A Floresta Amazônica e o Rio Amazonas receberam esses nomes por conta de que supostamente durante a expedição do explorador espanhol Francisco de Orellana, ocorrida entre 1541 e 1542, foi encontrada uma tribo de mulheres guerreiras que causaram problemas aos espanhóis. Ao retornar para Espanha, Orellana e seus homens relataram terem encontrado amazonas vivendo naquela imensa floresta. No entanto, cronistas que escreveram sobre ocorrido, relataram diferentes versões para tal acontecimento o que levou os historiadores e folcloristas a considerarem que talvez esse encontro não tenha ocorrido ou tenha sido um grande mal entendido.
|
As amazonas em guerra. Gravura para o livro Singularidades da França Antártica (1558), de André Thevet. |
Introdução
O mito das amazonas estão entre as narrativas da mitologia grega que ainda hoje geram fascínio, mesmo que poucas pessoas conheçam as especificidades dessas narrativas, ainda assim, sabem que as amazonas eram uma sociedade feminina e matriarcal, havendo a ausência de homens ou sua baixa presença. No caso, as amazonas seriam uma sociedade essencialmente marcial, conhecida por sua beleza, bravura e até mesmo barbárie. Mas além de constarem nos mitos, historiadores e geógrafos gregos também escreveram sobre o "país das amazonas", tratando-o como se fosse um lugar real, situado em torno do Mar Negro, sendo as amazonas descendentes dos Citas ou Sármatas.
No caso da América do Sul, as amazonas surgiram a partir do relato da expedição de Francisco de Orellana (1511-1546), explorador, político e militar espanhol que participou da conquista do Império Inca (1438-1533). Após alguns anos servindo em cargos de governo e militares no Peru, Orellana decidiu empreender ousada expedição para desbravar e mapear o Grande Rio, nome pelo qual era conhecido o Rio Amazonas. A jornada iniciou-se em novembro 1541, em El Barco no Peru, findando-se em na ilha de Marajó no Brasil, em agosto de 1542.
|
A rota da expedição de Orellana, do Andes ao Atlântico, através do Rio Amazonas, entre 1541 e 1542.
|
Foram vários meses num percurso de mais de seis mil quilômetros através da Floresta Amazônica, sofrendo com ataques, batalhas, mosquitos, doenças, fome, calor, desavenças e outros problemas. Mais de duzentos espanhóis e milhares de indígenas participaram da expedição, embora apenas algumas dezenas chegaram ao final. Mas entre os vários conflitos que os espanhóis tiveram que enfrentar na longa travessia, um deles se tornou mais memorável, o qual ocorreu no mês de junho, em que a expedição foi atacada por uma tribo de mulheres guerreiras. Um frei que participou da expedição, relatou toda a viagem.
Relato de frei Gaspar de Carvajal (1541-1542)
Gaspar de Carvajal (1504-1584) era um missionário dominicano de origem espanhola, o qual acompanhou Orellana em sua expedição, tendo sobrevivido a difícil viagem que durou dez meses através do Rio Amazonas. Ele relatou suas memórias dessa expedição no livro Relación del nuevo descubrimiento del famoso rio Grande que descubrió por muy gran ventura el capitán Francisco de Orellana.
Nesse relato temos a primeira menção as amazonas, em que Carvajal diz que um indígena chamado Aparia, em cuja tribo acolheu os espanhóis, falou que havia uma tribo de amazonas vivendo naquela floresta e também tinha um cacique chamado Ica, que era dono de grande quantidade de ouro. (CARVAJAL, 1942, p. 12).
A expedição permaneceu mais de um mês em território do cacique Aparia, aproveitando para reparar suas embarcações, construir um navio, descansar e reunir alimento. O frei relata que durante uma nova conversa, ouviu falar novamente das amazonas, dizendo que aquele povo de Aparia as chamava de coniupuyara, que significava "grandes senhoras". O indígena os alertou a terem cuidado com elas, por serem hostis e estarem em maior quantidade do que os espanhóis. (CARVAJAL, 1942, p. 14).
No começo de junho, o frei relatou que chegaram numa aldeia com grande praça. Ali foram bem recebidos e também souberam que aquele povo pagava tributos a rainha das amazonas. (CARVAJAL, 1942, p. 40).
