terça-feira, 14 de setembro de 2021

A Divina Comédia como herdeira do legado dos apocalipses apócrifos e da literatura de visões

Para celebrar os 700 anos da morte de Dante Alighieri e da publicação da Divina Comédia, redigi esse texto comentando algumas das influências literárias que o poeta teve para compor sua magnus opus. Sendo assim, fiz uma breve introdução comentando alguns aspectos da sua vida e principal livro, para depois apresentar o que são os apocalipses apócrifos e a literatura de visões, ambas produções bastante em voga na Idade Média europeia, as quais retrataram o Inferno, o Purgatório e Paraíso, cujas ideias, algumas foram utilizadas por Dante em seu poema. 

Introdução

A Divina Comédia é um extenso poema rimado, de leitura bastante metafórica, abundante em referências mitológicas, históricas, simbólicas, filosóficas, astronômicas etc. Devido a sua extensão, linguajar difícil e pouco atrativo para os padrões atuais, onde a maioria dos leitores preferem textos prosaicos e de escrita mais fluída, normalmente quando se indaga para alguém sobre esse livro, caso a pessoa já tenha ouvido falar sobre ele ou seu autor, provavelmente sua resposta estará associada em dizer que trata-se de um livro que fala sobre o Inferno, o qual ainda hoje é a parte que mais atraí a curiosidade dos leitores, pois como sublinhou Umberto Eco, mesmo o feio, o grotesco e o sombrio causam um fascínio na humanidade. (ECO, 2007, p. 16-20).

Estátua de Dante Alighieri na Galeria degli Uffizi, em Florença. 

E devido a essa associação em dizer que a Divina Comédia é um livro que descreve o Inferno e seus tormentos, tornou-se uma convenção que teria sido Dante Alighieri o responsável por criar ou popularizar a ideia medieval do Inferno, Purgatório e do Paraíso. De certa forma, existe uma certa precisão nessa ideia, pois realmente o poema dantesco contribuiu para popularizar principalmente o imaginário infernal que influenciou artistas de diferentes campos como a pintura, escultura, literatura, ópera, cinema, desenhos animados, histórias em quadrinhos e videogames, condição essa que estes artistas direta ou indiretamente recorreram as detalhadas descrições de Dante para imaginarem suas versões sobre o Inferno.

Apesar de Dante Alighieri possuir o mérito de popularizar esse imaginário que ao mesmo tempo fascina por suas descrições chocantes, pois na Bíblia, as descrições do Inferno citadas no livro de Apocalipse, limitam-se a falar em fogo, enxofre e sofrimento, ainda assim, ele não inventou esse imaginário, pelo contrário, ele foi herdeiro de uma longa tradição que remonta desde à Antiguidade Clássica romana, iniciando por volta dos séculos I d.C. e II d.C. onde surgiram algumas das primeiras descrições mais elaboradas que se conhece sobre o Inferno e o Paraíso.

E essa tradição desenvolveu-se nos séculos seguintes, entrando em declínio no século XIV, época na qual Dante concluiu sua obra. Diante disso, a proposta desse artigo foi comentar com base na história das religiões, a respeito dessas duas tradições literárias que estiveram em voga na Europa por séculos, as quais foram a literatura apocalíptica e a literatura de visões, de cujos relatos Dante coletou muitas informações e inspirações para compor sua própria versão desses mundos dos mortos.

Dessa forma, o texto buscou explicar as características desses dois tipos de literatura, apontando alguns exemplos famosos da época, sendo que alguns destes devem ter sido conhecidos pelo próprio Dante, além de realizar comparações de algumas descrições do Inferno, Purgatório e Paraíso com as versões contidas na Divina Comédia, revelando ideias que já eram utilizadas anteriormente e foram reinterpretadas ou adaptadas por Dante.

O autor e sua obra

O intuito dessa seção não foi aprofundar sobre a vida e obra de Dante Alighieri, mas apresentar aos leitores algumas informações essenciais para se compreender a Divina Comédia, antes de se passar para as influências que esse poema absorveu da literatura fantástica religiosa europeia, a qual apresentamos adiante.

Durante Alighiero ou mais conhecido como Dante Alighieri, nasceu em data incerta, entre os meses de maio e junho no ano de 1265, em Florença, sendo filho primogênito de Alighiero degli Alighieri e de Gabriella degli Abati. Entre 1270 e 1273, sua mãe faleceu de causas não definidas. Seu pai voltou a se casar novamente, desposando Lapa di Chiarissimo Cialuffi. Com quem teve mais dois filhos, Francesco e Geatana. Pouco se conhece sobre a infância e adolescência de Dante. (MIORANZA, 2012, p. 12).

Casa em que Dante nasceu, em Florença. Atualmente é um museu. 

Todavia, em 1285, com seus vinte anos, Dante casou-se com Gemma di Manetto Donati, mulher que já lhe havia sido prometida em casamento, devido a um acordo entre seus pais. Dessa relação eles tiveram quatro filhos: Giovanni, Pietro, Jacopo e Antonia. Apesar desse matrimônio, Dante conta em algumas obras, que sempre foi apaixonado por outra mulher, chamada Beatriz di Portinari (c. 1265-1290), seu amor platônico, que conheceu na infância e sonhava em se casar com ela.  No entanto, Beatriz casou-se com outro pretendente e faleceu jovem. Ainda assim, o amor que Dante sentia por ela a tornou sua musa. (THOMAS; THOMAS, 1965, p. 15).

