqui, olha aqui”; pensou e disse “Paulo, Genove8 está precisando de um auxiliar de chefe de disciplina”, então Paulo Freire pensou “Meu Deus, chefe de disciplina, logo eu!”, não teve coragem de dizer não ao trabalho. Foi o seu primeiro emprego, ajudando o inspetor de alunos.

Com a sua inteligência e o gosto que tinha pelos estudos, cinco anos mais tarde, forma-se professor desse mesmo colégio.

Neste tempo, Paulo Freire morava em Jaboatão, em seguida volta à Recife para lecionar. Já cursando a Faculdade de Direito em Recife, começa a ensinar em outros estabelecimentos de ensino.

Paulo Freire trajando a beca do Bacharelado em Direito, em 1947. 

Começou a cursar direito em 1943 e formou-se em 1947, teve uma única causa, logo depois de ter aberto um escritório com alguns colegas. Sua primeira e única causa era a seguinte: Um credor pedia para confiscar todos os instrumentos de um dentista que devia aluguel há meses da sala onde ele atendia como dentista. Paulo Freire ao saber daquilo se sentiu constrangido e foi conversar com o dentista, que lhe diz:

“Doutor não faça isso, se o senhor me tira os instrumentos como é que eu vou trabalhar se o que eu ganho mal dá para sustentar minha mulher e meu três filhos, eu não estou podendo pagar o aluguel, não que eu não seja sério, é que eu não posso. Se o senhor me tira os aparelhos o que é que vai ser da minha vida, como é que eu vou chegar em casa e dizer para minha mulher que eu não tenho mais como trabalhar?”. Diante desta situação, Paulo Freire respondeu : “Fique sossegado, vai aparecer outro advogado aí”. Foi embora, ao chegar no escritório, disse: “Eu não vou ser mais advogado coisa nenhuma, eu vou embora para casa!”.

Paulo Freire já havia se casado, sua primeira esposa foi Elza Maria Costa9, professora primária, e ela lhe diz: “Paulo, o gosto que você tem mesmo é ser Educador, nada há de lhe faltar. Continua a tua vida de Educador”.

Professora Elza Maria Costa, a primeira esposa de Paulo Freire. 

Em seguida Paulo Freire foi convidado para trabalhar no SESI, que é o Serviço Social da Indústria, criado na Ditadura Vargas10 com o apoio da Federação das Indústrias e do governo populista Vargas.

Quando Getúlio Vargas propôs isso (a criação do Serviço Social da Indústria) aos industriais, eles disseram : “Não, fazer alguma coisa em benefício do trabalhador, não.” E a resposta de Getúlio Vargas foi a seguinte: “Pois bem, eles se organizam sozinhos.” “Está certo, então nós vamos organizar.” Concordaram os industriais. Foi uma organização de caráter paternalista, assistencialista. Paulo Freire começa a trabalhar em agosto de 1947 como assistente e logo depois passa a diretor da Divisão de Educação e Cultura.

Paulo Freire já sabia do trabalho que deveria desenvolver, tinha bem claro isso e acertou. Não seria um trabalho nem assistencialista, nem populista, seria um trabalho popular. A favor das camadas populares. Este trabalho, pode-se assim dizer, será a “semente” do grande “Pensamento Pedagógico de Paulo Freire”, pois é nesse momento que ele vai ter contato com o povo, que ele vai escutar o povo, valorizar e compor sua Teoria do Conhecimento.

Escutar para Paulo Freire, não é um simples ouvir. Pode-se ouvir e esquecer, e o ato de Paulo Freire não era ouvir para simplesmente escutar. Era ouvir e trazer isso para o coração, para a sua sensibilidade, para a sua inteligência, para a sua reflexão teórica. Elaborar, sistematizar e devolver “isso” sistematizado ao povo.

Parece uma coisa simples, mas foi decisivo na organização dos Movimentos Populares no Brasil e na América Latina. Pois, até então (anos 50), formavam-se as lideranças de esquerda fora do Brasil, na Argentina, sobretudo na União Soviética.

Onde ficavam quatro anos aprendendo...; mais quatro anos aprendendo dialética histórica, quando voltavam, já havia passado o tempo histórico por aqui (Brasil). Já não tinham a mesma adaptação, tinham valores que não estavam mais atendendo os valores e as necessidades do povo.

Paulo Freire dizia: “Escuto o povo”. Escuta onde? Com os circuitos de cultura, já que, com o Serviço Social da Indústria, atendia à indústria pesqueira, portanto, ele conviveu com os pescadores, com os operários da indústria e com os agricultores da indústria açucareira.

Viajou pelo Estado de Pernambuco, onde foi dialogando com o povo, com toda a gente do povo, sempre conversando, dialogando, escutando, sistematizando...

Seu trabalho ficou muito conhecido, depois que o diretor nacional SESI convocou-o para uma expedição pelo Brasil de 1961 a 1964. Neste período conheceu Anísio Teixeira, grande educador, que lutava pela escola para todos, escola pública e de qualidade, desde 1924, quando Anísio Teixeira foi Secretário da Educação na Bahia, Paulo Freire foi escolhido como Membro do Conselho Estadual de Educação pelo Governador de então, Miguel Arraes.11

Paulo Freire em 1963. 

Quando irrompeu o golpe de Estado12, Paulo Freire não pode assinar a carta de demissão coletiva, pois estava em Brasília e foi exonerado do cargo em 20 de abril de 1964.

Paulo Freire ajudou a fundar o Colégio de Recife Instituto Capibaribi13, foi professor universitário, ensinando História e Filosofia da Educação.

A tese de Paulo Freire (1959), chamou-se “Educação e Atualidade Brasileira”, lhe proporcionou o título de doutor e livre docente e lecionou de 1960 à 1964. Quando veio o Golpe de “1º de abril”, como ele chamava e o aposentou aos 42 anos de idade.

Há alguns anos atrás, Paulo Rosa fazendo uma visita à Paulo Freire em São Paulo dizia: “Você lembra quando você perdeu o concurso?” Paulo Freire foi aprovado, mas em segundo lugar. Com isso outra pessoa passou a ser a primeira Catedrática, como se dizia na época, foi a primeira mulher Catedrática do Brasil. Ela escreveu uma tese sobre “Educação da Criança na Grécia Antiga”.

Porque Paulo Freire perdeu este concurso. A academia naquele tempo achava demais “falar” sobre uma besteira tão grande que era a atualidade brasileira, não se admitia a discussão sobre educação, principalmente educação do povo.

A academia era muito mais elitista e discriminatória do que hoje. O interessante era o discurso sobre “coisas” européias, metafísicas, idealistas. Coisas concretas não eram dignas de atenção “por aqueles” que estavam compondo a mesa de exame.

No Chile foi reformulada a tese de Paulo Freire, resultando em seu primeiro livro, “Educação como Prática da Liberdade”.

Paulo Freire sempre dizia: “Eu era conhecido pelo vizinho que morava no lado direito de minha casa e pelo vizinho que morava no lado esquerdo de minha casa.”

Ficou conhecido mais e mais, por este trabalho desenvolvido no SESI de Pernambuco, de Educação de Jovens e Adultos, no mundo todo. E diz: “É por esse lado específico que eu pude me tornar um homem com pensamento universal.”

Sua tese foi um prolongamento, um aperfeiçoamento de um relatório feito por ele para o II Congresso Nacional de Educação de Jovens e Adultos em julho de 1958; convocado por Juscelino Kubitscheck14. Juscelino dizia: “Vamos fazer cinquenta anos de realização e cinco de meu governo.” Estava preocupado com o atraso dentro da visão desenvolvimentista, que, para o pais se desenvolver teria que ter uma educação instrumentalizada para o trabalho.

Paulo Freire leva, como relator do tema 3 da Comissão de Pernambuco, um pequeno trecho, texto que esse congresso tentava avaliar durante toda a campanha CEEA, conhecida como Campanha dos Adultos e Adolescentes, iniciativa do governo

Dutra15 em parceria com o educador Lourenço Filho16. Foi uma campanha importante, pois abrangeu todo o Brasil, baixando de 65% para 45% o analfabetismo em termos oficiais. A alfabetização se dava com cartilhas, com projetos montados nos centros específicos; foi importante, pois difundiu e se iniciou uma conscientização da necessidade de uma Educação.

Neste Congresso, para avaliar-se como estava se dando a Educação de Jovens e Adultos no Brasil, a maioria dos relatórios diziam, adultos..., educar-se..., não aprende a ler..., são pouco inteligentes, e a maioria deles chega cansado depois de um dia de trabalho. Falta luz. A iluminação é insuficiente, os professores são leigos, improvisados. Há pouco interesse dos alfabetizandos.

