terça-feira, 21 de setembro de 2021

Paulo Freire, sua vida, sua obra

 Paulo Freire, sua vida, sua obra


Ana Maria de Araújo Freire


Obs: As imagens a seguir e os grifos foram escolhidos por mim, para ilustrar o texto da autora. 

Foi muito satisfatório o convite para realizar uma palestra sobre Paulo Freire e dessa forma comemorar a sua (de Paulo Freire) presença.

A coincidência de ser Recife a cidade escolhida para a realização de tal evento foi muito emocionante, pois trata-se da cidade natal de Paulo Freire, além de a data escolhida coincidir com a data de seu falecimento. Mais gratificante ainda, é saber que tudo isso vem ao encontro do interesse em conhecer a vida e a obra de Paulo Freire.

Mais ou menos há um ano, Paulo Freire sentiu angina1 e foi levado para o hospital, saindo de lá depois de um dia e meio, levando consigo um diagnóstico pouco animador, pois seu caso era sério, e teria que se submeter a um tratamento depois da angeoplastia2. Paulo Freire tinha parado de fumar há dezessete anos e dizia que a “única coisa” que ele odiava era o cigarro; tinha todo o sistema circulatório comprometido, há mais de dez anos os rins funcionavam com dificuldades, pois havia tido uma isquemia3 no cérebro, felizmente não houve seqüelas. Passa mais três dias em casa e depois vai para o hospital Albert Einsten de onde não saiu com vida.4

A vida e a obra de Paulo Freire confundem-se, pois não escreveu sobre coisas abstratas ou distantes; que ouviu falar. Escreveu sobre o óbvio, o cotidiano, sobre aquilo que se via(que ele via), que se observava(que ele observava), que se escutava(que ele escutava) e o que se sentia(o que ele sentia) todos os dias.

Para se recuperar a vida e a obra de Paulo Freire, deve-se, antes de mais nada, recuperar a sua história de vida, e como foi a sua vida.

Nasceu no Bairro da Casa Amarela, hoje Parmeneri, ou como Paulo Freire gostava de dizer “Estrada do Encanamento, 724”, no dia 19 de setembro de 1921. Seu pai foi Tenente da Polícia Militar de Pernambuco e sua mãe, como ela própria se designava: era de “prendas domésticas”5.

Paulo Freire tinha profunda atenção pela paciência, tolerância e capacidade de amar de seus pais. Sua mãe era católica e seu pai espírita kardecista e sempre tolerou (aceitou) que o catolicismo fosse ensinado e incentivado à Paulo Freire por parte de sua mãe. Ele dizia: “Eu aprendi o amor e a tolerância com meus pais” e foram, entre tantas, duas de suas maiores qualidades.

Quando relembrava de sua infância, dizia: “Eu aprendi a ler na sombra da mangueira no quintal dessa casa, meus pais, sobretudo minha mãe; ela pegava os pequenos gravetos, e escrevia palavras, escrevia frases de minha vida cotidiana, daquilo que eu estava presenciando, que eu estava vivendo”. Dessa maneira aprendeu, já na infância, que a vida deve ser tratada na sua concretude, que o ato de educar vem da solidez da própria vida.

O salário de seu pai era muito baixo. Viviam na mesma casa, além de Paulo e três irmãos, seus pais e a avó materna, que tinha outro filho, chamado Clodoválio, que havia ido para o Rio de Janeiro, sendo bem-sucedido como comerciante; mandava dinheiro todo mês para a mãe, que era repartido entre todos da casa.

Mas com a quebra da Bolsa, ou melhor, Capitalismo da Bolsa de Nova Iorque em 1930, seu tio (Clodoválio) foi à falência, e neste momento a família achou que indo para Jaboatão teria mais oportunidades e ficaria melhor.

No livro “Crônicas de Minha Vida” (Paulo Freire e A.M. Araújo), Paulo Freire descreve a sua infância, abertura e amor que recebia/existia neste ambiente  fraterno, em sua casa, e a dureza de sobreviver com o mínimo de condições financeiras que o seu pai podia oferecer; relata as viagens que seu pai fazia pelo sertão para trazer produtos para abastecer uma pequena venda, o que deveria servir para aumentar a renda da família, porém, praticamente nada era vendido.