Já adulto, Dante serviu por vários anos como soldado e mercenário, apesar que também nesse período redigiu alguns poemas e escreveu Vita Nuova (1292-1293), sua primeira homenagem a Beatriz. Por volta de 1295 ele entrou na política florentina, que era marcada pela disputa de dois partidos, os Guelfos (guelfi) que eram apoiadores do papa, e os Gibelinos (ghibelini) que apoiavam o imperador do Sacro Império Romano Germânico, cujo monarca possuía domínios e influência no norte da Itália. Dante por sua vez, aliou-se aos guelfos negros (uma cisão interna do partido, oposta aos guelfos brancos). Nessa fase como político, Dante foi membro de distintos conselhos públicos da cidade. Mas sua carreira na política foi curta. Em 1301 ele compôs uma embaixada enviada à Roma, no intuito de negociar com o papa Bonifácio VIII. Dante como era crítico das intervenções papais na política, desentendeu-se com Bonifácio. (MIORANZA, 2012, p. 14).

Em 1302, devido ao desentendimento com o papa, Dante foi condenado a pagar uma multa e até mesmo seria preso, mas ele não compareceu à audiência, o que lhe valeu a ameaça de morte caso retornasse a Florença. Com isso, ele optou pelo autoexílio, passando os vinte anos seguintes, exilado, morando em diversas cidades, recebendo ajuda de amigos, admiradores e mecenas. Foi nesse longo período de exílio que Dante dedicou-se as letras, escrevendo a maior parte de seus livros, incluindo a própria Divina Comédia. A qual ele concluiu somente em 1321, após longos anos trabalhando nela. Vindo a morrer naquele mesmo ano, entre 13 e 14 de setembro, aos 56 anos, de uma febre maligna. (BORZIN, 2018, 14-16).

Dante em exílio, autoria desconhecida. Exposta no Palácio Pitti, em Florença. 

Apresentada essa síntese biográfica, passaremos para comentar um pouco a respeito da Divina Comédia. Originalmente a obra era intitulada apenas Commedia, o adjetivo divina, foi concedido anos depois pelo poeta e escritor Giovanni Boccaccio (1313-1375), que era admirador do trabalho de Dante. Inclusive vale sublinhar que o conceito de comédia na época de Dante era diferente do nosso, por conta disso, as pessoas hoje estranharem o fato de sua obra não não ser cômica, embora contenha sarcasmo, sátira e um humor ácido em dados momentos. 

O poema é dividido em três partes: Inferno formado por 33 cantos e 4.716 versos; Purgatório composto por 33 cantos e 4.755 versos; e, Paraíso que possui 33 cantos e 4.754 versos. Sendo escrito em dialeto toscano e não em latim, que era considerado ainda a língua erudita daquele tempo. A versificação é baseada no terceto, onde as rimas encontram-se na última palavra do primeiro e terceiro versos. (POLILLO, 1964).

Nos 99 cantos que compõem a Comédia, testemunhamos a fantástica viagem do próprio autor, o qual inseriu-se nessa obra como seu protagonista, contando que iniciou sua jornada que durou uma semana, começando-a no dia 7 de abril de 1300. A condição de Dante colocar-se não apenas como narrador que descreve a história, mas como narrador que participa da ação, é uma característica própria desse poema, algo até mesmo incomum para o período, onde vigorava a condição de autores não assinarem suas obras, ou utilizarem pseudônimos, ou narrarem histórias vívidas por outras pessoas reais ou ficcionais.  

Apesar dessa característica interessante, onde o próprio autor coloca-se como personagem de sua obra, como se o livro fosse resultado de uma experiência vivenciada, fruto de uma viagem real ou espiritual, resultante de um sonho ou visão, algo que comentaremos adiante, a Divina Comédia é um livro repleto de muitas informações e influências, contendo referências da mitologia greco-romana, algo bastante visto no Inferno e Purgatório; referências cristãs canônicas e apócrifas, que são encontradas nas três partes; influências da filosofia escolástica e de crenças judaicas e árabes. Há também alusões a alquimia, magia, de crítica política, incluindo menções as disputas dos Guelfos e Gibelinos, e a rixa do autor com o papa Bonifácio VIII. E nesse ponto, insere-se a condição de que Dante incluiu vários personagens históricos, desde a Antiguidade até a época dele. Por fim, no livro do Paraíso encontramos referências a conceitos da astronomia e da astrologia.

Observa-se assim, como a Divina Comédia trata-se de um livro complexo, construído sobre várias tradições, ideias e saberes, e isso suscitou que ao longo de séculos, muitos estudiosos se propusessem a tarefa de analisar esses versos para compreender a riqueza de simbolismos e ideias que Dante conseguiu com maestria organizar para conceber seu relato, o qual no primeiro livro narra sua descida pelos Nove Ciclos do Inferno, sendo guiado pelo espírito do poeta Virgílio, depois eles chegam a Montanha do Purgatório, tendo que subir por seus Sete Terraços, para finalmente Dante poder ascender ao Paraíso, onde nesta última etapa de sua jornada, ele é guiado por sua amada Beatriz, pelos Dez Céus.

Apresentado algumas características da Divina Comédia, focamos nosso estudo em conhecer algumas das influências que Dante teve acesso para compor seu grande poema. Que no caso tratou-se da literatura cristã sobre o Inferno, Purgatório e Paraíso, estes mundos dos mortos que povoaram o imaginários dos povos europeus, lhes causando fascínio ou assombro, lhes satisfazendo a curiosidade de saber como seriam aqueles lugares que pouco eram descritos nas Escrituras. E partindo deste intuito, a seção seguinte apresentou as principais características de dois tipos de literatura religiosa medieval, a literatura apocalíptica e as visões.