Essa é a tônica comum a todos os relatórios do Brasil. Então Paulo Freire, levando esse pequeno relatório, diz o seguinte: “A Educação de Jovens e Adultos deve fundamentar-se na consciência da realidade cotidiana. Não no conhecer letras, palavras ou frases..., o processo de alfabetização não pode se dar sobre, nem para o educando, ele tem que se dar com o educando. Há que se estimular nele a colaboração, a decisão, a participação e a responsabilidade social e política.”

Isso horrorizou, quase à todos os presentes, e Paulo Freire disse : “Não, o aluno deve conhecer-se enquanto sujeito e conhecer os problemas que o aflige no dia-a-dia.

Portanto, o aluno deve programar em parte o que num período ele quer aprender. E aprender não se aprende. Não é uma educação bancária. Não se aprende tentando depositar numa cabeça vazia uma porção de conhecimento. Conhecer é um ato que é aprendido existencialmente, na existência, no cotidiano, pelo conhecimento local.”

Com isso, Paulo Freire mostrou o respeito ao conhecimento popular, ao senso comum. Ele tinha ouvido o povo. Aparece aí Paulo Freire como o pedagogo dos oprimidos, sem ter ainda escrito “A Pedagogia do Oprimido”.

Acusaram-no de ter composto um simples mito de alfabetização. Na realidade, tal método, não se trata de técnicas, não instrumentaliza só para aprender a leitura de uma palavra, é parte de uma compreensão maior. Uma teoria de conhecimento construtivista, onde cada educando constrói seu próprio conhecimento a partir dos temas e das palavras geradoras.

Quais são os temas geradores? Os temas que afligiam àquela comunidade.

Portanto, com Paulo Freire, também surgiu a pesquisa participante. A decodificação, quando estimulada por um diálogo entre as pessoas, e depois observar os monitores, animadores do círculo de cultura, era um movimento que instigava a se satisfazer, a fazer a leitura do mundo, compreender o mundo, conscientizar-se. Paulo Freire queria recuperar a importância deste processo de conscientização, do ato de conscientização. Pois, é a partir disto, do conhecimento, da leitura e da palavra que as pessoas pronunciam o mundo.

Na visão de Paulo Freire, pronunciar o mundo não era só saber ler e escrever, ser cidadão e ter direitos. Pronunciar o mundo é interferir no mundo, é fazer parte das decisões do seu mundo, de sua comunidade, de sua cidade, de seu país. A fala de Paulo Freire era da substantividade das coisas para que o diálogo pudesse ser uma pronúncia do Mundo.

O que se procurava nesse diálogo era: O que? Por que? Como? Para que, por quem? Para quem? A favor de quem? A favor de que? Se todos os temas, palavras geradoras da alfabetização fossem tratadas através dessas perguntas, chegava-se à razão de ser das coisas, a substantividade das coisas, a razão de ser da exploração, da pressão, da não possibilidade de ser um homem e mulher com dignidade. Por isso, o método Paulo Freire foi revolucionário.

A sua teoria do conhecimento foi a compreensão da educação engajada e política, quer e tem a possibilidade de tirar da submissão, da imersão, da condição de demitido da vida, aquele que trava o diálogo amoroso em torno do objeto.

Uma coisa que é pouco entendida em Paulo Freire é o diálogo. Educadores, pessoas famosas do Brasil, com livros escritos, “acham” que o diálogo em Paulo Freire era um bate papo amoroso: “vamos tomar uma cerveja”. O diálogo amoroso em Paulo Freire não era isso. Ele dizia : “O ato de estudar é um ato que exige disciplina, rigor, é duro, é cansativo, mas tem que causar alegria pelo fato de se conhecer.” Portanto, tal diálogo deve ser amoroso, por que ninguém se conhece sozinho, “ninguém conhece sozinho, você conhece em diálogo com o outro em relação com o mundo.”

Porque pessoas que estão em contato uns com os outros não fazem do diálogo em torno de um objeto qualquer que se tem que conhecer?. Para que fazer isso duramente, rispidamente? Faz-se amorosamente entre as pessoas em termos de conhecer o objeto que precisa ser conhecido. Pode ser o quê? Pode ser a falta de cidadania, a

Reforma Agrária e pode ser um lápis, uns óculos, pode ser a lua, pode ser o homem querendo conquistar o espaço. Qualquer que seja o tema em discussão, o diálogo que se trava entre pessoas em observação da natureza, e pessoas, e os livros, e os tratados e tudo o que for escrito acerca daquilo. Esse é o verdadeiro diálogo. É o diálogo epistemológico e amoroso.

Paulo Freire tinha o desejo de estar no mundo com as pessoas, interferindo no mundo. Possibilitando pelo diálogo das pessoas que interfiram no mundo. Tinha um gosto enorme pelo viver. Uma enorme esperança pelo povo brasileiro.

É a marca de Paulo Freire no mundo, “ela” não veio a ferro e fogo. Veio pela tolerância, pela amorosidade, pela mansidão, pela generosidade. Essas foram as maiores marcas de Paulo Freire. O amor, a paixão pelas pessoas. Paulo Freire dizia: “Olha, eu estou muito feliz, eu já vi tanta coisa na vida e esse episódio das rapaduras que eu contava, era um episódio duro, cruel, passado à nível pessoal, mas que traduzia a realidade brasileira.” “Tanta coisa se vem conquistando, tanta coisa acontece em um mundo, quer dizer, o mundo está melhorando.”

Queria um bem enorme à vida. Tem momento que fala na “Pedagogia do Oprimido”, na necrofilia do opressor, e na beofilia, na vontade de viver, de existenciar-se, de historiar-se, do povo num mundo geral. Essas são as grandes qualidades de Paulo Freire. “(...) eu sou um homem de sorte. Nossa! Eu não precisei morrer para me homenagearem. Olha que coisa bonita. Eu não acho ruim ser homenageado. Essa história de dizer que não era eu que deveria estar aqui falando, deveria ser outra pessoa. Isso é falsa modéstia. Ora, se deveria ser outro, então porque eu tô aqui? Se estou aqui, é porque gosto de ser homenageado. Agora me encher de uma ..., de pretensões de que eu não sou, isso sim é desleal, é desonesto. Mas, orgulhar-me do que eu fiz, eu, com humildade me orgulho das homenagens que são feitas à mim.”

O Congresso de Alfabetizadores, foi o primeiro congresso do gênero, onde os alfabetizados foram dar o seu depoimento, a sua voz, sua aspirações e interesses. Houve uma gestão democrática, onde toda a comunidade participava. Com isso, Paulo Freire assinou um “acordo” com as “melhores” Universidades do Estado de São Paulo: a Universidade Católica de São Paulo, a USP e a UNICAMP.

Professores de diversas áreas ministravam cursos de formação, pois, Paulo Freire se negou a tratar a educação como treinamento. Treinamento é uma coisa animal, as pessoas não são animais. Têm-se uma existência e nessa existência se é capaz de transformar a realidade. Houve uma verdadeira mobilização. Um entusiasmo muito grande. Paulo Freire deixou a Secretaria Municipal de Educação em maio de 1991.

“As coisas não vão acontecer na quartas-feiras e existe esquinas de luta. Minha esquina já foi esta, já foi aquela. Eu quero ir para outra esquina Erundina, eu quero voltar para casa e escrever.”17 Logo em seguida diz: “Eu não disse que queria escrever? Já escrevi sete livros depois que saí da secretaria.”

Às vezes, a passeio por uma feira que se achava perto da casa de Paulo Freire, as pessoas vinham e diziam: “Olha, a nossa professora inovou, mas a gente se reúne, tranca na sala de aula e faz o que quer. A gente continua fazendo a coisa boa.” “Professor, a nossa diretora é ótima, o trabalho continua bem. Temos uns colegas que com medo das perseguições políticas, que foram grande, tão negando o trabalho. Mas, pode esperar que o dia que vier o governo progressista outra vez, o senhor vai ver que o seu trabalho não morreu.”

Em Angicos no Rio Grande do Norte, quando Paulo Freire experimentava e aplicava seus métodos, escreveu uma crônica “Angicos 40 graus, 40 horas.” Em função disso um jornalista publicou no jornal que se alfabetizava em 40 horas. Ficou um tipo de mito. “Eu não disse que alfabetizo em 40 horas. E não se alfabetiza ninguém em 40 horas.” Paulo Freire não gostava que dissessem isso.

Paulo Freire na cerimônia solene em 1993, que lhe concedeu o título de cidadão de Angicos, por reconhecimento ao seu trabalho realizado na cidade com a alfabetização de jovens e adultos. 