A casa em que moravam também era desse seu tio Clodoválio, era uma casa amarela, não tinha parede até o teto; “meia parede” como se usa muito no Nordeste.

Com nove anos, Paulo Freire já tinha noção de “toda” situação em que se encontrava sua família, pois ouvia os pais “discutindo”, tentando achar uma maneira para trazer mais alegria para casa. “Um dia eles descobrem o que achavam que ia ser a salvação da família”

Paulo Freire com seus dez anos. Nessa época, ele começou a vender rapadura para ajudar a família. 

“Seu” Joaquim ia buscar rapadura na zona açucareira para vender em Recife (Paulo Freire descrevia esses momentos com muito sofrimento). O Brasil nessa época encontrava-se em um grau de dificuldade muito grande, tanto para aqueles de classe média, alta e principalmente os de classe baixa, onde se incluía a família de Paulo Freire.

Depois da “jornada de trabalho” de seu pai, Paulo Freire fazia o mesmo trajeto para também tentar vender rapadura, escondido de seu pai, para que ele não se sentisse humilhado. Seu pai “dizia” “intocada pilha de rapaduras”, Paulo Freire tinha pouco mais de dez anos de vida nessa época de tantas dificuldades.

Quando mudaram para Jaboatão, Paulo Freire disse: “Foi o segundo exílio”. “Tive três exílios que me fizeram sofrer, o exílio de sair do útero de minha mãe, o exílio de ter ido para Jaboatão e o exílio político que me fez ficar dezesseis anos fora do País”.

A pobreza toma conta da família, Paulo Freire perde o pai aos treze anos e diz ironicamente: “Morando no Morro da Saúde em Jaboatão!”

Nessa época, para dar continuidade aos estudos feitos com sua mãe, fez o “primário” numa escola particular, que se chamava “Escola Eunice Vasconcelos”, completando seus estudos (primários) em Jaboatão.

Está escrito em uma das notas da “Pedagogia da Esperança” da importância deste tempo vivido por Paulo Freire em Jaboatão, “Jaboatão foi um espaço/tempo de aprendizagens, de dificuldades e de alegrias vividas intensamente, eles ensinavam a harmonizar o equilíbrio entre o ter e o não ter, o ser e o não ser, o poder e o não poder, o querer e o não querer... Forja-se assim Paulo Freire na Disciplina Esperança”.

Por este tempo, havia poucas escolas secundárias oficiais em Jaboatão e as poucas que tinham, sem grau de qualidade particulares. Fez o primeiro ano secundário no colégio “14 de Julho” que funcionava no bairro São José em Recife, que na realidade não tinha licença oficial para funcionar, era o prolongamento do colégio “Francês Chateaubriand”, ficava na Rua da Harmonia, 150, Casa Amarela, era onde se realizavam os exames finais, este colégio já não existe mais. Terminado este primeiro ano, sua mãe lhe diz: “Olha Paulo, não temos mais possibilidades de pagar qualquer coisa que seja para você estudar”. Tinha dezesseis anos de idade, quando havia terminado, o que se chamava na época, primeiro ano fundamental, portanto, estava bem atrasado nos estudos em função das dificuldades financeiras que se encontrava a família.

Sua mãe viajava quase todos os dias, de Jaboatão à Recife procurando escolas, ia à colégios e escolas, a resposta era sempre a mesma “não temos a possibilidade de oferecer o ensino gratuito”, por este tempo não existia a “bolsa de estudos”. O “tempo” era de dificuldades.

Um dia sua mãe toma uma decisão e diz: “Não retornarei mais a Recife porque o bilhete do trem é muito dinheiro para tirar do orçamento”. Nos dias atuais cerca de um real, e continua “não tenho mais para tirar do orçamento”. Vivia da pequena pensão; seu pai já estava morto; e de bordados que fazia para vender. Bordava enxovais, “para as moças ricas de Jaboatão e Recife”, como dizia Paulo Freire.