A literatura apocalíptica: o caso dos apocalipses apócrifos

Em um primeiro momento pode se suscitar a estranheza ao ler-se literatura apocalíptica, pois não só existiria somente um livro do Apocalipse? Em termos canônicos, realmente somente existe uma descrição oficial do Apocalipse, a qual as igrejas cristãs, sejam a católica, as protestantes, as ortodoxas, a copta, entre outras, adotam como a revelação final que Deus concedeu ao profeta João de Patmos, as vezes considerado também João, o Evangelista, como sendo o autor dessa última profecia, que marca o fim dos tempos, o retorno de Cristo, o Armagedon, o Juízo Final e a conclusão do destino concebido por Deus para a humanidade. (BÍBLIA DE JERUSALÉM, 2017, p. 2140).

João de Patmos. Hieronymus Bosch, c. 1489. 

Mas embora o Apocalipse de João seja um livro profético e escatológico, contendo um linguajar massivamente simbólico, o que dificulta sua interpretação, no entanto, esse livro descreve o Paraíso, principalmente na figura da Jerusalém Celeste, porém, ele pouco nos esclarece a respeito do Inferno, limitando-se a informar que seria um local desagradável, sombrio, com fogo e enxofre, onde Satanás, os demônios e os condenados, sofreriam pela eternidade.

Esse relato escasso sobre o Inferno, tornou-se para os intuitos de conversão um problema, pois como convencer as pessoas de que se elas não seguissem os mandamentos de Cristo, estariam condenadas pela eternidade? E essa condenação era incrivelmente ruim. Para isso, surgiu a necessidade de criar-se um imaginário para o Inferno, melhorar as descrições do Paraíso, e eventualmente até criar-se um meio-termo, que veio a ser o Purgatório.

Mas esse apocalipse canônico que conhecemos como sendo o último livro bíblico, nem sempre foi um cânon, somente a partir do século XI recebemos a versão final, antes disso, houve uma variedade de apocalipses hoje considerados apócrifos, que por certo tempo até mesmo gozaram de serem aceitos legalmente pela Igreja Católica. E nessa profusão de outros relatos apocalípticos cujas características veremos a seguir, em alguns destacou-se descrições vívidas sobre os tormentos infernais e as bênçãos celestiais. (PIÑERO, 2007, p. 108-109).

Condições essas que foram uma característica da chamada literatura apocalíptica. Nesse ponto, salienta-se que nem todo relato apocalíptico contém profecias escatológicas, questão essa que em muitos dos apocalipses apócrifos não apresentam teor profético. (SOARES, 2008, p. 108). Mas em geral o que define esse gênero literário é o uso de uma linguagem metafórica e simbólica, menção aos mundos dos mortos (Inferno e Paraíso), relatando pessoas que para eles viajaram e descreveram o que ali viram. Em alguns casos, há a presença de profecias. (RAMOS, 2002, p. 45).

Entretanto existem alguns termos associados a essa literatura que podem gerar confusão, sendo estes: apocalíptico (gênero de literatura revelatória); escatologia apocalíptica (perspectiva religiosa, cosmovisão); e apocalipsismo (ideologia, movimento religioso social), os quais facilmente são confundidos no seu significado. (RAMOS, 2002, p. 46). Para nosso estudo, abordamos o primeiro termo que refere-se a este gênero literário que não foi uma invenção cristã, já que anteriormente os judeus e zoroastrianos já possuíam relatos apocalípticos, os cristãos apenas os usaram como referência para construir suas versões, o que incluiu até mesmo agregar elementos oriundos da mitologia grega, como se observa em alguns dos apocalipses apócrifos. 

Ao todo se conhecem 47 apocalipses, incluindo a versão canônica. Mas apesar dessa grande variedade, a maior parte dos apócrifos consistem apenas em fragmentos de algumas linhas, versos ou poucas páginas, escritos principalmente em grego e latim. Os apocalipses apócrifos mais famosos na Idade Média, foram os associados com Pedro e Paulo, os quais comentaremos na próxima seção, pois ambos tiveram influência na obra de Dante Alighieri. Mas qual teria sido a função desses relatos? Ela se limitaria apenas a descrever o Inferno e o Paraíso?

A literatura apocalíptica teve uma função teológica e moralista de apresentar um discurso de futuro, ordem, finalidade, salvação e justiça final. Tais informações eram transmitidas através das profecias, das falas de santos ou personagens bíblicos, e na descrição dos tormentos e das bênçãos. Condição essa que fez tais obras por algum tempo fossem utilizadas para prorrogativas de instrução de clérigos e leigos. Mesmo que não houvesse um consenso entre os bispos e doutores da Igreja. (LE GOFF, 1995, p. 45). Nesse ponto, Minois (2005, p. 141-142) assinala que somente a partir do século VI é que o papado começou a expedir decretos para combater os relatos apócrifos sobre o Inferno e o Paraíso, mas isso não surtiu efeito, pois nos séculos seguintes, tais relatos continuaram a serem produzidos e até mesmo seguiam sendo utilizados por padres em suas pregações.

A literatura das visões

A literatura apocalíptica cristã teria surgido no final do século I d.C. desenvolvendo-se nos séculos seguintes. Mas paralelamente ao seu desenvolvimento esteve outro tipo de gênero literário que compartilhava características em comum, os quais eram chamados apenas de visões (visio em latim). Este corpus literário, escrito em latim, grego e na vulgata, surgiram em diferentes países, e em alguns deles nota-se a presença de referências ao Purgatório, algo ausente nos apocalipses.

As visões são um gênero literário medieval bastante vasto, havendo dezenas delas, abordando várias ideias, o que dificulta conseguir definir com clareza suas características principais. Em geral as visões seguem algumas características em comum: geralmente são homens que vivenciam tais testemunhos, os quais através de sonhos ou de um momento de revelação ou êxtase, possuem a visão dos mundos dos mortos (Inferno, Purgatório ou Paraíso) ou de outras terras e épocas. No latim da época havia uma diferença para sonho (somnium) e visão (visio), sendo que o sonho seria um meio de se ter uma visão, a qual era considerada uma revelação religiosa. (GARDINER, 1993, p. 6-7).