Finalmente na data de 24 de junho de 1542, Dia de São João, a expedição parou próxima da curva com um rio. Ali os espanhóis encontraram as amazonas. Carvajal disse que elas eram lideradas por capitãs e eram bravias guerreiras, as quais faziam os indígenas que os acompanhavam terem medo de darem as costas para não serem flechados. Elas também usavam porretes para lutar. Todavia, a descrição física das amazonas dada pelo frei é bastante estranha.
"Estas mujeres son muy blancas y altas, y tienem muy largo el cabello y entrenzado y revuelto a la cabeza, y son muy membrudas y andam desnudas em cueros, tapadas sus verguenzas, y con sus arcos y flechas en las manos; haciendo tanta guerra quanto diez indios". (CARVAJAL, 1942, p. 49).
A descrição de frei Gaspar de Carvajal é bastante intrigante, pois ele referia-se as amazonas como sendo mulheres brancas, altas e robustas. Todavia, não haveria mulheres dessa cor, vivendo no interior da Floresta Amazônica. Alguns até alegaram que se tratariam de indígenas de pele clara, mas a descrição do frei é categórica em enfatizar que as amazonas eram bastante brancas. A interpretação que se dá é que ele teria as descrito não como realmente eram, mas baseando-se no relato dos mitos gregos. Pois as amazonas caso elas tenham sido vistas naquele dia, seriam mulheres pardas e baixas.
Apesar dessa descrição problemática, Gaspar de Carvajal prosseguiu o breve relato dizendo que os espanhóis e os indígenas aliados trocaram flechas e tiros contra as amazonas, mas Orellana ordenou que todos batessem em retirada, pois era arriscado prosseguir com aquela batalha. (CARVAJAL, 1942, p. 50).
Um dia depois do encontro com as amazonas, outra tribo foi avistada, e um homem foi feito prisioneiro. Ele que conhecia aquelas terras, falou a respeito do reino das amazonas. O indígena disse que elas não possuíam maridos, viviam apenas mulheres em suas aldeias, as quais eram muitas e ficavam longe dali, em cujo pequeno reino, controlavam estradas e possuíam aldeias muradas. Faziam guerras com as tribos vizinhas para conseguir prisioneiros e depois pedir recompensa por eles. (CARVAJAL, 1942, p. 53-54).
As amazonas para povoar seu reino, relacionavam-se com homens de outras tribos, principalmente da tribo do Rei Branco, que era um poderoso senhor naquela floresta, o qual era respeitado pelas amazonas. Após a gestação, as meninas eram mantidas na tribo, mas os meninos ou eram mortos ou enviados para os pais. (CARVAJAL, 1942, p. 55).
A rainha delas se chamava Conhori, em seu reino havia imensa riqueza em ouro e prata, a ponto do indígena dizer que a capital do reino era uma bela cidade que possuía grandes casas e templos, nos quais se encontravam ídolos de ouro e prata, onde se cultuavam o Sol. O relato também diz que na capital, as amazonas usavam roupas feitas de lã de lhama, mas mantinham os seios descobertos. Seus cabelos eram longos que chegavam a tocar no chão e as mais ricas usavam coroas de ouro. O reino das amazonas era respeitado e temido, possuindo tribos vassalas e inimigas. (CARVAJAL, 1942, p. 56).
Carvajal (1942, p. 57) escreveu que a fama das amazonas era conhecida nos Andes, onde ele ouviu de indígenas de Quito, os quais desciam as montanhas, seguiam pelo Grande Rio para conhecer as terras daquelas mulheres guerreiras.
Relato de frei André Thevet (1558)
Andreté Thevet (1502-1590) foi um frei franciscano de origem francesa que veio ao Brasil para participar da colônia da França Antártica, situada na baía de Guanabara. Interessado por aquelas terras e tendo em vista também escrever a respeito do Brasil para propagar na França, a fim de defender a colônia da qual fazia parte, Thevet redigiu extensa crônica sobre a colônia brasileira, abordando assuntos sobre história, geografia, costumes, flora e fauna. No caso, ele comentou a respeito da expedição de Orellana, ocorrida dezesseis anos antes. E consequentemente ele também escreveu sobre as amazonas.
“Ao contrário da opinião de alguns
autores, quero crer que são essas mulheres realmente amazonas, porquanto têm os
mesmos costumes de suas homônimas da Ásia. E, antes de ir adiante, é preciso
notar que as amazonas, das quais falo, vivem segregadas em certas ilhotas, as
quais lhes servem também de fortaleza. Demais, quase não têm outra atividade
senão a das guerras perpétuas contra os seus inimigos, – justamente como as
amazonas descritas pelos historiógrafos. De fato, essas ilhas são
frequentemente acometidas pelos inimigos, que lhes vão ao encontro, em canoas
ou em outras embarcações, atacando-as a flechadas, embora se defendam estas por
si mesmas, corajosamente, com ameaças, urros e os mais espantosos gestos”. (THEVET, 2018, p. 376).