Algo muito especial aconteceu neste dia que iluminou Paulo Freire e ele diz: “Minha mãe, eu lhe peço mais uma vez, a última vez, vá a Recife procurar”. Ela veio no fim da tarde, como era de costume, ele foi esperá-la na estação ferroviária de Jaboatão e ela lhe diz: “Encontrei uma escola para você estudar; olha, o doutor Aluízo disse que tinha uma única condição: que você fosse estudioso e ele me perguntou: ‘ele quer estudar mesmo?’” Então sua mãe respondeu “Quer”.

Foi este homem (Dr. Aluízio)6 com seu coração enorme, sua generosidade imensa, fazia do colégio “Osvaldo Cruz” em Recife uma escola privada “dele”, por outro lado uma escola pública, onde nunca negou estudo a quem lhe fosse pedir.

Aos dezesseis, quase dezessete anos, Paulo Freire vai estudar neste colégio para fazer o segundo ano de ginásio.7

Um dia Paulo Freire vai até o diretor do colégio e diz “Doutor Aluízio, eu estou aqui há mais de três anos estudando, só recebendo e eu gostaria de dar alguma coisa”. Dr. Aluízio tinha um “tic”, dizia “Olha aqui, olha aqui”; pensou e disse “Paulo, Genove8 está precisando de um auxiliar de chefe de disciplina”, então Paulo Freire pensou “Meu Deus, chefe de disciplina, logo eu!”, não teve coragem de dizer não ao trabalho. Foi o seu primeiro emprego, ajudando o inspetor de alunos.

Com a sua inteligência e o gosto que tinha pelos estudos, cinco anos mais tarde, forma-se professor desse mesmo colégio.

Neste tempo, Paulo Freire morava em Jaboatão, em seguida volta à Recife para lecionar. Já cursando a Faculdade de Direito em Recife, começa a ensinar em outros estabelecimentos de ensino.

Paulo Freire trajando a beca do Bacharelado em Direito, em 1947. 

Começou a cursar direito em 1943 e formou-se em 1947, teve uma única causa, logo depois de ter aberto um escritório com alguns colegas. Sua primeira e única causa era a seguinte: Um credor pedia para confiscar todos os instrumentos de um dentista que devia aluguel há meses da sala onde ele atendia como dentista. Paulo Freire ao saber daquilo se sentiu constrangido e foi conversar com o dentista, que lhe diz:

“Doutor não faça isso, se o senhor me tira os instrumentos como é que eu vou trabalhar se o que eu ganho mal dá para sustentar minha mulher e meu três filhos, eu não estou podendo pagar o aluguel, não que eu não seja sério, é que eu não posso. Se o senhor me tira os aparelhos o que é que vai ser da minha vida, como é que eu vou chegar em casa e dizer para minha mulher que eu não tenho mais como trabalhar?”. Diante desta situação, Paulo Freire respondeu : “Fique sossegado, vai aparecer outro advogado aí”. Foi embora, ao chegar no escritório, disse: “Eu não vou ser mais advogado coisa nenhuma, eu vou embora para casa!”.

Paulo Freire já havia se casado, sua primeira esposa foi Elza Maria Costa9, professora primária, e ela lhe diz: “Paulo, o gosto que você tem mesmo é ser Educador, nada há de lhe faltar. Continua a tua vida de Educador”.

Professora Elza Maria Costa, a primeira esposa de Paulo Freire. 

Em seguida Paulo Freire foi convidado para trabalhar no SESI, que é o Serviço Social da Indústria, criado na Ditadura Vargas10 com o apoio da Federação das Indústrias e do governo populista Vargas.

Quando Getúlio Vargas propôs isso (a criação do Serviço Social da Indústria) aos industriais, eles disseram : “Não, fazer alguma coisa em benefício do trabalhador, não.” E a resposta de Getúlio Vargas foi a seguinte: “Pois bem, eles se organizam sozinhos.” “Está certo, então nós vamos organizar.” Concordaram os industriais. Foi uma organização de caráter paternalista, assistencialista. Paulo Freire começa a trabalhar em agosto de 1947 como assistente e logo depois passa a diretor da Divisão de Educação e Cultura.

Paulo Freire já sabia do trabalho que deveria desenvolver, tinha bem claro isso e acertou. Não seria um trabalho nem assistencialista, nem populista, seria um trabalho popular. A favor das camadas populares. Este trabalho, pode-se assim dizer, será a “semente” do grande “Pensamento Pedagógico de Paulo Freire”, pois é nesse momento que ele vai ter contato com o povo, que ele vai escutar o povo, valorizar e compor sua Teoria do Conhecimento.