Em alguns casos, as pessoas que testemunharam tais visões, relatavam que foram levadas por anjos ou santos, até esses mundos, o que significa que elas estiveram fisicamente lá. (GARDINER, 1993, p. 8-9). Tal condição nos faz lembrar da Divina Comédia, na qual Dante informa no Canto I, que ele desceu ao Inferno em companhia de Virgílio, ou seja, ele não foi para lá num sonho, ou teve uma visão do lugar, mas fisicamente estava lá. Característica essa que remonta a literatura de visões.

Todavia, o conceito de visão suscitou entre os pesquisadores uma problemática de definição e classificação, pois as visões em vários aspectos são parecidas com os apocalipses. Recordando que o próprio João no Livro de Apocalipse, capítulo 1, versículos 1 ao 13, disse ter tido uma visão. Sobre isso, Gardiner (1993, p. 10) escreveu que as visões possuem características em comum com a literatura apocalíptica, especialmente por em ambos os casos conterem relatos de pessoas que avistaram o Inferno e o Paraíso, fosse através de sonhos, ou viajando até lá, fisicamente ou espiritualmente. Todavia, as visões se diferenciam porque algumas citam o Purgatório, ou por mostrarem viagens a terras distantes e não apenas aos mundos dos mortos; por apresentar as testemunhas, informações sobre o passado, presente e as vezes sobre o futuro. As pessoas que vivenciam essas visões necessariamente não eram clérigos, mas em alguns casos, pessoas comuns.

Por tal comentário, as visões seriam até mesmo consideradas um “subgênero da literatura apocalíptica”. Aqui observa-se que as visões teriam um conteúdo um pouco mais amplo do que os apocalipses, os quais geralmente centram-se em figuras bíblicas, possuindo conexão com a ideia de Juízo Final, mesmo que necessariamente não apresentassem profecias. Por sua vez, as visões focam-se em relatar a experiência pessoal das testemunhas e como isso afetava suas vidas. (GARDINER, 1993, p. 11-12).

Tendo explanado de forma breve a diferença entre os dois tipos de gênero literário, que apresentam características do fantástico, sobrenatural e do religioso, na próxima seção escolhemos alguns exemplos de apocalipses e visões, os quais apresentam influências sobre a Divina Comédia, onde percebe-se que Dante leu tais manuscritos na época, e coletado informações e ideias para criar suas versões do Inferno, do Purgatório e do Paraíso.

As influências de Dante

Para os estudiosos da Divina Comédia não é dúvida que este longo poema tenha se inspirado nos relatos dos apocalipses apócrifos e nas visões sobre o Inferno, Purgatório e Paraíso. No entanto, para o grande público, essa informação ainda é desconhecida ou pouco explicada, condição essa que ainda há gente que considera que Dante tenha inventado sozinho muitas das descrições, ou simplesmente adaptou relatos da mitologia greco-romana. Sendo assim, nessa seção, a proposta foi dividi-la em três partes abrangendo o Inferno, o Purgatório e o Paraíso, no intuito de fazer alguns comentários comparativos entre alguns apocalipses e visões que influenciaram Dante Alighieri.

O Inferno

O livro do Inferno é a parte mais conhecida da Divina Comédia, sendo a que apresenta uma maior riqueza de detalhes, referências e simbolismos, além de abordar um assunto que fascina e assombra as pessoas: como seria o Inferno? Se anteriormente como comentado, onde citamos que na Bíblia haja descrições do Paraíso, mas em compensação, sobre o Inferno praticamente nada é descrito, apenas que se enfatiza que seja um lugar terrível. Porém, a curiosidade das pessoas sempre buscou respostas, e relatos sobre como seria o Inferno, quais tormentos existiriam ali, que tipos de pecados seriam punidos, eram indagações que interessavam os cristãos dos primeiros séculos e continuou a interessá-los nas épocas posteriores.

Dante e Virgílio observam os pecadores sendo castigados no Inferno. Uma das ilustrações clássicas de Gustave Doré para uma edição da Divina Comédia, no século XIX. 

Além de ser uma informação necessária para a pregação. Pois como explicar para povos em processo de cristianização que o Inferno era um lugar ruim e o Paraíso um lugar bom? Algumas pessoas podem até se satisfazer com explicações breves, mas outras possuíam mais dúvidas. E essa indagação também valeu para a própria imagem do Diabo, cujo visual foi sendo construído no medievo. (BASCHET, 2006, p. 319).

Sendo assim, para falar sobre o Inferno, recorremos a alguns apocalipses os quais Dante poderia ter lido diretamente algum manuscrito, ou obtido informação sobre esses a partir de outras fontes. (EASTING, 1997). Dessa forma, iniciamos pelo Apocalipse de Pedro, obra de autoria anônima, escrita entre o final do século I e começo do século II, talvez em Alexandria. Esse relato apresenta duas principais versões, uma em grego koiné e outra em grego etiópico, sendo a segunda contendo mais palavras e algumas alterações. Nessa obra há descrições do Inferno e do Paraíso, e tem como personagem central o próprio apóstolo Pedro, que na narrativa visita ambos os locais e os descreve. (LE GOFF, 1995, p. 52).

O Apocalipse de Pedro foi bem conhecido na Idade Média, tendo sido traduzido para outros idiomas, e influenciado outros apocalipses e visões. Sua descrição do Inferno é extensa e compreende a maior parte da narrativa. O primeiro deles é a condição desse apocalipse focar bastante no uso de fogo (algo baseado no relato bíblico) para punir os blasfemadores, adúlteros, injustos, perseguidores, mentirosos, agiotas, idólatras e apóstatas, os quais eram punidos num lago de lava. (PIÑERO, 2007, p. 240). Neste apocalipse também informa que apesar do uso de fogo, cada tipo de pecado era punido em local distinto, embora a narrativa não detalhe essas divisões, mas é um dos primeiros apócrifos a sugerir que haveria zonas no Inferno, atribuídas para cada tipo de pecado.