“As amazonas fabricam os seus escudos
com os cascos das grandes tartarugas, como o leitor poderá observar na gravura
seguinte. E, já que chegou a oportunidade, direi algumas palavras a respeito
dessas rudes e bravias mulheres, junto às quais os pobres selvagens não
encontram lá tão grande consolo”. (THEVET, 2018, p. 377).
|
As amazonas executando prisioneiros. Aqui elas foram retratadas como brancas, de acordo com o relato de Carvajal. Gravura Gravura para o livro Singularidades da França Antártica (1558), de André Thevet. |
Nas páginas seguintes o padre disserta sobre as amazonas, falando que elas existiriam também na África e na Ásia, e depois inicia uma curto debate sobre etimologia do termo, dizendo que não acreditava na história de que elas arrancariam um dos seios por conta do arco. Thevet após comentar sobre o mito grego das amazonas, retoma a sua descrição das amazonas americanas.
“As amazonas americanas vivem em
cabanazinhas, ou nas cavernas rochosas, alimentando-se de peixes e veações
outras, assim como de algumas excelentes frutas produzidas em suas terras.
Matam os filhos machos, assim que nascem, devolvendo-os a seus prováveis pais;
quanto às meninas, guardam-nas consigo, justamente como faziam as antigas
amazonas da Ásia. Ordinariamente, guerreiam algumas outras nações e tratam com
muita desumanidade os que caem em seu poder. Isto é, penduram-nos pelas pernas
a um galho alto de árvore, onde os deixam por algum tempo; se, porém, quando
tornam ao lugar do suplício, os prisioneiros ainda estão, por acaso, vivos,
atiram-lhes milhares de flechas. É verdade que não devoram os inimigos, como os
demais selvagens, mas deitam-nos ao fogo, até os mesmos fiquem reduzidos a
cinzas. No combate, as amazonas avançam lançando horríveis e espantosos gritos.
Isso para amedrontar os contrários”. (THEVET, 2018, p. 380-382).
Relato de Gabriel Soares de Sousa (1587)
O cronista, explorador e fazendeiro Gabriel Soares de Sousa (1540-1591), foi um dos primeiros a escrever uma obra-geral descrevendo a colônia do Brasil, intitulada Tratado Descritivo do Brasil (1587), um longo livro, em que forneceu vários dados históricos e geográficos, além de informações sobre a colonização, os povos indígenas e suas sociedades e costumes. No caso, Sousa (2013, p. 39) cita algumas vezes as amazonas, falando que elas teriam sido a primeira vez avistadas por Francisco de Orellana em 1542. Além disso, o autor designa que as amazonas seriam uma tribo do ramo dos Tapuias, assim como, eram ubirajaras, amoipiras e tupinaés, e viveriam no Pará.
Em sua descrição sobre os ubirajaras que viveriam no sertão, Gabriel Soares, disse que essa tribo de bárbaros era conhecida por estar em guerra contra os amoipiras, mas também lutavam contra uma tribo de mulheres.
"e pela outra com mulheres, que dizem ter uma só teta, que pelejam com arco e flecha, e se governam e regem sem maridos, como se diz das amazonas; dos quais não podemos alcançar mais informações, nem da vida e costumes destas mulheres". (SOUSA, 2013, p. 357).
Nesse breve comentário sobre as amazonas, observa-se que Sousa disse ter pouco a falar delas, pois as informações ainda eram desconhecidas sobre aquele povo. No entanto, chamo atenção a condição de ele dizer que elas teriam apenas um seio, ideia essa não citada no relato de Carvajal, mas que advém diretamente da mitologia grega, em que algumas narrativas diziam que as amazonas arrancavam um dos seios (geralmente o direito), para não atrapalhar na hora do manejo do arco. Inclusive a palavra amazona poderia significar "sem seio". Observa-se assim, que Gabriel Soares valeu-se dessa descrição mitológica para se referir as amazonas brasileiras.