A idéia de que a educação é lavanda da transformação social, isto é, uma idéia liberal que entrou no Brasil naquele tempo, aliás, Anísio Teixeira percorreu bastante por isto, tanto que resultou em um Manifesto dos Educadores da Educação Nova, dizendo : “Vamos fazer justiça, dando educação igual para aquele que tem competência e, é através da educação que nós vamos deixar todas as pessoas iguais.”

Isso chama-se Otimismo Pedagógico. Dando um grande valor à educação, não pelo o que ela pode fazer, mas pelo o que ela não pode. Paulo Freire, sempre dizia:

“A força da Educação não transforma, não muda a nível social, nem a nível econômico e nem a nível político. Ela não tem essa força, mas em seu conjunto, ela pode dar, só através dela é que pode haver as mudanças radicais.”

Paulo Freire não chegou a estudar bem a LDB, não gostava muito de ficar analisando leis. Dizia: “Você é que gosta muito. Isso fica com você.”

A obra de Paulo Freire continua, seu pensamento vai ser atual até quando existir oprimido e explorado, porque a sua pedagogia é a pedagogia política. Enquanto existir necessidade, o Pensamento de Paulo Freire não morre.

NOTAS

* Texto elaborado a partir da palestra “Vida e obra de Paulo Freire”, proferida por sua esposa, Ana Maria Araújo Freire, no I Encontro Nacional de Educação de Jovens e Adultos – ENEJA, em 25 de abril de 1998, no Recife/PE.

1 Angina, angina pectoris ou angina do peito é uma dor localizada no centro do peito. As pessoas a descrevem como um peso, um aperto, uma queimação ou uma pressão, geralmente atrás do nosso esterno. Algumas vezes ela pode se estender para os braços, pescoço, queixo ou costas. A dor aparece quando o suprimento de sangue para uma parte do coração é insuficiente. Por este motivo o coração não recebe oxigênio e nutrientes em quantidades necessárias.

2 Angeoplastia é uma técnica que utiliza um minúsculo balão inflado dentro da artéria obstruída com placas de gordura e sangue, além de uma minitela de aço que, aberta, facilita a passagem do sangue. O procedimento é usado desde 1983 nos EUA e chegou ao Brasil na década atual. Agora, os pacientes também recebem, durante a operação, uma substância que impede o reinfarto.

3 O termo "isquemia" costuma ser empregado para as situações em que ocorre ausência total de afluxo sangüíneo em um local.

4 Paulo Freire faleceu no dia 2 de maio de 1997 em São Paulo, vítima de um infarto agudo do miocárdio.

5 Seu pai chamava-se Joaquim Temístocles Freire e sua mãe Edeltrudes Neves Freire.

6 Aluízio Pessoa de Araújo, pai de Ana Maria Araújo Freire, esposa de Paulo Freire.

7 (Foi aí que conheci Paulo Freire, eu com quatro anos de idade..., mais tarde viria a ser meu professor).

8 Mulher do Dr. Aluízio.

9 Antes de ter concluído seus estudos universitários, casou-se, em 1944, com a professora primária Elza Maia Costa Oliveira, com quem teve cinco filhos: Maria Madalena, Maria Cristina, Maria de Fátima, Joaquim e Lutgardes. Ainda nesse tempo, tornou-se professor de língua portuguesa do Colégio Oswaldo Cruz, educandário que o tinha acolhido na adolescência.

10 Getúlio Dornelles Vargas nasceu em São Borja (RS) a 19 de abril de 1883. Foi chefe do governo provisório depois da Revolução de 30, presidente eleito pela constituinte em 17 de julho de 1934, até a implantação da ditadura do Estado Novo em 10 de novembro de 1937. Foi deposto em 29 de outubro de 1945, mas voltou à presidência em 31 de janeiro de 1951. Em 24 de agosto de 1954 suicida-se.

11 Miguel Arraes foi governador do Estado de Pernambuco de 1962 à 1964 quando foi preso e teve seus direitos políticos cassados.

12 O Golpe Militar de 1964 foi uma interrupção abrupta do fluxo histórico brasileiro, que reverteu seu sentido natural, com efeitos indeléveis sobre a soberania e sobre a economia nacional e também sobre a cidadania, sobre a sociedade e sobre a cultura brasileiras. Vinha-se, há décadas, construindo a duras penas uma Nação autônoma, moderna, socialmente responsável e respeitosa da ordem civil, quando sobreveio o golpe e a reversão.

13 Instituição de ensino privado conhecida até hoje em Recife pelo seu alto nível de ensino e de formação científica, ética e moral voltada para a consciência democrática.

14 Juscelino Kubitscheck foi eleito para a Presidência da República em 1955, cargo que exerceu de 31/01/56 a 31/01/61. Seu governo teve como base um ambicioso Plano de Metas (com o famoso slogan "50 anos em 5"), que incluía construção da nova capital. Juscelino ambicionava disputar as eleições presidenciais de 1965, mas em junho de 64 teve seu mandato e seus direitos políticos cassados pelo regime militar

15 Eurico Gaspar Dutra, reformado no posto de marechal, candidatou-se à presidência da República pelo Partido Social Democrático (PSD) com o apoio do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Foi eleito para o período de 31/01/1946 a 31/01/1951. Como presidente abriu a importação, consumindo as reservas do país; considerou o salário mínimo como responsável pela carestia; proibiu os cassinos de jogo; promulgou a Constituição de 1946; decretou a cassação do Partido Comunista e o rompimento com a URSS; inaugurou a Usina Siderúrgica Nacional; reaparelhou os portos e preparou a formação da frota petroleira; iniciou a campanha de alfabetização de adultos e instituiu a fundação da Casa Popular

16 Educador e psicólogo, nasceu em Porto Ferreira/SP em 10 de março de 1897, morreu no Rio de Janeiro em 03 de agosto de 1970. Também foi uma figura importante na reformulação do ensino brasileiro. Destacando sua atuação nos organismos latino-americanos, ganhou o título de “maestro delas Américas”.

17 Nas eleições municipais de 1988 o Partido dos Trabalhadores ganhou a maioria dos votos na cidade de São Paulo. A nova Prefeita, Luíza Erundina de Sousa, nomeou Paulo Freire Secretário Municipal de Educação, em 1 de janeiro de 1989. Paulo renunciou dois anos mais tarde, em 27 de maio de 1991, para reassumir atividades acadêmicas, lecionar e escrever.

Fonte: FREIRE, Ana Maria Araújo. Paulo Freire: sua vida, sua obra. Educação em Revista, v. 2, n. 1, 2001, p. 1-13. 

terça-feira, 14 de setembro de 2021

A Divina Comédia como herdeira do legado dos apocalipses apócrifos e da literatura de visões

Para celebrar os 700 anos da morte de Dante Alighieri e da publicação da Divina Comédia, redigi esse texto comentando algumas das influências literárias que o poeta teve para compor sua magnus opus. Sendo assim, fiz uma breve introdução comentando alguns aspectos da sua vida e principal livro, para depois apresentar o que são os apocalipses apócrifos e a literatura de visões, ambas produções bastante em voga na Idade Média europeia, as quais retrataram o Inferno, o Purgatório e Paraíso, cujas ideias, algumas foram utilizadas por Dante em seu poema. 

Introdução

A Divina Comédia é um extenso poema rimado, de leitura bastante metafórica, abundante em referências mitológicas, históricas, simbólicas, filosóficas, astronômicas etc. Devido a sua extensão, linguajar difícil e pouco atrativo para os padrões atuais, onde a maioria dos leitores preferem textos prosaicos e de escrita mais fluída, normalmente quando se indaga para alguém sobre esse livro, caso a pessoa já tenha ouvido falar sobre ele ou seu autor, provavelmente sua resposta estará associada em dizer que trata-se de um livro que fala sobre o Inferno, o qual ainda hoje é a parte que mais atraí a curiosidade dos leitores, pois como sublinhou Umberto Eco, mesmo o feio, o grotesco e o sombrio causam um fascínio na humanidade. (ECO, 2007, p. 16-20).

Estátua de Dante Alighieri na Galeria degli Uffizi, em Florença. 

E devido a essa associação em dizer que a Divina Comédia é um livro que descreve o Inferno e seus tormentos, tornou-se uma convenção que teria sido Dante Alighieri o responsável por criar ou popularizar a ideia medieval do Inferno, Purgatório e do Paraíso. De certa forma, existe uma certa precisão nessa ideia, pois realmente o poema dantesco contribuiu para popularizar principalmente o imaginário infernal que influenciou artistas de diferentes campos como a pintura, escultura, literatura, ópera, cinema, desenhos animados, histórias em quadrinhos e videogames, condição essa que estes artistas direta ou indiretamente recorreram as detalhadas descrições de Dante para imaginarem suas versões sobre o Inferno.