Na Divina Comédia não temos menção a lava, embora que os pecados citados acima, estejam presentes no poema, sendo punidos de diferentes formas. Porém, no Sétimo Ciclo, faz menção ao rio de fogo chamado Flegetonte (um dos rios do Hades, na mitologia grega), onde punem-se os blasfemadores, sodomitas (homossexuais) e usurários. No caso dos blasfemadores e usurários, nota-se uma correlação com o relato do Apocalipse de Pedro. Percebe-se que a influência é pequena, mas retornaremos a essa fonte posteriormente quando abordarmos o Paraíso.

A próxima obra que abordamos foi o Apocalipse de Paulo, cuja versão mais antiga teria sido escrita em grego, datando do século III, tendo se tornado bastante popular, recebendo traduções para o latim, eslavo, etíope e siríaco. Essa obra descreve a suposta viagem de Paulo ao Inferno e Paraíso. (PIÑERO, 2007, p. 235). No Apocalipse de Paulo temos algumas informações interessantes: o santo enquanto estava visitando o Inferno disse que viu uma imensa fornalha, com sete chamas de várias cores e ao redor dessa fornalha encontrava-se sete zonas: a primeira de neve, a segunda de gelo, a terceira de fogo, a quarta de sangue, a quinta de serpentes, a sexta de raios, a sétima de fedor.

É interessante que nesse relato temos o Inferno já dividido em zonas, onde em cada uma, um tipo de pecado era punido, apesar que Paulo não especifique com clareza essa divisão, embora diga que viu rios de lama, onde estavam enterrados os pecadores como adúlteros, caluniadores, violentos, usurários, interesseiros etc. Em outros lugares, os pecadores eram torturados por demônios, serpentes e dragões. Porém, nota-se que também há uma concepção organizada do Inferno, e até melhor explicada da qual vista no Apocalipse de Pedro, que lhe é anterior e considerado uma de suas fontes de inspiração.

Não obstante, a ideia de um Inferno dividido em várias zonas é claramente encontrada na Divina Comédia, onde Dante divide sua versão em zonas, chamadas de Círculos ou Ciclos (cerchio no original), totalizando nove delas. Além disso, a ideia de ter pecadores enterrados em rios de lama é vista também no inferno dantesco, no Canto VII, relata a visita de Dante e Virgílio ao Quinto Círculo, onde eles chegam ao lago Estíges (outro dos rios do Hades), o qual se parece mais com um pântano lamacento, onde se encontravam os violentos.

O barco de Dante, Eugène Delacroix, 1822. Nessa pintura temos Dante e Virgílio atravessando o lago Estiges, em que os pecadores que cometeram ira brigavam entre si. 

No entanto, há outro dado interessante no Apocalipse de Paulo, que consiste na presença de gelo e neve. A narrativa informa que haveria no Inferno uma região fria, mas que se situava numa zona dividida pelo fogo e gelo, onde eram punidos os pecadores que maltrataram órfãos e viúvas. A ideia de haver gelo, neve e frio no Inferno é algo que inexiste na Bíblia, tendo surgido com os relatos apócrifos. Na Divina Comédia também encontramos a presença de tais elementos, os quais são vistos no Canto XXXII, já no final do livro do Inferno, onde narra-se a chegada de Dante e Virgílio ao Nono Ciclo, no qual são punidos os diferentes tipos de traidores, e onde encontra-se o próprio Diabo em pessoa.


Dante e Virgílio diante dos traidores no lago de gelo do Cócito, no Nono Ciclo. Ilustração de Gustave Doré, séc. XIX. 

Outro elemento presente no Apocalipse de Paulo e que aparece na Divina Comédia é a ideia de poços contendo pecadores que eram torturados. No relato do apocalipse, Paulo vê homens e mulheres sendo devorados por serpentes, e ali eram punidos aqueles que negaram a conversão. Na Divina Comédia há várias menções a poços, mas a principal encontra-se no Oitavo Ciclo, que é descrito ao longo de alguns capítulos, onde situam-se os malebolges, em número de dez, nos quais punem-se pecados associados com a fraude, a malícia, a trapaça e a mentira.

O terceiro exemplo que citamos para o Inferno é a Visão de Túndalo (Visio Tnugdali), escrita no século XII, e que se tornou uma narrativa popular, sendo bastante conhecida posteriormente. Redigido em latim por um monge chamado Marcos, o manuscrito narra a história de Túndalo, homem que vivia na Irlanda, que entre os dias 3 e 6 de novembro de 1148, esteve num profundo sono, a ponto que sua alma saiu do corpo e foi guiada por um anjo ao Inferno, onde lhe é apresentado aos terrores ali contidos. Apesar que depois Túndalo foi levado ao Paraíso, antes de despertar. (EASTING, 1997, p. 70-71).

Nessa visão não se descreve o Inferno dividido em zonas, apenas relata-se diferentes pecados e suas punições, que no caso, são enumerados nove tipos de pecados. E o interessante é que Túndalo e o anjo viajam sempre na direção do centro do Inferno, onde é dito residir o Diabo. Algo que encontramos paralelo na Divina Comédia, na qual Dante e Virgílio passam por nove etapas para chegar ao centro do Inferno.