Escutar para Paulo Freire, não é um simples ouvir. Pode-se ouvir e esquecer, e o ato de Paulo Freire não era ouvir para simplesmente escutar. Era ouvir e trazer isso para o coração, para a sua sensibilidade, para a sua inteligência, para a sua reflexão teórica. Elaborar, sistematizar e devolver “isso” sistematizado ao povo.

Parece uma coisa simples, mas foi decisivo na organização dos Movimentos Populares no Brasil e na América Latina. Pois, até então (anos 50), formavam-se as lideranças de esquerda fora do Brasil, na Argentina, sobretudo na União Soviética.

Onde ficavam quatro anos aprendendo...; mais quatro anos aprendendo dialética histórica, quando voltavam, já havia passado o tempo histórico por aqui (Brasil). Já não tinham a mesma adaptação, tinham valores que não estavam mais atendendo os valores e as necessidades do povo.

Paulo Freire dizia: “Escuto o povo”. Escuta onde? Com os circuitos de cultura, já que, com o Serviço Social da Indústria, atendia à indústria pesqueira, portanto, ele conviveu com os pescadores, com os operários da indústria e com os agricultores da indústria açucareira.

Viajou pelo Estado de Pernambuco, onde foi dialogando com o povo, com toda a gente do povo, sempre conversando, dialogando, escutando, sistematizando...

Seu trabalho ficou muito conhecido, depois que o diretor nacional SESI convocou-o para uma expedição pelo Brasil de 1961 a 1964. Neste período conheceu Anísio Teixeira, grande educador, que lutava pela escola para todos, escola pública e de qualidade, desde 1924, quando Anísio Teixeira foi Secretário da Educação na Bahia, Paulo Freire foi escolhido como Membro do Conselho Estadual de Educação pelo Governador de então, Miguel Arraes.11

Paulo Freire em 1963. 

Quando irrompeu o golpe de Estado12, Paulo Freire não pode assinar a carta de demissão coletiva, pois estava em Brasília e foi exonerado do cargo em 20 de abril de 1964.

Paulo Freire ajudou a fundar o Colégio de Recife Instituto Capibaribi13, foi professor universitário, ensinando História e Filosofia da Educação.

A tese de Paulo Freire (1959), chamou-se “Educação e Atualidade Brasileira”, lhe proporcionou o título de doutor e livre docente e lecionou de 1960 à 1964. Quando veio o Golpe de “1º de abril”, como ele chamava e o aposentou aos 42 anos de idade.

Há alguns anos atrás, Paulo Rosa fazendo uma visita à Paulo Freire em São Paulo dizia: “Você lembra quando você perdeu o concurso?” Paulo Freire foi aprovado, mas em segundo lugar. Com isso outra pessoa passou a ser a primeira Catedrática, como se dizia na época, foi a primeira mulher Catedrática do Brasil. Ela escreveu uma tese sobre “Educação da Criança na Grécia Antiga”.

Porque Paulo Freire perdeu este concurso. A academia naquele tempo achava demais “falar” sobre uma besteira tão grande que era a atualidade brasileira, não se admitia a discussão sobre educação, principalmente educação do povo.

A academia era muito mais elitista e discriminatória do que hoje. O interessante era o discurso sobre “coisas” européias, metafísicas, idealistas. Coisas concretas não eram dignas de atenção “por aqueles” que estavam compondo a mesa de exame.

No Chile foi reformulada a tese de Paulo Freire, resultando em seu primeiro livro, “Educação como Prática da Liberdade”.

Paulo Freire sempre dizia: “Eu era conhecido pelo vizinho que morava no lado direito de minha casa e pelo vizinho que morava no lado esquerdo de minha casa.”

Ficou conhecido mais e mais, por este trabalho desenvolvido no SESI de Pernambuco, de Educação de Jovens e Adultos, no mundo todo. E diz: “É por esse lado específico que eu pude me tornar um homem com pensamento universal.”