Relato do padre Yves D'Evreux (1615)
Em 1612, chegou à Capitania do Maranhão, Yves D'Evreux (1577-1632), padre, cronista e naturalista, incumbido de participar de uma expedição de reconhecimento daquelas terras que estavam ocupadas pelos franceses, embora pertencessem a Portugal. Em seu relato intitulado Voyage dans le nord du Brésil (1615), ocorrido entre 1613 e 1614, D'Evreux escreveu várias informações sobre a natureza e a fauna, dando especial atenção aos insetos, os quais possuía admiração. Além disso, ele também relatou sobre a evangelização daquele território e notícias sobre alguns povos indígenas.
D'Evreux (1874, p. 23-24) escreveu que as amazonas eram filhas dos Tupinambás, as quais por motivos desconhecidos se rebelaram contra sua tribo e criaram uma tribo própria, onde viviam apenas mulheres, as quais residiam numa grande ilha próxima ao Rio Maranhão ou Rio Amazonas. Elas uma vez ao ano iam até as tribos vizinhas para poderem engravidar. Os meninos eram entregues aos pais, mas as meninas ficavam com as mães. D'Evreux relatou que conheceu um tupinambá que lhe disse que a ilha das amazonas ficava um mês de viagem da aldeia onde ele vivia.
Entretanto, D'Evreux (1874, p. 24) se mostrou incrédulo em seu relato ao referir-se aquelas mulheres como sendo amazonas. Ele escreveu que elas não cortavam um dos seios como era dito nos mitos, além disso, não seriam grandes guerreiras, mas mulheres selvagens, que eram ágeis e hábeis no manejo do arco, e se defendiam como podiam, não apresentando uma grande ameaça. Ele também concluiu que o termo amazona dado pelos espanhóis e portugueses, tenha sido empregado de forma errada.
Um dado interessante visto no relato de D'Evreux é que o indígena que ele conheceu, disse que as amazonas viviam numa ilha, algo que lembra algumas narrativas gregas, em que situavam o lar das amazonas como sendo numa ilha no Mar Negro.
Relato de Pedro Teixeira (1638-1639)
Pedro Teixeira (c. 1570-1641) foi um explorador, governador e militar português, responsável por campanhas no Maranhão e Pará. Em 1637 ele empreendeu expedição através do Rio Amazonas para chegar até o Peru, realizando o caminho contrário feito por Orellana, quase um século antes. Seu relato não é tão extenso e detalhado, no entanto, é citado que quando ele e seus homens encontraram-se com o povo Omagua, os mesmos que Orellana tinha conhecido, alguns membros tinham dito que haviam há dois meses recebido a presença de amazonas, as quais tinham ido levar bebês homens para dar a eles. Essa é a principal informação contida em seu relato sobre a tribo das amazonas. (TEIXEIRA, 1889, p. 85-86).
Relato do padre Alonso de Rojas (1639)
Nascido na Espanha, Alonso de Rojas (1588-1653), entrou na Companhia de Jesus e em 1612, mudou-se para o Equador, onde viveu o resto da vida. Tendo contato com as bibliotecas locais das igrejas e dos colégios religiosos, Rojas decidiu escrever um pequeno relato sobre a história natural do descobrimento do Rio Amazonas, cujo relato foi intitulado Relación del Descubrimiento del Rio Amazonas y hoy San Francisco de Quito. Apesar de sua obra enfatizar bastante o lado geográfico e natural do rio, em dados momentos, ele comentou sobre alguns povos indígenas, incluindo as amazonas.
“Disseram estes índios ao soldado que
os entendia, que nas bandas do Norte, aonde iam uma vez por ano, havia umas
mulheres, e ficavam com elas dois mêses e se dessa união tinham parido filhos, os
traziam consigo, e as filhas ficavam com as mães. E que eram umas mulheres que não
tinham mais de um seio, muito grandes de corpo, e que diziam que os homens
barbados eram seus parentes, e que os levassem alí. A estas índias chamam
comumente Amazonas (icamiabas)”. (ROJAS, 1941, p. 112).
Embora não traga novidades, inclusive algumas das informações foram diretamente baseadas no relatório de Pedro Teixeira, no entanto, Alonso de Rojas usou no original de seu texto o termo ycamiaba, que é traduzido como "sem seio", consistindo numa tradução da palavra grega amazona. De fato, ele tomou como referência o mito grego para se referir a aquelas mulheres, além de dizer que elas eram "aparentadas" dos homens brancos, uma referência ao relato de Carvajal, que as descreveu como mulheres brancas.