Outras duas características que destacamos são a menção novamente a existência de neve e gelo – algo citado anteriormente –, e a existência de um monstro que não é identificado, o qual devoraria os pecadores, que seriam punidos no estômago da besta, sofrendo de frio, fogo e outros males não descritos. Aqui fazemos um paralelo com o poema dantesco, reportando-se ao Canto VI, em que descreve o Terceiro Ciclo, onde habita Cérbero, o cão de três cabeças da mitologia grega, o qual devorava os pecadores que cometeram gula. Nota-se semelhanças entre ambos os relatos.

Uma outra visão que destacamos é a Visão de Frei Alberico do Settefrati, redigida no século XII, e atribuída ao monge Guido de Monte Cassino, na Itália. Essa história narra que Alberico na idade de 10 anos, esteve em coma que durou nove dias e nove noites, e durante tal estado, sua alma foi guiada ao Inferno e o Paraíso por São Pedro e dois anjos chamados Emmanuel e Hélios. (GARDINER, 1993, p. 50).

Em sua narrativa sobre o Inferno, ele descreve vários locais e punições, mostrando a ideia de um Inferno organizado e dividido. Alberico relata que viu gelo, neve, lagos de fogo, poços, serpentes, dragões e demônios, elementos já vistos em outros apocalipses e visões, e também encontrados na Divina Comédia. No entanto, sublinhamos aqui um dado novo, pois Alberico ao chegar ao Inferno, o primeiro local que visitou, era uma região onde estavam as crianças não batizadas. Este local na doutrina católica trata-se do Limbo, e que no Inferno de Dante, consiste no Primeiro Ciclo, onde habitaria além das crianças não batizadas, todos aqueles pagãos e judeus virtuosos que viveram antes de Cristo, como o próprio Virgílio, o qual guia Dante nessa jornada.

O Purgatório

A doutrina do Purgatório que esteve vigente até o começo do século XXI, quando foi abolida pelo papa Bento XVI, consistiu ao longo de séculos uma crença difundida por parte da cristandade, sobretudo os católicos e ortodoxos, consistindo em um mundo dos mortos que agia como meio-termo entre a danação do Inferno e as bonanças do Paraíso. No caso de Dante, ele foi influenciado principalmente por referenciais mitológicos greco-romanos e aspectos das doutrinas do Purgatório, redigidas por teólogos como Agostinho de Hipona, Gregório Magno e Tomás de Aquino. (SARDAGNA, 2006). Neste caso, sublinha-se que o Purgatório de Dante teve pouca influência dos apocalipses apócrifos, mas uma influência maior de obras teológicas e visões.

Na Divina Comédia o Purgatório consiste numa altíssima montanha que ficaria situada no lado oposto do mundo em meio a um oceano, sendo essa montanha dividida no Antepurgatório (que se subdivide em três partes, sendo a área que acolhe as almas e as sentenciam), em seguida sobe-se para o acesso que leva aos Sete Ciclos ou Terraços (cornice no original), que conduziam até um jardim no topo, que consistia na porta de entrada para o Paraíso Terrestre. Cada terraço corresponde a um dos Sete Pecados Capitais, onde os pecadores que cometeram tais pecados, eram punidos de forma “branda”, enquanto aguardavam sua absolvição. Dante e Virgílio sobem por estes terraços até chegarem ao jardim.

Representação da Montanha do Purgatório, segundo descrita na Divina Comédia. 

Agostinho de Hipona (354-430), não nos forneceu em seus vários escritos que redigiu sobre o Purgatório, uma descrição em detalhes de como seria aquele lugar, limitando-se a explicar que seria escuro, mas ali ardia um fogo “purificador”, o qual purgava os pecados dos cristãos, e após essa “limpeza espiritual”, eles estariam aptos a irem ao Paraíso. (LE GOFF, 1995, p. 85-105). No que tange os relatos de Agostinho sobre o Purgatório, o que se encontra na Divina Comédia é apenas a relação com o fogo purificador, o qual aparece brevemente citado nos Cantos XXV e XXVI, onde é narrado que os luxuriosos eram punidos com fogo, no Sétimo Terraço, pois Dante descreve diferentes tormentos para os demais pecados.  

O papa Gregório, o Grande (540-604), que além de ter redigido sobre o Purgatório, também definiu a lista dos Sete Pecados Capitais, também defendia que o Purgatório ficaria situado acima do Inferno, algo visto também no poema dantesco. (DRUMMOND, 2014, p. 52-53).

Todavia, na Idade Média, o Purgatório em alguns casos era descrito contendo tormentos similares aos encontrados em relatos sobre o Inferno. Um dos relatos mais conhecidos sobre o Purgatório trata-se do Tratado do Purgatório de São Patrício, redigido no século XII, na Irlanda, sendo de autoria anônima, cujo relato credita a um cavaleiro chamado Owein, a viagem até o Purgatório, situado numa ilha em um lago. Destacamos algumas referências em comum com a Divina Comédia.

Uma primeira semelhança breve, entre as duas descrições do Purgatório, é sua associação com a água. Owein usa um barco para cruzar um lago, já Dante e Virgílio também usam um barco, mas atravessam um oceano. Em ambos os casos o Purgatório fica situado em ilhas, a diferença é que no primeiro exemplo, ele está localizado no subterrâneo, e no segundo consiste numa montanha, a qual simbolicamente coaduna com a ideia de ascensão espiritual, à medida que Dante vai sendo expurgado de seus pecados para poder chegar ao Paraíso terreno.

Outra referência ocorre no capítulo X do Tratado, em que Owein descreve ter visto pecadores arranhando a terra, e estando com pregos cravejados em suas mãos e pés (algo que lembra a crucificação de Cristo). Não é mencionado o tipo de pecado que eles cometeram, mas na Divina Comédia, no Canto XIX, o qual aborda a punição aos avarentos, eles padecem de forma similar. Por sua vez, no capítulo XXI do Tratado, Owein sai do Purgatório é chega a um belo jardim que seria o prenúncio do Paraíso, algo que lembra a condição de Dante também chegar a um jardim e a partir deste poder ascender aos Céus.