Sua tese foi um prolongamento, um aperfeiçoamento de um relatório feito por ele para o II Congresso Nacional de Educação de Jovens e Adultos em julho de 1958; convocado por Juscelino Kubitscheck14. Juscelino dizia: “Vamos fazer cinquenta anos de realização e cinco de meu governo.” Estava preocupado com o atraso dentro da visão desenvolvimentista, que, para o pais se desenvolver teria que ter uma educação instrumentalizada para o trabalho.

Paulo Freire leva, como relator do tema 3 da Comissão de Pernambuco, um pequeno trecho, texto que esse congresso tentava avaliar durante toda a campanha CEEA, conhecida como Campanha dos Adultos e Adolescentes, iniciativa do governo

Dutra15 em parceria com o educador Lourenço Filho16. Foi uma campanha importante, pois abrangeu todo o Brasil, baixando de 65% para 45% o analfabetismo em termos oficiais. A alfabetização se dava com cartilhas, com projetos montados nos centros específicos; foi importante, pois difundiu e se iniciou uma conscientização da necessidade de uma Educação.

Neste Congresso, para avaliar-se como estava se dando a Educação de Jovens e Adultos no Brasil, a maioria dos relatórios diziam, adultos..., educar-se..., não aprende a ler..., são pouco inteligentes, e a maioria deles chega cansado depois de um dia de trabalho. Falta luz. A iluminação é insuficiente, os professores são leigos, improvisados. Há pouco interesse dos alfabetizandos.

Essa é a tônica comum a todos os relatórios do Brasil. Então Paulo Freire, levando esse pequeno relatório, diz o seguinte: “A Educação de Jovens e Adultos deve fundamentar-se na consciência da realidade cotidiana. Não no conhecer letras, palavras ou frases..., o processo de alfabetização não pode se dar sobre, nem para o educando, ele tem que se dar com o educando. Há que se estimular nele a colaboração, a decisão, a participação e a responsabilidade social e política.”

Isso horrorizou, quase à todos os presentes, e Paulo Freire disse : “Não, o aluno deve conhecer-se enquanto sujeito e conhecer os problemas que o aflige no dia-a-dia.

Portanto, o aluno deve programar em parte o que num período ele quer aprender. E aprender não se aprende. Não é uma educação bancária. Não se aprende tentando depositar numa cabeça vazia uma porção de conhecimento. Conhecer é um ato que é aprendido existencialmente, na existência, no cotidiano, pelo conhecimento local.”

Com isso, Paulo Freire mostrou o respeito ao conhecimento popular, ao senso comum. Ele tinha ouvido o povo. Aparece aí Paulo Freire como o pedagogo dos oprimidos, sem ter ainda escrito “A Pedagogia do Oprimido”.

Acusaram-no de ter composto um simples mito de alfabetização. Na realidade, tal método, não se trata de técnicas, não instrumentaliza só para aprender a leitura de uma palavra, é parte de uma compreensão maior. Uma teoria de conhecimento construtivista, onde cada educando constrói seu próprio conhecimento a partir dos temas e das palavras geradoras.

Quais são os temas geradores? Os temas que afligiam àquela comunidade.

Portanto, com Paulo Freire, também surgiu a pesquisa participante. A decodificação, quando estimulada por um diálogo entre as pessoas, e depois observar os monitores, animadores do círculo de cultura, era um movimento que instigava a se satisfazer, a fazer a leitura do mundo, compreender o mundo, conscientizar-se. Paulo Freire queria recuperar a importância deste processo de conscientização, do ato de conscientização. Pois, é a partir disto, do conhecimento, da leitura e da palavra que as pessoas pronunciam o mundo.

Na visão de Paulo Freire, pronunciar o mundo não era só saber ler e escrever, ser cidadão e ter direitos. Pronunciar o mundo é interferir no mundo, é fazer parte das decisões do seu mundo, de sua comunidade, de sua cidade, de seu país. A fala de Paulo Freire era da substantividade das coisas para que o diálogo pudesse ser uma pronúncia do Mundo.

O que se procurava nesse diálogo era: O que? Por que? Como? Para que, por quem? Para quem? A favor de quem? A favor de que? Se todos os temas, palavras geradoras da alfabetização fossem tratadas através dessas perguntas, chegava-se à razão de ser das coisas, a substantividade das coisas, a razão de ser da exploração, da pressão, da não possibilidade de ser um homem e mulher com dignidade. Por isso, o método Paulo Freire foi revolucionário.