Apesar de Dante Alighieri possuir o mérito de popularizar esse imaginário que ao mesmo tempo fascina por suas descrições chocantes, pois na Bíblia, as descrições do Inferno citadas no livro de Apocalipse, limitam-se a falar em fogo, enxofre e sofrimento, ainda assim, ele não inventou esse imaginário, pelo contrário, ele foi herdeiro de uma longa tradição que remonta desde à Antiguidade Clássica romana, iniciando por volta dos séculos I d.C. e II d.C. onde surgiram algumas das primeiras descrições mais elaboradas que se conhece sobre o Inferno e o Paraíso.

E essa tradição desenvolveu-se nos séculos seguintes, entrando em declínio no século XIV, época na qual Dante concluiu sua obra. Diante disso, a proposta desse artigo foi comentar com base na história das religiões, a respeito dessas duas tradições literárias que estiveram em voga na Europa por séculos, as quais foram a literatura apocalíptica e a literatura de visões, de cujos relatos Dante coletou muitas informações e inspirações para compor sua própria versão desses mundos dos mortos.

Dessa forma, o texto buscou explicar as características desses dois tipos de literatura, apontando alguns exemplos famosos da época, sendo que alguns destes devem ter sido conhecidos pelo próprio Dante, além de realizar comparações de algumas descrições do Inferno, Purgatório e Paraíso com as versões contidas na Divina Comédia, revelando ideias que já eram utilizadas anteriormente e foram reinterpretadas ou adaptadas por Dante.

O autor e sua obra

O intuito dessa seção não foi aprofundar sobre a vida e obra de Dante Alighieri, mas apresentar aos leitores algumas informações essenciais para se compreender a Divina Comédia, antes de se passar para as influências que esse poema absorveu da literatura fantástica religiosa europeia, a qual apresentamos adiante.

Durante Alighiero ou mais conhecido como Dante Alighieri, nasceu em data incerta, entre os meses de maio e junho no ano de 1265, em Florença, sendo filho primogênito de Alighiero degli Alighieri e de Gabriella degli Abati. Entre 1270 e 1273, sua mãe faleceu de causas não definidas. Seu pai voltou a se casar novamente, desposando Lapa di Chiarissimo Cialuffi. Com quem teve mais dois filhos, Francesco e Geatana. Pouco se conhece sobre a infância e adolescência de Dante. (MIORANZA, 2012, p. 12).

Casa em que Dante nasceu, em Florença. Atualmente é um museu. 

Todavia, em 1285, com seus vinte anos, Dante casou-se com Gemma di Manetto Donati, mulher que já lhe havia sido prometida em casamento, devido a um acordo entre seus pais. Dessa relação eles tiveram quatro filhos: Giovanni, Pietro, Jacopo e Antonia. Apesar desse matrimônio, Dante conta em algumas obras, que sempre foi apaixonado por outra mulher, chamada Beatriz di Portinari (c. 1265-1290), seu amor platônico, que conheceu na infância e sonhava em se casar com ela.  No entanto, Beatriz casou-se com outro pretendente e faleceu jovem. Ainda assim, o amor que Dante sentia por ela a tornou sua musa. (THOMAS; THOMAS, 1965, p. 15).

Já adulto, Dante serviu por vários anos como soldado e mercenário, apesar que também nesse período redigiu alguns poemas e escreveu Vita Nuova (1292-1293), sua primeira homenagem a Beatriz. Por volta de 1295 ele entrou na política florentina, que era marcada pela disputa de dois partidos, os Guelfos (guelfi) que eram apoiadores do papa, e os Gibelinos (ghibelini) que apoiavam o imperador do Sacro Império Romano Germânico, cujo monarca possuía domínios e influência no norte da Itália. Dante por sua vez, aliou-se aos guelfos negros (uma cisão interna do partido, oposta aos guelfos brancos). Nessa fase como político, Dante foi membro de distintos conselhos públicos da cidade. Mas sua carreira na política foi curta. Em 1301 ele compôs uma embaixada enviada à Roma, no intuito de negociar com o papa Bonifácio VIII. Dante como era crítico das intervenções papais na política, desentendeu-se com Bonifácio. (MIORANZA, 2012, p. 14).

Em 1302, devido ao desentendimento com o papa, Dante foi condenado a pagar uma multa e até mesmo seria preso, mas ele não compareceu à audiência, o que lhe valeu a ameaça de morte caso retornasse a Florença. Com isso, ele optou pelo autoexílio, passando os vinte anos seguintes, exilado, morando em diversas cidades, recebendo ajuda de amigos, admiradores e mecenas. Foi nesse longo período de exílio que Dante dedicou-se as letras, escrevendo a maior parte de seus livros, incluindo a própria Divina Comédia. A qual ele concluiu somente em 1321, após longos anos trabalhando nela. Vindo a morrer naquele mesmo ano, entre 13 e 14 de setembro, aos 56 anos, de uma febre maligna. (BORZIN, 2018, 14-16).

Dante em exílio, autoria desconhecida. Exposta no Palácio Pitti, em Florença. 

Apresentada essa síntese biográfica, passaremos para comentar um pouco a respeito da Divina Comédia. Originalmente a obra era intitulada apenas Commedia, o adjetivo divina, foi concedido anos depois pelo poeta e escritor Giovanni Boccaccio (1313-1375), que era admirador do trabalho de Dante. Inclusive vale sublinhar que o conceito de comédia na época de Dante era diferente do nosso, por conta disso, as pessoas hoje estranharem o fato de sua obra não não ser cômica, embora contenha sarcasmo, sátira e um humor ácido em dados momentos. 

O poema é dividido em três partes: Inferno formado por 33 cantos e 4.716 versos; Purgatório composto por 33 cantos e 4.755 versos; e, Paraíso que possui 33 cantos e 4.754 versos. Sendo escrito em dialeto toscano e não em latim, que era considerado ainda a língua erudita daquele tempo. A versificação é baseada no terceto, onde as rimas encontram-se na última palavra do primeiro e terceiro versos. (POLILLO, 1964).

Nos 99 cantos que compõem a Comédia, testemunhamos a fantástica viagem do próprio autor, o qual inseriu-se nessa obra como seu protagonista, contando que iniciou sua jornada que durou uma semana, começando-a no dia 7 de abril de 1300. A condição de Dante colocar-se não apenas como narrador que descreve a história, mas como narrador que participa da ação, é uma característica própria desse poema, algo até mesmo incomum para o período, onde vigorava a condição de autores não assinarem suas obras, ou utilizarem pseudônimos, ou narrarem histórias vívidas por outras pessoas reais ou ficcionais.  

Apesar dessa característica interessante, onde o próprio autor coloca-se como personagem de sua obra, como se o livro fosse resultado de uma experiência vivenciada, fruto de uma viagem real ou espiritual, resultante de um sonho ou visão, algo que comentaremos adiante, a Divina Comédia é um livro repleto de muitas informações e influências, contendo referências da mitologia greco-romana, algo bastante visto no Inferno e Purgatório; referências cristãs canônicas e apócrifas, que são encontradas nas três partes; influências da filosofia escolástica e de crenças judaicas e árabes. Há também alusões a alquimia, magia, de crítica política, incluindo menções as disputas dos Guelfos e Gibelinos, e a rixa do autor com o papa Bonifácio VIII. E nesse ponto, insere-se a condição de que Dante incluiu vários personagens históricos, desde a Antiguidade até a época dele. Por fim, no livro do Paraíso encontramos referências a conceitos da astronomia e da astrologia.

Observa-se assim, como a Divina Comédia trata-se de um livro complexo, construído sobre várias tradições, ideias e saberes, e isso suscitou que ao longo de séculos, muitos estudiosos se propusessem a tarefa de analisar esses versos para compreender a riqueza de simbolismos e ideias que Dante conseguiu com maestria organizar para conceber seu relato, o qual no primeiro livro narra sua descida pelos Nove Ciclos do Inferno, sendo guiado pelo espírito do poeta Virgílio, depois eles chegam a Montanha do Purgatório, tendo que subir por seus Sete Terraços, para finalmente Dante poder ascender ao Paraíso, onde nesta última etapa de sua jornada, ele é guiado por sua amada Beatriz, pelos Dez Céus.

Apresentado algumas características da Divina Comédia, focamos nosso estudo em conhecer algumas das influências que Dante teve acesso para compor seu grande poema. Que no caso tratou-se da literatura cristã sobre o Inferno, Purgatório e Paraíso, estes mundos dos mortos que povoaram o imaginários dos povos europeus, lhes causando fascínio ou assombro, lhes satisfazendo a curiosidade de saber como seriam aqueles lugares que pouco eram descritos nas Escrituras. E partindo deste intuito, a seção seguinte apresentou as principais características de dois tipos de literatura religiosa medieval, a literatura apocalíptica e as visões.