Dante e Beatriz à margem do Letes. Cristóbal Roja, 1889. A pintura retrata quando os dois amantes platônicos se reencontram no Paraíso terrestre, no topo do Purgatório. Virgílio os observa. Ao fundo vem-se outros pecadores expurgados, que preparam-se para ir ao Paraíso. 

Paraíso

O Paraíso consiste na parte final da viagem de Dante, a qual ele realiza ao lado de sua amada musa, Beatriz, encontrando vários santos, reis e heróis da Antiguidade, mesmo aqueles que não foram cristianizados, ainda assim, por suas virtudes receberam a permissão de viverem em um dos Céus. Dante divide o Paraíso em Dez Céus ou Esferas (cielo e sfere no original), os quais recebem os nomes dos planetas conhecidos na época: (Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno, exceto a Terra), da Lua e do Sol. Os outros três céus são chamados de Estrelas Fixas, Primum Mobile e Empíreo. Sendo que neste último residia o próprio Deus, sendo um céu fixo, pois segundo a concepção astronômica vigente naquele período, os outros céus eram móveis.

Os dez céus citados na Divina Comédia e outros dados astronômicos. Bartolomeu Velho, 1568. 

Nesse livro, nota-se claramente influências da astronomia da época, a qual ainda era baseada nas ideias de Aristóteles (384-322 a.C.) e Ptolomeu (90-168). Além disso, Dante se inspirou na própria Bíblia, com suas descrições sobre os Céus e o Paraíso. Ele também teria utilizado referências de textos apócrifos como o Livro de Enoque, conhecido por relatar a viagem desse profeta, feita ao Paraíso, além de remeter-se a conceitos escolásticos e filosóficos romanos sobre temperança, virtude, sabedoria e justiça, para classificar os habitantes das Nove Esferas. Todavia, Dante em seu relato não cita nenhuma cidade celeste como visto no Apocalipse de João, no Apocalipse de Paulo e em outros relatos, um diferencial de sua versão sobre o Paraíso.

O relato do Paraíso no Apocalipse de Pedro é breve, e o que destacamos é a condição dessa narrativa basear-se na mitologia grega para descrever o Paraíso, comparando-o aos Campos Elísios. Na Divina Comédia, Dante também faz referência a esse lugar, citando belos prados com flores, mas a principal referência encontra-se no rio Letes, que nos mitos gregos era o rio do esquecimento, situado nos Elísios, onde as almas bebiam de suas águas para se esquecer de suas vidas e culpas. Essa ideia é conservada por Dante, mas modificada um pouco, pois o Letes como informado no Canto XXXI do Purgatório, torna-se também um rio de purificação para aqueles que se encontravam na montanha do Purgatório.

Já a descrição do Paraíso no Apocalipse de Paulo também é breve, e divide este lugar em três céus, sendo que no primeiro ficaria a Cidade de Cristo, uma referência a Jerusalém Celeste na Bíblia. Porém, excetuando-se as descrições de belas paisagens, coros de anjos e almas vestidas de branco, o relato do Paraíso desse apocalipse pouco possui de paralelo com a Divina Comédia. Com isso passamos para a próxima fonte.

Na Visão de frei Alberico o protagonista também viajou ao Paraíso, subindo por uma escada da mesma forma que Enoque. Ali ele relatou ter visto belos prados com rios de águas límpidas e campinas cheias de flores. Características essas presentes na Divina Comédia como comentado. No entanto, a maior influência que destacamos aqui é o fato que nesta visão o Paraíso é dividido em sete céus, os quais são nomeados e associados aos planetas, algo presente no poema dantesco.  E embora outros relatos citem a existência de mais de um céu, essa visão em particular é um dos poucos que fornecem nomes para cada uma dessas zonas.

Na Visão de Túndalo também existem exaltações as belezas do Paraíso, as virtudes, aos anjos, santos, profetas, virgens e mártires, algo visto nas obras de Alberico e de Dante. Neste relato também se menciona a existência de nove coros angelicais, algo visto em outras obras e citado também no Canto XXX do Paraíso. Túndalo também informa que conversou com os anjos e santos, destacando São Paulo, São Pedro, São Patrício e São Ruadano. Sublinha-se que na Divina Comédia, Dante e Beatriz conversam com vários santos também. Um dado a ser destacado, pois em outras visões e apocalipses, poucos santos são mencionados, ou as vezes nem se citam seus nomes.

Fresco mostrando Dante e Virgílio conversando com São Tomás de Aquino, São Alberto Magno, o filósofo Pedro Lombardo e o filósofo Siger de Brabante, na Esfera do Sol. Pintura de Philip de Veit, 1817-1827. 

Tanto as visões de Alberico e de Túndalo enfatizam bastante a presença de música e dança, como respaldo para a alegria dos salvos e para a adoração de Deus. Nessas duas visões ambos os personagens contam terem visto grandes e belos coros de anjos e santos. E um dado interessante é que nestas visões não há menções a uma cidade celeste, algo visto nos apocalipses de João e Paulo, o que torna as duas visões, nesse sentido, mais próximas das descrições contidas no Paraíso de Dante.

No Tratado do Purgatório de São Patrício, o cavaleiro Owein também chegou ao Paraíso. O interessante que antes de adentrar neste, ele ficou diante de uma montanha e um anjo pediu para ele olhar para o céu e pediu que o cavaleiro descrevesse sua cor, e esse diz ser dourado. Nesse trecho da narrativa, identificamos um paralelo com a Divina Comédia, pois Dante também avista uma montanha – que é o Purgatório –, e sobre essa encontra-se a entrada para o Paraíso. Mas diferente de Dante, o cavaleiro permanece pouco tempo no céu, apenas tendo um vislumbre de suas maravilhas e dádivas, então é enviado de volta para sua casa, enquanto Dante prossegue com sua jornada.