A sua teoria do conhecimento foi a compreensão da educação engajada e política, quer e tem a possibilidade de tirar da submissão, da imersão, da condição de demitido da vida, aquele que trava o diálogo amoroso em torno do objeto.

Uma coisa que é pouco entendida em Paulo Freire é o diálogo. Educadores, pessoas famosas do Brasil, com livros escritos, “acham” que o diálogo em Paulo Freire era um bate papo amoroso: “vamos tomar uma cerveja”. O diálogo amoroso em Paulo Freire não era isso. Ele dizia : “O ato de estudar é um ato que exige disciplina, rigor, é duro, é cansativo, mas tem que causar alegria pelo fato de se conhecer.” Portanto, tal diálogo deve ser amoroso, por que ninguém se conhece sozinho, “ninguém conhece sozinho, você conhece em diálogo com o outro em relação com o mundo.”

Porque pessoas que estão em contato uns com os outros não fazem do diálogo em torno de um objeto qualquer que se tem que conhecer?. Para que fazer isso duramente, rispidamente? Faz-se amorosamente entre as pessoas em termos de conhecer o objeto que precisa ser conhecido. Pode ser o quê? Pode ser a falta de cidadania, a

Reforma Agrária e pode ser um lápis, uns óculos, pode ser a lua, pode ser o homem querendo conquistar o espaço. Qualquer que seja o tema em discussão, o diálogo que se trava entre pessoas em observação da natureza, e pessoas, e os livros, e os tratados e tudo o que for escrito acerca daquilo. Esse é o verdadeiro diálogo. É o diálogo epistemológico e amoroso.

Paulo Freire tinha o desejo de estar no mundo com as pessoas, interferindo no mundo. Possibilitando pelo diálogo das pessoas que interfiram no mundo. Tinha um gosto enorme pelo viver. Uma enorme esperança pelo povo brasileiro.

É a marca de Paulo Freire no mundo, “ela” não veio a ferro e fogo. Veio pela tolerância, pela amorosidade, pela mansidão, pela generosidade. Essas foram as maiores marcas de Paulo Freire. O amor, a paixão pelas pessoas. Paulo Freire dizia: “Olha, eu estou muito feliz, eu já vi tanta coisa na vida e esse episódio das rapaduras que eu contava, era um episódio duro, cruel, passado à nível pessoal, mas que traduzia a realidade brasileira.” “Tanta coisa se vem conquistando, tanta coisa acontece em um mundo, quer dizer, o mundo está melhorando.”

Queria um bem enorme à vida. Tem momento que fala na “Pedagogia do Oprimido”, na necrofilia do opressor, e na beofilia, na vontade de viver, de existenciar-se, de historiar-se, do povo num mundo geral. Essas são as grandes qualidades de Paulo Freire. “(...) eu sou um homem de sorte. Nossa! Eu não precisei morrer para me homenagearem. Olha que coisa bonita. Eu não acho ruim ser homenageado. Essa história de dizer que não era eu que deveria estar aqui falando, deveria ser outra pessoa. Isso é falsa modéstia. Ora, se deveria ser outro, então porque eu tô aqui? Se estou aqui, é porque gosto de ser homenageado. Agora me encher de uma ..., de pretensões de que eu não sou, isso sim é desleal, é desonesto. Mas, orgulhar-me do que eu fiz, eu, com humildade me orgulho das homenagens que são feitas à mim.”

O Congresso de Alfabetizadores, foi o primeiro congresso do gênero, onde os alfabetizados foram dar o seu depoimento, a sua voz, sua aspirações e interesses. Houve uma gestão democrática, onde toda a comunidade participava. Com isso, Paulo Freire assinou um “acordo” com as “melhores” Universidades do Estado de São Paulo: a Universidade Católica de São Paulo, a USP e a UNICAMP.