A literatura apocalíptica: o caso dos apocalipses apócrifos

Em um primeiro momento pode se suscitar a estranheza ao ler-se literatura apocalíptica, pois não só existiria somente um livro do Apocalipse? Em termos canônicos, realmente somente existe uma descrição oficial do Apocalipse, a qual as igrejas cristãs, sejam a católica, as protestantes, as ortodoxas, a copta, entre outras, adotam como a revelação final que Deus concedeu ao profeta João de Patmos, as vezes considerado também João, o Evangelista, como sendo o autor dessa última profecia, que marca o fim dos tempos, o retorno de Cristo, o Armagedon, o Juízo Final e a conclusão do destino concebido por Deus para a humanidade. (BÍBLIA DE JERUSALÉM, 2017, p. 2140).

João de Patmos. Hieronymus Bosch, c. 1489. 

Mas embora o Apocalipse de João seja um livro profético e escatológico, contendo um linguajar massivamente simbólico, o que dificulta sua interpretação, no entanto, esse livro descreve o Paraíso, principalmente na figura da Jerusalém Celeste, porém, ele pouco nos esclarece a respeito do Inferno, limitando-se a informar que seria um local desagradável, sombrio, com fogo e enxofre, onde Satanás, os demônios e os condenados, sofreriam pela eternidade.

Esse relato escasso sobre o Inferno, tornou-se para os intuitos de conversão um problema, pois como convencer as pessoas de que se elas não seguissem os mandamentos de Cristo, estariam condenadas pela eternidade? E essa condenação era incrivelmente ruim. Para isso, surgiu a necessidade de criar-se um imaginário para o Inferno, melhorar as descrições do Paraíso, e eventualmente até criar-se um meio-termo, que veio a ser o Purgatório.

Mas esse apocalipse canônico que conhecemos como sendo o último livro bíblico, nem sempre foi um cânon, somente a partir do século XI recebemos a versão final, antes disso, houve uma variedade de apocalipses hoje considerados apócrifos, que por certo tempo até mesmo gozaram de serem aceitos legalmente pela Igreja Católica. E nessa profusão de outros relatos apocalípticos cujas características veremos a seguir, em alguns destacou-se descrições vívidas sobre os tormentos infernais e as bênçãos celestiais. (PIÑERO, 2007, p. 108-109).

Condições essas que foram uma característica da chamada literatura apocalíptica. Nesse ponto, salienta-se que nem todo relato apocalíptico contém profecias escatológicas, questão essa que em muitos dos apocalipses apócrifos não apresentam teor profético. (SOARES, 2008, p. 108). Mas em geral o que define esse gênero literário é o uso de uma linguagem metafórica e simbólica, menção aos mundos dos mortos (Inferno e Paraíso), relatando pessoas que para eles viajaram e descreveram o que ali viram. Em alguns casos, há a presença de profecias. (RAMOS, 2002, p. 45).

Entretanto existem alguns termos associados a essa literatura que podem gerar confusão, sendo estes: apocalíptico (gênero de literatura revelatória); escatologia apocalíptica (perspectiva religiosa, cosmovisão); e apocalipsismo (ideologia, movimento religioso social), os quais facilmente são confundidos no seu significado. (RAMOS, 2002, p. 46). Para nosso estudo, abordamos o primeiro termo que refere-se a este gênero literário que não foi uma invenção cristã, já que anteriormente os judeus e zoroastrianos já possuíam relatos apocalípticos, os cristãos apenas os usaram como referência para construir suas versões, o que incluiu até mesmo agregar elementos oriundos da mitologia grega, como se observa em alguns dos apocalipses apócrifos. 

Ao todo se conhecem 47 apocalipses, incluindo a versão canônica. Mas apesar dessa grande variedade, a maior parte dos apócrifos consistem apenas em fragmentos de algumas linhas, versos ou poucas páginas, escritos principalmente em grego e latim. Os apocalipses apócrifos mais famosos na Idade Média, foram os associados com Pedro e Paulo, os quais comentaremos na próxima seção, pois ambos tiveram influência na obra de Dante Alighieri. Mas qual teria sido a função desses relatos? Ela se limitaria apenas a descrever o Inferno e o Paraíso?

A literatura apocalíptica teve uma função teológica e moralista de apresentar um discurso de futuro, ordem, finalidade, salvação e justiça final. Tais informações eram transmitidas através das profecias, das falas de santos ou personagens bíblicos, e na descrição dos tormentos e das bênçãos. Condição essa que fez tais obras por algum tempo fossem utilizadas para prorrogativas de instrução de clérigos e leigos. Mesmo que não houvesse um consenso entre os bispos e doutores da Igreja. (LE GOFF, 1995, p. 45). Nesse ponto, Minois (2005, p. 141-142) assinala que somente a partir do século VI é que o papado começou a expedir decretos para combater os relatos apócrifos sobre o Inferno e o Paraíso, mas isso não surtiu efeito, pois nos séculos seguintes, tais relatos continuaram a serem produzidos e até mesmo seguiam sendo utilizados por padres em suas pregações.

A literatura das visões

A literatura apocalíptica cristã teria surgido no final do século I d.C. desenvolvendo-se nos séculos seguintes. Mas paralelamente ao seu desenvolvimento esteve outro tipo de gênero literário que compartilhava características em comum, os quais eram chamados apenas de visões (visio em latim). Este corpus literário, escrito em latim, grego e na vulgata, surgiram em diferentes países, e em alguns deles nota-se a presença de referências ao Purgatório, algo ausente nos apocalipses.

As visões são um gênero literário medieval bastante vasto, havendo dezenas delas, abordando várias ideias, o que dificulta conseguir definir com clareza suas características principais. Em geral as visões seguem algumas características em comum: geralmente são homens que vivenciam tais testemunhos, os quais através de sonhos ou de um momento de revelação ou êxtase, possuem a visão dos mundos dos mortos (Inferno, Purgatório ou Paraíso) ou de outras terras e épocas. No latim da época havia uma diferença para sonho (somnium) e visão (visio), sendo que o sonho seria um meio de se ter uma visão, a qual era considerada uma revelação religiosa. (GARDINER, 1993, p. 6-7).

Em alguns casos, as pessoas que testemunharam tais visões, relatavam que foram levadas por anjos ou santos, até esses mundos, o que significa que elas estiveram fisicamente lá. (GARDINER, 1993, p. 8-9). Tal condição nos faz lembrar da Divina Comédia, na qual Dante informa no Canto I, que ele desceu ao Inferno em companhia de Virgílio, ou seja, ele não foi para lá num sonho, ou teve uma visão do lugar, mas fisicamente estava lá. Característica essa que remonta a literatura de visões.

Todavia, o conceito de visão suscitou entre os pesquisadores uma problemática de definição e classificação, pois as visões em vários aspectos são parecidas com os apocalipses. Recordando que o próprio João no Livro de Apocalipse, capítulo 1, versículos 1 ao 13, disse ter tido uma visão. Sobre isso, Gardiner (1993, p. 10) escreveu que as visões possuem características em comum com a literatura apocalíptica, especialmente por em ambos os casos conterem relatos de pessoas que avistaram o Inferno e o Paraíso, fosse através de sonhos, ou viajando até lá, fisicamente ou espiritualmente. Todavia, as visões se diferenciam porque algumas citam o Purgatório, ou por mostrarem viagens a terras distantes e não apenas aos mundos dos mortos; por apresentar as testemunhas, informações sobre o passado, presente e as vezes sobre o futuro. As pessoas que vivenciam essas visões necessariamente não eram clérigos, mas em alguns casos, pessoas comuns.

Por tal comentário, as visões seriam até mesmo consideradas um “subgênero da literatura apocalíptica”. Aqui observa-se que as visões teriam um conteúdo um pouco mais amplo do que os apocalipses, os quais geralmente centram-se em figuras bíblicas, possuindo conexão com a ideia de Juízo Final, mesmo que necessariamente não apresentassem profecias. Por sua vez, as visões focam-se em relatar a experiência pessoal das testemunhas e como isso afetava suas vidas. (GARDINER, 1993, p. 11-12).

Tendo explanado de forma breve a diferença entre os dois tipos de gênero literário, que apresentam características do fantástico, sobrenatural e do religioso, na próxima seção escolhemos alguns exemplos de apocalipses e visões, os quais apresentam influências sobre a Divina Comédia, onde percebe-se que Dante leu tais manuscritos na época, e coletado informações e ideias para criar suas versões do Inferno, do Purgatório e do Paraíso.