Considerações finais:

Encerramos nossos comentários comparativos entre dois apocalipses apócrifos, que foram os de Pedro e Paulo, por serem os mais extensos e influentes no medievo, embora existam outras dezenas de apocalipses, mas devido a serem relatos fragmentados, optamos em não os usar como fonte de comparação. Por sua vez, nos reportamos a quatro visões redigidas no século XII, período áureo para a produção desses relatos, pois coincidiu com a época de movimentos milenaristas que anunciavam o Anticristo, o Armagedon, o Apocalipse e o Juízo Final. (FRANCO JR, 1999, p. 38-46). E neste cenário religioso de dúvidas, preocupações, medos e expectativas, histórias sobre homens comuns que viajaram aos mundos dos mortos e retornaram para relatar as maravilhas e assombros que viram, se tornaram atrativos principalmente pela curiosidade, pois as pessoas acreditando que o Juízo estivesse próximo, elas em alguns casos, passaram a se preocupar quanto ao seu destino e queriam ter uma ideia do que estava porvir.

Não obstante, ficou evidente que Dante Alighieri inspirou-se em apocalipses apócrifos e relatos de visões, algo já conhecido pelos estudiosos dessa obra, mas as vezes não trabalhado com clareza. E com isso decidimos apresentar algumas dessas influências e referências. Mostrando que várias ideias presente na Divina Comédia, já circulavam no medievo, as quais algumas não eram novidade, sendo parte do imaginário religioso daquele período, mas Dante as reuniu e lhe concedeu nova forma para compor sua jornada espiritual.

Nesse sentido, observamos que a estrutura da Divina Comédia seja mais próxima das visões do que dos apocalipses apócrifos, pois embora nestes haja a jornada física ou espiritual dos protagonistas, mas geralmente tratam-se de personagens bíblicos, e em alguns casos eles não viajaram até o Inferno e o Paraíso, apenas avistaram tais lugares como ocorreu João no apocalipse canônico e até mesmo Paulo em algumas versões do apocalipse que recebe seu nome. E nesses apocalipses alguns apresentam profecias, algo ausente na literatura de visões e na própria Divina Comédia.

No entanto, nas visões foi mais comum os protagonistas ou narradores, irem ao Além, visitando fisicamente ou espiritualmente por meio de sonho ou visão, tais mundos dos mortos. E esses homens geralmente são pessoas comuns como um frade, um cavaleiro, um camponês, o que os tornam em personagens mais próximos da população, além da condição de não serem santos, e foram ali devido aos seus pecados, para que aprendessem com seus erros. O que Le Goff (1995, p. 60) chamou de exemplum, o que consistiu em uma narrativa de origem greco-romana usada para fins políticos. Foi adaptada pelos cristãos para se tornar instrumento de evangelização. No século XII voltou a se popularizar, trazendo elementos “supostamente” verídicos para serem usados como motivos de um discurso moral e religioso, geralmente associado ao pecado e virtude.

E essa condição está presente na Divina Comédia, pois Dante Alighieri como autor de sua jornada, isso o coloca na categoria de personagens encontrados na literatura de visões, pois Dante era naquele momento, um político e poeta, com suas dúvidas e problemas e que teve a oportunidade de realizar aquela viagem. Aqui sublinhamos que nas visões era comum também os protagonistas apresentarem algum problema, seja medo, frustração, dúvidas, falta de fé, e depois da jornada, eles recuperaram sua fé e procuravam mudar seus comportamentos.

Nos exemplos que utilizamos, isso ocorreu com Túndalo e Owein, e de certa forma com Alberico também, apesar que ele era criança quando teve seu sonho, mas aquilo o motivou a se tornar frei. No caso de Dante, embora o final do seu livro não informe que ele tenha voltado para casa, mas nota-se que ele passou por uma transformação espiritual ao longo de sua jornada que durou uma semana no Além, a qual permitiu ele recuperar sua dignidade e fé e assim poder concluir sua divina aventura estando diante de Deus.

Outro ponto que sublinhamos é a característica que nos apocalipses e visões apresentados, os protagonistas sempre são guiados por anjos ou santos. Alguns possuem nomes, outros não tem identidade definida, mas Dante quebrou com esse modelo e colocou o poeta Virgílio para atuar como seu guia. Trata-se de uma referência a sua obra maior, A Eneida, onde o protagonista Eneias também visitou o Inferno. E ele foi guiado por uma advinha chamada Sibila.

Além disso, Dante informou em sua jornada a data que ela ocorreu e o tempo em que passou viajando, essa característica é encontrada mais comumente nas visões do que nos apocalipses, e em alguns casos, informa-se apenas o tempo que o protagonista esteve fora, mas em outros exemplos como na Visão de Túndalo, é informado o suposto dia que teve início sua visão. E Dante fez o mesmo com seu poema para conceder credibilidade ao relato, pois como assinalado por Le Goff, tais obras eram consideradas por algumas pessoas, como sendo acontecimentos verídicos.

Embora não saibamos por quais intenções Dante forneceu tais informações sobre datas, se ele achou que isso poderia gerar credibilidade ao seu poema, é sabido que ele não viveu para conhecer a repercussão de seu livro, cabendo aos seus admiradores e críticos a missão de difundir essa obra que tornou-se o maior legado da literatura apocalíptica e de visões.

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THOMAS, Henry; THOMAS, Dana Lee. Vidas de Grandes Poetas. Tradução de Brenno Silveira. Rio de Janeiro, Editora Globo, 1965.

Link relacionados:

A Comédia de Dante

Os Sete Pecados Capitais

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