Professores de diversas áreas ministravam cursos de formação, pois, Paulo Freire se negou a tratar a educação como treinamento. Treinamento é uma coisa animal, as pessoas não são animais. Têm-se uma existência e nessa existência se é capaz de transformar a realidade. Houve uma verdadeira mobilização. Um entusiasmo muito grande. Paulo Freire deixou a Secretaria Municipal de Educação em maio de 1991.

“As coisas não vão acontecer na quartas-feiras e existe esquinas de luta. Minha esquina já foi esta, já foi aquela. Eu quero ir para outra esquina Erundina, eu quero voltar para casa e escrever.”17 Logo em seguida diz: “Eu não disse que queria escrever? Já escrevi sete livros depois que saí da secretaria.”

Às vezes, a passeio por uma feira que se achava perto da casa de Paulo Freire, as pessoas vinham e diziam: “Olha, a nossa professora inovou, mas a gente se reúne, tranca na sala de aula e faz o que quer. A gente continua fazendo a coisa boa.” “Professor, a nossa diretora é ótima, o trabalho continua bem. Temos uns colegas que com medo das perseguições políticas, que foram grande, tão negando o trabalho. Mas, pode esperar que o dia que vier o governo progressista outra vez, o senhor vai ver que o seu trabalho não morreu.”

Em Angicos no Rio Grande do Norte, quando Paulo Freire experimentava e aplicava seus métodos, escreveu uma crônica “Angicos 40 graus, 40 horas.” Em função disso um jornalista publicou no jornal que se alfabetizava em 40 horas. Ficou um tipo de mito. “Eu não disse que alfabetizo em 40 horas. E não se alfabetiza ninguém em 40 horas.” Paulo Freire não gostava que dissessem isso.

Paulo Freire na cerimônia solene em 1993, que lhe concedeu o título de cidadão de Angicos, por reconhecimento ao seu trabalho realizado na cidade com a alfabetização de jovens e adultos. 

A idéia de que a educação é lavanda da transformação social, isto é, uma idéia liberal que entrou no Brasil naquele tempo, aliás, Anísio Teixeira percorreu bastante por isto, tanto que resultou em um Manifesto dos Educadores da Educação Nova, dizendo : “Vamos fazer justiça, dando educação igual para aquele que tem competência e, é através da educação que nós vamos deixar todas as pessoas iguais.”

Isso chama-se Otimismo Pedagógico. Dando um grande valor à educação, não pelo o que ela pode fazer, mas pelo o que ela não pode. Paulo Freire, sempre dizia:

“A força da Educação não transforma, não muda a nível social, nem a nível econômico e nem a nível político. Ela não tem essa força, mas em seu conjunto, ela pode dar, só através dela é que pode haver as mudanças radicais.”

Paulo Freire não chegou a estudar bem a LDB, não gostava muito de ficar analisando leis. Dizia: “Você é que gosta muito. Isso fica com você.”

A obra de Paulo Freire continua, seu pensamento vai ser atual até quando existir oprimido e explorado, porque a sua pedagogia é a pedagogia política. Enquanto existir necessidade, o Pensamento de Paulo Freire não morre.

NOTAS

* Texto elaborado a partir da palestra “Vida e obra de Paulo Freire”, proferida por sua esposa, Ana Maria Araújo Freire, no I Encontro Nacional de Educação de Jovens e Adultos – ENEJA, em 25 de abril de 1998, no Recife/PE.

1 Angina, angina pectoris ou angina do peito é uma dor localizada no centro do peito. As pessoas a descrevem como um peso, um aperto, uma queimação ou uma pressão, geralmente atrás do nosso esterno. Algumas vezes ela pode se estender para os braços, pescoço, queixo ou costas. A dor aparece quando o suprimento de sangue para uma parte do coração é insuficiente. Por este motivo o coração não recebe oxigênio e nutrientes em quantidades necessárias.

2 Angeoplastia é uma técnica que utiliza um minúsculo balão inflado dentro da artéria obstruída com placas de gordura e sangue, além de uma minitela de aço que, aberta, facilita a passagem do sangue. O procedimento é usado desde 1983 nos EUA e chegou ao Brasil na década atual. Agora, os pacientes também recebem, durante a operação, uma substância que impede o reinfarto.

3 O termo "isquemia" costuma ser empregado para as situações em que ocorre ausência total de afluxo sangüíneo em um local.