Relato do padre Cristóbal de Acuña (1641)
No ano de 1637, o missionário jesuíta Cristóbal de Acuña (1597-1670), participou de uma expedição a Amazônia, liderada pelo militar português Pedro Teixeira. O relato dessa viagem foi publicado anos depois, intitulado Nuevo Descubrimiento del Gran Rio de las Amazonas (1641). Sua obra difere-se da de Teixeira, por apresentar mais descrições geográficas sobre a viagem, embora que algumas dessas descrições foram retiradas do livro de Alonso de Rojas. No entanto, as informações sobre as amazonas também foram breves.
Acuña pouco escreveu sobre as amazonas, dizendo que viviam em aldeias apenas com mulheres, mas uma vez ao ano, iam visitar tribos vizinhas, como dos Guacaras, para poderem procriar. As filhas ficavam com elas e os meninos eram mortos ou enviados aos pais. Ele não descreveu a aparência delas, tampouco falou sobre sua sociedade e costumes. (ACUÑA, 1641, p. 37-38)
Acuña já em seu relato diz que as amazonas seriam vizinhas dos Guacaras e dos Tupinambás, enquanto Teixeira e Rojas disseram que elas eram vizinhas do Omaguas.
Relato do padre Simão de Vasconcelos (1663)
De origem portuguesa, entrou na Companhia de Jesus, ordenando-se padre. Simão de Vasconcelos (1597-1671) viajou ao Brasil como procurador-geral em Roma e na província do Brasil. Atuou como padre e teólogo. Ele redigiu uma extensa crônica com o título Crônica da Companhia de Jesus no Estado do Brasil e do que obraram seus filhos nestas partes do mundo (1663). Como o título indica, a obra versa sobre um relato histórico sobre as missões jesuíticas no Brasil, mas em meio a isso, o livro também traz informações sobre a história, geografia, natureza, costumes, culturas, lendas, etc. Em determinado momento, Vasconcelos cita que no Brasil haveriam seres fantásticos como anões e gigantes, e as amazonas.
“Diziam que, entre as nações
sobreditas, moravam algumas monstruosas. Uma é de anões, de estatura tão
pequena, que parecem afronta dos homens, chamados Goiazis.
Outra é de casta de gente, que nasce
com os pés às avessas de maneira que quem houver de seguir seu caminho há de
andar ao revés do que vão mostrando as pisadas; chamam-se Matuiús.
Outra é de homens gigantes, de 16
palmos de alto, adornados de pedaços de ouro por beiços e narizes, e aos quais
todos os outros pagam respeito; têm por nome Curinqueãs.
Finalmente que há outra nação de
mulheres, também monstruosas no modo do viver (são as que hoje chamamos
Amazonas, e de que tomou o nome o rio) porque são guerreiras, que vivem por si
só, sem comércio de homens; vivem entre grandes montanhas; são mulheres de
valor conhecido”. (VASCONCELOS, 1874, apud CASCUDO, 2014, p. 56).
Relato de La Condamine (1751)
Explorador e cientista francês, Charles Marie de La Condamine (1701-1774), realizou expedições científicas pela África, Ásia e América do Sul. Era conhecedor de distintas ciências como geografia, matemática, física, geodesia, botânica, zoologia, além de ser poliglota e um aventureiro nato. Viveu nove anos a trabalho na América do Sul, entre 1735 e 1744, viajando pelo Panamá, Colômbia, Equador, Peru e o Brasil, mapeando e catalogando espécimes vegetais e animais, até porque era representante da Academia Francesa de Ciências. Entre os anos de 1743 e 1744 percorreu o rio Amazonas, indo dos Andes ao Pará. Foi nessa viagem que ele comentou um pouco a respeito das amazonas, embora não tenha visto nenhuma delas.
La Condamine em seu livro intitulado Viagem a América Meridional descendo o rio das Amazonas (1751), disse que ele e sua expedição esteve intrigada quanto aos relatos sobre aquelas guerreiras e perguntavam aos indígenas informações a respeito. La Condamine respondeu que receberam vários informes, mas nada que assegurasse que elas poderiam ter sido reais ou não passavam de uma lenda local. Apesar que alguns dos indígenas sugeriram que elas vivem ao norte do Rio Negro ou viviam para o lado do Grão-Pará e Maranhão. Todavia, ele conheceu um indígena que lhe forneceu mais informações a respeito.