As influências de Dante

Para os estudiosos da Divina Comédia não é dúvida que este longo poema tenha se inspirado nos relatos dos apocalipses apócrifos e nas visões sobre o Inferno, Purgatório e Paraíso. No entanto, para o grande público, essa informação ainda é desconhecida ou pouco explicada, condição essa que ainda há gente que considera que Dante tenha inventado sozinho muitas das descrições, ou simplesmente adaptou relatos da mitologia greco-romana. Sendo assim, nessa seção, a proposta foi dividi-la em três partes abrangendo o Inferno, o Purgatório e o Paraíso, no intuito de fazer alguns comentários comparativos entre alguns apocalipses e visões que influenciaram Dante Alighieri.

O Inferno

O livro do Inferno é a parte mais conhecida da Divina Comédia, sendo a que apresenta uma maior riqueza de detalhes, referências e simbolismos, além de abordar um assunto que fascina e assombra as pessoas: como seria o Inferno? Se anteriormente como comentado, onde citamos que na Bíblia haja descrições do Paraíso, mas em compensação, sobre o Inferno praticamente nada é descrito, apenas que se enfatiza que seja um lugar terrível. Porém, a curiosidade das pessoas sempre buscou respostas, e relatos sobre como seria o Inferno, quais tormentos existiriam ali, que tipos de pecados seriam punidos, eram indagações que interessavam os cristãos dos primeiros séculos e continuou a interessá-los nas épocas posteriores.

Dante e Virgílio observam os pecadores sendo castigados no Inferno. Uma das ilustrações clássicas de Gustave Doré para uma edição da Divina Comédia, no século XIX. 

Além de ser uma informação necessária para a pregação. Pois como explicar para povos em processo de cristianização que o Inferno era um lugar ruim e o Paraíso um lugar bom? Algumas pessoas podem até se satisfazer com explicações breves, mas outras possuíam mais dúvidas. E essa indagação também valeu para a própria imagem do Diabo, cujo visual foi sendo construído no medievo. (BASCHET, 2006, p. 319).

Sendo assim, para falar sobre o Inferno, recorremos a alguns apocalipses os quais Dante poderia ter lido diretamente algum manuscrito, ou obtido informação sobre esses a partir de outras fontes. (EASTING, 1997). Dessa forma, iniciamos pelo Apocalipse de Pedro, obra de autoria anônima, escrita entre o final do século I e começo do século II, talvez em Alexandria. Esse relato apresenta duas principais versões, uma em grego koiné e outra em grego etiópico, sendo a segunda contendo mais palavras e algumas alterações. Nessa obra há descrições do Inferno e do Paraíso, e tem como personagem central o próprio apóstolo Pedro, que na narrativa visita ambos os locais e os descreve. (LE GOFF, 1995, p. 52).

O Apocalipse de Pedro foi bem conhecido na Idade Média, tendo sido traduzido para outros idiomas, e influenciado outros apocalipses e visões. Sua descrição do Inferno é extensa e compreende a maior parte da narrativa. O primeiro deles é a condição desse apocalipse focar bastante no uso de fogo (algo baseado no relato bíblico) para punir os blasfemadores, adúlteros, injustos, perseguidores, mentirosos, agiotas, idólatras e apóstatas, os quais eram punidos num lago de lava. (PIÑERO, 2007, p. 240). Neste apocalipse também informa que apesar do uso de fogo, cada tipo de pecado era punido em local distinto, embora a narrativa não detalhe essas divisões, mas é um dos primeiros apócrifos a sugerir que haveria zonas no Inferno, atribuídas para cada tipo de pecado.

Na Divina Comédia não temos menção a lava, embora que os pecados citados acima, estejam presentes no poema, sendo punidos de diferentes formas. Porém, no Sétimo Ciclo, faz menção ao rio de fogo chamado Flegetonte (um dos rios do Hades, na mitologia grega), onde punem-se os blasfemadores, sodomitas (homossexuais) e usurários. No caso dos blasfemadores e usurários, nota-se uma correlação com o relato do Apocalipse de Pedro. Percebe-se que a influência é pequena, mas retornaremos a essa fonte posteriormente quando abordarmos o Paraíso.

A próxima obra que abordamos foi o Apocalipse de Paulo, cuja versão mais antiga teria sido escrita em grego, datando do século III, tendo se tornado bastante popular, recebendo traduções para o latim, eslavo, etíope e siríaco. Essa obra descreve a suposta viagem de Paulo ao Inferno e Paraíso. (PIÑERO, 2007, p. 235). No Apocalipse de Paulo temos algumas informações interessantes: o santo enquanto estava visitando o Inferno disse que viu uma imensa fornalha, com sete chamas de várias cores e ao redor dessa fornalha encontrava-se sete zonas: a primeira de neve, a segunda de gelo, a terceira de fogo, a quarta de sangue, a quinta de serpentes, a sexta de raios, a sétima de fedor.

É interessante que nesse relato temos o Inferno já dividido em zonas, onde em cada uma, um tipo de pecado era punido, apesar que Paulo não especifique com clareza essa divisão, embora diga que viu rios de lama, onde estavam enterrados os pecadores como adúlteros, caluniadores, violentos, usurários, interesseiros etc. Em outros lugares, os pecadores eram torturados por demônios, serpentes e dragões. Porém, nota-se que também há uma concepção organizada do Inferno, e até melhor explicada da qual vista no Apocalipse de Pedro, que lhe é anterior e considerado uma de suas fontes de inspiração.

Não obstante, a ideia de um Inferno dividido em várias zonas é claramente encontrada na Divina Comédia, onde Dante divide sua versão em zonas, chamadas de Círculos ou Ciclos (cerchio no original), totalizando nove delas. Além disso, a ideia de ter pecadores enterrados em rios de lama é vista também no inferno dantesco, no Canto VII, relata a visita de Dante e Virgílio ao Quinto Círculo, onde eles chegam ao lago Estíges (outro dos rios do Hades), o qual se parece mais com um pântano lamacento, onde se encontravam os violentos.

O barco de Dante, Eugène Delacroix, 1822. Nessa pintura temos Dante e Virgílio atravessando o lago Estiges, em que os pecadores que cometeram ira brigavam entre si. 

No entanto, há outro dado interessante no Apocalipse de Paulo, que consiste na presença de gelo e neve. A narrativa informa que haveria no Inferno uma região fria, mas que se situava numa zona dividida pelo fogo e gelo, onde eram punidos os pecadores que maltrataram órfãos e viúvas. A ideia de haver gelo, neve e frio no Inferno é algo que inexiste na Bíblia, tendo surgido com os relatos apócrifos. Na Divina Comédia também encontramos a presença de tais elementos, os quais são vistos no Canto XXXII, já no final do livro do Inferno, onde narra-se a chegada de Dante e Virgílio ao Nono Ciclo, no qual são punidos os diferentes tipos de traidores, e onde encontra-se o próprio Diabo em pessoa.


Dante e Virgílio diante dos traidores no lago de gelo do Cócito, no Nono Ciclo. Ilustração de Gustave Doré, séc. XIX. 

Outro elemento presente no Apocalipse de Paulo e que aparece na Divina Comédia é a ideia de poços contendo pecadores que eram torturados. No relato do apocalipse, Paulo vê homens e mulheres sendo devorados por serpentes, e ali eram punidos aqueles que negaram a conversão. Na Divina Comédia há várias menções a poços, mas a principal encontra-se no Oitavo Ciclo, que é descrito ao longo de alguns capítulos, onde situam-se os malebolges, em número de dez, nos quais punem-se pecados associados com a fraude, a malícia, a trapaça e a mentira.

O terceiro exemplo que citamos para o Inferno é a Visão de Túndalo (Visio Tnugdali), escrita no século XII, e que se tornou uma narrativa popular, sendo bastante conhecida posteriormente. Redigido em latim por um monge chamado Marcos, o manuscrito narra a história de Túndalo, homem que vivia na Irlanda, que entre os dias 3 e 6 de novembro de 1148, esteve num profundo sono, a ponto que sua alma saiu do corpo e foi guiada por um anjo ao Inferno, onde lhe é apresentado aos terrores ali contidos. Apesar que depois Túndalo foi levado ao Paraíso, antes de despertar. (EASTING, 1997, p. 70-71).

Nessa visão não se descreve o Inferno dividido em zonas, apenas relata-se diferentes pecados e suas punições, que no caso, são enumerados nove tipos de pecados. E o interessante é que Túndalo e o anjo viajam sempre na direção do centro do Inferno, onde é dito residir o Diabo. Algo que encontramos paralelo na Divina Comédia, na qual Dante e Virgílio passam por nove etapas para chegar ao centro do Inferno.