4 Paulo Freire faleceu no dia 2 de maio de 1997 em São Paulo, vítima de um infarto agudo do miocárdio.

5 Seu pai chamava-se Joaquim Temístocles Freire e sua mãe Edeltrudes Neves Freire.

6 Aluízio Pessoa de Araújo, pai de Ana Maria Araújo Freire, esposa de Paulo Freire.

7 (Foi aí que conheci Paulo Freire, eu com quatro anos de idade..., mais tarde viria a ser meu professor).

8 Mulher do Dr. Aluízio.

9 Antes de ter concluído seus estudos universitários, casou-se, em 1944, com a professora primária Elza Maia Costa Oliveira, com quem teve cinco filhos: Maria Madalena, Maria Cristina, Maria de Fátima, Joaquim e Lutgardes. Ainda nesse tempo, tornou-se professor de língua portuguesa do Colégio Oswaldo Cruz, educandário que o tinha acolhido na adolescência.

10 Getúlio Dornelles Vargas nasceu em São Borja (RS) a 19 de abril de 1883. Foi chefe do governo provisório depois da Revolução de 30, presidente eleito pela constituinte em 17 de julho de 1934, até a implantação da ditadura do Estado Novo em 10 de novembro de 1937. Foi deposto em 29 de outubro de 1945, mas voltou à presidência em 31 de janeiro de 1951. Em 24 de agosto de 1954 suicida-se.

11 Miguel Arraes foi governador do Estado de Pernambuco de 1962 à 1964 quando foi preso e teve seus direitos políticos cassados.

12 O Golpe Militar de 1964 foi uma interrupção abrupta do fluxo histórico brasileiro, que reverteu seu sentido natural, com efeitos indeléveis sobre a soberania e sobre a economia nacional e também sobre a cidadania, sobre a sociedade e sobre a cultura brasileiras. Vinha-se, há décadas, construindo a duras penas uma Nação autônoma, moderna, socialmente responsável e respeitosa da ordem civil, quando sobreveio o golpe e a reversão.

13 Instituição de ensino privado conhecida até hoje em Recife pelo seu alto nível de ensino e de formação científica, ética e moral voltada para a consciência democrática.

14 Juscelino Kubitscheck foi eleito para a Presidência da República em 1955, cargo que exerceu de 31/01/56 a 31/01/61. Seu governo teve como base um ambicioso Plano de Metas (com o famoso slogan "50 anos em 5"), que incluía construção da nova capital. Juscelino ambicionava disputar as eleições presidenciais de 1965, mas em junho de 64 teve seu mandato e seus direitos políticos cassados pelo regime militar

15 Eurico Gaspar Dutra, reformado no posto de marechal, candidatou-se à presidência da República pelo Partido Social Democrático (PSD) com o apoio do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Foi eleito para o período de 31/01/1946 a 31/01/1951. Como presidente abriu a importação, consumindo as reservas do país; considerou o salário mínimo como responsável pela carestia; proibiu os cassinos de jogo; promulgou a Constituição de 1946; decretou a cassação do Partido Comunista e o rompimento com a URSS; inaugurou a Usina Siderúrgica Nacional; reaparelhou os portos e preparou a formação da frota petroleira; iniciou a campanha de alfabetização de adultos e instituiu a fundação da Casa Popular

16 Educador e psicólogo, nasceu em Porto Ferreira/SP em 10 de março de 1897, morreu no Rio de Janeiro em 03 de agosto de 1970. Também foi uma figura importante na reformulação do ensino brasileiro. Destacando sua atuação nos organismos latino-americanos, ganhou o título de “maestro delas Américas”.

17 Nas eleições municipais de 1988 o Partido dos Trabalhadores ganhou a maioria dos votos na cidade de São Paulo. A nova Prefeita, Luíza Erundina de Sousa, nomeou Paulo Freire Secretário Municipal de Educação, em 1 de janeiro de 1989. Paulo renunciou dois anos mais tarde, em 27 de maio de 1991, para reassumir atividades acadêmicas, lecionar e escrever.

Fonte: FREIRE, Ana Maria Araújo. Paulo Freire: sua vida, sua obra. Educação em Revista, v. 2, n. 1, 2001, p. 1-13. 

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