“Um índio de São Joaquim d’Omáguas nos
dissera que acharíamos talvez ainda em Coari um velho cujos pais avistaram as
Amazonas. Soubemos aí que o índio que nos fora indicado havia morrido; mas
falamos ao filho que parecia ter 70 anos, e que chefiava os outros índios da
mesma aldeia. Ele nos afirmou que o seu avô vira com efeito discorrer tais
mulheres pela entrada do rio Cuchivara, provindo do rio Caiame, que desemboca
no Amazonas pelo lado sul, entre Tefé e o Coari; que ele chegou a falar com quatro
dentre elas; e que uma trazia uma criança ao peito. Ele nos disse o nome de
cada uma, e ajuntou que, partindo do Cuchivara, elas atravessaram o grande rio,
e tomaram o rumo do rio Negro. Omito certos pormenores pouco verossímeis, mas
que em nada importam para o essencial da coisa. Abaixo do Coari, os índios nos
disseram sempre o mesmo, com algumas variantes nas circunstâncias: mas todos
estavam de acordo no principal”. (LA CONDAMINE, 2000, p. 81-82).
|
Localização do Rio Negro e outros rios amazônicos. |
“Em particular o Tapajós, de que
faremos menção a seu tempo mais expressamente. Referiram-se a certas pedras
verdes, conhecidas como “das amazonas”, que dizem haver
herdado de seus pais, e estes as tiveram das “cunhantainsecuima”, ou seja, em
sua língua, “mulheres sem marido’, entre as quais, ajuntam eles, existem em
grande quantidade”. (LA CONDAMINE, 2000, p. 81-82).
As tais pedras verdes citadas consistem em amazonitas, uma variedade de feldispato verde. Tais pedras são usadas como joias e amuletos por alguns povos da floresta amazônica, porém, foram associados a lenda das amazonas, pois diziam que elas esculpiam amuletos chamados muiraquitãs, os quais davam para um homem que decidiam se relacionar para gerar um filho dele. Tais pedras também são consideradas como amuletos de proteção e boa sorte.
|
Amazonitas, pedras associadas a lenda das icamiabas. |
“Um índio habitante de Mortigura,
missão vizinha do Pará, ofereceu-se a mostrar-me um rio por onde se podia
remontar, segundo ele, até pouca distância do país atualmente habitado, dizia o
mesmo, pelas amazonas. Tal rio se chama Irijó, e depois passei pela sua
embocadura, entre Macapá e o cabo Norte. Conforme o reconto do mesmo sujeito,
no ponto em que esse rio deixa de ser navegável por causa dos saltos, há-se de,
para penetrar no País das Amazonas, caminhar vários dias pelos bosques da
margem do oeste, e atravessar um país montanhoso”. (LA CONDAMINE, 2000, p. 83).
“Um velho soldado da guarnição de
Caiena, habitando agora próximo dos saltos do rio Oiapoque, assegurou-me que
num destacamento em que ele estava, destacamento enviado pelas terras para
reconhecer o país, em 1726, havia penetrado até os
amicouanes, nação de largas orelhas que vive acima das nascentes do Oiapoque, e
perto das de outro rio afluente do Amazonas; e que aí ele vira nos pescoços das
mulheres dessas mesmas pedras verdes de que acabo de falar; e que tendo
perguntado a esses índios donde as tiravam, obteve como resposta que provinham
das mulheres “que não tinham marido”, cujas terras demoravam a sete ou oito
dias de jornada para o lado do ocidente. Essa nação dos amicouanes habita longe
do mar, num país alto, onde os rios não são navegáveis ainda; assim eles não
tinham aparentemente recebido essa tradição dos índios do Amazonas, com os
quais não tinham comércio: eles não conheciam senão as nações contíguas às suas
terras, entre as quais os franceses do destacamento de Caiena tinham tomado
guias e intérpretes”. (LA CONDAMINE, 2000, p. 83).
|
A fronteira atual entre Brasil e a Guiana Francesa, cortada pelo rio Oiapoque. |
Essa parte do relato do cientista francês é interessante, pois foi sugerido que a terra das amazonas ficaria ao norte de Macapá, numa região montanhosa, algo que coaduna com o relato do padre Vasconcelos que disse ter ouvido que as amazonas viviam numa terra com montanhas. Talvez seja uma referência as serras encontradas nos estados brasileiros do Amapá e Rondônia ou na Guiana Francesa. Além disso, ele voltou a dizer que alguns indígenas carregavam colares com pedras verdes, podendo ser uma referência aos muiraquitãs de amazonita.