Outras duas características que destacamos são a menção novamente a existência de neve e gelo – algo citado anteriormente –, e a existência de um monstro que não é identificado, o qual devoraria os pecadores, que seriam punidos no estômago da besta, sofrendo de frio, fogo e outros males não descritos. Aqui fazemos um paralelo com o poema dantesco, reportando-se ao Canto VI, em que descreve o Terceiro Ciclo, onde habita Cérbero, o cão de três cabeças da mitologia grega, o qual devorava os pecadores que cometeram gula. Nota-se semelhanças entre ambos os relatos.

Uma outra visão que destacamos é a Visão de Frei Alberico do Settefrati, redigida no século XII, e atribuída ao monge Guido de Monte Cassino, na Itália. Essa história narra que Alberico na idade de 10 anos, esteve em coma que durou nove dias e nove noites, e durante tal estado, sua alma foi guiada ao Inferno e o Paraíso por São Pedro e dois anjos chamados Emmanuel e Hélios. (GARDINER, 1993, p. 50).

Em sua narrativa sobre o Inferno, ele descreve vários locais e punições, mostrando a ideia de um Inferno organizado e dividido. Alberico relata que viu gelo, neve, lagos de fogo, poços, serpentes, dragões e demônios, elementos já vistos em outros apocalipses e visões, e também encontrados na Divina Comédia. No entanto, sublinhamos aqui um dado novo, pois Alberico ao chegar ao Inferno, o primeiro local que visitou, era uma região onde estavam as crianças não batizadas. Este local na doutrina católica trata-se do Limbo, e que no Inferno de Dante, consiste no Primeiro Ciclo, onde habitaria além das crianças não batizadas, todos aqueles pagãos e judeus virtuosos que viveram antes de Cristo, como o próprio Virgílio, o qual guia Dante nessa jornada.

O Purgatório

A doutrina do Purgatório que esteve vigente até o começo do século XXI, quando foi abolida pelo papa Bento XVI, consistiu ao longo de séculos uma crença difundida por parte da cristandade, sobretudo os católicos e ortodoxos, consistindo em um mundo dos mortos que agia como meio-termo entre a danação do Inferno e as bonanças do Paraíso. No caso de Dante, ele foi influenciado principalmente por referenciais mitológicos greco-romanos e aspectos das doutrinas do Purgatório, redigidas por teólogos como Agostinho de Hipona, Gregório Magno e Tomás de Aquino. (SARDAGNA, 2006). Neste caso, sublinha-se que o Purgatório de Dante teve pouca influência dos apocalipses apócrifos, mas uma influência maior de obras teológicas e visões.

Na Divina Comédia o Purgatório consiste numa altíssima montanha que ficaria situada no lado oposto do mundo em meio a um oceano, sendo essa montanha dividida no Antepurgatório (que se subdivide em três partes, sendo a área que acolhe as almas e as sentenciam), em seguida sobe-se para o acesso que leva aos Sete Ciclos ou Terraços (cornice no original), que conduziam até um jardim no topo, que consistia na porta de entrada para o Paraíso Terrestre. Cada terraço corresponde a um dos Sete Pecados Capitais, onde os pecadores que cometeram tais pecados, eram punidos de forma “branda”, enquanto aguardavam sua absolvição. Dante e Virgílio sobem por estes terraços até chegarem ao jardim.

Representação da Montanha do Purgatório, segundo descrita na Divina Comédia. 

Agostinho de Hipona (354-430), não nos forneceu em seus vários escritos que redigiu sobre o Purgatório, uma descrição em detalhes de como seria aquele lugar, limitando-se a explicar que seria escuro, mas ali ardia um fogo “purificador”, o qual purgava os pecados dos cristãos, e após essa “limpeza espiritual”, eles estariam aptos a irem ao Paraíso. (LE GOFF, 1995, p. 85-105). No que tange os relatos de Agostinho sobre o Purgatório, o que se encontra na Divina Comédia é apenas a relação com o fogo purificador, o qual aparece brevemente citado nos Cantos XXV e XXVI, onde é narrado que os luxuriosos eram punidos com fogo, no Sétimo Terraço, pois Dante descreve diferentes tormentos para os demais pecados.  

O papa Gregório, o Grande (540-604), que além de ter redigido sobre o Purgatório, também definiu a lista dos Sete Pecados Capitais, também defendia que o Purgatório ficaria situado acima do Inferno, algo visto também no poema dantesco. (DRUMMOND, 2014, p. 52-53).

Todavia, na Idade Média, o Purgatório em alguns casos era descrito contendo tormentos similares aos encontrados em relatos sobre o Inferno. Um dos relatos mais conhecidos sobre o Purgatório trata-se do Tratado do Purgatório de São Patrício, redigido no século XII, na Irlanda, sendo de autoria anônima, cujo relato credita a um cavaleiro chamado Owein, a viagem até o Purgatório, situado numa ilha em um lago. Destacamos algumas referências em comum com a Divina Comédia.

Uma primeira semelhança breve, entre as duas descrições do Purgatório, é sua associação com a água. Owein usa um barco para cruzar um lago, já Dante e Virgílio também usam um barco, mas atravessam um oceano. Em ambos os casos o Purgatório fica situado em ilhas, a diferença é que no primeiro exemplo, ele está localizado no subterrâneo, e no segundo consiste numa montanha, a qual simbolicamente coaduna com a ideia de ascensão espiritual, à medida que Dante vai sendo expurgado de seus pecados para poder chegar ao Paraíso terreno.

Outra referência ocorre no capítulo X do Tratado, em que Owein descreve ter visto pecadores arranhando a terra, e estando com pregos cravejados em suas mãos e pés (algo que lembra a crucificação de Cristo). Não é mencionado o tipo de pecado que eles cometeram, mas na Divina Comédia, no Canto XIX, o qual aborda a punição aos avarentos, eles padecem de forma similar. Por sua vez, no capítulo XXI do Tratado, Owein sai do Purgatório é chega a um belo jardim que seria o prenúncio do Paraíso, algo que lembra a condição de Dante também chegar a um jardim e a partir deste poder ascender aos Céus.

Dante e Beatriz à margem do Letes. Cristóbal Roja, 1889. A pintura retrata quando os dois amantes platônicos se reencontram no Paraíso terrestre, no topo do Purgatório. Virgílio os observa. Ao fundo vem-se outros pecadores expurgados, que preparam-se para ir ao Paraíso. 

Paraíso

O Paraíso consiste na parte final da viagem de Dante, a qual ele realiza ao lado de sua amada musa, Beatriz, encontrando vários santos, reis e heróis da Antiguidade, mesmo aqueles que não foram cristianizados, ainda assim, por suas virtudes receberam a permissão de viverem em um dos Céus. Dante divide o Paraíso em Dez Céus ou Esferas (cielo e sfere no original), os quais recebem os nomes dos planetas conhecidos na época: (Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno, exceto a Terra), da Lua e do Sol. Os outros três céus são chamados de Estrelas Fixas, Primum Mobile e Empíreo. Sendo que neste último residia o próprio Deus, sendo um céu fixo, pois segundo a concepção astronômica vigente naquele período, os outros céus eram móveis.

Os dez céus citados na Divina Comédia e outros dados astronômicos. Bartolomeu Velho, 1568. 

Nesse livro, nota-se claramente influências da astronomia da época, a qual ainda era baseada nas ideias de Aristóteles (384-322 a.C.) e Ptolomeu (90-168). Além disso, Dante se inspirou na própria Bíblia, com suas descrições sobre os Céus e o Paraíso. Ele também teria utilizado referências de textos apócrifos como o Livro de Enoque, conhecido por relatar a viagem desse profeta, feita ao Paraíso, além de remeter-se a conceitos escolásticos e filosóficos romanos sobre temperança, virtude, sabedoria e justiça, para classificar os habitantes das Nove Esferas. Todavia, Dante em seu relato não cita nenhuma cidade celeste como visto no Apocalipse de João, no Apocalipse de Paulo e em outros relatos, um diferencial de sua versão sobre o Paraíso.

O relato do Paraíso no Apocalipse de Pedro é breve, e o que destacamos é a condição dessa narrativa basear-se na mitologia grega para descrever o Paraíso, comparando-o aos Campos Elísios. Na Divina Comédia, Dante também faz referência a esse lugar, citando belos prados com flores, mas a principal referência encontra-se no rio Letes, que nos mitos gregos era o rio do esquecimento, situado nos Elísios, onde as almas bebiam de suas águas para se esquecer de suas vidas e culpas. Essa ideia é conservada por Dante, mas modificada um pouco, pois o Letes como informado no Canto XXXI do Purgatório, torna-se também um rio de purificação para aqueles que se encontravam na montanha do Purgatório.