“Deve-se preliminarmente notar que
todos os testemunhos que acabo de arrolar, outros que deixo de referir, assim
como os de que se fez menção nas informações dadas em 1726, e depois os dos
governadores espanhóis da província de Venezuela, concordam no fundo na existência
das Amazonas; mas o que não merece menor atenção é que enquanto essas diversas
relações designam o lugar de retirada das amazonas americanas, umas para o
oriente, outras para o norte, ainda outras para o ocidente, todas essas
direções diferentes concorrem em situar o centro comum de convergência nas
montanhas do Guiana, e num cantão onde nem os portugueses do Pará, nem os
franceses de Caiena, ainda penetraram”. (LA CONDAMINE, 2000, p. 83).
“Apesar de tudo, confesso que eu não
acreditaria facilmente que as amazonas aí estão estabelecidas, sem notícias
mais positivas, de vizinhança em vizinhança, pelos índios limítrofes das
colônias européias da costa da Guiana; essa nação ambulante poderia muito bem
ter ainda mudado de residência; e o que me parece mais verossímil que tudo o
mais é que elas perderam com o tempo seu antigo costume, ou porque tenham sido
subjugadas por outra nação, ou porque cansadas de tanta solidão as jovens
acabaram por olvidar a aversão materna com respeito aos homens. Assim, quando
hoje não se achassem mais vestígios dessa República de Mulheres, não se pode
dizer que ela não haja alguma vez existido”. (LA CONDAMINE, 2000, p. 83).
La Condamine se apresentou incrédulo com o relato das amazonas, sugerindo se tratar de uma lenda possivelmente de origem indígena, mas alterada pelos europeus, como ele comentou. Por outro lado, tal lenda poderia ter surgido a partir de mulheres guerreiras que algum dia existiram, mas que não significasse que vivessem num matriarcado ou numa sociedade sem homens.
Considerações finais:
De acordo com Câmara Cascudo (2005, p. 69-70), o encontro com as supostas amazonas avistadas pela expedição de Orellana, ocorreu entre o rio Jamundá ou Nhamundá e o rio Trombetas. No entanto, Cascudo sublinha que não se tem como saber se esse relato escrito pelo frei seria fruto de lendas indígenas, como ele ouviu, ou ele mesmo acrescentou algo a tal história.
|
Localização dos rios Nhamundá e Trombetas na bacia amazônica. Nesse ponto teria ocorrido o encontro da expedição de Orellana com as amazonas. |
Tal condição foi ponto de debate por vários estudiosos, em que alguns tentaram provar que as icamiabas realmente existiram ou existiam, não sendo necessariamente uma lenda. Teorias surgiram e até expedições feitas por estrangeiros nos séculos XVIII e XIX, alegaram terem encontrado vestígios materiais como amuletos e estatuetas, os quais supostamente pertenceriam ao povo das amazonas. Porém, nada disso confirmava a existência de fato daquele povo, fato esse que o Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB), fundado em 1839, decidiu por sugestão de D. Pedro II investigar o caso. (LANGER, 2009).
“D. Pedro II, homem culto e afeito às
ciências, sugeriu aos sócios do IHGB que sua existência fosse investigada.
Encarregado de examinar o caso, o poeta e indianista Gonçalves Dias levou menos
de dois meses para elaborar uma erudita tese com 70 páginas dedicada ao assunto
e publicada na Revista do IHGB em 1855. Para o escritor, pouco importava o
momento histórico em que haviam sido produzidas: eram todas narrativas
totalmente fantasiosas, criadas para despertar a curiosidade alheia e estimular
a busca de riquezas nos desconhecidos trópicos. O grande problema era rebater
os relatos orais recolhidos desde La Condamine. Gonçalves Dias não chegou a uma
resposta definitiva: não sabia se eles eram uma invenção dos indígenas ou dos
europeus. Preferiu mostrar ao leitor as possíveis contradições de uma sociedade
formada só por mulheres. Com dados demográficos, tentou comprovar que a taxa de
nascimentos seria muito baixa, o que ocasionaria a extinção de qualquer grupo
desse tipo. Sua derradeira conclusão foi de que não houve verdadeiras amazonas
nem no Velho Mundo e nem nas Américas. A lenda das intrépidas mulheres parecia
definitivamente enterrada”. (LANGER, 2009).
A ideia de que os europeus tenham alterado lendas sobre mulheres guerreiras é algo cogitado nas últimas décadas, embora não seja novidade, pois em 1558, o padre André Thevet escreveu em seu livro que achava o uso da palavra amazona inapropriado, pois elas não teriam uma conexão propriamente com as amazonas citas, as quais eram citadas pelos mitos gregos. Apesar que Thevet chegou a alegar que as "amazonas americanas" seriam uma "quarta raça" de amazonas.
Salienta-se também a condição de que excetuando-se a descrição mais detalhada de frei Gaspar de Carvajal, o qual inclusive teria incluído elementos da cultura inca para descrever a sociedade das amazonas, os demais relatos apresentados, em geral, pouco informam sobre a sociedade, aldeias, cidades e costumes desse povo, limitando-se a repetir que elas eram uma sociedade sem homens, ficavam com as meninas e ou matavam os filhos. Tais características são encontradas em relatos gregos sobre as amazonas.
Além disso, sublinha-se que cada autor indicava que elas viveriam em diferentes localidades na Floresta Amazônica. Carvajal falou em muitas aldeias e uma cidade; já Thevet disse que elas viviam em pequenas cabanas ou cavernas, tendo hábitos mais primitivos; D'Evreux assinalou que elas viveriam numa grande ilha, mas os outros autores falam em aldeias espalhadas pela floresta, embora Vasconcelos tenha dito que elas viveriam entre montanhas, algo confirmado pelos relatos apurados por La Condamine. É preciso considerar que a geografia lendária é algo impreciso, havendo diferentes localidades para uma mesma coisa, e o caso das amazonas isso é claramente visível.
O que se conclui é que trata-se de uma lenda de origem incerta, a qual foi bastante misturada a elementos dos mitos gregos, fato esse que os cronistas em muitos casos, forneciam descrições presentes na mitologia grega e não propriamente nos relatos que ouviam dos indígenas.
NOTA: O Rio Amazonas possui mais de 6.500 km de extensão, sendo o mais extenso e volumoso rio do mundo. Sua nascente se situa em Nevado Mismi, no Peru, e sua foz encontra-se no Pará, no Brasil.
NOTA 2: As icamiabas aparecem no romance Macunaíma (1928) de Mário de Andrade, onde o personagem e seus irmãos as encontram e se relacionam com elas.
NOTA 3: No livro A Saga de Arzen: A Aliança da Espada (2013) de Leandro Vilar, existem amazonas vivendo na Floresta Amazônica, e algumas delas são brancas como narrado por Carvajal.
NOTA 4: O desenho de curta-metragem Icamiabas na Amazônia de Pedra (2012), apresentam quatro amigas que atuam como heroínas nos dias atuais. A animação ganhou novos episódios em 2017.
NOTA 5: Yara Flor é uma amazona brasileira que atua como a Garota Maravilha e a Mulher-Maravilha em alguns quadrinhos da DC Comics, mais recentes.
NOTA 6: Embora os muiraquitãs mais famosos são referidos sendo feitos de amazonita, alguns exemplares de quartzo e jade foram encontrados também.
Fontes:
ACUÑA, Cristóbal de. Nuevo Descubrimiento del Gran Rio de las Amazonas. Madrid, Imprensa del Reyno, 1641.
CARVAJAL, Gaspar de. Relación del nuevo descubrimiento del famoso rio Grande que descubrió por muy gran ventura el capitán Francisco de Orellana. Quito, Biblioteca Amazonas, 1942.
D'EVREUX, Yves. Viagem ao Norte do Brasil. Maranhão, Tipografia do Frias, 1874.
LA CONDAMINE, Charles-Marie de. Viagem a América Meridional descendo o rio das Amazonas. Brasília, Senado Federal, 2000.
LA ESPADA, Márcos Jimenez de. Viaje del Capitán Pedro Teixeira aguas arribas del Rio de las Amazonas (1638-1639). Madrid, Imprensa Fortanet, 1889.
ROJAS, Alonso de. Descobrimento do Rio Amazonas e de suas dilatadas províncias. In: MELO-LEITÃO, C. de (org). Descobrimentos do Rio Amazonas. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1941.
SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil (1587). Rio de Janeiro, Fundação Darcy Ribeiro, 2013. (Coleção Biblioteca Básica Brasileira, v. 14).
THEVET, André. Singularidades da França Antártica, a que outros chamam de América. Brasília, Senado Federal, 2018.
Referências bibliográficas:
CASCUDO, Luís da Câmara. Antologia do Folclore Brasileiro, vol. 1. São Paulo, Global Editora, 2014.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 10a ed. São Paulo, Ediouro, 2005, p. 69-71.
LANGER, Johnni. As indestrutíveis amazonas. Revista de História da Biblioteca Nacional, n. 50, 2009.
Link relacionado:
O mito grego das amazonas