Já a descrição do Paraíso no Apocalipse de Paulo também é breve, e divide este lugar em três céus, sendo que no primeiro ficaria a Cidade de Cristo, uma referência a Jerusalém Celeste na Bíblia. Porém, excetuando-se as descrições de belas paisagens, coros de anjos e almas vestidas de branco, o relato do Paraíso desse apocalipse pouco possui de paralelo com a Divina Comédia. Com isso passamos para a próxima fonte.

Na Visão de frei Alberico o protagonista também viajou ao Paraíso, subindo por uma escada da mesma forma que Enoque. Ali ele relatou ter visto belos prados com rios de águas límpidas e campinas cheias de flores. Características essas presentes na Divina Comédia como comentado. No entanto, a maior influência que destacamos aqui é o fato que nesta visão o Paraíso é dividido em sete céus, os quais são nomeados e associados aos planetas, algo presente no poema dantesco.  E embora outros relatos citem a existência de mais de um céu, essa visão em particular é um dos poucos que fornecem nomes para cada uma dessas zonas.

Na Visão de Túndalo também existem exaltações as belezas do Paraíso, as virtudes, aos anjos, santos, profetas, virgens e mártires, algo visto nas obras de Alberico e de Dante. Neste relato também se menciona a existência de nove coros angelicais, algo visto em outras obras e citado também no Canto XXX do Paraíso. Túndalo também informa que conversou com os anjos e santos, destacando São Paulo, São Pedro, São Patrício e São Ruadano. Sublinha-se que na Divina Comédia, Dante e Beatriz conversam com vários santos também. Um dado a ser destacado, pois em outras visões e apocalipses, poucos santos são mencionados, ou as vezes nem se citam seus nomes.

Fresco mostrando Dante e Virgílio conversando com São Tomás de Aquino, São Alberto Magno, o filósofo Pedro Lombardo e o filósofo Siger de Brabante, na Esfera do Sol. Pintura de Philip de Veit, 1817-1827. 

Tanto as visões de Alberico e de Túndalo enfatizam bastante a presença de música e dança, como respaldo para a alegria dos salvos e para a adoração de Deus. Nessas duas visões ambos os personagens contam terem visto grandes e belos coros de anjos e santos. E um dado interessante é que nestas visões não há menções a uma cidade celeste, algo visto nos apocalipses de João e Paulo, o que torna as duas visões, nesse sentido, mais próximas das descrições contidas no Paraíso de Dante.

No Tratado do Purgatório de São Patrício, o cavaleiro Owein também chegou ao Paraíso. O interessante que antes de adentrar neste, ele ficou diante de uma montanha e um anjo pediu para ele olhar para o céu e pediu que o cavaleiro descrevesse sua cor, e esse diz ser dourado. Nesse trecho da narrativa, identificamos um paralelo com a Divina Comédia, pois Dante também avista uma montanha – que é o Purgatório –, e sobre essa encontra-se a entrada para o Paraíso. Mas diferente de Dante, o cavaleiro permanece pouco tempo no céu, apenas tendo um vislumbre de suas maravilhas e dádivas, então é enviado de volta para sua casa, enquanto Dante prossegue com sua jornada.

Considerações finais:

Encerramos nossos comentários comparativos entre dois apocalipses apócrifos, que foram os de Pedro e Paulo, por serem os mais extensos e influentes no medievo, embora existam outras dezenas de apocalipses, mas devido a serem relatos fragmentados, optamos em não os usar como fonte de comparação. Por sua vez, nos reportamos a quatro visões redigidas no século XII, período áureo para a produção desses relatos, pois coincidiu com a época de movimentos milenaristas que anunciavam o Anticristo, o Armagedon, o Apocalipse e o Juízo Final. (FRANCO JR, 1999, p. 38-46). E neste cenário religioso de dúvidas, preocupações, medos e expectativas, histórias sobre homens comuns que viajaram aos mundos dos mortos e retornaram para relatar as maravilhas e assombros que viram, se tornaram atrativos principalmente pela curiosidade, pois as pessoas acreditando que o Juízo estivesse próximo, elas em alguns casos, passaram a se preocupar quanto ao seu destino e queriam ter uma ideia do que estava porvir.

Não obstante, ficou evidente que Dante Alighieri inspirou-se em apocalipses apócrifos e relatos de visões, algo já conhecido pelos estudiosos dessa obra, mas as vezes não trabalhado com clareza. E com isso decidimos apresentar algumas dessas influências e referências. Mostrando que várias ideias presente na Divina Comédia, já circulavam no medievo, as quais algumas não eram novidade, sendo parte do imaginário religioso daquele período, mas Dante as reuniu e lhe concedeu nova forma para compor sua jornada espiritual.

Nesse sentido, observamos que a estrutura da Divina Comédia seja mais próxima das visões do que dos apocalipses apócrifos, pois embora nestes haja a jornada física ou espiritual dos protagonistas, mas geralmente tratam-se de personagens bíblicos, e em alguns casos eles não viajaram até o Inferno e o Paraíso, apenas avistaram tais lugares como ocorreu João no apocalipse canônico e até mesmo Paulo em algumas versões do apocalipse que recebe seu nome. E nesses apocalipses alguns apresentam profecias, algo ausente na literatura de visões e na própria Divina Comédia.

No entanto, nas visões foi mais comum os protagonistas ou narradores, irem ao Além, visitando fisicamente ou espiritualmente por meio de sonho ou visão, tais mundos dos mortos. E esses homens geralmente são pessoas comuns como um frade, um cavaleiro, um camponês, o que os tornam em personagens mais próximos da população, além da condição de não serem santos, e foram ali devido aos seus pecados, para que aprendessem com seus erros. O que Le Goff (1995, p. 60) chamou de exemplum, o que consistiu em uma narrativa de origem greco-romana usada para fins políticos. Foi adaptada pelos cristãos para se tornar instrumento de evangelização. No século XII voltou a se popularizar, trazendo elementos “supostamente” verídicos para serem usados como motivos de um discurso moral e religioso, geralmente associado ao pecado e virtude.

E essa condição está presente na Divina Comédia, pois Dante Alighieri como autor de sua jornada, isso o coloca na categoria de personagens encontrados na literatura de visões, pois Dante era naquele momento, um político e poeta, com suas dúvidas e problemas e que teve a oportunidade de realizar aquela viagem. Aqui sublinhamos que nas visões era comum também os protagonistas apresentarem algum problema, seja medo, frustração, dúvidas, falta de fé, e depois da jornada, eles recuperaram sua fé e procuravam mudar seus comportamentos.

Nos exemplos que utilizamos, isso ocorreu com Túndalo e Owein, e de certa forma com Alberico também, apesar que ele era criança quando teve seu sonho, mas aquilo o motivou a se tornar frei. No caso de Dante, embora o final do seu livro não informe que ele tenha voltado para casa, mas nota-se que ele passou por uma transformação espiritual ao longo de sua jornada que durou uma semana no Além, a qual permitiu ele recuperar sua dignidade e fé e assim poder concluir sua divina aventura estando diante de Deus.

Outro ponto que sublinhamos é a característica que nos apocalipses e visões apresentados, os protagonistas sempre são guiados por anjos ou santos. Alguns possuem nomes, outros não tem identidade definida, mas Dante quebrou com esse modelo e colocou o poeta Virgílio para atuar como seu guia. Trata-se de uma referência a sua obra maior, A Eneida, onde o protagonista Eneias também visitou o Inferno. E ele foi guiado por uma advinha chamada Sibila.

Além disso, Dante informou em sua jornada a data que ela ocorreu e o tempo em que passou viajando, essa característica é encontrada mais comumente nas visões do que nos apocalipses, e em alguns casos, informa-se apenas o tempo que o protagonista esteve fora, mas em outros exemplos como na Visão de Túndalo, é informado o suposto dia que teve início sua visão. E Dante fez o mesmo com seu poema para conceder credibilidade ao relato, pois como assinalado por Le Goff, tais obras eram consideradas por algumas pessoas, como sendo acontecimentos verídicos.

Embora não saibamos por quais intenções Dante forneceu tais informações sobre datas, se ele achou que isso poderia gerar credibilidade ao seu poema, é sabido que ele não viveu para conhecer a repercussão de seu livro, cabendo aos seus admiradores e críticos a missão de difundir essa obra que tornou-se o maior legado da literatura apocalíptica e de visões.

Fontes:

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Link relacionados:

A Comédia de Dante

Os Sete Pecados Capitais